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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.67 Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 14-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.62022 

Artigo

MULHERES DA E NA EJA: tecendo reflexões a partir das contribuições de Paulo Freire

WOMEN OF AND IN YAE: weaving reflections from the contributions by Paulo Freire

MUJERES DE Y EN EJA: tejiendo reflexiones a partir de los aportes de Paulo Freire

Maria Cláudia Mota dos Santos Barreto1 
http://orcid.org/0000-0003-2041-6217; lattes: 6088654823769561

Gilvanice Barbosa da Silva Musial2 
http://orcid.org/0000-0002-0597-8150; lattes: 3290799012387538

1Universidade Federal da Bahia (UFBA) E-mail: mariacmsbarreto@gmail.com

2Universidade Federal da Bahia (UFBA) E-mail: gilvanice.musial@ufba.br


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar as trajetórias de mulheres da e na EJA à luz das categorias situações-limite, inéditas-viáveis e conscientização em Paulo Freire. Para a realização da pesquisa que sustenta este texto, foi aplicado questionário com dados sociodemográficos, realizadas entrevistas narrativas e utilizado o diário de campo. As informações produzidas foram interpretadas mediante a análise narrativa. Os resultados indicam que as necessidades laborais impulsionam a escolarização na idade adulta. Embora as estudantes relatem dificuldades de aprendizagem, a inserção na modalidade possibilita adquirir conhecimentos para manejar trocas financeiras e transitar pela cidade. A convivência no espaço escolar propicia o estabelecimento da rede de apoio social, mas também emergem dificuldades de interação com estudantes mais jovens. A decisão de vinculação à escola representa um ato subversivo e de resistência, conferindo o sentimento de ter vencido na vida. Contudo, ainda persistem alguns entraves para que a educação seja libertadora na vida dessas pessoas e da sociedade.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; mulheres; Paulo Freire

Abstract

The objective of this article is at analyzing trajectories of women of and in YAE in the light of categories of limit-situations, viable-unprecedented and awareness in Paulo Freire. To carry out the research that supports this text, a questionnaire with sociodemographic data was applied, narrative interviews were carried out and a field diary was used. Information produced was interpreted through narrative analysis. Results indicate that labor needs drive schooling in adulthood. Although the students report learning difficulties, entering the modality allows them to acquire knowledge to manage financial exchanges and move around the city. Coexistence in the school space provides the establishment of a social support network, but difficulties in interacting with younger students also emerge. The decision to link to the school represents a subversive and resistant act, giving the feeling of having won in life. However, there are still some obstacles for education to be liberating in the lives of these people and society.

Keywords: Youth and Adult Education; women; Paulo Freire

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar las trayectorias de mujeres de y en EJA bajo la luz de las categorías de situaciones-límite, inédito-viables y conciencia en Paulo Freire. Para realizar la investigación que sustenta este texto, se aplicó un cuestionario con datos sociodemográficos, se realizaron entrevistas narrativas y se utilizó un diario de campo. La información producida se interpretó mediante análisis narrativo. Los resultados indican que las necesidades laborales impulsan la escolarización en la edad adulta. Si bien las estudiantes reportan dificultades de aprendizaje, ingresar a la modalidad les permite adquirir conocimientos para gestionar intercambios financieros y moverse por la ciudad. La convivencia en el espacio escolar proporciona el establecimiento de una red de apoyo social, pero también surgen dificultades para interactuar con estudiantes más jóvenes. La decisión de vincularse a la escuela representa un acto subversivo y resistente, dando la sensación de haber ganado en la vida. Sin embargo, aún existen algunos obstáculos para que la educación sea liberadora en la vida de estas personas y en la sociedad.

Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos; mujeres; Paulo Freire

DIÁLOGOS INICIAIS: DELINEANDO A TEMÁTICA E APRESENTANDO AS OPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Este artigo1 apresenta como objetivo analisar as trajetórias de mulheres da e na Educação de Jovens e Adultas/os (EJA) à luz das categorias situações-limite, inéditas-viáveis2 e conscientização em Paulo Freire. Para tanto, realizamos a exposição das trajetórias de duas mulheres-estudantes que participaram do nosso estudo, considerando os seus percursos de aprendizagem, suas experiências na escola e fora dela, bem como as resistências que emergem no decorrer das suas vidas. Orientamo-nos pela seguinte indagação para tecer as nossas reflexões: a partir das trajetórias de mulheres da e na EJA, é possível vislumbrar processos de conscientização e de enfrentamento de situações-limite?

O contexto da pesquisa realizada é uma escola pública de Ensino Fundamental de Salvador-BA, e a sua proposta foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia (CEP-IPS) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Duas estudantes, Amada3 e Vitória, foram convidadas para participar, mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Permanecemos em contato durante dois meses através de chamadas de áudio, mensagens de áudio e de texto enviadas por rede social de mensagens instantâneas, em conformidade com as medidas de distanciamento social preconizadas na pandemia da COVID-194. Com tais estudantes, aplicamos um questionário com dados sociodemográficos; realizamos entrevistas narrativas, seguindo as etapas sugeridas por Jovchelovitch e Bauer (2008), também utilizamos diário de campo para o registro das reflexões no decurso dos diálogos e no encontro presencial para a assinatura do TCLE. Tais ponderações nos auxiliaram posteriormente, no momento do tratamento e interpretação, em que empregamos a análise narrativa como inspiração analítica para as informações produzidas e recorremos ao termo informante para designar as participantes do estudo.

