PALAVRAS INICIAIS
As trajetórias de escolarização dos negros e negras no Brasil têm sido marcadas pela desigualdade. Este artigo pretende refletir sobre a trajetória de escolarização e alguns dos fatores da evasão escolar de jovens negras do município de Jóia/RS, a qual diz respeito à vida e às vivências das histórias experienciadas pelas sujeitas em questão. Nesse sentido, conforme aponta Moreira (2013), o conceito de trajetória que buscamos empreender tem como premissa o reconhecimento do espaço-território ao qual o sujeito está vinculado, por meio dos itinerários percorridos no âmbito social, segundo suas vivências e experiências de vida e de acordo com sua origem étnico-racial, o que determina a posição presente.
Assim, as trajetórias são compreendidas como os itinerários percorridos no social, segundo suas vivências e experiências de vida e de acordo com sua origem étnico-racial, o que determina a posição presente, antecedida por todas as outras posições sociais (leiam-se experiências e situações sociais). Considerando que os percursos de vida dos sujeitos variam em função da estratificação social, pode-se afirmar que suas trajetórias expressam o pertencimento a um determinado grupo social.
Pensamos as desigualdades da população negra relacionadas às trajetórias sociais e educacionais, as quais têm sido denunciadas há muitos anos pelo movimento social negro, bem como por estudiosos das relações raciais (FERNANDES, 2005; MUNANGA, 2005; GOMES, 2002; SILVA, 2007), e, mais recentemente, pelos órgãos governamentais do Brasil. Nisso, as desigualdades referentes às trajetórias escolares têm afetado a inserção e a integração da população negra na sociedade brasileira em diferentes áreas, o que compromete a construção de um país democrático e com oportunidades igualitárias a todos.
Os indicadores sociais e escolares, como distorção idade-série, reprovação, evasão, currículo escolar, desempenho dos estudantes, relação professor-aluno, qualidade do equipamento escolar e sua localização, entre outros, têm sido divulgados nos últimos anos e mostram as disparidades entre brancos e negros no acesso, permanência e conclusão dos percursos escolares.1 Nessa direção, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (IBGE, 2019b), a evasão escolar é um dos principais problemas educacionais enfrentados pelo sistema brasileiro de ensino. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2019 (IBGE, 2019a) mostram que um terço dos jovens brasileiros, entre 19 e 24 anos, não concluíram a Educação Básica e evadiram ainda no ano letivo de 2018. Desse número, 33% são jovens negras que não concluíram o Ensino Médio, já entre as jovens brancas esse número cai para 18,8%.
A juventude, e suas fronteiras tênues com a infância e a adultez, é compreendida nessa escrita, a partir dos direitos da população jovem, do Estatuto da Juventude, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da sociologia da juventude (SPÓSITO, 1997). Os direitos da população jovem foram um marco para o desenvolvimento deste conceito e considera a juventude como a fase de vida “situada entre a infância e a idade adulta”. Trata-se, portanto, de uma etapa de aquisição das habilidades sociais, atribuições de deveres e responsabilidades e afirmação da identidade. A Organização das Nações Unidas (ONU) considera a juventude na faixa etária dos 18 aos 24 anos, o Estatuto da Juventude, Lei 12.852/2013, estende dos 15 aos 29 anos (ressalvando que para os adolescentes com idade entre 15 e 18 anos aplica-se o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA). Spósito (1997) apresenta três etapas que demarcam a entrada na vida adulta: a partida da família de origem, a entrada na vida profissional e a formação de um casal. Nessa perspectiva, caracterizamos as participantes dessa pesquisa como jovens que têm antecipada sua adultez pelo viés da maternidade e do que dela decorre, sendo o abandono escolar um dos elementos mais marcantes.
Ainda, o abandono escolar faz referência ao aluno matriculado que deixa de frequentar a escola durante o curso do ano letivo, sem comunicação formal ou transferência para outra instituição de ensino. Por outro lado, a evasão acontece assim que o aluno, em certo ano letivo, não formaliza a matrícula para o ano subsequente. Nisso, o conceito de evadir vem ao encontro do significado de deixar de frequentar a escola, o que caracteriza o abandono escolar. Esse pode ser considerado definitivo, quando o aluno não retorna à escola, e temporário, quando retorna no período letivo do abandono ou no ano seguinte (KLEIN, 2008).
