CENA 1: NA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE ANGRA DOS REIS
Era o início de 1994 quando, na Secretaria Municipal de Educação de Angra dos Reis, um Seminário do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA-Angra) começou a ser planejado1. Por inspiração de Paulo Freire, criador do Movimento na cidade de São Paulo quando foi secretário de educação2, o seminário foi denominado “Alfabetização como ato de independência” e aconteceria em setembro, mês no qual se comemora a independência do Brasil. A ideia era bastante ambiciosa: mobilizar alfabetizadoras/es e alfabetizandas/os do Movimento, mas também educadoras/es da rede municipal interessadas/os em alfabetização. Assim sendo, o próprio Paulo Freire foi convidado e aceitou o convite para fazer a abertura do Seminário.
Em um clima de alegria geral começaram os preparativos para a realização do encontro. O convento São Bernardino Sena, bela construção inaugurada em 1763, foi escolhido para receber Paulo Freire. Entretanto, toda a alegria se transformou em frustração quando Paulo Freire informou que, por motivo de saúde, não poderia se deslocar até Angra dos Reis. A frustração se converteu em alegria rapidamente, quando Paulo Freire sugeriu gravar, em vídeo, uma mensagem a ser apresentada no Seminário, para que suas palavras chegassem aos participantes.
CENA 2: NA CASA DE PAULO FREIRE
Novos preparativos foram ultimados. Dessa feita, para gravar o vídeo3. Para felicidade de todas/os as/os envolvidos na organização do Seminário, Paulo Freire sugeriu que a gravação fosse feita em sua casa. Com a infraestrutura do Seminário já bem encaminhada, viajamos para São Paulo no dia 3 de agosto de 19944. A viagem não me pareceu longa, à época e, hoje relembrando, nem me parece até agora. Chegamos ao portão e tocamos a campainha. Em pouco tempo fomos recebidas e acomodadas no escritório de Paulo Freire. Ao ouvir seus passos se aproximando, imaginava o que eu diria e fiquei sem saber, até sua chegada. Quanto mais se aproximavam os passos, que eu não sei dizer se vinham de cima, de baixo ou de um dos lados do escritório, minha ansiedade aumentava. Foi Paulo Freire, com sua doçura e sorriso bondoso habitual, quem acabou por me tranquilizar. Apresentações feitas, preparativos para a filmagem concluídos, Paulo Freire começou a falar. Suas palavras, gravadas em um vídeo de um pouco mais de 13 minutos, serão apresentadas na íntegra5. O único movimento de edição do texto, que fiz, foi o de criar as seguintes seções: Primeiras palavras: justificativa; Alfabetização como ato político; Alfabetização e cidadania; Educação e os descompassos da vida política e social; Últimas palavras: testemunho de alegria e esperança na luta.
CENA 3: COM A PALAVRA, PAULO FREIRE
Primeiras palavras: justificativa
De quando em vez eu recebo alguém nesse mesmo terraço para gravar algumas palavras minhas com as quais eu justifique a minha ausência no encontro ou noutro encontro, às vezes fora do Brasil, às vezes no Brasil. E eu faço isso sempre, às vezes triste porque não pude ir ao encontro, de qualquer maneira contente em qualquer das hipóteses, porque pelo menos é uma explicação que eu posso dar a um grupo de pessoas que vêm curiosas me verem, me escutar e eu não estou. Agora, nesse momento, eu me sinto também responsabilizado, porque a minha vontade de já ter ido a Angra dos Reis é grande e já faz uns dois anos, creio, que de quando em vez eu sou consultado sobre a possibilidade de ir ou não ir. Minha agenda é realmente uma agenda pesada, carregada e eu tenho que torná-la mais ou menos leve, por uma questão própria de sobrevivência. Quer dizer, que se eu começar a sair demasiado de casa pra discutir em todos os lugares para os quais me convidam eu farei visitas à minha casa, em lugar de morar nela. Desta vez, é... são os amigos de Angra dos Reis a quem eu devo pedir desculpa por não ter podido ir e com quem eu gostaria de conversar um pouco, mesmo distante, através da ajuda que a tecnologia nos dá. Quer dizer, é exatamente o vídeo que vai me levar a Angra dos Reis e, também, a minha palavra e as minhas análises rápidas sobre certos problemas da alfabetização de adultos e de não adultos.