As estudantes migraram de localidades rurais do interior da Bahia para a capital do estado, atualmente residindo no bairro de Pirajá desse município. Elas se autodeclaram negras5 e informaram que começaram a laborar como trabalhadoras domésticas ainda na infância, deixando a casa das suas famílias para se abrigarem no domicílio da família empregadora. Amada, no momento com 62 anos, matriculou-se na escola quando adolescente, mas houve afastamento desse ambiente, com retorno aos 50 anos de idade. Viúva há cerca de 20 anos, conviveu com o falecido companheiro por quase 30 anos, tendo uma filha, um filho e três netas/os. Filha de pai e mãe sem acesso à escolarização, já trabalhou como babá, trabalhadora doméstica e com atividades de serviços gerais em empresas. Atualmente está aposentada e eventualmente realiza alguns bicos vendendo produtos; a renda atual aproximada da família é de um salário-mínimo. Vitória, hoje com 49 anos, não chegou a frequentar a escola na infância e adolescência, matriculando-se apenas na vida adulta. Seu pai e sua mãe (falecida quando ela tinha três anos de idade) nunca se matricularam em uma escola. A informante tem duas filhas e uma neta, e conviveu com o pai das filhas até o sexto mês de gravidez da filha caçula, atualmente não tendo contato com ele. Executa atividades laborais como diarista, não tem férias nem salário fixo. As estudantes estão inseridas no Tempo de Aprendizagem (TAP) III do Segmento EJA I6.

Para que não nos situemos no equívoco de que há simetria nas relações entre mulheres e homens, sobretudo nas sociedades em que a distribuição de poder e privilégio acarreta definições de espaços previamente circunscritos para determinados grupos sociais, raciais, étnicos entre outros, temos, por exemplo, a delimitação do espaço doméstico para as mulheres e do escolar para os homens. Entretanto, mediante a breve apresentação das estudantes exposta acima, julgamos importante dialogar com a proposta de Crenshaw (2002) sobre a interseccionalidade, quando aponta que:

[...] nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos. [...] ao sobrepormos o grupo das mulheres com o das pessoas negras, o das pessoas pobres e também o das mulheres que sofrem discriminação por conta da sua idade ou por serem portadoras de alguma deficiência, vemos que as que se encontram no centro – e acredito que isso não ocorre por acaso – são as mulheres de pele mais escura e também as que tendem a ser as mais excluídas das práticas tradicionais de direitos civis e humanos (CRENSHAW, 2002, p. 10).

Apesar de a interseccionalidade ser uma perspectiva teórico-metodológica que propõe a “[...] inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais” (AKOTIRENE, 2019, p. 14), aqui a citamos enquanto categoria analítica. Neste trabalho não traçamos discussões aprofundadas sobre essa temática em virtude das limitações e proposições que o espaço enseja. Há que se considerar, no entanto, que os marcadores de gênero, cor/raça e classe social atravessam as vidas dessas estudantes e não podem ser relegados ao esquecimento quando abordamos suas trajetórias e seus processos escolares e não escolares. Nesse contexto, adotamos a categoria raça por compreendermos, tal como Gomes (2011, p. 90), que ela incide na “[...] construção social, histórica e política. Reconhece-se que, do ponto de vista biológico, somos todos iguais, porém, no contexto da cultura, da política e nas relações sociais, a ‘raça’ não pode ser desconsiderada: ela tem uma operacionalidade na cultura”.

Quando discorremos acerca das/os estudantes da EJA, cabe pontuar que, de acordo com Gomes (2011), a juventude e a vida adulta apresentam diversas experiências sociais e humanas:

[...] suas temporalidades, trajetórias, vivências e aprendizagens não são as mesmas, e, mesmo que participem de processos socioeconômicos, políticos e educativos semelhantes, esses sujeitos atribuem significados e sentidos diversos à vida, à sociedade e às práticas sociais das quais participam no seu cotidiano (GOMES, 2011, p. 87-88).