Recentemente, no Brasil, o número de estudantes reprovados e que evadiram é de cerca de 3,5 milhões (UNICEF, 2018). O Ensino Médio apresenta-se como uma das etapas do ensino com maior número de evasão escolar (460 mil alunos em situação de evasão escolar, 7% do total de matrículas nesse nível). Em 2018, foram registradas 48,5 milhões de matrículas na Educação Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio), sendo que, do total, 2,6 milhões dos alunos reprovaram, e destes, 1,2 milhões são pretos2 e pardos, dos quais um em cada cinco estudantes de escolas públicas tem dois ou mais anos de atraso escolar.
As situações anteriormente descritas são reflexos das condições históricas da exclusão quanto ao direito à educação da população negra (SILVA, 2007; GOMES, 2002), e nos instigam a olhar para as jovens dessa pesquisa, as quais, pela idade que têm hoje, poderiam estar concluindo ou ter concluído o Ensino Médio, se suas trajetórias de escolarização seguissem um percurso sem interrupções. Neste contexto, este artigo objetiva compreender como se dá o processo de evasão escolar de jovens negras no município de Jóia/RS. Município que possui características históricas de exclusão, que serão tratadas ao longo da metodologia e que refletem até os dias de hoje na segregação vivida pela população negra.
A HISTÓRIA ORAL COMO PERSPECTIVA METODOLÓGICA DA PESQUISA NA PRODUÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Esse artigo desdobra-se de uma pesquisa mais ampla, a qual analisou a trajetória de escolarização de jovens negras no município de Jóia/RS, bem como a constituição das vilas formadas por negros nesse município. O município em questão está localizado no Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, pertencente ao Território da Cidadania do Noroeste Colonial. O município de Jóia/RS teve um aumento da população rural nas últimas três décadas, decorrente da efetivação dos assentamentos da Reforma Agrária e reassentamentos de atingidos por barragens. Conforme dados estimados do IBGE (2020), a população do município de Jóia/RS é de 8.560 pessoas, sendo que a população rural corresponde a 74,9%, num total de 6.412 pessoas, e a população urbana é de 25,1%, num total de 2.148 pessoas.
No primeiro momento foram mapeadas três vilas rurais, com população composta em sua maioria por sujeitos negros. Entrevistamos os moradores das vilas e após esse movimento optouse por entrevistar três famílias com jovens mulheres que evadiram da escola há pouco tempo, uma de cada vila.
Essa é uma pesquisa qualitativa, na qual tomamos a história oral como perspectiva metodológica da pesquisa na produção e análise dos dados, utilizando de fontes bibliográficas e documentais. Consideramos os relatos orais e as narrativas a partir da linguagem, os quais oferecem, ainda, fragmentos de história e possibilitam entender o passado e o presente circunscrito, processado e integrado à vida das pessoas. A história oral se vale de depoimentos que implicam memórias, lembranças organizadas segundo uma lógica subjetiva, selecionando e articulando elementos que nem sempre correspondem a fatos concretos, objetivos e materiais, por isso não se confundem com a memória (MEIHY, 2000).
As narrativas orais expressam certa sensibilidade em relação aos sujeitos, bem como com suas trajetórias. Devolvem a história às pessoas em suas próprias palavras. E ao lhes dar um passado, ajuda-as também a “caminhar para um futuro construído por elas mesmas” (THOMPSON, 1998, p. 337). A história oral é organizada em modalidades: história oral de vida, história oral temática e tradição oral (MEIHY, 2000), as quais diferenciam-se de acordo com as características do método. Optamos pela utilização do método de história oral de vida, a qual aborda um conjunto da experiência de vida.
Tomamos a história oral como uma opção da metodologia, que apresenta uma dimensão “mediadora entre uma solução que se baseia em documentos escritos (história) e outra (memória) que se estrutura, quase exclusivamente, apoiada nas transmissões orais” (MEIHY, 2000, p. 93). Essa investigação tende mais à estratégia da história oral de vida, através de relatos de vida, compostas por linguagens.
As entrevistas foram organizadas no sentido de produzir narrativas fundamentadas pelo diálogo, “embora sejam narrativas autônomas, tanto o informante quanto o historiador entram na narrativa porque tomam parte da história produzida” (PORTELLI, 1997, p. 37). Da mesma forma, a linguagem é composta por um sistema de signos que são concebidos pela atividade humana. Essa ação permite aos sujeitos adentrarem num mundo de culturas, combinadas e materializadas por eles.
