Poucos autores são tão necessários, hoje, quanto Darcy Ribeiro: e o livro brilhantemente organizado por Lúcia mostra isso. A chamo de Lúcia, apesar de não conhecê-la e quebrando os cânones formais estabelecidos na e pela academia - para quem eu deveria chamá-la, secamente, de Maurício, ou Velloso - por considerá-la (não Maurício ou Velloso, mas Lúcia) uma parente próxima. Ela, filha intelectual de Darcy, como resta claro em sua Apresentação e eu, neto de Darcy, filho que sou (na graduação, mestrado, doutorado e no coração) de uma de suas outras filhas diletas: sua Universidade de Brasília. Entrei na graduação no mesmo ano em que Darcy nos deixou (novamente “Darcy”, não “Ribeiro”) e ecoam, pelos corredores extensos do Instituto Central de Ciências os ecos do pensamento libertário e criativo de seu criador, tão bem expostos nos capítulos organizados por Lúcia.
O livro consta de seis seções compostas por textos de relativa pouca circulação, escritos originais de Darcy sobre educação em diferentes contextos, totalizando 27 capítulos nos quais transborda Brasil e brasilidade, hoje tão raros à nossa elite intelectual. Os textos variam bastante de tom, desde mais programáticos e técnicos até aqueles, mais emocionados (como seu discurso proferido em 1995, ao receber o título de doutor honoris causa da UnB, já no fim da vida).
Uma das opções deste resenhista seria, justamente, picotar capítulo por capítulo, esmiuçar seção por seção para, ao final e ao cabo, dizer formalmente como o texto de “Velloso Maurício” merece uma leitura atenta e contribuirá para o campo da Educação. Optar por esse modelo escolástico e bem-comportado de texto seria uma violência. Mais apropriado é deixar claro, desde já, porque o texto de Lúcia, lido de fôlego e à luz do flerte autoritário de nosso país, nestes tempos, é necessário.
É necessário, sobretudo, por nos lembrar que Educação, em tempos de escolas sem partido e “ideologias de gênero” (sic) não dizem respeito à subordinação e disciplina, mas a incutir nos jovens, de todas as idades, um espírito crítico que se volte para a superação da precariedade estrutural. Educação é política. Não no sentido, como querem fazer crer os que agem por ignorância, incompetência ou má fé, de pensar o ato de Educar como Doutrinação (o que quer que isso seja...). Ao contrário, quando Darcy escreve que os jovens não devem “respeitar seus pais” ele assim o faz por dizer, como é preciso ser dito hoje, que não devem repetir os erros que levaram nosso Brasil a ser desigual. “Cometam erros, mas novos erros”, parece ecoar em cada página... “Não se subordinem”, parece gritar desesperadamente Darcy, ao mesmo tempo em que esmiúça nossa história.
É necessário por colocar perguntas, hoje vistas como perigosas por setores inclusive de dentro da Educação, como “por que somos incapazes de educar nossa população”? ... Irônico, inclusive, ler essas páginas ao tempo em que temos visto, nos noticiários, faixas pedindo banimento de Paulo Freire, censura às Universidades e perseguição explícita a professores e à liberdade de cátedra. Nosso “moinho de gastar gente” é o que é, por sua incapacidade de ver, na Educação, a forma de romper com o descaso e a desigualdade.
É necessário, finalmente, por dar o exemplo de coragem, que tantas vezes nos tem faltado. E aqui é necessário nós, academia, termos um momento de autocrítica: não temos nós, em meio à corrida para alimentarmos nossos lattes e pontuar para nossos programas, nos perdido em algum lugar? Me incomoda - ou melhor, me impele - ler esses textos darcyanos. Em cada palavra, ponto e mesmo nos espaços entre as palavras e parágrafos, seus textos pulam. Há neles gana. Há neles coragem. Há neles um sentimento de necessidade da mudança e de brasilidade que hoje, verdade seja dita, nos falta.
Os textos que Lúcia nos traz falam de educação, pois falam de coragem, política, Brasil, mudança, desigualdade... Notem: falam de educação pois falam desses assuntos, e não por também falar desses assuntos... Dizer que seu livro merece ser lido por trazer contribuição ao campo das políticas de educação não basta. Seu livro precisa ser lido, por nos lembrar de onde viemos, onde queremos chegar e por que não chegamos lá. E precisa ser lido, sobretudo, por nos lembrar da coragem necessária para isso. Obrigado por isso, Lúcia. Obrigado, Darcy.