As políticas de inclusão escolar têm sido disseminadas em muitos países, como Brasil e Portugal, signatários dos acordos com a Declaração Mundial de Educação para Todos (UNESCO, 1990), Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), que, dentre outros, orientam a instituição de políticas nacionais de educação inclusiva. Sinalizam-se essas políticas internacionais, justamente porque suas recomendações textuais são ratificadas e publicadas nos documentos oficiais desses dois países.
A adoção dos acordos oficializados pelos protocolos de assinaturas, com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e Organização das Nações Unidas (ONU), condiciona os governos a assumirem responsabilidades específicas na escolarização de todos os estudantes, principalmente àqueles que apresentam necessidades educativas especiais (NEE), mais especificamente, com deficiência. Estas políticas têm mobilizado dezenas de outros países e gerado o consenso entre eles à implantar políticas nacionais voltadas para a educação inclusiva em seus sistemas educativos, de modo a contemplar programas educacionais que viabilizem na prática a promoção na escolarização de todos os estudantes.
Nessa direção, este texto objetiva analisar documentos políticos vigentes no Brasil e em Portugal que regulamentam a organização da escolarização de alunos com deficiência da educação básica na perspectiva da educação inclusiva, e articulam a diferenciação curricular, como desafio a enfrentar e garantir a justiça curricular.
Compreende-se a justiça curricular no movimento que envolve a tomada de decisões sobre o currículo, desde a elaboração até sua atuação nas práticas curriculares, como a possibilidade de desenhar um currículo contra-hegemônico, que vise minimizar as desigualdades presentes nos percursos de escolarização dos alunos (CONNELL, 1997; SILVA, 2018), especialmente, dos que apresentam deficiência.
Utilizou-se a pesquisa documental para o levantamento dos documentos políticos de inclusão de ambos os países, entre os anos de 2008 e 2016, com base na análise de conteúdo pelo procedimento da “análise temática” (BARDIN, 2009). Extraiu-se dos textos políticos os significados que deram sentido às temáticas sobre ‘políticas de inclusão escolar’; ‘diferenciação curricular’ e ‘justiça curricular e escolarização’. Seguimos as contribuições de Ball, Maguire, Braun (2016) para compreender a tradução e interpretação dos textos políticos, principalmente, pela atuação dos atores que escrevem e os que colocam em movimento/ação, considerando suas culturas e experiências, pois é nesse movimento que “as políticas tornam-se “vivas” e atuantes (ou não)” na educação básica.
No Brasil, os desdobramentos políticos para a inclusão escolar estão vinculados à implantação das salas de recursos multifuncionais1 (SRM) para o atendimento educacional especializado (AEE), identificadas como serviços especializados, capazes de responder às mais variadas diversidades que constituem a sala de aula, mediadas pela presença de recursos tecnológicos (BRASIL, 2008a, 2009b, 2011). Em Portugal, as diretrizes curriculares (PORTUGAL, 1986, 2008a) apontam para a inclusão dos alunos com NEE em projetos de formação mais abrangentes no contexto de cada escola, a partir de políticas de diversificação e diferenciação curricular (PORTUGAL, 2008a).
A convergência das políticas internacionais (BALL, 2001) tem influenciado, marcadamente, a condução das políticas nacionais na perspectiva da educação inclusiva, desde a década de 1990, mediante os desdobramentos de documentos legais, que recomendam decisões que justificam a garantia da justiça curricular aos estudantes com deficiência na escola comum. Entretanto, conclui-se que o acesso aos conhecimentos escolares ainda é um desafio da contemporaneidade, já que este direito ainda não está garantido para todos.
POLÍTICAS DE INCLUSÃO ESCOLAR EM CONTEXTOS NACIONAIS: QUAIS PRESCRIÇÕES PARA A ESCOLARIZAÇÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA?