Essa pesquisa envolve efetivamente três categorias de instrumentos: a entrevista, a história oral e a fotografia. Assim, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com três jovens negras de diferentes vilas: a Vanessa3, da Vila dos Miúdos; a Mitiele, da Vila dos Bonés; e a Tatiane, da Vila Bráz, com o objetivo de compreender as trajetórias quanto ao processo de escolarização. As entrevistas constituem um instrumento essencial que indicam a necessidade de estreita aproximação entre entrevistador e entrevistado, para que se obtivesse informações mais precisas acerca dos objetivos propostos na constituição da pesquisa.
As questões semiestruturadas, com questões abertas, organizadas em blocos temáticos, foram apresentadas às entrevistadas de maneira espontânea, seguindo sempre uma sequência, dependendo do “rumo” do diálogo. As entrevistas foram gravadas e depois transcritas na íntegra. Desse movimento, elaboramos o perfil das três jovens participantes da pesquisa, o qual é apresentado no quadro a seguir:
Jovens | Idade | Escolarização | Reprovações | Estado Civil | Filhos |
---|---|---|---|---|---|
Tatiane | 18 anos | 8º ano do Ensino Fundamental | 3 reprovações | União Estável4 | 15 |
Vanessa | 18 anos | 1º ano do Ensino Médio | 1 reprovação | Solteira | 2 |
Mitiele | 21 anos | 2º ano do Ensino Fundamental | 2 reprovações | União Estável | 2 |
Fonte: Elaboração própria, 2020.
O critério para inclusão das jovens foi a disponibilidade e a aceitação da entrevista perante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e ter evadido nos últimos três anos que antecederam a investigação. A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Unijuí, sob parecer número 3.104.923.
O movimento de análise apontou para um conjunto de fatores que ocasionaram a evasão, e nesse artigo destacam-se o atravessamento das questões raciais, geracionais, de gênero e do não reconhecimento de um lugar na escola por parte dessas jovens, que lançam mão de outras alternativas que acabam antecipando precocemente a vida adulta.
A EVASÃO ESCOLAR NAS TRAJETÓRIAS DE JOVENS NEGRAS: UM UNIVERSO DE ABANDONOS
Entendemos que a ocorrência da evasão escolar, no contexto pesquisado, se dá na maioria das vezes no Ensino Fundamental, no período entre o 2º e 9º ano, como é o caso de Tatiane, que evadiu ao completar 18 anos,6 quando ainda no 8º ano do Ensino Fundamental, “ouvia muitas vezes na escola que eu não servia, que era feia, preta, gorda, suja e que não me vestia bem. Eu me senti mal, muitas vezes fiquei quieta, na minha, para não brigar mais”. Diante desses e outros fragmentos empíricos, reconhecemos que há uma luta política e ética a ser construída em relação à estética7 dos negros, em particular das mulheres negras, uma vez que essas sofrem com os pré-requisitos impostos de uma “boa aparência”, que dizem respeito a uma cultura hegemônica, que denuncia este padrão de brancura, magreza, dos cabelos lisos.
Negra e suja: há uma luta em ser nomeado como negro porque a questão da cor preta geralmente ainda é associada à sujeira. Entendemos que se faz necessário romper com esse padrão estético racista na escola, lutar para mostrar a estética negra com respeito e dignidade. Esse é um trabalho pedagógico que temos muito que avançar sobre a formação identitária brasileira, em sua perspectiva social, cultural e estética que se constituiu a luz de um padrão europeu, seja na literatura, nos currículos escolares, nos livros didáticos, nas mídias, entre outros. Cabe compreender e refletir sobre a beleza negra no nosso país e romper com uma série de padrões preestabelecidos e consolidados há muitos séculos.
Arroyo (2011) questiona os rostos apagados do currículo8 escolar e defende o direito a saber-ser. Diante desse desafio, Arroyo (2011) nos ajuda a dizer que torna-se importante inserir, desde os primeiros anos de escolarização, ações que visem enaltecer a beleza negra, reforçando a questão identitária das crianças que, por vezes, são invisibilizadas e/ou negadas em detrimento aos padrões eurocêntricos tão arraigados. Quem sabe, se elas sabendo de si numa perspectiva antropológica do humano, que nos iguala enquanto espécie, nos assemelha enquanto grupo social e nos difere na condição de sujeitos singulares (CHARLOT, 2000), a escola lhes possibilitaria um lugar, que elas acabam buscando noutros espaços e experiências.