Contudo, ainda prevalece a concepção, defende Arroyo (2011), de que as pessoas jovens e adultas apresentam carências escolares por não terem frequentado a escola quando crianças e/ou adolescentes, terem se evadido ou até mesmo sido excluídas, demandando uma segunda oportunidade para estudar. De modo semelhante, Di Pierro (2005) assegura que persiste a visão da EJA como política compensatória, que pretende repor a escolarização outrora não realizada. Conforme a autora, tal perspectiva embasa ações preconceituosas em torno do público juvenil e adulto, menosprezando, inclusive, os conhecimentos que são produzidos fora da escola. Segundo pontua, a superação dessas apreensões preconiza uma educação que reconheça esse público como sujeito de direitos e de cultura, bem como questione as suas necessidades de aprendizagem no momento presente, visando à mudança coletiva dessa realidade. Isso nos remete à ideia fortemente apresentada por Paulo Freire (2002b, p. 55), de que “[...] ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo. Todos sabemos algo; todos ignoramos algo”. O fato de pessoas jovens e adultas não dominarem o código escrito não significa que sejam destituídas de conhecimentos. Desde a década de 1960, Paulo Freire problematiza o olhar preconceituoso em relação às pessoas não alfabetizadas e propõe que toda prática educativa tenha como ponto de partida os saberes produzidos por essas populações. É esse o sentido do levantamento do universo vocabular para a organização do trabalho pedagógico e do diálogo como prática inerente a toda educação que se propõe libertadora.

A aprendizagem, no decorrer dos anos, além de contribuir para o desenvolvimento pessoal e representar um direito de cidadania, incide na participação mais efetiva das pessoas jovens e adultas na construção de sociedades com características que incluem a tolerância, a justiça e a democracia (DI PIERRO, 2005). Diante dos aprendizados e vivências das mulheres em espaços não escolares, quando nos remetemos à entrada na EJA e ao atraso na alfabetização e escolarização, será que podemos falar em recuperação do tempo perdido? Arroyo (2011, p. 23) alerta que a reconfiguração da EJA somente acontecerá quando tais pessoas forem enxergadas fora do prisma das carências, além de compreendidas “[...] em tempos e percursos” de pessoas jovens e adultas, em “[...] percursos sociais onde se revelam os limites e possibilidades de ser reconhecidos como sujeitos dos direitos humanos”. Com isso, preferimos fazer referência ao tempo vivido, aos itinerários nada lineares, que “[...] não significam sua paralisação nos tensos processos de sua formação mental, ética, identitária, cultural, social e política. Quando voltam à escola, carregam esse acúmulo de formação e de aprendizagens” (ARROYO, 2011, p. 25).

Assim, a análise de fragmentos das trajetórias de mulheres da e na EJA à luz das contribuições de Paulo Freire requer, a priori, o reconhecimento de que sua produção teórica é capaz de engendrar discussões que remontam àquilo que parece ser óbvio: a dimensão política das políticas públicas de educação. Considerando o que expõem Vigano e Laffin (2016), acerca das mulheres que frequentam a EJA carregarem características singulares, culturas diversas e marcas de violências que atravessam suas vidas, a discussão aqui traçada esboça construir diálogos entre as singularidades que se encontram nos itinerários das coletividades.

NA (RE)LEITURA DAS TRAJETÓRIAS DE MULHERES DA E NA EJA: (DES)CAMINHOS DAS APRENDIZAGENS

As duas informantes da pesquisa relatam7 dificuldades de aprendizagem relacionadas com aspectos individuais e atribuindo a culpa à sua mente e/ou capacidade, pelo fato de não serem aprovadas ao término do ano letivo. Vitória, por exemplo, destaca que, quando sua filha mais nova era criança, ela frequentava a escola, recebia nota 10 nas atividades e obtinha êxito no final do ano. Com o passar do tempo, sinaliza que não conseguiu manter o nível descrito e começou a ser reprovada. De modo semelhante, Amada verbaliza que, apesar de estudar muito e transitar em diferentes unidades de ensino, sente que “[...] não vai pra lugar nenhum”, pois não consegue avançar no processo de ensino-aprendizagem.

O domínio da língua escrita parece ainda ser um desafio na vida de Amada. Logo no início das nossas interações, ela salientou a necessidade da comunicação apenas por mensagens de áudio e/ou chamadas de áudio, de modo que, no aplicativo utilizado, sua mensagem pessoal apresenta a seguinte frase: “mande áudio, por favor”. Ela alega que sente muita vontade de aprender a redigir um bilhete e de dominar a leitura consistente de materiais escritos. Somado a isso, informa o desejo de alguém registrar sua trajetória de vida em um livro, e quando explicamos que nossa pesquisa geraria algumas publicações, ela sinaliza contente que “vai ficar na história”.

No âmbito da alfabetização das pessoas adultas, Paulo Freire (1989) pondera que a palavra escrita adquire uma característica mágica, entendida como uma espécie de salvação. Devido a isso, para ele, a pessoa não alfabetizada é visualizada como alguém que se encontra perdida, afastada e sem enxergar a realidade. Explicando de outro modo, a palavra escrita funciona como algo que a pessoa alfabetizanda recebe e que lhe confere a redenção, o que é criticado pelo autor, pois remete à condição de passividade, em detrimento da posição de sujeita8 que deveria ser conferida a essa pessoa. O processo da autêntica libertação humana não acontece através de meros depósitos, tampouco palavras ocas e abstratas, mas advém da “[...] práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1987, p. 67).

