O trabalho inaugura a coleção de livro paradidático da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) sobre a (s)Amazônia (s), viabilizado pelo projeto “Patrimônio, Diversidade Sociocultural, Direitos Humanos e Políticas Públicas na Amazônia Contemporânea” realizado em cooperação entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). É direcionado à formação de professores de ensino fundamental e médio, e está organizado em seis partes, quinze artigos, reunindo vinte autores.
A primeira parte intitulada “Amazônia, História e Diversidade” é composta de quatro artigos que problematizam as diferentes e particulares maneiras de narrar a história e a ocupação da Amazônia sem, no entanto, privilegiar a biodiversidade em detrimento da sociodiversidade. No artigo “Alteridade e consciência histórica: a história indígena em seus próprios termos”, os autores Rhuan Carlos dos Santos Lopes e Jane Felipe Beltrão elucidam os conceitos de alteridade, história e consciência histórica para demonstrar a importância de conhecer a história da Amazônia a partir do contexto dos povos indígenas, numa perspectiva descolonial.
O trabalho “Entre histórias locais e narrativas oficiais: proposta para uma abordagem sobre a ocupação amazônica a partir das escolas”, de autoria de Rita de Cássia Melo dos Santos, questiona o papel da escola na continuidade da subalternização dos saberes, à semelhança dos agentes coloniais, que silencia as histórias locais e, em contrapartida, propõe outra forma de compreender a colonização e o “passado” da Amazônia, a partir de trajetórias de famílias, lideranças e estudantes (entre outros sujeitos).
Em “Comunicação: controle e rebeldia”, Bruno Pacheco de Oliveira, afirma que é preciso romper o silêncio da diferença que desqualifica os povos indígenas e outras comunidades invisibilizadas para emergir a pluralidade de vozes em rede (local, nacional e global).
O texto “Para o Pará e o Amazonas: látex”, escrito por Katiane Silva, destaca a linguagem da violência e da exploração que atravessava as relações sociais nos seringais, mantendo o seringalista preso numa situação análoga ao trabalho escravo. Para a autora, “[...] tal sistema violento possibilitou a modificação de vidas, de espaços e territórios, não somente no interior, mas também em cidades como Belém e Manaus […]” (p. 56). Esta face do período áureo da Amazônia, ocultada da história, ignorou os costumes indígenas para a aquisição de uma nova subjetividade urbana, imposta pela cultura estrangeira.
A segunda parte do livro, “Movimento sociais e de gênero”, integra três artigos que tratam da relação entre os movimentos sociais e a garantia de direitos, compreendendo também o papel da escola nessa relação. Sob o título “Movimentos Sociais e escolas: possibilidades de ação conjunta e de fortalecimento mútuo”, Paula Mendes Lacerda exalta a significativa parceria da escola para o fortalecimento da memória dos movimentos sociais para a garantia de direitos à comunidade.
O trabalho sobre “Gênero e sexualidade em sala de aula: um diálogo com estudantes de povos e comunidades tradicionais”, de Camille Castello Branco Barata e Mariah Torres Aleixo, é construído a partir das narrativas de estudantes universitários de diversas pertenças (indígenas, quilombolas, agricultores, pescadores, sindicalistas) em relação às questões de gênero e sexualidade, que precisam ser adequados aos processos de ensino-aprendizagem no contexto amazônico e entrecortados por questões étnicas, raciais e de classe, abandonando visões moralizantes, reguladoras e mesmo religiosas.
Em “Povos indígenas & igualdade étnico-racial: horizontes políticos para escolas”, Jane Felipe Beltrão defende que a igualdade étnico-racial no Brasil só se tornará realidade quando os diversos grupos sociais forem reconhecidos “[...] e as similitudes e diferenças promoverem o fortalecimento dos diferentes tendo por moldura igualdade cidadã” (p. 116), a partir de uma proposta de uma educação “antirracial”, possível de ser desenvolvida dentro da escola e com potencialidade para fora dela.
A obra, na sua terceira parte intitulada “Direitos Diferenciados”, é composta por dois artigos que discutem a temática dos direitos humanos enquanto exercício da cidadania. O primeiro, “Educação em Direitos Humanos na escola: subsídios aos docentes e exercício da cidadania”, de Assis da Costa Oliveira, fomenta a perspectiva de a escola assumir um papel ativo no exercício da cidadania, destacando os temas sociais relevantes dos conteúdos curriculares, assim como, o protagonismo dos alunos os alunos na “[...] luta por mudanças sociais amparadas na justiça social e nos direitos humanos”(p. 133).