Sabemos que o racismo científico do século XIX construiu alguns corpos como os dos negros destituídos do status do ‘ser’ excluídos da condição de sujeitos sociais, com suas habilidades intelectuais para produzir conhecimento e participar ativamente do fazer histórico foram negadas. De modo particular, as mulheres-meninas negras, desumanizadas, foram transformadas no “outro feminino” racializado (DAVIS, 2016).
Entendemos que a discussão acerca dos rostos apagados do sistema de ensino escolar, em especial das negras, precisa estar intencionalmente inserida no contexto escolar. Segundo Davis (2016, p. 101), o desafio desse século XXI é “desmantelar aquelas estruturas nas quais o racismo continua a ser firmado”. Assim, pensar e refletir sobre o fazer pedagógico, numa perspectiva de ofertar às crianças a oportunidade de se ver e de se referenciar de maneira positiva dentro dos conceitos de negritude e de feminismo, possibilita a esses alunos, que são negros, filhos, netos de mulheres negras e que muitas vezes tendem a negar sua negritude, se perceberem como sujeitos capazes de superar as desigualdades de raça e de gênero.
A desvalorização da estética negra, no cotidiano escolar vai se associando a outros fatores que produzem a evasão. De acordo com Benavente et al. (1994, p. 12), a evasão escolar “constitui uma situação extrema de desigualdade entre os que vivem curtos percursos escolares, fracassam e abandonam". Como no caso de Tatiane, atualmente com 18 anos, constituiu união estável muito jovem e logo engravidou, diz que
O ano passado eu tive grávida, ainda estava na escola e a minha irmã também estava grávida. Só que daí no final do ano quando tava perto de ganhar o neném fui para o hospital, estava com 8 meses. Lá os médicos falaram que o neném estava morto, fiquei quase uma semana no hospital (TATIANE,18 anos).
Segundo Schwengber (2014, p. 9), há a compreensão que “para se defenderem, essas jovens lançam mão então de seus corpos (sua sexualidade) como uma alternativa que conduz à ocupação de um lugar no mundo social, ocupar um lugar no espaço”, no qual o corpo feminino é compreendido como corpo reprodutor, afirmando a representação do corpo feminino e da identidade da mulher como mãe. Esse lugar que inicialmente buscaram constituir nas relações escolares, mas que lhes foi negado. Assim, as jovens afirmam que a decisão e/ou a vontade da evasão partiu delas próprias, não tendo sido influenciadas por ninguém.
As circunstâncias vividas por Tatiane corroboram para a compreensão de que a evasão escolar se tornou um dos maiores problemas dos sistemas de ensino. De maneira similar a Tatiane e Mitiele, aos 18 anos Vanessa carrega consigo o descontentamento e ocorrências da evasão escolar. Mãe solteira, nasceu na Vila dos Miúdos, no Assentamento Ceres. Sobre os estudos, ela afirma:
Estudei até o 9º ano, fiquei grávida, ia desistir de estudar, mas na época como ainda não era maior de idade o Conselho Tutelar veio aqui em casa, agora fica mais difícil com o meu pequeno e eu não tenho mais a cabeça boa nos estudos, e espero que meu filho tenha (VANESSA, 18 anos).
Determinadas circunstâncias extrapolam a compreensão dessas jovens quanto à abordagem sobre a riqueza e a pobreza, bem como o fato de que uma parcela da população, ainda que sem muito estudo, conseguem ter uma vida melhor economicamente. O que justifica as (des) igualdades nessas trajetórias? Qual o papel da escolarização? Reforçar o direito a uma vida mais digna ou reforçar a falta desse direito? De fato, na escola, os currículos, em vez de mostrar-lhes a história real, lhes passarão uma história que as responsabiliza pela pobreza, pelo analfabetismo, pela ignorância, pelo desemprego, como produtos históricos do seu atraso (ARROYO, 2011). Vanessa carrega no seu discurso o abandono escolar como uma responsabilidade pessoal:
Eu esperava ser alguém na vida, sonhava em ter uma casa boa, mas nunca quis ir morar em outro lugar. Acho que não vou continuar estudando, porque tem que pegar o ônibus e deixar o nenê com a mãe, os meus irmãos também não estudaram (VANESSA, 18 anos).