O levantamento dos documentos políticos de inclusão escolar realizado nos contextos brasileiro e português teve a finalidade de identificar as possíveis prescrições que direcionam a organização da escolarização de alunos com deficiência. A identificação dos documentos foi delimitada no período entre 2008 e 2016, considerando que em 2008 Brasil e Portugal tiveram publicação de políticas nacionais que demarcaram diretrizes e princípios da educação especial, na perspectiva de educação inclusiva, subsidiadas pelas políticas internacionais.
A localização dos documentos legais entre leis, decretos, resoluções, portarias, notas técnicas etc. foi realizada pelos sites2 dos Ministérios de Educação dos países pesquisados, sendo selecionados os documentos que continham conceitos ou terminologias voltadas à educação especial, educação inclusiva, inclusão escolar, adaptação curricular, e, principalmente, as referenciadas à diferenciação curricular, questão que nos deteremos com maior ênfase, sob a análise do que tem sido prescrito e executado em nível local.
No âmbito português, nove documentos foram identificados, os quais compuseram o quadro das políticas de inclusão em Portugal.
ANO DE PUBLICAÇÃO | DOCUMENTOS IDENTIFICADOS |
---|---|
2015 | Portaria 201-C/2015. |
2015 | Resolução da Assembleia da República 17/2015. |
2012 | Decreto-Lei 176/2012. |
2011 | Parecer 1/2011. |
2009 | Decreto-Lei 281/2009. |
2009 | Resolução da Assembleia da República 57/2009. |
2009 | Resolução da Assembleia da República 56/2009. |
2008 | Lei 21/2008. |
2008 | Decreto-Lei 3/2008. |
Fonte: Elaborado a partir do site <http://www.dge.mec.pt/legislacao-e-circulares>.
Verificou-se que esse quadro de documentos políticos faz referência sobre a organização dos processos escolares de alunos com NEE que frequentam o sistema de ensino português. Desses, destacam-se a Portaria 201-C/2015 (PORTUGAL, 2015b), a Resolução da Assembleia da República 17/2015 (PORTUGAL, 2015a) e a Lei 21/2008 (PORTUGAL, 2008b) que alteram o Decreto-Lei 03/2008 (PORTUGAL, 2008a), quanto ao Currículo Específico Individual (CEI) e a transição para a vida pós-escolar desses estudantes.
O Decreto-Lei 176/2012 (PORTUGAL, 2012a) amplia e regulamenta a escolarização obrigatória de crianças e jovens entre 6 e 18 anos, indicando adequações referentes as matrículas no ensino secundário, de estudantes contemplados pelo CEI. O Decreto-Lei 281/2009 (PORTUGAL, 2009c) cria o Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI) em escolas referências, com intervenção sempre que a criança frequente a educação pré-escolar, articulado com serviços de saúde e de segurança social. Importa salientar que essas medidas (PORTUGAL, 2012a; 2009c) refletem, de algum modo, nos processos de ensino e aprendizagem de alunos com NEE, que preveem atenção específica desde a educação infantil ao secundário, no sistema educativo português.
Verificou-se que a Resoluções da Assembleia da República 56/2009 e 57/2009 (PORTUGAL, 2009a, 2009b) aprovam a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência e o Protocolo Opcional, respectivamente. Esses documentos ratificam o direito das pessoas com deficiência nos diferentes espaços sociais de Portugal, dentre eles o da educação, nos moldes do documento internacional, como prevê a ONU.
Dessa seleção, o Decreto-Lei 3/2008 (PORTUGAL, 2008a) foi o documento que deu maior visibilidade nas definições das prescrições referente a escolarização de alunos com deficiência. Este Decreto reitera a educação inclusiva pelo viés da equidade educativa e garantia de igualdade, quanto ao acesso e aos resultados da escolarização, pela definição dos apoios especializados prestados na educação pré-escola, no ensino básico e secundário da rede pública, particular e cooperativa,
[...] visando a criação de condições para a adequação do processo educativo às necessidades educativas especiais dos alunos com limitações significativas ao nível da atividade e da participação num ou vários domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais, de carácter permanente, resultando em dificuldades continuadas ao nível da comunicação, da aprendizagem, da mobilidade, da autonomia, do relacionamento interpessoal e da participação social. (PORTUGAL, 2008a, p. 155).
