A PRÁTICA EDUCATIVA – A PROPOSTA, AS CONDIÇÕES E OS LOCAIS DE DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE
A partir deste artigo, buscamos refletir sobre o desenvolvimento de uma prática educativa, inspirada pela dança do Maçambique de Osório/RS, que intenciona incorporar o conteúdo simbólico que emerge das imagens, dos sons e dos corpos em movimento dos maçambiqueiros durante a procissão à Nossa Senhora do Rosário. Essa proposta de prática educativa vem sendo experimentada desde 2014, foi executada em três eventos do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em três edições do seminário “Arte e Transdisciplinaridade” no Programa de Estudos Avançados em Psicologia Transpessoal da Unipaz-Sul e em uma oficina ministrada no XXVII Congresso da Federação de Arte/Educadores do Brasil, em Campo Grande/MS1.
Nos dois primeiros espaços, o público estava formado por cerca de 30 adultos, e a prática teve duração aproximada de duas horas. Na modalidade oficina, a atividade foi experimentada por aproximadamente 12 adultos e teve duração de 30 minutos. A cada execução ocorrem alterações no desenvolvimento da prática, mas mantém-se a intenção inicial e uma estrutura básica.
A atividade em questão foi criada a partir do desafio de propor um espaço de aprendizagem em dança popular para além da execução (ou imitação) de passos e coreografias categorizados e identificados em gêneros de dança, visando possibilitar que os movimentos incorporados nessa aprendizagem estivessem carregados das histórias que constituem a dança popular em questão. Isso, mesmo que o contato com a dança tenha ocorrido num espaço distante da comunidade de prática de origem da manifestação.
Tendo como norte essa primeira intenção, fomos buscar quais materiais e metodologias poderiam compor uma prática educativa na qual o corpo é o centro da atividade e que possibilitam a integração, nesse corpo, de diferentes formas de acesso à manifestação da dança. Assim, a dança pode emergir por meio dessa integração, construindo uma perspectiva onde a expressão do movimento resulta de como o sujeito pode colocar-se nas referências simbólicas acessadas.
Como proposta metodológica para o trabalho com a dança do Maçambique, consideramos a vinculação entre os movimentos dos maçambiqueiros da cidade de Osório/RS e as seguintes referências: a pesquisa etnomusicológica publicada por Luciana Prass (2009); as imagens do acervo pessoal e do livro Maçambique de Osório, organizado pelo professor Álvaro Heidrich pelo Museu da UFRGS (2013); a teorização sobre anatomia simbólica, publicada pela pesquisadora Graziela Rodrigues (2005); e, ainda, composições musicais inspiradas na manifestação do maçambique e gravações dos cantos utilizados pelos maçambiqueiros durante a procissão.
MAÇAMBIQUE DE OSÓRIO/RS – HISTÓRIAS E OBSERVAÇÕES2
A prática inicia pelas histórias acerca do Maçambique como uma manifestação cultural que acontece na cidade de Osório/RS. Geralmente, o início é marcado por uma explanação breve do que consideramos as principais características de contextualização geográfica e sociológica que integram a manifestação.
Nesse sentido, o Maçambique é uma festa de pagamento de promessa à Nossa Senhora do Rosário que acontece geralmente no mês de outubro no centro da cidade de Osório, uma cidade litorânea do Rio Grande do Sul, e é realizada por uma família de descendentes de escravos moradores da região de Morro Alto. Essa região, pertencente a Osório, hoje é reconhecida como comunidade remanescente de quilombos. Com a produção do laudo antropológico que reconhece a região como remanescente quilombola, Morro Alto ganha grande visibilidade e inserção de diferentes ONGs, imprensa e organizações federais no sentido de produzir ações de afirmação dessa cultura ancestral (PRASS, 2009).
O território da comunidade sofre interferência da BR 101, rodovia federal que atravessa Morro Alto e produz um corte na localidade. Muito dos fazeres da comunidade se estrutura a partir dela, como movimentação comercial, dinâmica de distribuição de moradia, etc.
Essa comunidade também está marcada pelo “enterro do umbigo dos recém-nascidos”, segundo a tradição local, este ato mantém as terras pelas gerações da família de maçambiqueiros desde a doação que fora feita aos 24 ex-escravos moradores da fazenda que ocupava a região:
O ato de enterrar o umbigo do recém-nascido na porta das casas marca o pertencimento à terra de filhos e netos. É uma espécie de transmissão da continuidade da família no local [...]. Como a franca maioria das pessoas que estão vivendo na região do Morro Alto não possui títulos de propriedade da terra onde moram há gerações, o que os impossibilita de utilizar as formas legais de transmissão da propriedade, a transmissão da posse se dá, tradicionalmente, pelo enterro dos umbigos (BARCELLOS et al., 2004, p. 330).