Por sua vez, a gravidez na adolescência colocou Vanessa, Tatiane e Mitiele às margens da possibilidade de seguir adiante com seus estudos; do ponto de vista cognitivo, sabe-se que os adolescentes, particularmente os mais jovens, têm dificuldade em avaliar a extensão e o impacto das consequências do próprio comportamento, como a gravidez. O número de jovens/meninas grávidas negras (69,7%) é superior quando comparado as jovens brancas (24,7%), considerando as idades entre 10 e 19 anos (BRASIL, 2018). Ainda, quando comparado o nível de escolarização e permanência na escola após a gravidez, a partir do viés racial, o número de adolescentes negras que abandonam a escola é maior do que o número de adolescentes brancas.
Para Apple (2000), o currículo é permeado por relações de poder, nas quais as desigualdades permeiam a práxis do currículo e reflete no pensamento social ideológico de forma dialética. Nessa direção, a justiça curricular, para Torres Santomé (2013), parte do resultado da análise do currículo elaborado e da ação. Essas dimensões consideram as ações realizadas em sala de aula em consonância com as urgências sociais, “ajuda a ver, analisar, compreender e julgar a si próprios como pessoas éticas, solidárias, colaborativas e corresponsáveis por um projeto de intervenção sociopolítico mais amplo, destinado a construir um mundo mais humano, justo e democrático” (TORRES SANTOMÉ, 2013, p. 10).
A evasão escolar vincula-se ao contingente da gravidez na adolescência, de um corpo em transformação, de assumir um papel materno. Assim, as jovens, quando indagadas sobre o principal motivo que as desmotivou e as levou a evadir, deram respostas vinculadas a fatores que estão relacionados à questões de raça, gênero, reprovação, falta de interesse pelos estudos, maioridade, gravidez. Revelaram ter se arrependido de evadir e alegam reconhecer a importância do estudo, porém apresentam diversos empecilhos para voltar a estudar. Fica evidente que esses empecilhos dificultam a volta aos estudos.
Eu tenho vontade de voltar a estudar, pensei até em comprar os cadernos e estudar em São José que é mais perto agora, mas daí agora fica ruim porque tem a casa, os bicharedo para cuidar. Mas como falei, tem a casa, os bichos para cuidar, o marido, ainda estou pensando (TATIANE, 18 anos).
Nesse sentido, percebemos que há ainda vontade em retomar os estudos, porém, a vida adulta e suas responsabilidades coloca o estudo em segundo plano. Cabe observar que as jovens entrevistadas já foram reprovadas em pelo menos um ano da Educação Básica. Segundo Lopez e Menezes (2012), a reprovação desempenha ampla influência na disposição de abandonar a escola. Werneck (2001) adiciona também que muitos largam a escola em virtude da reprovação, especialmente por perceber seus colegas avançando de turma e juntos na mesma sala, colocandose em circunstância de inferioridade em relação aos demais, o que pode prejudicar seu aprendizado.
Segundo Gomes (1999), existe a reprovação por evasão, em que o aluno abandona a escola para não ser reprovado, seja pela necessidade de trabalhar ou por acreditar não ter nota suficiente para ser aprovado. Este é o caso de Vanessa, que mesmo sem completar 18 anos parou de estudar quando cursava o 1º ano9 do Ensino Médio, pois teve um bebê e achava bem difícil, tinha muitas faltas e notas vermelhas.
Vanessa ficou grávida enquanto cursava o 9º ano do Ensino Fundamental:
Estudei até o oitavo mês de gravidez. Mas quando meu filho nasceu eu tava na minha licença maternidade, depois tive que voltar, não tinha feito a matrícula do médio, o conselho tutelar veio aqui em casa, aí eu voltei para a escola. Eu ainda estava amamentando e não tinha como levar o bebê para a escola. (VANESSA, 18 anos).
Percebe-se, no discurso de Vanessa, que a burocracia das normas do sistema escolar dificultou sua permanência, em um momento em que ela precisava de todo apoio possível e tratamento diferenciado. Tal postura torna o sistema de ensino um limitador, o qual é incapaz de cumprir seu papel de promover o desenvolvimento integral do educando (Lei de Diretrizes e Bases, n. 9.394/1996).
