POR UMA PEDAGOGIA DO CINEMA E UM OUTRO LUGAR PARA O ESPECTADOR
Supomos haver uma pedagogia do cinema, isto é, acreditamos ser possível localizar no filme um espaço ou instância educativa, formadora – se bem que não-prescritiva, não-dogmática, tampouco homogeneizante – dos sujeitos em suas diferentes dimensões: não apenas intelectual, mas ética, afetiva e social; se concordarmos que um filme é capaz de estimular o desenvolvimento de habilidades comunicacionais, de competências não somente técnicas mas nocionais, de faculdades ativas do pensamento e da abstração conceitual, bem como de habilidades so cioafetivas, não será difícil argumentar que há aí uma zona pouco explorada ou não suficientemente explorada pelas práticas pedagógicas tradicionais. Mas não poderia ser diferente, visto que, se tomado na sua condição de arte e como campo autônomo, e não como objeto subsidiário de formas tradicionais do conhecimento acionadas na escola, o cinema estaria pouco apto à domesticação corrente das práticas didáticas institucionalizadas. A arte é por natureza indócil e anárquica, enquanto a pedagogia é sistêmica, sistematizante – e ordeira.
O cinema e o repertório de filmes, como em geral é característico no consumo engajado das artes, constituem-se na vida do sujeito – de um cinéfilo ou de um cineasta, digamos – qualquer coisa como uma sorte de “educação sentimental”, que se dá – neste – pelo fazer, e – no outro – pelo ver, não isentos, contudo, da necessidade de auto-implicação, do compromisso disciplinar e rigor genealógico,1 mas sobretudo do aventurar-se e correr riscos que vêm implicados em toda e qualquer atitude exploratória no campo artístico. Em todo caso, educação esta que tem menos a ver com arroubos da paixão amorosa que com o agenciamento de formas de ser e sentir que passam pela amizade, pela individuação e subjetivação de grupo – como também pelo co(r)tejo das diferenças, reconhecimento de alteridades e, não raro, pela assunção de sujeitos historicamente invisibilizados que se afinam, se afirmam e ganham corpo ao assumir a palavra e o discurso nas agremiações cineclubistas, nas mostras de festivais; ou, de outra forma, ao se dar a ver no jogo cênico das práticas cinematográficas. É que o cinema, pondo em relação dois ou mais sujeitos, é capaz de aguçar sensibilidades, fazer perceber o que não era visto e o que não foi dito até então. Em suma, capaz de estimular aquela faculdade empática mais ou menos secreta que faz dos sujeitos corpos vibráteis, sensíveis, suscetíveis às afecções recíprocas, ao remanejo das subjetividades, e, por isso, capazes de um tipo de agenciamento coletivo que nem sempre resulta harmônico, amistoso, mas que, operando por conflito e contraste, efetua toda uma redistribuição das atribuições, das ocupações e dos atributos que nos arrebatam os corpos, as consciências e subjetividades numa dada ordem societal. O cinema é disso capaz porque instaura, justa e desajustadamente, o lugar de um encontro entre diferentes corpos e subjetividades, o espaço mesmo de uma temporalidade distinta na qual o agenciamento entre pessoas faz a operação de uma enunciação coletiva ou de uma subjetividade de grupo2.