Considerando o interesse voltado à escolarização de estudantes com deficiência matriculados no primeiro ciclo do ensino básico, constatou-se que os apoios especializados estão submetidos às diretrizes curriculares que norteiam os projetos de formação abrangentes de cada escola e agrupamento de escolas, incluindo “adequações relativas ao processo de ensino e de aprendizagem, de carácter organizativo e de funcionamento” (PORTUGAL, 2008a, p. 155). Tais apoios encontram-se estruturados em escolas referências para a educação bilíngue de estudantes surdos, cegos e baixa visão, e, em unidades de ensino estruturado especializado para estudantes com espectro do autismo e com multideficiência e surdocegueira congênita.
Esses apoios são organizados pelo nível de desenvolvimento cognitivo, linguístico e social e pela idade dos estudantes, cujas escolas referências e unidades de ensino estruturadas concentram grupos de alunos, com especificidades e características pessoais que se assemelham. Compreende-se, no entanto, que a organização da educação especial, no contexto educacional português, possui marcas históricas que ainda definem a organização da educação especial pelas orientações médico-psicológicas (JANNUZZI, 2006).
Nesse sentido, as adequações dos processos de ensino e aprendizagem desses sujeitos encontram-se fundamentadas nos princípios da diferenciação pedagógica e da flexibilização do currículo que integram as medidas educativas apresentadas na Figura 1, devendo ser adotadas mediante as especificidades de cada estudante.
Essas possibilidades alteram significativamente o currículo comum, partindo sempre de um nível de afastamento menor para o maior, com mudanças necessárias nas áreas curriculares e disciplinas, objetivos e competências, conteúdos e metodologias, modalidades de avaliação e outros aspectos fundamentais para dar condições reais de execução nas práticas curriculares, como a gestão do tempo e espaço, recursos humanos, materiais e também financeiros. Podem inclusive eliminar atividades de aprendizagem que se “revelem de difícil execução em função da incapacidade do aluno, só sendo aplicáveis quando se verifique que o recurso a tecnologias de apoio não é suficiente” (PORTUGAL, 2008a, art. 18, p. 159).
Nessa direção, a escolarização de estudantes com NEE ficam sujeitos a escolhas curriculares que prescrevem a organização de um CEI, sob parecer do conselho de docentes ou de turma, podendo substituir as competências previstas para cada nível de educação e ensino, com base no perfil de funcionalidade, com alterações que podem
[...] traduzir-se na introdução, substituição e ou eliminação de objectivos e conteúdos, [...] inclui conteúdos conducentes à autonomia pessoal e social do aluno e dá prioridade ao desenvolvimento de actividades de cariz funcional centradas nos contextos de vida, à comunicação e à organização do processo de transição para a vida pós-escolar. (PORTUGAL, 2008a, p. 159).
Esta medida educativa é a forma mais diferenciada possível prescrita para os percursos de alunos com deficiência de caráter permanente e considerada a mais distante ao nível do currículo comum.
Assim, compreende-se que os documentos oficiais analisados indicam uma sequência dos desdobramentos das políticas internacionais ratificadas e recontextualizadas localmente, incluindo todos os estudantes em escolas inclusivas, com prescrições voltadas à adequação e diferenciação curricular como possibilidades de alterar o currículo comum, mesmo frequentando turmas regulares do ensino básico, como detalha o Decreto-Lei 3/2008.
Os documentos políticos que orientam e prescrevem os processos escolares de alunos com deficiência no Brasil, foram identificados pela ênfase dada às políticas de inclusão e, mais precisamente, ao que se direciona à adequação e diferenciação curricular ou termos correlatos.