Alfabetização como ato político
Em primeiro lugar, eu gostaria até de redizer o que eu tenho dito há muito, há muito tempo e constantemente, que o trabalho da alfabetização de adultos não pode ser feito, nem compreendido, fora de uma... de um marco político. Quer dizer, não há uma alfabetização de adultos neutra. Quer dizer, a alfabetização de adultos seria um “babebibobu”, vazio, sem conexão ou sem relação com a vida mesma que a gente vive, com a vida que a gente leva e isso não existe, porque a própria linguagem que a gente usa e que nos faz ser o que estamos sendo é uma linguagem de possibilidades e uma linguagem de compromisso. Quer dizer, então, não há uma alfabetização estritamente técnica, estritamente fonética. Quer dizer, a experiência de ler e escrever é uma experiência também política.
Alfabetização e cidadania
Em segundo lugar, numa sociedade como a nossa, como a brasileira, a alfabetização não pode estar de forma nenhuma distante da preocupação que devemos ter, os educadores e as educadoras, com a questão da cidadania. Quer dizer, e não é só a alfabetização, eu acho que tudo o que a gente faz, o que a gente faça no Brasil, sejamos professores de crianças, sejamos professores de jovens, sejamos professores universitários, não importa. Ensinemos esta ou aquela disciplina, ensinemos matemática, ou ensinemos biologia, ou ensinemos história, geografia, eu acho que não podemos deixar de refletir, deixar de discutir a questão central da cidadania entre nós. E essa é hoje uma questão que se repete, quer dizer, eu acho que dificilmente há hoje um candidato a qualquer coisa. É... a deputado, a vereador, a governador, a presidente da república, a senador, que não fale na cidadania. Mas a cidadania é algo de que se vem falando muito agora no Brasil, mas para a qual se faz muito pouco. Quer dizer, a cidadania é um direito, é um direito que não alcança ainda a totalidade, nem mesmo a maioria de brasileiros e de brasileiras. Quer dizer, como, por exemplo, pensar em cidadania para 33 milhões de brasileiros e brasileiras que morrem de fome6? Quer dizer, nem sequer comem, nem sequer podem dormir, não têm nada com que... de que falem como coisa sua, como coisa própria. Então, aí há uma total inexistência de cidadania. Você é cidadã quando você é mais ou menos, pelo menos, sujeita de sua própria vida. Você é cidadã quando você não apenas fala do mundo, mas quando você intervém no mundo. Quer dizer, quando você tem uma atuação e uma presença política no seu país, na sua sociedade, quando você no fundo tem voz. Quer dizer, quando você não apenas fala, mas quando você também decide, quando você é chamada para decidir sobre a vida política, social, econômica de sua sociedade. Afinal de contas, cidadania é isso, cidadania é a assunção de mim mesmo como sujeito político, ao lado de outros tantos sujeitos políticos. Quer dizer, é uma coisa que eu, por exemplo, tenho dificuldade de entender a minha cidadania na medida em que eu vivo cercado de milhões de brasileiros sem cidadania. Quer dizer, é um absurdo isso, para mim é uma das lutas nossas. Deve ser de qualquer homem ou mulher progressista nesse país. Deve ser a luta em favor da cidadania. O que implica a luta pela comida, a luta, sobretudo, pelo emprego, o emprego que me deixa mais ou menos instalando-me na vida. Como é possível... Vocês vejam que país ainda é o nosso, um país que tá agora possivelmente com 70 reais, ou 71, ou 66 reais como salário-mínimo7. Um país em que uma professora da cidade de São Paulo, ainda ontem eu vi e ouvi na televisão, inicia com 130 ou 140 reais. Um país onde professoras do Nordeste ganham cinco reais, 10 reais8. Quer dizer, isso é um absurdo.