Para invocar uma pedagogia do cinema, seria preciso, contudo, admitir uma definição atípica para o espectador, sem ignorar o estatuto de seu lugar na ordem mundana do imaginário social, bem como na própria teoria crítica do cinema. Essa definição visa desonerá-lo da condenação que certa crítica social a ele atribui subscrevendo-o a uma legenda televisiva que faz dele algo massificado, parte de uma totalidade homogênea, incapacitado para a ação política porque paralisado, apassivado, logrado em cada um de seus desejos, de suas vontades como de suas opiniões. O chamado “espectador alienado”. Esse lugar, sabemos, foi construído historicamente, e hoje é tanto o produto do espanto mítico que são as forças econômicas, dos atravessamentos ideológicos da máquina ideológica capitalista, bem como das “performances tecnológicas” das mídias de comunicação (COMOLLI, 2008, p. 12). Contrariando a expectativa dos primeiros artesãos do filme, aqueles que acreditavam no cinema como o “laboratório” onde se inventaria o “novo espectador” (Eisenstein e os sovietes, por exemplo), há muito que a televisão veio assumir este papel. Como declara Comolli (2008, p. 12), o “telespectador” não é só a aposta televisiva, mas sua razão de ser, o “tudo ou nada” de sua condição ontológica. Argumenta o crítico francês que é da ordem da televisão “[...] experimentar, fabricar, distribuir um novo tipo de espectador bem diferente daquele que o cinema havia concebido em seu apogeu, um espectador que não estaria mais tão dividido entre crença e dúvida”, isto é, alguém que, na suspensão da descrença, não reluta em se deixar abater ou afetar pelo filme, mas que “[...] crendo que não crê mais, estaria em posição de gozar das angústias da crença (e da dúvida) dos outros – dos outros colocados em cena” (COMOLLI, 2008, p. 12, grifo do autor). Difícil impasse, portanto, a tarefa de definir o lugar agora ambíguo do espectador, posto que, diante dos reality shows, das “telerrealidades” e de toda sorte de apelos realistas do telejornalismo, o espectador subjugado acabou por introjetar o limite que separa a sua malograda descrença na TV da crença aparente dos outros, participantes do jogo. “Os outros colocados em cena”, escreve Comolli (2008, p. 12), ou seja, aqueles “[...] submetidos às experiências de eliminação na telerrealidade” e, igualmente, os que são convidados, convocados a participar do jogo interativo – não menos que uma falsa atividade, uma “interpassividade” como sugere Zizek (2006) ao nomear de “sujeito interpassivo” o tipo icônico na experiência midiática contemporânea3 – que institui o telespectador como um suposto sujeito privilegiado.
Uma definição possível capaz de superar o estatuto de passividade do espectador pode ser lida em O espectador emancipado, de Jacques Rancière (2012). O filósofo disputa aqui um lugar outro para o espectador que não seja aquele da ignorância e da alienação que desde a caverna de Platão até a sociedade midiatizada do espetáculo lhe reservam ainda hoje. Para Rancière (2012, p. 17), a emancipação do espectador acontece à medida em que ele rechaça este lugar ao afirmar a sua capacidade de ver, interpretar, saber e fazer, questionando a falsa oposição entre “olhar” e “agir”. Pois esta oposição só existe até o momento em que “[...] se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição”; o filósofo afirma que o emancipar-se do espectador começa no ato mesmo de olhar, quando compreende que “[...] olhar é também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição das posições”. Os sujeitos são ao mesmo tempo “[...] espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto”, posto que na distância do ato de ver implicam-se à maneira de uma aventura quando acedem a sua capacidade de interpretar. Assim, seja num teatro, diante de uma performance, no museu, na escola ou numa rua, o que há são indivíduos que estão sempre a traçar a aventura de “[...] seu próprio caminho na floresta das coisas, dos atos e dos signos que estão diante deles ou os cercam”:
O poder comum aos espectadores não decorre de sua qualidade de membros de um corpo coletivo ou de alguma forma específica de interatividade. É o poder que cada um tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de relacionar isso com a aventura intelectual singular que o torna semelhante a qualquer outro, à medida que essa aventura não se assemelha a nenhuma outra. Esse poder comum da igualdade das inteligências liga indivíduos, faz que eles intercambiem suas aventuras intelectuais, à medida que os mantém separados uns dos outros, igualmente capazes de utilizar o poder de todos para traçar seu caminho próprio. [...] É a capacidade dos anônimos, a capacidade que torna cada um igual a qualquer outro. Essa capacidade é exercida através de distâncias irredutíveis, é exercida por um jogo imprevisível de associações e dissociações. (RANCIÈRE, 2012, p. 20-21)
O espectador seria, assim, dramaturgo de sua experiência, com a condição de que se lhe fosse admitido a sua comum capacidade de ver, medir, avaliar, conhecer, relacionar, inferir, conhecer e agir e narrar como uma condição a priori. Não é pela educação ou pelo aprimoramento dos saberes, de uma sofisticação de práticas especializadas e desenvolvimento de faculdades de abstração, que se acede à igualdade, mas se deve partir da igualdade das diferentes habilidades e competências, das diferentes atividades mundanas, das formas de fazer, saber, agir e narrar como dos diferentes modos de vida e de subjetivação, para instaurar o espaço democrático por excelência. Aí então é que podemos pensar o estatuto do espectador, elemento aquecido no calor das emergências do comum – da comunidade dos iguais e da igualdade das diferenças. Neste sentido, é digno de nota que Rancière (2012a; 2012b) considere o cinema como uma máquina de produzir comum – diremos aqui, de produção cosmopoética, e de suas ferramentas o acervo de uma cosmotecnologia4.