Uma das informantes comenta que aprendeu a ler assistindo às novelas e aos jornais televisivos, o que impulsionou que transitasse por vários lugares e compreendesse os enunciados dispostos nos ambientes: “[...] quando eu passava num lugar e via placa disso, ficava lendo aquelas placas e tal, eu queria voltar ali de novo [...], eu botava na mente, eu juntava as letrinhas e foi assim que aprendi a ler” (VITÓRIA, 2021). Embora a estudante ressalte não dominar o ato da leitura plenamente, visto que apresenta dificuldades, ela expõe que, quando permanece em casa, realiza as atividades da escola e escreve muito. Argumenta, inclusive, que precisa comprar um novo caderno para realizar cópias de textos durante a pandemia e melhorar sua caligrafia. Paulo Freire (1989, p. 14) sublinha que é justamente a partir das vivências concretas que os grupos populares realizam “[...] uma ‘leitura’ da ‘leitura’ anterior do mundo, antes da leitura da palavra”. O autor ainda acrescenta que:

[...] a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. [...] este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente (FREIRE, 1989, p. 13).

Diferentemente de Vitória, cuja razão para a escolarização na vida adulta se encontra diretamente relacionada às necessidades laborativas, Amada, que já havia frequentado a escola na adolescência, dialoga que o seu retorno teve como principal motivação o desejo de aprender e não ficar “analfabeta de tudo”. Menciona que, antes de entrar na EJA, não sabia registrar números de telefone e, hoje, já sabe realizar operações matemáticas e manejar trocas financeiras:

Saber dar o troco e você não saber o troco, quanto é que você recebe e nego9 lhe roubar? Nos trocos ninguém me rouba não! [...] às vezes a gente faz umas contas errada, pra querer me quebrar. Eu digo: ‘oh Deus, tô ficando véa, mas não tô ficando besta não! A conta tá errada! É assim, assim, assim’. ‘Óia pra mainha, mainha sabe fazer conta’. Eu digo: ‘Não, não vou aprender não! Vou deixarem me roubar!’. Entendeu? Então é onde eu gosto porque eu aprendo um pouquinho dali, um pouquinho daqui, de grão em grão a galinha enche o bico, né? (AMADA, 2021).

Enfatizando que a inserção na EJA possibilitou que conhecesse os números, a estudante ratifica que atualmente se sente instruída para lidar com situações que envolvem a utilização de senhas numéricas, principalmente quando transita nos espaços que requerem esse entendimento. Além disso, verbaliza que aprendeu a anotar algumas informações, nomeadamente em relação a quem lhe deve e quem quita os valores referentes aos itens que comercializa e/ou dinheiro que empresta. Ela ainda discorre sobre a satisfação ao conseguir ler o nome do seu bairro, quando se encontra em ambientes de transporte público, o que lhe resguarda de ficar perdida no perímetro urbano.

Já Vitória analisa que, com a inserção na escola, adquiriu aprendizados em algumas áreas de conhecimento, como geografia. Conforme assegura, frequentar a escola assemelha-se à inserção na faculdade, pois o sentimento que tem é o de vencer na vida. Considerando os motivos já explicitados, a estudante elucida que estar na EJA consiste em:

[...] um novo começo, que eu não fiz; é recomeçar, é buscar o que eu não tive oportunidade quando criança, quando adolescente. É isso que eu tô querendo fazer! Eu quero aprender, eu quero crescer! E também pra que ninguém venha me dizer que eu não sei, que eu falo errado, que eu falo muuuito errado. Eu tenho um probrema seríssimo na minha vida, eu falo errado demais, demais! E todo mundo me corrige! [pausa]. O tempo todo alguém tá dizendo, rindo, sabe? Não é assim, assim contra a mim, só que às vezes eu fico meio que mal (Vitória, 2021).

A fala de Vitória remonta às discriminações enfrentadas por estudantes da e na EJA, em particular, e pelas pessoas que não foram alfabetizadas, em geral. Trata-se do preconceito, inclusive o linguístico, dispensado a quem não domina a modalidade culta da língua portuguesa. Se, neste texto, procuramos preservar, na transcrição das narrações, os aspectos da oralidade das informantes, fazemo-lo para demarcar que, empregando ou não as normativas linguísticas consideradas corretas, as mulheres se fazem entender. Apoiando-nos na noção de Paulo Freire (1989), a alfabetização de pessoas adultas consiste em um ato político e um ato de conhecimento; por isso, consequentemente se torna um ato criador, que não se limita ao ensino somente da palavra, suas sílabas e letras. Para o autor, desses atos emergem sujeitas/os, as/os alfabetizandas/os, e são essas pessoas que, de fato, nos interessam: seus processos e aprendizados, trazendo suas marcas de vida nas linguagens.