Em paralelo com os saberes que decorrem das histórias familiares que dão identidade e sociabilidade à região, circula, também nesse espaço, uma lenda que marca a origem da festa do Maçambique, a qual Luciana Prass (2009) nos traz, a partir de um depoimento, pela sua pesquisa:
[...] o Maçambique começa com a história de um escravo condenado à morte que é salvo por Nossa Senhora do Rosário ao ser escolhido como festeiro do próximo ano. Como negar um desejo da Nossa Senhora? A partir de então, os escravos da região, que “eram só trabalhar”, passaram a realizar as festas anuais para Nossa Senhora do Rosário (PRASS, 2009, p. 106, grifos no original).
Depois dessa breve introdução com histórias que permeiam o Maçambique, a prática segue com a descrição da festa em termos de coreografia e de como percebemos a ocupação do espaço durante a dança. Ao mesmo tempo, algumas imagens da festa são distribuídas aos participantes da oficina a fim de que este material sirva como referência e integre a composição dos movimentos bem como do processo educativo em geral.
Assim, sobre a estrutura coreográfica da manifestação, dentre os vários momentos que compõem a dinâmica da festa, enfatizamos a procissão: o percurso no qual os maçambiqueiros circulam por algumas ruas centrais de Osório e chegam até a igreja matriz da cidade. A partir de então, explica-se que a procissão é composta por diferentes integrantes que se organizam na seguinte ordem ao longo do cortejo: à frente, estão o rei e a rainha; logo depois, a alferes da bandeira (responsável por carregar e cuidar da imagem da Santa); e, em seguida, três ou quatro casais de festeiros homenageados do ano, três tamboreiros, dois capitães (estes, responsáveis por abrir as portas e dar passagem ao cortejo, fazer a segurança do rei e da rainha, interromper o trânsito, enfim, garantir o espaço do cortejo) e os dançantes (somente os homens da família podem dançar, à exceção das meninas da família que tem seu nascimento como promessa à Santa e, por isso, dançam até a idade dos sete anos e de outros homens da comunidade que estejam, por ventura, pagando alguma promessa importante à Santa na ocasião da festa, desde que tenham recebido autorização do grupo para dançar). Para melhor visualização da estrutura coreográfica da procissão, apresentamos, a seguir, uma ilustração com os principais componentes da manifestação:
Pelas ruas do centro de Osório é possível perceber como o espaço público se transforma ao longo dos quatro dias que compreendem, atualmente, o Maçambique. A festa acontece entre o salão paroquial e a Igreja. O primeiro espaço carrega o tom da festa, celebração pelo compartilhamento da comida, música e dança; no segundo espaço a comunidade celebra pela intervenção da presença dos maçambiqueiros com sua dança e sua música na missa tradicional. O momento da procissão, no qual os maçambiqueiros tomam a rua, é quando cumprem um trajeto de três ou quatro quadras em via pública que separa o salão paroquial da Igreja, e o fazem com suas dança, cantos e toques:
No primeiro dia, ocorre o levantamento do mastro: é a instalação do tempo da festa. O mastro é instalado em frente à igreja central da cidade de Osório. [...] Enquanto parte do grupo caminha e leva bandeiras para a Santa, os tamboreiros e capitães cantam versos e os dançantes respondem, ao realizar a dança que caracteriza a manifestação. [...] Assim, em duas filas, em pequenos saltos ao som do tambor, eles dançam e respondem ao canto, dão voltas em torno do Rei e da Rainha, avançam um pouco na direção em que se desloca o cortejo, mas logo voltam e dançam novamente mais para trás, giram, cruzam os pés, enquanto os braços balançam soltos. Percebo sinais muito discretos entre as duas pontas da fila que guiam o deslocamento. Os dois capitães estão sempre à frente do cortejo, param o trânsito da cidade, cuidam do espaço da festa. [...] Aos poucos, aproximam-se os interessados em acompanhar a procissão. (BAUERMANN, 2016, p.31).