Instalar o sujeito em formação num lugar de criação é o pressuposto básico da prática democrática, que instaura a cada vez o lugar onde se exerce, pressupondo uma igualdade fundamental necessária, diferentes formas de interpretar e recriar o mundo. É assim, pois, que a compreende Rancière ao reivindicar a democracia como a “[...] capacidade dos anônimos que torna cada um igual ao outro” ao serem, já, eles próprios, ao mesmo tempo atores e espectadores de sua história. “No palco do mundo, como no do teatro, há performances”, e a “[...] performance é sempre uma capacidade de transformação, um modo de embalar os gestos, de revirar o espetáculo” (RANCIÈRE, 2012a, p. 88). É importante, por isso, acreditar com o filósofo franco-argelino que “[...] ser espectador pode também ser uma performance” (RANCIÈRE, 2012a, p. 97). É neste sentido que a experiência cinematográfica, bem como o uso e a reflexão no âmbito de outras práticas artísticas, pode ser capaz de definir um espaço de operação e partilha do comum em sala de aula, os filmes e as obras de arte não apenas sendo tomados como meras ilustrações subsidiárias de disciplinas (como, por exemplo, os filmes históricos para a disciplina da história), mas como um lugar autônomo, com configurações específicas de linguagem, de experiência estética e afetiva, em suma, um mundo cujos sentidos e saberes são, igualmente e de maneira autônoma, passíveis de serem interpretados por todos.
A relação que pode haver entre cinema e educação privilegia-se ao encontrar no cinema um estandarte de ação disruptiva do lugar-comum que hoje subentende certa compreensão majoritária dos espaços de ensino e aprendizagem. Contrariando o prognóstico pouco auspicioso dos Lumières de que o cinema seria uma “invenção sem futuro”, o campo de sua produção tornou-se heterogênea de tal forma que – passando pela perspectiva soviética de construção do “homem novo”, sua atribuição como “fábrica de sonhos” e pelos embates e disputas de hegemonias num mercado globalizado – não se pode ignorar o futuro inventado, literalmente, pela mitologia das narrativas e ficções feitas de luz e som5. Neste sentido, o cinema não apenas constitui um imaginário social como participa da construção mesma da sociedade; não, porém, como arte disciplinar, prescritiva, mas de maneira problemática, como campo de experimentação e empiria, espaço onde se faz cadinho das relações sociais ao experimentar novos gestos, novos agenciamentos, novas possibilidades éticas de se afirmar no mundo, para si e para os outros. Por outro lado, é também o espaço aberto para a reflexão (no sentido de que onde se multiplicam os corpos e seus gestos, multiplicam-se os reflexos uns nos outros) e para o espanto em relação ao outro (isto é, possibilidade de desenvolver capacidades socioemocionais no processo de se descobrir e se desdobrar no encontro com a alteridade).
Um método dramático e o princípio da montagem
Nossa referência metodológica, pedagógica e didática, importante para compor o chamado “método dramático”, é o trabalho realizado pela professora Sandra Mara Corazza, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que tem desenvolvido nos últimos anos um inventário de formas nada ortodoxas de ensino e aprendizagem nas escolas, propondo novas estratégias inspiradas na “tradução e transcriação”, na prática engajada de leitura e de escrita (nomeadamente as escrileituras) e na criação errática de dispositivos de apropriação e construção do saber em sala de aula (as chamadas artistagens). Parte de suas investigações encontram-se reunidas no livro, publicado em 2017, Docência-pesquisa da diferença: poética de arquivo-mar, antologia de textos, artigos e ensaios – escritos individualmente pela professora e em conjunto com outros pesquisadores – voltados aos pressupostos do ensino como criação e performance, da leitura não desassociada da reelaboração escrita e da tradução como transcriação entre formas, poéticas ou científicas, de representação discursiva e verbal. É toda uma poética do ensino que Corazza mobiliza a fim de encaminhar novas estratégias pedagógicas, calcadas na introdução de jogos e dispositivos de criação, de códigos abertos passíveis de serem apropriados e relançados por diferentes professores de diferentes áreas.