ANO DE PUBLICAÇÃO | DOCUMENTOS IDENTIFICADOS |
---|---|
2015 | Nota Técnica MEC/SECADI/DPEE 02/2015. |
2015 | Nota Técnica MEC/SECADI/DPEE-SEB/DCEI 42/2015. |
2015 | Lei 13.146/2015. |
2014 | Lei 13.005/2014. |
2014 | Nota Técnica MEC/SECADI/DPEE 04/2014. |
2013 | Nota Técnica MEC/SECADI/DPEE 55/2013. |
2012 | Portaria MEC/SECADI 25/2012. |
2011 | Decreto 7.611/20113. |
2010 | Resolução CNE/CEB 4/2010. |
2010 | Nota Técnica MEC/SECADI/DPEE-SEB/DCEI 11/2010. |
2009 | Resolução CNE/CEB 4/2009. |
2009 | Decreto 6.949/2009. |
2008 | Decreto Legislativo 186/2008. |
2008 | Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva-PNEEPEI. |
Fonte: Elaborado a partir do site <http://portal.mec.gov.br/formacao/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/17009-educacao-especial>.
As políticas de inclusão escolar no Brasil têm sido marcadas pelos acordos internacionais, desde a década de 1990, e, ao serem adotadas, “[...] ganham um desenho específico, alinhado com a história, a política, a economia e as disputas de diferentes forças que compõem a arena de luta política dos direitos da pessoa com deficiência” (SOUZA, 2013, p. 23), especialmente pela Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), que passaram a influenciar a formulação das políticas públicas de educação inclusiva em nível local, na garantia da educação para todos.
Esse movimento político nas duas últimas décadas no Brasil “é um bom exemplo das políticas globais a que os Estados nacionais estão sendo chamados a responder, decorrentes de agendas supranacionais e de todo um conjunto de forças externas aos países e seus territórios” (PLETSCH, LUNARDI-MENDES, 2015, p. 2).
Os documentos identificados no Quadro 2 vinculam-se as recomendações de políticas internacionais quanto a normatização de novas políticas educativas, como forma de regulamentar o contexto das práticas escolares, pela tradução das políticas (BALL, MAGUIRE; BRAUN, 2016), especificamente no AEE.
Confere que a Lei 13.146/2015 (BRASIL, 2015a), a Resolução CNE/CEB 04/2010 (BRASIL, 2010b) e a Lei 13.005/2014 (BRASIL, 2014b), embora tragam menções sobre a educação especial, o fazem em linhas mais gerais, como a garantia do AEE em todos os níveis, etapas e modalidades da educação, sem detalhar mais especificamente a execução de tais políticas no contexto das práticas curriculares. Do mesmo modo, o Decreto 6.949/2009 (BRASIL, 2009a) e o Decreto Legislativo 186/2008, (BRASIL, 2008b) promulgam, aprovam e ratificam a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), no âmbito brasileiro, que incidem sobre a educação como o principal locus da inclusão escolar, mas sem pormenorizar efetivas ações decorrentes de seus textos oficiais.
As Notas Técnicas 02/2015, 42/2015, 04/2014, 55/2013, 11/2010 (BRASIL, 2015c, 2015b, 2014a, 2010a), respectivamente, se constituem em fontes documentais, que formalizam situações ainda não cumpridas no âmbito da escolarização do público-alvo da educação especial, conforme a legislação vigente no Brasil. Estas Notas Técnicas orientam a garantia do AEE, pela implantação das SRM, podendo ser adquiridas pelas secretarias de educação dos estados, municípios e Distrito Federal, regulamentadas pela Portaria 25/2012 (BRASIL, 2012b).
Com isso, verifica-se que a PNEEPEI (BRASIL, 2008a), o Decreto 7.611/2011 (BRASIL, 2011) e a Resolução 04/2009 (BRASIL, 2009b) constituem-se em documentos oficiais marcadamente significativos e mais evidentes que dispõem sobre o sistema educativo inclusivo, calcados nos direitos educacionais das demandas de escolares com deficiência, propagadas pela evolução de matrículas, preferencialmente, na rede regular de ensino comum.