PROBLEMATIZANDO EXPERIÊNCIAS E VISLUMBRANDO RESISTÊNCIAS: A EDUCAÇÃO CONSTRUINDO POSSIBILIDADES

As experiências na EJA são diferentes para as duas mulheres: Amada, que é uma mulher idosa, realça a importância da convivência com as pessoas no espaço escolar e da ajuda mútua de colegas. Para ela, nessa fase da vida, o ambiente também consiste em um recinto de interação, de companhia, de estabelecimento da rede de apoio para situações escolares e não escolares. Ela destaca que tem várias/os amigas/os na sala de aula, e que a pandemia atrapalhou o intercâmbio na turma com a qual ela compartilha momentos de risadas e diálogos. Vitória, entretanto, relata a dificuldade de convivência com colegas mais jovens, visto se tratar de uma turma com estudantes de diferentes faixas etárias, abarcando pessoas jovens, adultas e idosas. Isso evidencia que, para algumas/uns estudantes, a convivência intergeracional nas aulas da EJA representa um desafio, pois são tempos de vida distintos que, talvez, enxerguem a modalidade com perspectivas divergentes, e depositem nela diferentes objetivos.

Nas notas do livro Pedagogia da Esperança, escritas por Ana Maria Araújo Freire (ARAÚJO FREIRE, 2002), ocorre a elucidação minuciosa do que são as situações-limite na perspectiva freireana10. A autora destaca que elas remetem aos empecilhos e contratempos que precisam ser superados na vida pessoal e social. Além disso, “[...] implicam, pois, a existência daqueles e daquelas a quem direta ou indiretamente servem, os dominantes; e daqueles e daquelas a quem se ‘negam’ e se ‘freiam’ as coisas, os oprimidos” (ARAÚJO FREIRE, 2002, p. 206). Paulo Freire (1987, p. 94) argumenta que as situações-limite são aquelas que se manifestam na vida das pessoas “[...] como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa senão adaptar-se”.

Os posicionamentos das pessoas diante de tais situações são diversos: “[...] ou as percebem como um obstáculo que não podem transpor, ou como algo que não querem transpor ou ainda como algo que sabem que existe e que precisa ser rompido e então se empenham na sua superação” (ARAÚJO FREIRE, 2002, p. 205). Nesse caminho, a autora alerta que o rompimento das situações-limite acontece a partir dos atos-limite, que acarretam a ação decidida de superação do que se impõe enquanto uma realidade. Assim, a inédita-viável consiste na “[...] coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um ‘percebido destacado’ pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade” (ARAÚJO FREIRE, 2002, p. 206-207).

Considerando a manutenção das situações-limite para favorecer determinadas pessoas e grupos, a quem está endereçado o beneficiamento através da sustentação da condição de não escolarização de mulheres negras, pobres, trabalhadoras, periféricas, migrantes e interioranas? Entendemos que tais situações não são somente aquelas vivenciadas outrora, na infância e adolescência dessas mulheres, também as circunstâncias do momento atual: do trabalho precarizado e remuneração insuficiente; das jornadas laborais que se sobrepõem aos horários das aulas; do abismo criado pela pandemia para o acesso à escola, à alimentação, ao trabalho minimamente digno e possivelmente menos instável. Podemos afirmar, então, que as mulheres-estudantes da e na EJA, doravante também nomeadas de inéditas-viáveis, superam diariamente as situações-limite impostas desde o nascimento e até em gerações anteriores, ao entrar e permanecer na escola.

Apreendemos que a decisão de se inserir na instituição para estudar, à revelia da subalternidade, subordinação e exclusão a que as mulheres foram e são relegadas, representa um ato subversivo e de resistência às mazelas acumuladas ao longo da vida. As estudantes materializam a possibilidade de agir para solucionar problemas sociais inerentes às suas realidades (ARAÚJO FREIRE, 2002). Não à toa, elas têm consciência do percurso trilhado e do alcance, ainda que gradativo, do enfrentamento das inúmeras vulnerabilidades através do processo de escolarização.

Quando questionada acerca do que a escola e a EJA representam para a sua vida, Vitória assinala a construção de um futuro melhor. Ela noticia os percalços do caminho: “[...] eu não tô lá em vão, não tô indo pro colégio em vão. Ano passado eu não passei de ano, aí foi tão difícil!” (VITÓRIA, 2021). Contudo, ela demonstra a lucidez da sua escolha e salienta que tem metas definidas, certamente pautadas nas vivências longe desse ambiente e que, consequentemente, remontam ao que ele pode produzir e construir na sua trajetória. Um dos seus propósitos consiste em aprender a ler fluentemente e a realizar operações matemáticas complexas, além de obter um currículo melhor.

Fundamentando-nos na perspectiva de que a inserção na unidade escolar, além de traçar os processos formativos citados anteriormente, convoca à participação em atividades educativas, de sociabilidade e de exercício da cidadania. Destacamos, então, algumas ações que consideramos potentes na (re)configuração das rotinas de contraposição às violências11, amparando-nos na proposta freireana, que acredita na “[...] participação crítica e criadora do povo no processo de reinvenção de sua sociedade” (FREIRE, 1989, p. 23). Uma delas é a experiência com a rádio escolar, descrita por Amada como um ambiente em que é permitido expor sentimentos, pensamentos e reclamações, onde, a cada semana, uma turma tem à sua disposição o espaço de fala.