Nossa intuição é que um mapeamento dos projetos de cinema em espaços educativos realizados no Brasil nos últimos anos viabilizaria uma cartografia rica de práticas e experiências voltadas ao cultivo de uma sensibilidade pelas imagens6. O projeto Inventar com a diferença ou o CINEAD/LECAV são referências incontornáveis, que serviram de laboratório para a proliferação incansável de ferramentas, dispositivos e propostas de imersão nas práticas cinematográficas profundamente conjugadas a uma sorte de educação da sensibilidade, do olhar e da curiosidade. Quando vemos no material de apoio do Inventar com a diferença um exercício como “Lá longe/Aqui perto”, “Espelhos de autorretrato”, “Histórias de objetos”, “Fotografias narradas”7; ou quando se propõe o exercício de se pensar filiações estéticas por meio da articulação e combinação de fragmentos, como Adriana Fresquet (2017) sugere a partir de Alain Bergala em seu livro A hipótesecinema8; o que estamos presenciando são maneiras de reorganizar os sentidos do mundo por meio de um reencantamento das formas de enquadre.
A imagem, dada como recorte de um pedaço de espaço-tempo do mundo, traz consigo um sopro de fotogenia, no sentido epsteiniano, que encanta, sob uma aura de estranheza, as coisas que mostra. Quando retiradas de um álbum, as fotografias narradas no exercício do Inventar ganham uma nova aparição aos olhos e aos ouvidos de quem vê e, assim, uma nova potência; não é preciso que se conte a sua verdade, por meio do testemunho real, mas a articulação da palavra fabuladora com uma fotografia qualquer é capaz de suscitar intensificações do desejo espectatorial, acionando disposições de curiosidade naqueles e naquelas que participam da experiência. César Migliorin (2015), um dos idealizadores do Inventar com a diferença, cita uma ocasião em que, durante um exercício de filmagem, duas crianças discutiam se o beco escolhido por uma delas era “filmável” ou não; a opinião de uma era que o beco era “muito feio”. Ao fim decidiram filmar. Olhando o material projetado, já em sala, chegaram à conclusão de que aquela imagem, de fato, era “cinema”, o que, para Migliorin (2015, p. 129), não significava dizer que o beco era, na verdade, “bonito” – pois esta era uma falsa oposição – mas que, naquele momento, o beco tinha virado “imagem”, isto é, algo digno de ser visto – “visto e experimentado” - e em vista do qual todo e qualquer julgamento era posto em suspensão.
O mundo comum aqui é compreendido por um conjunto de dimensões que passa pelo ethos da comunidade tanto quando pela cosmologia que a constitui; numa via de mão e contramão, as linguagens e os ritos sociais constituem-se como práticas do comum, atualizando ou transformando o ethos, suas cosmologias, bem como seus processos semióticos e pragmáticos. Partimos do pressuposto de que não existe campo operacional ou sistema de linguagem que não suponha um mundo perpetuamente atravessado pelas linguagens e pelos ritos, que ora o elaboram como efeito de speech acts, ora dele se diferem como efeito de um complexo trabalho de diferentes formas de representação e intervenção típicas das artes, das religiões, das ciências e da filosofia: seja por mímesis, repetição, simbolização, conceituação ou fabulação. Em suma, dramaturgias ou “dramatizações” de ideias, conceitos, imaginários, mas também gestos, hábitos, ações e performances (DELEUZE, 2005)9.
A imaginação na arte, acreditamos, opera em um sentido fenomenológico, que não negligencia o peso e as implicações do observável no observador, a maneira como este leva em consideração as características e condições de visibilidade e legibilidade daquele; em um sentido analítico, a imaginação artística opera por montagem e remontagem dos elementos de uma ou várias peças para obter a forma de uma experiência sensível – e, por que não, a forma experimental de um modo possível de conhecimento. Chamamos de montagem o processo de associação e dissociação pelo qual Didi-Huberman (2018), na linha de outros artistas e pesquisadores, argumenta ser cogente ao conhecimento que se constrói na relação entre visibilidade e legibilidade para além do modo de saber mais tradicional – cartesiano, racional, positivista – que subsume os fenômenos a programáticos esquemas de organização e classificação. Pode-se dizer, por exemplo, que o procedimento de montagem passa por um exercício de bricolagem, tal qual falava Lévi- Strauss (2002)10 acerca do pensamento selvagem; encontra-se, à guisa de exemplos referidos por Didi-Huberman (2018), nas montagens surrealistas do Documents, de Georges Bataille, das Passagens, de Walter Benjamin ou do Atlas Mnemosyne, de Warburg. São maneiras de dar forma à experiência e aos fenômenos do mundo sem que o submeta a um télos rigoroso de um saber disciplinar.