Embora exista na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases, n. 9394/1996, a possibilidade de oportunidades educacionais apropriadas e que considerem as características, os interesses e as situações de vida e trabalho dos estudantes, não há motivação nas histórias de vida para elas voltarem à escola, uma vez que as entrevistas revelaram que o afastamento da escola acabou por desmotivá-las, já que em suas ponderações chegaram a dizer que “ depois que parei de ir, parece ser mais difícil de voltar” e “enquanto tiver que ir eu vou, esse ano vou terminar, mas sei que vou reprovar, falto muito às aulas” (VANESSA, 18 anos).
A grande questão, reforçamos aqui, é sua invisibilidade, o silenciamento da escola diante dos conflitos gerados nas relações que podem iniciar sutilmente e terminar de forma violenta. E a violência a que nos referimos não acontece só entre os estudantes, ou naquilo que se esbraveja, pode estar nos pequenos detalhes. Vejamos a situação da Vanessa (18 anos), a jovem que conseguiu adentrar o Ensino Médio, e até então se considerava dedicada. Porém, ao perder o interesse e não conseguir prestar atenção em aula, teve como intervenção da professora “você não vai aprender mesmo”. Isso traz à tona outro detalhe: mesmo os diferentes investimentos por parte das jovens negras no contexto escolar confluíram para o mesmo resultado.
Outra particularidade confirmada na pesquisa diz respeito à condição da ausência de escolarização dos antecedentes familiares, seus pais que, na sua maioria, não conseguiram passar dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Situação recorrente no contexto das três vilas de origem, onde, dos 52 integrantes, apenas 8 concluíram o Ensino Fundamental. “Na nossa família temos pouco grau de instrução, sofríamos muito, porque a gente sempre foi pobre e ainda preto, mas meus pais também não estudaram muito” (VANESSA, 18 anos). Com essa frase, deixam transparecer as questões raciais e as marcas deixadas devido a pouca escolaridade, como a desvalorização social, pois para certas pessoas “sem estudo” a sociedade reserva o lugar de subalternidades. Ainda que as jovens negras tenham avançado nas trajetórias de escolarização, comparadas às gerações anteriores, essas ainda não atingiram a escolarização plena10. Confirmando que as heranças educativas do analfabetismo chegam até o século XXI por implicações sociais, históricas, políticas e culturais, tendo um recorte de tempo, gênero, classe social, raça e geração (MORAES; SCHWENGBER, 2020). Ainda, compreender a identidade de um determinado território e assim pensar os sujeitos é uma tarefa hermética. Desse modo, emergem as relações sociais, as experiências constitutivas de uma trajetória, que não são neutras, nem livres de tensionamentos e, por vezes, são conflitantes (MUNANGA, 2005).
Dessa forma, devemos ainda, considerar a dimensão de gênero, a qual no panorama das classes populares vem marcada de maneira mais profunda por um método de intensas cargas de trabalho e encargos, sobretudo quanto ao cuidado da casa, do marido e da educação e cuidado dos filhos. Socialmente ficou atribuída para a mulher, como mãe, a responsabilidade pela educação da criança, e não por um imperativo biológico ou lei da natureza. A “primazia”, como acreditam Tatiane, Vanessa e Mitiele, é a de fornecer o sustento, ainda que seu trabalho seja visto por ela mesma como algo menor ao trabalho do homem, a quem ela “ajuda” com seu trabalho. Nessa direção, “a decisão entre continuar ou parar os estudos e a disposição para retomá-los, em função da gravidez, depende de inúmeros fatores que as próprias jovens colocam diante da possibilidade de voltar para a escola” (ROHR; SCHWENGBER, 2015).
O sujeito é compreendido como uma obra com resquícios da herança familiar, social, cultural e econômica, característico do ambiente familiar (MALUSCHKE, 2008), o qual é identificado por características socialmente herdadas. Segundo Nogueira e Nogueira (2002), o capital cultural, sobretudo o familiar, tem um forte peso na definição da trajetória escolar. Os capitais econômicos e sociais atuam como meios secundários na acumulação do capital cultural, uma vez que o acesso à educação compõe um dos modos igualmente efetivos de combater a expansão das desigualdades ao longo das gerações (TOMIZAKI, 2013). No Brasil, a melhoria dos indicadores educacionais, nas últimas décadas, resultou em um crescimento da mobilidade educacional entre as gerações, descrita pela elevação da média de anos de estudos e da diminuição da desigualdade educacional. Ainda, a mobilidade intergeracional de educação apresenta-se de forma mais significante do que a mobilidade intergeracional econômica, por exemplo.
ALGUNS TENSIONAMENTOS, DISTANTE DO FIM...