A estudante explica que, mesmo com vergonha de se pronunciar, acompanha a professora e, através do seu incentivo e auxílio, consegue falar ao público e participar ativamente do projeto. Depreendemos a rádio como uma ferramenta didático-pedagógica capaz de fomentar a interação entre as/os sujeitas/os da escola, instaurar diálogos, evidenciar demandas, sugestões e questionamentos. Não se trata de dar voz às/aos estudantes, uma vez que todas/os já têm suas vozes e seus silêncios, mas de proporcionar visibilidade e protagonismo às pessoas que, por vezes, não são concebidas como detentoras de saberes e conhecimentos.

Outra atividade realizada pela escola é o bazar, sobre o qual Amada comenta que é viável comprar roupas e realizar o pagamento depois. Ela explana sobre os eventos que ocorrem na unidade, como festas juninas e momentos que envolvem músicas, danças e comemorações. Sintetiza o que sente pela escola, os projetos que têm para a sua vida e o que já vem realizando:

Eu amo minha escola! Gosto dos meu professor, dos pessoal que trabalha lá, gosto de todo mundo! [...] Chego aqui, chego do trabalho, tomo um banho e me mando! Cheguei agora doutora, porque fui fazer uma faxina, mas agora não quero saber de trabalhar mais não, já cansei, chega. Quero agora sombra e água fresca. E somente minha escola, e cuidar da minha saúde, vou no médico, faço zumba, danço! É, tô aprendendo a dançar! [...] Ah, porque eu sofri muito na infância, tu é doido! Depois de véa, agora, só quero curtir, quero viajar agora no verão, ir pras praia, isso que eu quero! Quero mais saber de nada não! (Amada, 2021).

ENTRAVES PARA UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA: CAMINHOS A PERCORRER

Embora reconheçamos e tenhamos ressaltado todos os aspectos anteriormente explanados, notamos que ainda são muitos os desafios para que a educação seja, de fato, libertadora. Para ilustrar essa afirmação, expomos abaixo mais um trecho de uma das entrevistas:

[...] as professora explica um bocado de coisa, dos índios, dos portugueses, de Portugal. É um bocado de coisa que ela fala pra gente! De política, entendeu? É um bocado de coisa que as professoras explica lá, você não fica perdida de tudo! ‘Quem descobriu o Brasil?’ Ah, quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral! Quem fez lá, independência ou morte! Eu ia lá no meu interior e já saber isso... Pelo amor de Deus, eu ia saber isso lá? Sabia só limpar mandioca, plantar manaíba, mexer farinha e pescar camarão grosso pra comer. [...] Foi, professora, Lei Áurea! [...] aí ficou a independência, assim, aí libertou os negros, que ninguém mais é escravo mais! Aquela onda de escravos que o pessoal fazia com o povo, aquilo é vida? Deus é mais! [...] minha avó foi do tempo da escravidão, a mãe de minha mãe [...] ela dizia a mim que ela ralava mandioca no ralo, torrava na frigideira pra dar comida aos filhos. Minha avó, a mãe de minha mãe (Amada, 2021).

Quando a estudante realça os conteúdos aprendidos na escola, percebemos a urgência em traçar estratégias e processos de ensino-aprendizagem que se desvinculem da versão formulada e contada eurocentricamente. O despertar para determinadas informações provoca encantamento, como demonstra a informante, ao afirmar que, onde residia, não tinha acesso aos dados que agora tem. Porém, quando a escola lhe possibilita alcançar os conhecimentos produzidos pela humanidade, será que não deveria ir além, tecendo narrativas a partir de outros pontos de vista da história? Será que as turmas da EJA, local de encontro das pessoas oprimidas e subalternizadas não deveriam pautar a abordagem de conteúdos que possibilitem romper as amarras colonizadoras, escravocratas e de subserviência à versão salvadora da narrativa escrita pelo homem branco europeu?

Como sugere o próprio Paulo Freire (2001), o ensino de conteúdos que sejam integralmente alheios ao cotidiano das/os estudantes reveste-se de inadequação. Com isso, além de consistir em equívoco apresentar a história por uma via única, torna-se ainda mais abissal perceber que, das mulheres e homens negras/os, é retirada a possibilidade de se (re)conhecer na narrativa, não como objeto da benevolência, mas sujeitas/os da resistência e da (re)invenção. Dada a limitação temporal do nosso trabalho, não foi possível analisar se e como a escola trabalha a Lei n. 10.639/2003 e suas diretrizes no contexto da EJA, o que poderia auxiliar nas respostas das questões anteriormente expostas, as quais provavelmente nos acompanharão como inquietações para futuras investigações.