Cabe destacar, todavia, que, nessa dança e nesse cortejo, o alvo não está no público que se junta à volta dos maçambiqueiros, mas na louvação à Nossa Senhora do Rosário. Isso modela o corpo dos integrantes da procissão. A performance dessa manifestação vira cena na medida em que algumas pessoas se disponibilizam a assistir ao cortejo do Maçambique. Mas, conforme já citado, essa dança está organizada para o pagamento da promessa e não para uma encenação em termos de espetáculo.
Essa é uma questão importante a ser refletida ao longo da prática educativa. Assumir a estrutura da dança como possibilidade de diálogo com algo maior, em vez de destinar o foco a uma performance espetacular justifica a escolha por não descrever com maiores detalhes os gestos e os movimentos realizados pelos maçambiqueiros durante a prática proposta. Dessa maneira, propõe-se que os gestos e a postura que os corpos assumem ao longo da atividade tomem forma e sejam incorporados a partir de um imaginário que cada participante da oficina constrói pelas pequenas histórias contadas, pelas imagens e pelas simbologias que vão tocando o seu horizonte de significados.
Desse modo, a prática configura-se como individual e particular, pois cada pessoa envolvida significa as informações fornecidas à sua maneira e, mais, constrói no seu corpo uma forma única de transitar pelo espaço. Ao mesmo tempo, é um fazer coletivo, que assim estrutura-se porque a construção simbólica se dá, inclusive, pela interferência de cada um no próprio coletivo e do coletivo nas escolhas individuais, consequentemente.
A DANÇA PELA INCORPORAÇÃO DE SÍMBOLOS
Assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto "inconsciente" mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a idéias que estão fora do alcance da nossa razão. (JUNG, 2008, p. 19. Destaque no original).
O segundo momento dessa prática inicia com uma caminhada, na qual as histórias do Maçambique ficam reverberando no corpo. É sugerido que cada participante da atividade caminhe, reconheça o ambiente (chão, mobília, paredes, aberturas, teto, demais estruturas e componentes), ocupe o espaço e escolha um lugar confortável nesse ambiente para hastear o seu mastro (e aqui lembramos do mastro que é hasteado para a abertura da festa do Maçambique e temos a intenção de incorporá-lo). Então, os símbolos esgueiram-se fugidios entre tempo e espaço ao mesmo tempo em que são contidos neles [neles tempo... neles espaço], e nesse movimento de ser e não ser, constróise a dança.
Nesse momento, os sentidos são abertos para trazer ao corpo a anatomia simbólica pelos elementos da festa do Maçambique, com inspiração na publicação “Bailarino-Pesquisador-Intérprete: processo de formação”, da pesquisadora Graziela Rodrigues (2005). Na obra, a autora analisa e considera como estrutura física a forma como o corpo se organiza dentro das manifestações de dança popular: “os sentidos através dos quais a pessoa interliga-se ao sagrado, a impulsionam para reagir simbolicamente” (RODRIGUES, 2005, p. 43).
Antes de seguirmos adiante, é importante destacar que os símbolos que propomos como fonte de inspiração para a construção da dança não são, necessariamente, compartilhados pelos dançantes originários do Maçambique, mas, sim, escolhas nossas que emergiram durante nossas observações in loco e que dialogam com nossos referenciais culturais, sociais e estéticos.
Assim, munidos dos símbolos que percebemos na procissão do Maçambique, iniciamos nossa prática pelo corpo-mastro. Enquanto os participantes escolhem seu lugar na sala, descrevemos o mastro da procissão como um objeto incrivelmente alto que simboliza a possibilidade de comunicação entre a terra e o céu, entre os humanos e os santos. “O corpo-mastro é firme e flexível, articula-se em todas as direções, integra o dentro e o fora, em cima e em baixo, à frente e atrás. Recebe e elabora os símbolos” (RODRIGUES, 2005, p. 44).
O mastro como o artefato que estabelece a ponte entre o céu e a terra, entre o sagrado e o profano, entre o mundo ordinário e o extraordinário é presente em várias culturas no mundo (ELIADE, 2002). Ao dançar/ser o mastro, encarnamos a função de permitir e estabelecer a comunicação entre o céu e a terra. No caso de um pagamento de promessas, pelo nosso corpo, somos veículo das mensagens mundanas para o campo do sagrado, do divino, e, diretamente no contexto do Maçambique, nosso corpo-mastro chega próximo aos ouvidos de Nossa Senhora, que acolhe as preces dos dançantes. Assim, o corpo torna-se templo, transforma-se no lugar onde a prece acontece, dá materialidade a desejos e anseios e permite uma sensível aproximação do ideal e do real.