Considera-se imperativo a PNEEPEI (BRASIL, 2008a), no conjunto das fontes documentais, por se tratar de uma política nacional reconhecidamente como um marco divisor para a educação especial, que passa considerar os processos educativos do seu público-alvo como complementar e suplementar, além de definir suas principais diretrizes. Define o público-alvo da educação especial, como aquele que apresenta deficiência, transtorno globais de desenvolvimento e altas habilidades e superdotação, com o objetivo de
[...] assegurar a inclusão escolar (...) orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil até a educação superior; oferta do atendimento educacional especializado; formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão; participação da família e da comunidade; acessibilidade arquitetônica, nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e informação; e articulação intersetorial na implementação das políticas públicas. (BRASIL, 2008a, p. 14).
Ao prescrever o direito à inclusão escolar de estudantes com deficiência, a PNEEPEI (BRASIL, 2008a, p. 15) considera “àqueles que têm impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial” e indica sua escolarização preferencialmente na rede regular de ensino, reiterando o prescrito pela LDBEN 9.394/1996 (BRASIL, 1996).
A Resolução 4/2009 (BRASIL, 2009b) regulamenta o locus de atuação do AEE, “realizado prioritariamente, na sala de recursos multifuncionais da própria escola ou em outra escola de ensino regular, no turno inverso da escolarização, não sendo substitutivo às classes comuns”, organizado pela institucionalização do projeto pedagógico da escola comum.
As SRM são identificadas como serviço do AEE e caracterizadas como um espaço físico organizado, considerado pelas políticas de educação inclusiva brasileira como a máxima da inclusão escolar (PEREIRA, 2010), capaz de responder as mais variadas diversidades que constituem o contexto da sala de aula.
Desse modo, o AEE é concebido como um conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos, organizados nas formas de complementar à formação dos estudantes com deficiência, transtorno globais de desenvolvimento, como apoio constante e com tempo limitado na frequência à SRM, e, suplementar à formação de estudantes com altas habilidades e superdotação (BRASIL, 2008a, 2009b, 2011). As atividades previstas mostram-se restritivas a um determinado espaço, que não substitui a escolarização, pelo que a diferenciação se dá nas práticas de atuação com os estudantes “constituindo oferta obrigatória dos sistemas de ensino e deve ser realizado no turno inverso ao da classe comum, na própria escola ou centro especializado” (BRASIL, 2008a, p. 16).
O acesso ao AEE é regulamentado pelo Decreto 7.611/2011 (BRASIL, 2011) e assegura o direito a dupla matrícula de cada estudante considerado público-alvo da educação especial, subsidiado pelo Fundo de Manutenção e desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), computadas na classe de ensino comum e no AEE.
Destaca-se que a matrícula dos estudantes com deficiência não pode vincular-se a qualquer tipo de diagnóstico clínico, considerando que o AEE lida com questões educacionais e “o direito das pessoas com deficiência à educação não poderá ser cerceado pela exigência de laudo médico” como orienta a Nota Técnica 4/2014 (BRASIL, 2014a). Assim, a garantia do AEE em interface com o ensino comum, conforme os documentos analisados, não estabelecem outros critérios possíveis, como a redução de alunos por turmas e condições adequadas de apoio pedagógico em sala de aula.
A elaboração do plano de AEE, decorrente do estudo de caso, é pré-requisito e competência dos professores que atuam na SRM em articulação com professores do ensino comum, familiares e outros setores sociais, para vincular a frequência dos estudantes, com prescrições específicas e definidas pelos usos dos recursos e tipos de atividades que serão desenvolvidas. Entretanto, as competências do AEE acabam sendo atribuídas ao professor que atua na SRM.