Em contraponto à educação bancária, existe a educação problematizadora, que é retratada como o modelo em que persiste o diálogo e que supera a contradição entre educadora/or e educanda/o, pois ambos “[...] se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos” (FREIRE, 1987, p. 67). Sendo um “[...] quefazer humanista e libertador”, como propõe Paulo Freire (1987, p. 75), pressupõe que as pessoas subordinadas aos atos de dominação engajem-se na luta pela sua emancipação, já que a característica reflexiva repercute no desvelamento da realidade através da imersão nela, de modo crítico.

No modelo bancário de educação, o saber corresponde a “[...] uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (FREIRE, 1987, p. 58). Todavia, “[...] ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 69). A compreensão dessa mediação implica, também, reconhecer a importância do sistema de relações humanas que se estabelecem na esfera educacional, e que convergem para que a educação seja problematizadora. Paulo Freire (2011) argumenta que, constituindo-se enquanto seres de relações, que estão no mundo e com o mundo, as pessoas são sujeitas da própria educação, que se encontra atrelada ao processo de conscientização; isto é, ao desenvolvimento da tomada de consciência crítica dos acontecimentos mediante dados da realidade. Na medida em que ocorre, a conscientização produz mais evidências acerca dela, no processo dialético de ação-reflexão, capaz de transformar o mundo que designa os seres humanos (FREIRE, 1979). Como tal, representa um compromisso histórico e se estabelece como consciência histórica, dada a sua “[...] inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo” (FREIRE, 1979, p. 15).

Ao discorrer sobre a conscientização, Paulo Freire (1987, p. 102) enfatiza que se trata de um processo que coloca o povo na busca da sua afirmação; um “[...] aprofundamento da tomada de consciência”, que ultrapassa o reconhecimento puro da situação e instrumentaliza as pessoas no campo da ação e da luta, inclusive contra aquilo que impede a sua humanização. Além disso, adotando o diálogo como uma categoria e estratégia fundamental, ele ressalta o movimento dialético consciência-mundo (FREIRE, 2002a), e constata que a consciência é intencional, e não existe antes do mundo (FREIRE, 1987). Nesse ínterim, a realidade não é estática, muito menos disposta em compartimentos, e “[...] se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que estas são componentes reais de uma situação de opressão” (FREIRE, 1987, p. 24). Emerge, então, a “[...] necessidade de uma educação que não descuidasse da vocação ontológica do homem, a de ser sujeito, e, por outro, de não descuidar das condições peculiares de nossa sociedade em transição, intensamente mutável e contraditória” (FREIRE, 2011, p. 38). Tal educação, segundo o autor, possibilita a transição da ingenuidade à criticidade, em que a pessoa se implica na ação decisória e se liberta através do processo de conscientização.

O conceito de relações, no plano do referido autor, extrapola os puros contatos, pois abrange a reflexão sobre as ações, apreendendo a realidade e utilizando-a como elemento dos seus conhecimentos. Nesse sentido, Paulo Freire (1967, p. 39) assinala que, para a espécie humana, “[...] o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida”, já que “[...] a experiência existencial incorpora a vital e a supera” (FREIRE, 2000, p. 51). O autor entende por existência “[...] a vida que se sabe como tal, que se reconhece finita, inacabada; que se move no tempo-espaço submetido à intervenção do próprio existente. É a vida que se indaga, que se faz projeto; é a capacidade de falar de si e dos outros que a cercam” (FREIRE, 2000, p. 51).

Se, por um lado, não podemos depositar na educação a responsabilidade pelas mudanças almejadas e necessárias, por outro, devemos especular as possibilidades que ela pode apresentar para as/os sujeitas/os a partir do percurso de escolarização. Arriscamos vislumbrar mudanças, mesmo que lentas e processuais, nas configurações das relações trabalhistas, familiares, amorosas e de poder, mediante o processo de conscientização e ocupação de posições (sociais e subjetivas) até então inalcançáveis. Depreendendo a conscientização enquanto “[...] compromisso histórico”, a partir da “[...] inserção crítica na história”, em que mulheres e homens “[...] fazem e refazem o mundo” (FREIRE, 1979, p. 15), acreditamos na capacidade de (re)invenção de trajetórias e da emancipação de pessoas, grupos e coletivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As contribuições de Paulo Freire para o campo da educação nos impulsionam a realizar articulações entre as trajetórias de estudantes, nas suas especificidades e singularidades, com a construção coletiva de inéditas/os-viáveis, que superam incansavelmente as situações-limite. Nas teias que se formam entre as experiências dessas mulheres e suas histórias pessoais e sociais, podemos mensurar que elas superaram muitos percalços ao longo da vida. Tais sujeitas, de vários modos, nos anunciam que seus percursos não são iniciados, tampouco se esgotam na escola. Entretanto, a partir dela, rumos são mudados, escolhas são (re)feitas e oportunidades lhes são conferidas. Como pontua uma delas: mediante essa inserção, novos (re)começos são organizados em suas vidas. Assim, no compasso da leitura da palavra, o mundo é novamente descortinado e lido, diariamente, apesar dos múltiplos impasses, pausas e restrições.