Ainda sobre a noção da verticalidade que emerge pela simbologia do mastro, Michel Seres (2004, p. 105-106) aponta:
Construído como o adjetivo vertical que descreve uma falésia e, também, nossa estatura, a palavra vertigem aproxima-se ainda das vértebras da coluna que sustenta nosso corpo, pois esses três termos repetem a locução “vers”, que significa em direção a, raiz cujo duplo sentido surpreende; deslocamento em direção a [...] e, quase em sentido contrário, também rotação, pois a palavra “vers” origina-se do latim verto, que significa girar, movimento possível graças às nossas vértebras (grifos no original).
Aqui, pode-se perceber a potência da verticalidade da coluna, que é capaz de unir a característica de estrutura firme de sustentação à possibilidade de movimento. Dessa maneira, não se constrói um mastro estanque, como objeto rígido e fixo, mas, sim, o mastro que permite a fluidez no alto pela forte estrutura de base.
Então, ao hastear seu mastro no espaço escolhido, cada participante é chamado a atentar aos seus pés como a parte do mastro que é enterrada no chão para iniciar o pagamento da promessa. Essa porção do mastro é responsável pela fixação do corpo-mastro na terra: ela precisa enterrar-se bastante fundo no solo para que o restante do mastro possa deixar-se balançar com o vento. Logo, na ponta superior do mastro, na cabeça e no tronco, reside a possibilidade de liberdade e fluidez como a de uma bandeira ou de um estandarte que se move pelo sopro do vento.
Convida-se, assim, que os corpos-mastro se desloquem a partir do balanço produzido pelo vento na parte superior, sem perder a atenção ao contato com as raízes dos pés no chão, mas provocando pequenos deslocamentos e, em seguida, algumas paradas para uma reorganização do mastro a fim de que o símbolo vá ganhando força e estrutura nos corpos. Tal incorporação da simbologia do mastro é trazida para a prática ao som da canção “Procissão”, de Vanessa Longoni (2008) 3, a qual produz uma atmosfera de lamento e louvação tal qual o ambiente percebido lá no pagamento de promessa dos maçambiqueiros.
Com o mastro enterrado, a festa pode ter início, e agora, ao som de gravações das canções do Maçambique, solicita-se que cada participante perceba qual balanço e qual flexibilidade pode-se produzir nos joelhos a partir do ritmo expresso nas canções.
O “molejo” dos joelhos, existente nos vários rituais, é marcante no início dos rituais do Congado, vindo a favorecer a soltura das articulações de todo o corpo. Os pagamentos de promessa estão contidos nas várias manifestações, onde o pôr-se de joelhos exprime o ato de contrição a que o corpo é levado. Na relação simbólica e na concretude da ação física através dos joelhos o homem redime-se das imperfeições e invoca a presença do que é perfeito no recebimento do sagrado. (RODRIGES, 2005, p. 49).
Desse modo, os joelhos assumem a responsabilidade pelo fluxo de símbolos importantes na dança do Maçambique. É a porção que permite a locomoção de quem dança e que exprime, junto à postura do torso, o sentido de reverência a algo além do humano. Joelhos que nos permitem ser mastros: tesos, verticais, projetados ao alto. E humanos: flexíveis, móveis, ligados à terra.
Aos poucos, conforme os participantes se deslocam ao ritmo das canções, sugere-se que transformem o seu deslocamento dando atenção ao que o balanço dos joelhos provoca no quadril e, posteriormente, no tronco e nos braços. O quadril, nesse caso, solta-se em direção ao solo e pesa despretensiosamente. Os braços ganham, ao mesmo tempo, peso e mobilidade. Ao experimentar o deslocamento em diferentes direções, com execução de giros, passos laterais e para trás, a caminhada começa a se transformar em dança4.
A todo o momento, pede-se que o mastro enraizado pelos pés e solto pela cabeça não seja esquecido. E, de acordo com a evolução dos deslocamentos, vai-se sugerindo que os participantes levantem o olhar e percebam o grupo. Aqui se atenta ao grupo e às relações que se estabelecem entre os dançantes.