O segundo artigo, “‘Agora, nós é que decidimos’: o direito à consulta e consentimento prévio”, elaborado por Rodrigo Oliveira, versa sobre os princípios de uma importante conquista dos grupos etnicamente diferenciados, o direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado, sempre que medidas administrativas ou legislativas possam afetá-los diretamente.
A quarta parte, denominada “Propostas de trabalho” apresenta propostas de atividades a serem realizadas por educadores. O texto “Artefatos para o ensino: a pesquisa por meio de práticas criativas com a cultura material”, construído por Thiago Lopes da Costa Oliveira, resulta de relatos de experiências de pesquisas compartilhadas junto ao povo indígena Baniwa do Alto Rio Negro, buscando salvaguardar a preservação de sua cultura material (cerâmica) e a valorização do saber local.
O texto “Sobre povos indígenas e diversidade na escola: superando estereótipos”, apresentado por Rosani de Fátima Fernandes, tece críticas contundentes à educação escolar na continuidade de preconceitos, racismo, intolerância com os povos culturalmente diferenciados, sendo agravado, segunda a autora, pelo desconhecimento e pela inexistência de material didático que discutam a diversidade cultural e a necessidade de novas posturas de convivência respeitosa com as diferenças e com o pluralismo cultural.
Na quinta parte “Campos da diversidade e do patrimônio”, os trabalhos contemplam, em contextos diferentes, elementos constitutivos da preservação do patrimônio cultural. O artigo de Clarice Callegari Jacques, intitulado “A arqueologia conta histórias”, aborda as dimensões de estudo da arqueologia para compreensão do homem, do seu modo de vida e a preservação do seu patrimônio.
O artigo de Laise Lopes Diniz e Luiza Garnelo, “Política indígena e política escolar: interfaces e negociações na implantação da Escola Indígena Pamáali – Alto Rio Negro”, conta a trajetória de uma escola de “diferenciação” indígena, criada sob uma nova forma de organização – a autogestionária e marcada pela orientação dos velhos baniwas na formação dos estudantes – e os desafios para congregar os temas e atividades de uma escola comum com as práticas e valores da vida em comunidade.
A sexta e última parte da coletânea “Povos Indígenas e Saúde” apresenta dois textos que evidenciam a necessária aliança da saúde com a educação, para a garantia de sistemas de saúde, que respeitem a diversidade cultural. O artigo “A experiência de formação de agentes comunitários indígenas de saúde, à luz das políticas públicas de saúde e da promoção da diversidade cultural”, de autoria de Luiza Garnelo, Sully Sampaio e Ana Lúcia Pontes, relata a significativa experiência do curso técnico profissionalizante de agentes comunitários indígenas de saúde do Alto Rio Negro, no Amazonas, tal como preconizado pela política de educação escolar indígena e centrado em estratégias de revitalização e revalorização da diversidade cultural.
O artigo “Saúde indígena e diversidade no Brasil plural”, escrito por William César Lopes Domingues, aborda a questão da diversidade de concepções sobre a saúde no Brasil, ressaltando que, apesar dos sistemas de saúde, tanto indígenas quanto não indígenas, serem diferentes, possuindo lógica e estrutura próprias, são atendidos universalmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no país.
Consideramos que a coletânea possibilita a compreensão didática das diversas coletividades da Amazônia contemporânea brasileira na perspectiva descolonial do conhecimento. Sintetiza uma riqueza de trabalhos produzidos por antropólogos, que contam a história da ocupação territorial, reorganização e mobilização social do espaço amazônico, a partir das narrativas locais, que desmistificam a imagem estereotipada criada sobre os povos indígenas e dão visibilidade à existência de outras comunidades presentes, ocultadas da história oficial.
Ademais, contempla questões relativas à preservação do patrimônio cultural e valorização dos costumes e valores próprios de cada povo, sendo potencializados a partir da memória dos movimentos sociais e sua relação com a garantia de direitos numa sociedade multicultural. Assim, não hesita em criticar as práticas homogeneizantes e eurocêntricas, ainda presentes nas escolas, que pouco contribuem para o contexto de enfrentamento das diversas identidades culturais, e elege essas instituições como espaços privilegiados para combater o racismo e possibilitar o conhecimento e o respeito aos povos indígenas e comunidades etnicamente diferenciados.
Para ampliar a reflexão sobre a temática, o livro apresenta sugestões de recursos pedagógicos e atividades que o docente pode trabalhar com os estudantes, no sentido de construir novas formas de percepção da diferença e da diversidade multicultural na escola. A leitura desta obra torna-se indispensável ao conjunto de educadores que busca nas suas práticas de sala de aula dar visibilidade às múltiplas narrativas que compõem a história da Amazônia brasileira e seus contextos correlatos.