Comumente, a gravidez entre as jovens em idade escolar é apontada como o principal fator do abandono do percurso regular da escolarização. Porém, o que concluímos nesse estudo, a partir das narrativas de três jovens negras do município de Jóia/RS, dá um passo atrás nessa constatação, ao acessarmos um universo de fatores para analisar a evasão escolar nas suas trajetórias de escolarização.
Ponderamos que a gravidez não é o fator desencadeador da interrupção da escolarização. O abandono escolar pelas jovens negras é a resposta ao processo de abandonos anteriores, tais como as suas heranças educativas de moradoras das vilas, a sua invisibilidade no currículo escolar e a ausência de políticas públicas que se antecipem, para que essas jovens tenham outras possibilidades de reconhecimento identitário antes de lançarem mãos das alternativas historicamente repetidas pelas gerações anteriores, perpetuando os dramas da intersecção de gênero, classe social e raça, legitimando as estatísticas e ocupando os lugares que lhe são reservados e concedidos na sociedade.
O elemento geracional interfere diretamente nas trajetórias de escolarização das jovens negras, no sentido de que as gerações anteriores apresentam fracassos quanto à escolarização, deixando para a atual geração a chance de escolarizar-se, e essa tem deixado para os filhos a “sorte”, a “esperança”, de que se “deus quiser, irão ter a sorte”, uma vez que os filhos são a aposta de ter “uma cabeça boa para os estudos” (VANESSA, 18 anos). Percebemos a presença de um ciclo, o qual repete-se pelo exemplo familiar, pelo emaranhado cultural que pouco reforça que estudar pode mudar o ambiente, a vida e as condições econômicas.
No entanto, a escola caminha na contramão dessa sociabilidade e pouco a reconhece como prática social importante no processo educativo, capaz de contribuir para a melhoria da qualidade da educação e o desenvolvimento de pertencimento das jovens negras. A escola, que no entendimento popular é um espaço para o crescimento social, uma vez que possui poder cultural e simbólico, torna-se uma contradição, ao ativar a negação do capital cultural para a população que, frequentemente, marcam as diferentes gerações de jovens de uma mesma família, afastadas da escolarização. Para tanto, a escola necessitaria prover a acumulação teórico-científica, ao refletir sobre as unidades de análises sociais e as desigualdades para conservação do princípio social atual.
Nessa dimensão, compreendemos o ensino e o currículo como algo que não é neutro, mas é pensado nomeadamente aos sujeitos que irão perpassar pelo currículo, estando pautado de forma intrínseca por políticas educacionais e culturais de formação humana e social. O ensino curricular nesse âmbito pode ser compreendido como o caminho para os processos e trajetórias de aprendizagens dentro e fora do espaço escolar. A formação subjetiva dos sujeitos perpassa pela identidade, valores, conteúdos e eixos temáticos. No momento em que o ensino curricular não contempla o imperativo de construção do pensamento social, torna-se neutro e ineficaz As trajetórias de escolarização são marcadas pela evasão, reprovações ainda no Ensino Fundamental, momento em que há um descompasso entre as experiências escolares e os resultados obtidos pelos alunos. As trajetórias escolares ganham sentido para o sujeito a partir do momento em que consideram as suas experiências e suas perspectivas de vida.
Dessa forma, devemos considerar a dimensão de gênero, a qual poderia ser uma alternativa a ser construída nas classes populares, de modo particular para essas jovens das vilas periféricas no município de Jóia/RS. Há a necessidade de dar visibilidade a essa posição, a fim de mostrar que as meninas/jovens e mulheres da periferia têm outras possibilidades, que vão além da gravidez, do casamento e, por consequência, do abandono da escola, que perpetua um ciclo de pobreza. A escola, nessa dimensão, é um lugar privilegiado de mostrar outras referências, outras posições de sujeito. Em nosso entendimento, cabe à escola discutir com os (as) jovens que eles e elas não devem se objetivar. Reconhecemos como tarefa complexa, uma vez que os (as) jovens estão em um processo em que a sexualidade está em pleno desenvolvimento (manifestação). Entendemos que um debate qualificado, com reflexões mais aprofundadas e verticalizadas sobre esse tema é necessário. Mostrar aos (às) jovens que podem usufruir da sua sexualidade, mas que a maternidade e a paternidade precoce geralmente “abortam” outros projetos de vida, como o da escolarização.