Verifica-se que a competência atribuída ao professor do AEE centra-se no uso técnico dos recursos especializados e não nas questões pedagógicas que se articulam com a sala de aula comum. Numa versão comportamental, esta centralidade técnica dos recursos “pode estar relacionada à perspectiva psicopedagógica, [...] centradas na deficiência dos alunos e recursos diretamente vinculados a cada tipologia de deficiência” (MICHELS, 2011, p. 226). Além disso, o professor do AEE é caracterizado como o principal articulador e interlocutor das políticas de educação inclusiva e responsável pela inclusão escolar, sem considerar maior envolvimento de outros profissionais da educação e da gestão pública, assim como outras questões que também merecem atenção, como a instituição de políticas públicas para a educação em âmbito nacional e local.
Os estudos Bueno (2008), Garcia (2008), Mendes (2006), Kassar (2011), Souza (2013), Pletsch (2014) e Souza & Pletsch (2017) indicam que as políticas de inclusão têm se constituído um mecanismo de disputas e de forças antagônicas, que expressam o direito à educação para estudantes com deficiência pelo princípio da educação inclusiva, mas, muitas vezes, sem considerar seus próprios percursos escolares, quanto o acesso aos conhecimentos curriculares.
Com isso, é razoável pensar que os sistemas de ensino são interpelados “a executarem as políticas em questão, de maneira que cada esfera administrativa vem se apropriando da política de inclusão ao seu modo” (MICHELS, 2011, p. 220), pela a implantação das SRM para o AEE, sem abordar os conhecimentos do currículo comum, pois este serviço restringe-se ao uso técnico de recursos tecnológicos, sem caracterizar-se em reforço escolar, questão que limita ampliar a escolarização dos alunos com deficiência para além do AEE.
Nos termos da complementação (BRASIL, 2008a, 2009b, 2011), a formação escolar de estudantes com deficiência fica submetida às prescrições normativas que não dão clareza das ações curriculares, menos ainda na possibilidade de transformação curricular (PACHECO, 2008, 2016) ou na adequação e diferenciação curricular na gestão em sala de aula (SOUSA, 2010; ROLDÃO, 1999, 2003a, 2003b), visto que estes sujeitos têm uma crescente participação nas estatísticas das matrículas nas escolas de ensino comum.
Corrobora-se com Ball, Maguire e Braun (2016, p. 14) que “as políticas raramente dizem-lhe exatamente o que fazer, elas raramente ditam ou determinam a prática, mas algumas mais do que as outras estreitam a gama de respostas criativas”, em que as políticas de educação inclusiva descrevem um ideário de escola que acolhe todos os alunos, sem considerar as traduções e interpretações dos atores que as colocam em ação em relação à própria história e a realidade do contexto escolar. Por isso, compreende-se que as políticas sobre educação inclusiva requerem atenção especial tanto de quem as produz quanto de quem as coloca em execução nas práticas curriculares das escolas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação inclusiva como princípio dos direitos humanos permanece um item importante na agenda da UNESCO, ONU e Banco Mundial4, além de outros organismos internacionais, que interferem diretamente nas decisões nacionais e nas práticas curriculares.
Notadamente, em Portugal o Decreto-Lei 3/2008 (PORTUGAL, 2008a) tem sido a maior expressão entre as políticas identificadas que orienta os projetos educativos e a organização dos espaços especializados. As escolas referências e as unidades de ensino estruturadas traduzem as prescrições da política de inclusão escolar e contemplam as adequações e diferenciação curricular por meio das medidas educativas que se articulam com a gestão da sala de aula comum. Dessas, o CEI é a alteração mais significativa e distante do currículo comum em termos da diferenciação curricular, reflexo da internacionalização das políticas desde a década de 1990, que tem condicionado os sistemas educativos garantir educação para todos e de qualidade, “através de um currículo apropriado” (UNESCO, 1994, grifo nosso). Mais recentemente, o supracitado decreto foi alterado pelo Decreto-Lei 54/2018 (PORTUGAL, 2018a), com a particularidade de substituir a noção de necessidades educativas especiais por educação inclusiva, numa perspectiva mais abrangente de todos os alunos, sem lhes impor uma educação especial mais específica.