O desejo de aprender encontra-se atrelado ao anseio de ser reconhecida como alguém que sabe e que, através dos inúmeros conhecimentos adquiridos, não se torna refém das armadilhas interpostas nas relações sociais. Sobretudo, considerando as sujeitas de relações que se constituem e os coletivos que representam, percebemos que, na EJA, são minimizados alguns abismos sociais existentes na nação brasileira, desde a formação do seu povo, suavizando os contingentes de desigualdades na garantia do direito à educação, que essas mulheres inauguram nas suas famílias.

Interpretamos que as adversidades impulsionadas pela pandemia da COVID-19, com consequente distanciamento social e fechamento das atividades presenciais nas escolas, restringiram nossas análises e impediram o aprofundamento de algumas temáticas com as estudantes e a própria escola. Obviamente reconhecemos, também, as limitações da nossa discussão, a partir dos conceitos aqui trabalhados, pois entendemos que o patriarcado, o machismo, a misoginia e o racismo impingem, a essas mulheres, circunstâncias particulares que diferem daquelas vivenciadas pelo público masculino, branco ou não negro. Contudo, à medida que nos propusemos a questionar acerca das opressões e subalternidades impostas às classes populares, trabalhadoras e periféricas, as condições desiguais são desnudadas também para o acesso e permanência na escola.

Diante dos resultados obtidos, atinamos que ainda são necessários outros estudos que se disponham a abarcar o assunto e a analisar com afinco se e como a EJA contribui para a conscientização das mulheres perante as situações que vivenciam. Também ponderamos alguns entraves para a concretização de uma educação libertadora, e indicamos aprofundamentos acerca da temática produzida na investigação. A partir das discussões aqui levantadas, sugerimos que novas pesquisas ampliem esse debate e apresentem outros olhares, questionamentos e explanações.

1O presente trabalho apresenta alguns resultados da pesquisa desenvolvida durante o Mestrado Acadêmico em Educação da UFBA, que originou a dissertação intitulada Trajetórias de mulheres da e na EJA e seus enfrentamentos às situações de violências (BARRETO, 2021), a qual se encontra disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/33765. O estudo contou com o apoio financeiro (bolsa) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

2Seguindo o exemplo de Alves (2016, p. 18), utilizamos a expressão empregando o hífen, uma vez que, “[...] na junção desses dois elementos obtemos a palavra composta, que exprime a necessidade de uma para validar a outra: inédito = sonho; viável = possível”. Além disso, para melhor adequação à realidade da nossa pesquisa, o conceito é grafado no gênero feminino.

3Para assegurar o sigilo e a privacidade das estudantes, os nomes utilizados são fictícios e foram escolhidos pelas próprias participantes.

4Essa sigla refere-se à Corona Virus Disease (Doença do Coronavírus), que desencadeou a situação pandêmica disseminada em todos os continentes a partir do ano de 2019.

5Entendemos como pessoa negra aquela que se autodeclara de cor preta ou parda.

6A EJA da Rede Municipal de Ensino de Salvador encontra-se organizada nas seguintes etapas: EJA I (1º. Segmento), que abarca os TAP I, II e III e tem duração de três anos; e EJA II (2º. Segmento), que abrange os TAP IV e V e o período de dois anos. O Segmento EJA I, no qual as informantes estão vinculadas, refere-se às primeiras séries do Ensino Fundamental para estudantes acima de 15 anos de idade. Para mais informações, ver a Resolução do Conselho Municipal de Educação (CME) n. 041/2013. Disponível em http://educacao3.salvador.ba.gov.br/.

7Os fragmentos das narrativas das informantes preservam palavras e expressões próprias das suas falas, abarcando singularidades da oralidade e elementos da regionalidade. As supressões estão sinalizadas pelo símbolo [...] e os comentários sobre a enunciação são indicados dentro dos colchetes [].

8Optamos por utilizar a palavra sujeita para demarcar a escrita no gênero feminino.

9A expressão nego, na Bahia, é sinônima de pessoa. Na frase em que foi utilizada, poderia ser substituída por pessoa, alguém, sujeito etc.

10Concordando com o argumento de Alves (2016, p. 15, grifo no original), preferimos grafar a palavra “com ‘e’ (freireana) e não com ‘i’ (freiriana) para mantermos o sobrenome de Freire, embora saibamos que só os adjetivos terminados em ‘e’ tônico exibem a forma sufixal - eano, recomendando-se assim a grafia freiriano, com sufixo - iano, porque o ‘e’ de Freire é átono”.

11Referimo-nos às múltiplas violências sofridas pelas mulheres, as quais, neste texto, podem ser visualizadas nas situações que remetem à violência estrutural, que corresponde “[...] às mais diferentes formas de manutenção das desigualdades sociais, culturais, de gênero, etárias e étnicas que produzem a miséria, a fome, e as várias formas de submissão e exploração de umas pessoas pelas outras” (MINAYO, 2010, p. 32).

REFERÊNCIAS

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Recebido: Agosto de 2021; Aceito: Outubro de 2021

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