A fim de desenvolver sintonia e coerência entre os participantes, solicita-se que cada um escolha outra pessoa para seguir com o olhar durante os deslocamentos. Desde esse ponto, o grupo se forma e se reconhece. Então, é pedido que cada pessoa incorpore algum movimento, postura ou característica do parceiro que está seguindo. Dessa forma, espera-se que os movimentos criados pelos diferentes corpos possam ser compartilhados e, assim, a noção de um coletivo que produz uma dança em parceria possa ser experimentada.
Aqui, produzimos uma pausa no desenvolvimento das atividades para inserir mais um elemento: o canto. Durante a dança, na festa do Maçambique, diferentes versos são entoados em forma de pergunta e resposta. O chefe (um dos tamboreiros) entoa um verso, e os dançantes respondem com outro. A seguir, apontamos alguns dos versos que são utilizados durante a prática:
“O tambor tá batendo e tá repinicando (2x)
É os nosso dançante, sinhô, que o chefe tá chamando (2x)”5
“Ô que rua tão compridá toda cheia de pedrinhá (2x)
Tenho medo de cair lá, viva o rosário de Mariá”6
“A canoa virou lá no fundo do mar
Deixa virar, deixa virar
É de proa pra baixo é de fundo pro mar
Deixa virar, deixa virar
Mas por que tu deixaste a canoa virar
Deixa virar, deixa virar
A marvada da nega não soube remar
Deixa virar, deixa virar
Eu tirei a camisa e tornei a tomar
Deixa virar, deixa virar”7
Aprendidos os versos, voltamos às movimentações. Explica-se, então, que a dança acontece distribuída em duas colunas, e que as duas primeiras pessoas das colunas, juntas, pela comunicação do olhar, determinam os deslocamentos do grupo. Em princípio nos colocamos no papel de guias, e um de nós entoa a primeira parte dos versos durante as evoluções.
Durante a festa do Maçambique as canções são repetidas quantas vezes forem necessárias para cumprir a demanda do deslocamento e variam de acordo com o desenvolvimento da própria festa. Durante a nossa prática, propomos um tempo longo para a repetição de cada canto. Independentemente da demora relativa ao relógio, o importante é que seja percebido pelo coletivo que o tempo para a execução de cada canto foi longo. Assim, o tempo estendido objetiva que os versos também sejam incorporados aos movimentos e à estrutura corporal já trabalhada. Dessa forma, repetem-se as dinâmicas de movimento até que se perceba o alcance de um conforto para a realização dos movimentos, deslocamentos e cantos.
APONTAMENTOS FINAIS: CORPO, MOVIMENTO E APRENDIZAGEM
A fim de concluir esta reflexão, trazemos algumas implicações epistemológicas que nos levam a propor esta estrutura de prática corporal, bem como ganham sentido durante a realização das atividades propostas.
A primeira questão que se destaca é a noção de que o corpo disponível a aprender pode ampliar suas percepções e considerar emoções, posições corporais, peso, percepções viscerais e sensoriais (da ordem das propriocepções) como estímulos dessa aprendizagem. Tais concepções advém, principalmente, de teorizações sobre educação somática (ou somaestética), as quais estão fundamentadas pela relação entre o sujeito e o ambiente imediato8. Para as teorias, o corpo ganha o termo soma pela importância de destacar que este corpo está vivo e orgânico: “o soma é vivo, está sempre contraindo-se e distendendo-se, acomodando-se e assimilando” (HANNA, 1972, p.28).
Já quando nos referimos à somaestética, de Richard Shusterman (2012), estamos assumindo este corpo vivo como “lugar de apreciação sensorial e da autoformação criativa” (p. 8). Assim, a nossa proposta educativa constrói-se pela intenção de produzir um ambiente composto por elementos do Maçambique (a dança popular em questão), como as histórias, as imagens, os sons, as poesias, para que os corpos percebam-se vivos e imersos na possibilidade dessa autoformação criativa e organizem-se em relação a esse ambiente. Portanto, “aprender a dança, neste caso, é aprender a colocar o corpo em movimento nesse espaço, a entrar em contato com representações simbólicas de manifestações culturais e, então, a movimentar tais representações” (BAUERMANN, 2016, p. 64).
Outra característica fundamental para esta proposta educativa se relaciona com uma mudança de perspectiva acerca do processo de formação dos sujeitos: No lugar de propor uma prática que vise trazer ao corpo o conhecimento de um conteúdo predeterminado, objetiva-se alcançar uma disponibilidade necessária para experimentar as referências desse conteúdo. Essa perspectiva também é fundamentada pela somaestética, na qual o corpo é “lócus vivo da experiência bela e sentida”, e nesse sentido:
[a somaestética] em sua dimensão experiencial, claramente recusa-se a exteriorizar o corpo enquanto coisa alienada, distinta do espírito da experiência humana, e também não tende a impor um conjunto fixo de normas padronizadas de mensuração externa a fim de avaliar a boa experiência somaestética. (SHUSTERMAN, 2012, p. 61).