Perrenoud (2000, p. 10) já sinalizava, que “a diferenciação da pedagogia e a individualização das trajetórias de formação estão, ou estarão, no centro das políticas da educação dos países desenvolvidos”, como verificado nas fontes de documentos oficiais de Portugal, que passam, inevitavelmente, por uma agenda global.
No Brasil, a PNEEPEI (BRASIL, 2008a) tem sido referência para o desdobramento de outros documentos normativos que definem a instituição de ações e programas educativos na perspectiva da educação inclusiva, com a ênfase à Resolução 4/2009 (BRASIL, 2009b) e o Decreto n.º 7.611/2011 (BRASIL, 2011). Estes documentos regulamentam a matrícula de alunos da educação especial, no ensino comum e no AEE e considera a SRM como local prioritário e privilegiado da inclusão escolar. É neste local que o professor especializado atua tecnicamente com os recursos tecnológicos disponíveis, sem qualquer objeção a sua atuação docente de cunho pedagógico, menos ainda, aos conhecimentos curriculares.
Nesse sentido, verifica-se que a justiça curricular na escolarização de estudantes com deficiência passa pela possibilidade de minimizar ou até excluir conteúdos do currículo comum (Portugal), expresso atualmente pelo Decreto-Lei 55/2018 (PORTUGAL, 2018b), pelo documento curricular Aprendizagens Essenciais, bem como pela frequência de alunos no contraturno escolar, numa sala específica definida como recursos multifuncionais (Brasil). Contudo, não encontramos evidências mais explícitas sobre o acesso aos conhecimentos escolares, questão considerada fundamental para o acesso a escolarização de todos os alunos e a garantia da justiça curricular.
Compreende-se que uma decisão política pode ser justa para um determinado público escolar e injusta para outro. Por isso, um currículo centrado no ‘conhecimento’ torna-se mais coerente com uma política de justiça social no âmbito da educação, como destaca (YOUNG, 2007, 2013, 2016). Assim, é preciso analisar se o conhecimento escolar se constitui em um direito “para poucos ou para todos” (YOUNG, 2016, p. 24), quando se trata de uma política de inclusão escolar que pressupõe uma educação para todos, com prioridade na escola de ensino comum.
Conclui-se, portanto, que as políticas de inclusão escolar no ápice da globalização, mostram-se atuantes nos dois contextos nacionais, por ter encontrado em ambos “uma raiz local, uma imersão cultural específica” (SANTOS, 1997, p. 108), para sua tradução na perspectiva da educação inclusiva. Uma das similaridades encontradas entre os documentos oficiais dos contextos brasileiro e português está na organização de um espaço específico para o atendimento de um público também específico, restrito à educação especial. Contudo, o diferencial está no detalhamento das medidas educativas definidas pela diferenciação curricular, para os percursos de escolarização dos alunos conforme suas necessidades. Tais definições levam a entender que as recomendações das políticas internacionais para a educação inclusiva são interpretadas e traduzidas localmente conforme a realidade de cada contexto e se diferenciam pelas decisões curriculares empreendidas (BOWE; BALL; GOLD, 1992; BALL; MEGUIRE; BRAUN, 2016), tanto no Brasil quanto em Portugal.
Com isso, a internacionalização das políticas educacionais tende a uniformizar cada vez mais os sistemas educativos, na medida em que orienta e financia a educação (AKKARI, 2011), mesmo que a tradução se diferencie pela interpretação dos atores que as colocam em atuação (BALL, MAGUIRE, BRAUN, 2016). É nesse movimento de decisão política e da sua tradução que uma política na perspectiva da educação inclusiva ganha forma com a atuação dos diferentes atores envolvidos, tanto de quem a escreve quanto daqueles que a coloca em atuação, e que, de algum modo, interferem nas condições de escolarização dos alunos com deficiência, ao mesmo tempo, pode distanciar a garantia de justiça curricular.