Um método dramático na prática do cinema na escola realiza, à sua maneira, a proposta deleuziana justamente porque articula diferentes formas e dinâmicas do espaço e do tempo. Os dinamismos espaço-temporais instaurados pela dramaturgia da realização fílmica – não apenas sua mise-en-scène ficcional-diegética, mas a mobilização socioemocional das subjetividades em grupo que uma produção efetua – sugerem a possibilidade de criação de espaços e tempos singulares, tais como propõe Deleuze (2005) com seu método de dramatização filosófica. No encontro das subjetividades operantes numa produção fílmica, as modalidades possíveis de serem trabalhadas no exercício da educação passam não apenas pelo saber discursivo (logos), mas também pela localização ética dos sujeitos, suas escolhas e posições (ethos), pela diferenciação das sensibilidades e das percepções (aisthésis) bem como por uma permeabilidade aos movimentos psíquicos emocionais (páthos). Em suma, trata-se de uma perturbação da mentalidade educacional capaz de permitir aos estudantes o exercício e a experimentação política do comum e do sensível.
Assim, o cinema agencia subjetividades e corpos que animam o exercício transcriativo, reconfigurando um espaço em que a didática tradicional da relação professor-aluno é posta em suspensão em favor de uma desierarquização da prática educacional. As possibilidades de experimentação transcriadora podem compreender o exercício da passagem do argumento/roteiro de cinema ao filme, que pressupõe um trânsito semiótico particular; o diálogo entre o cinema e a literatura, com suas diferentes modalidades de linguagem, narrativas e semióticas; além disso, os modos de pensar por palavras e pensar por imagens possibilitam uma experiência de tradução do pensamento. Sendo a montagem o modo de operação nessa transação criativa entre cinema e educação. A didática assim se configura tal como Corazza (2013, p. 204) a propõe: um “[...] território transdisciplinar, translinguístico, transemiótico, transliterário, transartístico, transcultural e transpensamental”.
À GUISA DE CONCLUSÃO: POR UMA PEDAGOGIA INSUBMISSA COMO A ARTE
A arte não é portadora dos bons costumes, do bom senso, pelo contrário, eivada de contradições, de fraturas sociais, de ambiguidades, ela não poderia servir de modelo a nenhuma moral prescritiva. A arte é portadora de uma moral e de uma ética, mas por outras vias, no sentido de que ela é a experimentação das possibilidades de relações sociais, o campo onde se dão tais relações, o espaço aberto para a reflexão e para o espanto – instante seminal de todo pensamento. Assim, por exemplo, o crítico de cinema Serge Daney (2016, p. 27), avesso às “belas imagens” e ao cinema bem-comportado11, definia seu lugar de crítico como aquele que, ao mobilizar tal ou qual filme de seu repertório, podia muito bem tanto justificar quanto dar forma ao seu “gosto”. Ser justo, no cinema, não é fazer justiça àqueles que foram injustiçados por algum motivo, mas dar forma ao sofrimento, o que equivale a dizer, muitas vezes, dar forma ao silêncio e ao vazio de imagem que precedem os corpos violentados, estropiados, desaparecidos. (Como Noite e neblina, 1956, para falar das câmaras de gás, foi preciso mostrar – e dizer – as supostas marcas das unhas na parede; e como mais tarde Shoah, 1985, que filmaria o mato crescido sobre as ruínas dos campos agora irreconhecíveis, tomados de silêncio). Se o cinema enquanto arte contribui em algo para um conhecimento moral, não é porque a arte prescreve formas do bem agir e das boas maneiras de se portar no mundo; é que ela instaura um espaço imaginário onde podemos encenar outras realidades possíveis, outras formas de existência, realidades estranhas ou obscuras, por mais que estas nos sejam íntimas ou intimamente humanas de cujos limites as ciências humanas e a boa moral tendem a desviar os olhos.