Educação e os descompassos da vida política e social
Um país em que todos os candidatos falam na educação e na saúde como prioridade e nenhum deles, quando se elege, põe em prática o discurso que fez antes. Quer dizer, um país em que a regra ainda é o candidato fazer um discurso que é desmentido pela prática quando eleito. Quer dizer, o sujeito faz um discurso bonito, brabo, danado, eloquente, quando é candidato, quando se elege ele desfaz tudo na sua prática, tudo de que ele falou antes. Quer dizer, não é possível. Um país que goze de cidadania pela maioria de seus representantes não faz isso, quer dizer, não é possível que nós continuemos a viver essa contradição terrível entre o que se diz e o que se faz e o que se pensa. Quer dizer, uma das lutas nossas, vocês aí que me veem através do vídeo, que me ouvem, que trabalham com educação, com alfabetização no MOVA, não importa que seja no MOVA ou noutra coisa qualquer, desde que mova, desde que se mexa... Vocês lutem no sentido de que os educandos que trabalham com vocês cada dia percebam melhor, percebam mais criticamente os descompassos da nossa vida política, da nossa vida social. Quer dizer, a grande contribuição que vocês podem dar a nosso país, e não apenas ao alfabetizando com quem vocês trabalham, é exatamente o testemunho que vocês podem dar de luta, o testemunho de persistência na luta, o testemunho de esperança. Sem esperança a gente não faz nada e um povo sem esperança é um povo sem futuro e o Brasil tem futuro. E... ainda quando o futuro para os milhões que não comem não seja claro, não seja sequer visível, uma das tarefas da gente é visibilizar o futuro para quem não vê o futuro. E... e um dos caminhos de tornar o futuro visível é exatamente brigar, é exatamente lutar politicamente para tirar as nuvens que cobrem o futuro, que a gente tem que construir, transformando o presente, porque o futuro não é uma coisa escondida na esquina da rua, que a gente vai e destampa e diz “olha o futuro aqui!”. Não. O futuro é uma coisa que a gente faz transformando o presente. Um dos caminhos que a gente... de que a gente dispõe para transformar o presente e fazer um futuro diferente é o caminho da educação, também, mas é sobretudo o caminho da política.
Últimas palavras: testemunho de alegria e esperança na luta
Eu gostaria de agora, no fim de minhas palavras, de deixar um grande abraço para quem está no encontro e, sobretudo, deixar também o meu testemunho de alegria dentro da dureza da vida, o meu testemunho de esperança, apesar de tudo. Que minhas últimas palavras tenham, inclusive, mais força do que as primeiras palavras e as palavras do meio de minha fala. Que minhas últimas palavras sejam para testemunhar a vocês a minha esperança, a minha persistência na luta, a minha vontade de lutar. É preciso que nos entreguemos ao processo de transformação de nossa sociedade com força e mais ou menos decididos, completamente decididos a não parar diante dos primeiros obstáculos. Eu já tenho tido muitos obstáculos, mas nunca pararei diante... em face da minha luta. É a minha palavra de confiança que eu mando agora para Angra dos Reis, ao lado de meu abraço e de meu querer bem.
CENA 4: FINALIZADA A ENTREVISTA
O sucesso do Seminário só teria sido maior se Paulo Freire pudesse ter dele participado em pessoa. Ficou, contudo, o vídeo que agora compartilho, na íntegra e, também, transcrito para os/as leitoras/es de Teias. Link:https://drive.google.com/file/d/1b8wF0tIUr95e0j71nG8hev7K5AKd8nBA/view?usp=sharing