Logo, a educação pela via somática ressalta o papel autoral do sujeito e do corpo. Com potencial de criação e disposto a se relacionar com as referências do ambiente, as normas padronizadas pelas quais comumente a educação pretende avaliar o desenvolvimento dos aprendizes são dispensadas. Aqui, cada sujeito desenvolve sua aprendizagem de acordo com sua individualidade sensorial e, assim, constrói sua experiência com a dança.
A questão do tempo também permeia nossas reflexões acerca de possibilidades educativas. O tempo que as aprendizagens levam para tomar forma no corpo – necessário para que tornem-se gestos conhecidos, naturalizados, incorporados... no seio das manifestações populares, onde essa aprendizagem é um processo que atravessa gerações – é diluído ao longo da convivência familiar (ou comunitária). Porém, em situações de práticas educativas com tempos determinados e relativamente curtos – como é o caso desta proposta, que se desenvolve em cerca de duas horas– temos a necessidade de estender esse tempo e, para tanto, propomos saturá-lo de informações e oportunidades de experimentar movimentos, gestos e símbolos que emergem da manifestação popular em questão.
Outro ponto que julgamos importante destacar é que, a partir do corpo em dança, no contexto deste artigo, o corpo torna-se o lugar onde o símbolo acontece; onde encontram-se tempo e espaço, real e ideal; onde, literalmente, encarnamos desejos, anseios, vontades; e onde os manifestamos a quem quer que seja, mesmo que este outro a quem eu comunico pertença a uma outra ordem, como no caso uma Santa ou Deus.
A concretização das imagens na dança é uma expressão especialmente viva da realidade interior, pois o acontecimento corporal e a configuração do movimento são simultâneos ao momento da experiência interior. O caráter integrativo, relativo ao momento da dança, e sua relação original com o processo da vida permite-nos vivenciar o corpo como sendo a nossa mais próxima realidade. (ZIMMERMANN, 2009, p. 163).
Até o momento, apontamos o que entendemos como o lugar da educação e das aprendizagens na prática corporal que propomos. Por outro viés, então, destacamos o lugar do corpo na educação. Dentre as muitas definições para a educação, temos: “Educação é a estratégia definida pelas sociedades para levar cada indivíduo a desenvolver seu potencial criativo, e para desenvolver a capacidade dos indivíduos de se engajarem em ações comuns” (D'AMBRÓSIO, 1997, p. 70). E, ainda, a educação está ligada à:
capacidade de construir ferramentas aliadas à vida em sociedade, na conseqüente união destes aspectos na construção da cultura. Deste modo viver em sociedade implica estar envolvido por situações de educação, seja de um indivíduo para com o outro; do meio social para com o indivíduo e vice-versa; e ainda, do indivíduo ele mesmo com tudo que o cerca: a autoeducação – ou a leitura que o indivíduo faz do mundo a partir de suas experiências e capacidades. A educação concebida no seu sentido amplo, se caracteriza pela capacidade de construção cultural dos seres humanos em sociedade. (CORRÊA, 2000, p. 103).
De acordo com as teorias supracitadas sobre o corpo, todo esse processo de socialização, construção de culturas e desenvolvimento do potencial criativo, ao qual chamamos de educação, não ocorre sem as percepções corporais de cada sujeito. Ainda que muitas vezes as situações educativas se produzam no sentido de apagar, uniformizar e cercear essas percepções, elas seguem acontecendo, sendo possível voltarmos nossa atenção ao corpo novamente para dar-lhes visibilidade.
Nesse sentido, se produz o lugar do corpo nos processos educativos: um lugar de trabalho necessário a fim de refinar o autoconhecimento para que seja possível utilizar seus potenciais como ferramentas da construção social coletiva. Ou seja, o corpo como mediador da relação entre sujeito e ambiente/sociedade é o organismo que dispõe da possibilidade de engajamento das ações comuns elaboradas pelas estratégias educativas. É o organismo vivo que vai receber a estratégia educativa e experimentá-la ao levar adiante o propósito de aproximação em ações coletivas.