A formação de uma infância possível, no cinema, partiria desse encontro inesperado com os filmes que nos observam, nos causam espanto ou encanto, mas que nos engajam12. Como Bergala (2008) escreve em seu livro A hipótese-cinema, todo cinéfilo constrói a ficção de sua “autobiografia cinematográfica”. Ela é justamente a formação de um repertório que não deixa de ser mobilizado a cada filme visto, que define um “gosto”, mas que não é a mera subjetividade, este conceito usado de maneira irrefletida, mal interpretado. Posto em questão, a subjetividade revelase como a trama sutil formada pelos acasos da história, da cultura, de uma certa sociedade; revelase, por fim, líquida, flexível, ausente de centro e, portanto, passível de ser transformada. O repertório de cinema, em todo caso, inscreve uma memória das imagens, um remanso onde vêm tomar porto as experiências humanas, aquelas que incessantemente reelaboram a ideia de humano. Virginia Woolf falava da literatura como aquela responsável pela produção de “antropofanias”, de revelações instantâneas do ser, de aparições daquilo que não pode ser outra coisa senão o humano, mas uma ideia ainda inexistente, informulada, do humano; a emergência de uma “humanidade” sempre por vir13. A experiência cinematográfica não é menos potente, visto a sua capacidade de agenciar corpos vibráteis, modos de subjetividade, criando um espaço cênico de encenação e experimentação dessas diferentes “humanidades”.
Não se trata, portanto, de aprender a ver os filmes profissionalmente, de maneira depurada, com o olhar arrogante do especialista ou do crítico, mas da possibilidade de uma pedagogia que não é o investimento sobre o aprendizado, mas sobre a sensibilidade, sobre o sentido e o sensível da visão. Ver, olhar, aprender a ver: trata-se de uma maneira de experimentar o tempo da visão, pois para ver não basta olhar, aquilo que assoma à visão só pode ser, para citar Tarkovsky, esculpido pelo tempo. A formação de um repertório, dessa autobiografia determinada pelos filmes que vemos e que nos olha, constitui, funda a possibilidade mesma de uma consciência do estar no mundo cujo termômetro não é outro que não a sensibilidade, uma maneira de perceber a ambivalência das coisas. Como na bela expressão de Proust: “[...] fazer variar a luz do céu moral de acordo com as diferenças de pressão de nossa sensibilidade”.
Para pensar se é possível a eficácia de uma abordagem criativa, criadora, do cinema na escola, precisamos recuar quanto a uma proposição sistêmica da pedagogia como ciência e técnica de ensino e aprendizagem a serem introduzidas de forma homogênea nas escolas, apropriadas de maneira mais ou menos igual pelos professores, e abalizada conforme graus de eficiência medidos por rubricas como “produtividade”, “qualificação”, “profissionalização”, “metas a alcançar” etc. Contrariamente, é preciso ver a escola ou o espaço de educação como monde vivant, lugares de uma ritualística em que se exercitam os saberes, as formas de vida e os modos de subjetivação, não sem resistir à pressão das forças de cooptação e captura que submetem os sujeitos às condições do trabalho e do neg/ócio (aquilo que nega o ócio); é preciso, portanto, retomar a escola como espaço autônomo, permeável sim aos fluxos do mundo, mas não para servir corpos dóceis e produtivos senão para interrompê-los, pô-los em suspensão; dramatizá-los como se emulasse a antiga ágora onde se exercita a democracia. Por fim, seria preciso reintroduzir na escola o que a atual conjuntura econômica e social a ela recusa: que seja vista como lugar privilegiado do ócio e do tempo livre, trincheira não dos saberes, mas da experiência possível, tal como Jorge Larrosa (2002) conceitua em seu texto Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Tal experiência pressupõe outras propriedades e condições que Larrosa (2002, p. 19) resume em “fazer silêncio” e “fazer memória”, ambas tomadas a partir de um gesto de interrupção:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.
Assim, um método dramático de investigação do cinema propõe definir um lugar aberto para o espectador, fiando-o à condição de sujeito dúctil, mas ativo tanto no ato de ver como no processo educativo, propõe igualmente um horizonte outro de formação pedagógica calcada não nas técnicas, mas nas práticas experimentais dos dispositivos e jogos em código aberto, não na ciência demagógica, mas na experimentação das hipóteses e na dramaturgia/dramatização das posições, articulação dos discursos, dos saberes e das relações sociais não raro conflitantes, marcadas pela diferença, pela violência e pela desigualdade. O método dramático recontextualiza a sala de aula e o espaço de educação, dispondo de atividades e jogos que incitem a criação, a transcriação, a operação engajada dos corpos e da imaginação no processo de desbravamento do saber sobre si e sobre o mundo, de descoberta de outras percepções sobre si e sobre o mundo, por meio da formação de repertório visual (visualização de filmes, prática cineclubista e debate) e da realização de filmes (escrita de roteiro, emulação de set de filmagem, técnicas de edição).