INTRODUÇÃO
Retas paralelas, perpendiculares, estreitas, amplas, sinuosas, curtas, longas. Dentre tantas outras possibilidades, são muitos os modos que podemos usar para adjetivar a estrada pela qual nos lançamos na tarefa de pesquisar currículos. Quão múltiplos e potentes podem ser os pontos de partida para delinear caminhos metodológicos? Tal questão nos leva a acionar os manuais de metodologia, ao passo que nos traz a possibilidade de (re)inventar caminhos que, justamente em uma linha tênue, rasgam a previsibilidade científica e, sobremaneira, carregam um significado mais amplo para produção de conhecimento. Na contramão da herança positivista do fazer científico que concentra uma massa de informações, tratada com verdade absoluta; nosso objetivo aqui é pensar em feituras metodológicas desenhadas pelo encontro com o campo de pesquisa em currículo, visando desmantelar o imaginário cartesiano de proposições definidas e definitivas para operar no território onde o risco e o aleatório se manifestam de forma inerente, expressando uma ruptura com as lógicas causais e baseando-se antes na noção de experiência.
Nesse sentido, esta pesquisa foi realizada um pouco à deriva, isto é, não seguiu um ordenamento linear. Ensaia-se aqui um fazer pesquisa, tal como sugere Corazza (2004), que assume a ignorância do sujeito pesquisador ao passo que não trata de ultrapassar obstáculos contingentes de desconhecimento acerca de algum fenômeno educacional, como se pesquisar fosse uma passagem do não-saber ao saber. Assumimos, então, o desafio de tecer uma pesquisa “cuja energia provém do processo de desmontagem de todos os modelos já incorporados: à medida que são feitos vão sendo eliminados os movimentos expressivos da pesquisa, e a energia pesquisadora, antes reservada à representação, pode então ser canalizada para o movimento puro da pesquisa” (CORAZZA, 2004, p. 15).
Ao tomar por cenário curricular, propositalmente, uma escola de Ensino Médio da rede pública de Aracaju-SE, nos propormos, justamente, a compartilhar vivências de um fazer etnográfico de inspiração pós-crítica, que se delineia como periférico em relação a um suposto centro da produção de saber científico acerca dos currículos e cenários escolares contemporâneos. Nesse caminhar, percebemos que não há como indicar caminhos muito seguros ou estáveis, corroborando os apontamentos de Oliveira e Paraíso (2012, p. 161) quando afirmam que “pesquisar é experimentar, arriscar-se, deixar-se perder. No meio do caminho, irrompem muitos universos díspares provocadores de perplexidade, surpresas, temores, mas também de certa sensação de alívio e de liberdade do tédio”. Nesses universos também está o currículo, que aqui entendemos, conforme sublinha Paraíso (2010, p. 588), como:
um território de multiplicidades de todos os tipos, de disseminação de saberes diversos, de encontros “variados”, de composições “caóticas”, de disseminações “perigosas”, de contágios “incontroláveis”, de acontecimentos “insuspeitados”. [...] É certo que um currículo é também território povoado por buscas de ordenamentos (de pessoas e espaços), de organizações (de disciplinas e campos), de sequenciações (de conteúdos e níveis de aprendizagens), de estruturações (de tempos e pré-requisitos), de enquadramentos (de pessoas e horários), de divisões (de tempo, espaço, áreas, conteúdos, disciplinas, aprendizagens, tipos, espécies...). Isso tudo porque o que está em jogo em um currículo é a constituição de modos de vida, a tal ponto que a vida de muitas pessoas depende do currículo.
É no fértil terreno do currículo escolar que a efervescência de cenas do cotidiano nos provocara um misto de encantamento e temor; olhar pela janela lateral, e perceber o fascínio ao qual também sucumbimos, merece uma reflexão mais detalhada do que “está para lá” da janela. A escola por meio da qual pudemos vivenciar a nossa experiência de campo, em paralelo com a implementação da reforma do Ensino Médio (EM), é uma instituição de ensino estadual de referência, localizada na zona oeste do município onde foi realizado este estudo. É uma escola grande, com uma ampla área de espaços comuns de circulação aberta, além das salas de aula, sala de vídeo, secretaria, sala de professores, Grêmio Estudantil, biblioteca, laboratórios de ciências, e de informática, quadra esportiva, almoxarifado, material de educação física, refeitório, cantina e sala de reuniões/auditório. Nesta região urbana há espaços de circulação de comércio e áreas culturais acessíveis, como igrejas, teatros e praças. A comunidade atendida na escola é bastante heterogênea, oriunda de diversos bairros do município, com o predomínio de bairros periféricos que são atendidos pela oferta de transporte escolar gratuito, disponibilizado pela rede estadual de ensino.
As informações produzidas nessa pesquisa advêm das vivências do campo a partir da problematização das cenas e dos modos de fazer pesquisa no campo educacional. Ao todo foram nove meses em que estivemos envolvidas com o campo empírico. Assim, soa oportuno apresentar um pouco mais dos trajetos e dos envolvidos nesse fazer etnográfico, que enredamos para a produção da tese de doutoramento, da qual aqui expomos um recorte. Ao atendermos o chamamento para compor uma escrita sobre outras epistemologias e metodologias nas investigações sobre currículo, assumimos a postura de quem espreita à janela, de quem está atento/a ao que acontece, de quem espera o melhor momento para intervir, de quem nem sempre é convidado/a a entrar e interagir nos currículos escolares. Argumentamos com esta escrita analítica que a pesquisa etnográfica, em tempos de tantos retrocessos no que tange aos direitos sociais e de movimentos anticiência, coloca pesquisadores e pesquisadoras de currículo em uma posição de lateralidade. Por vezes, somos ocasionalmente posicionados/as pelas temáticas marginais escolhidas. Em outras, assumimos intencionalmente essa posição para nos permitir ângulos pouco explorados. Neste sentido, ao pensar o contemporâneo, suas conexões, produções e implicações, subsidiamo-nos as teorias pós-críticas, por meio das quais discutimos os olhares que estabelecemos a partir de janelas que galgamos na relação com os sujeitos do currículo que adentramos para pesquisar.
O alinhamento aos estudos pós-críticos se dá pelas implicações as quais este campo está amplamente preocupado, como as diferenças e as mudanças culturais e sociais contemporâneas. Não há como evocar neutralidade nos direcionamentos pensados como condutores e producentes desta pesquisa, pois, no caminho em direção a pensar o currículo como espaço de investigação, inspiramo-nos em Meyer (2003, p. 53) que, salienta que “adotar uma abordagem teórico-metodológica que pressupõe a produção discursiva da cultura e de seus sujeitos não implica, portanto, a negação da existência material de pessoas, coisas e eventos”. Implica, assim, sustentar que tais “coisas” só significam e se tornam verdadeiras dentro, ou pela articulação, de determinados discursos enraizados em contextos particulares e localizados. É, pois, nessa direção, que guiamos nosso olhar analítico para as vivências compartilhadas em campo no intento de complexificar e desconstruir as naturalizações advindas daquilo que é tomado como obviedade. Isto é, requer se situar atentamente no relevo onde se deu a montagem desses significados, demanda vasculhar minuciosamente os detalhes, as sutilezas, suspeitar das evidências que compõe significados cotidianos. Por isso, buscamos a etnografia como possibilidade para se situar no chão escolar.
Para além de uma posição a ocupar no intermeio da pesquisa, é justamente no transitar que concebemos a lateralidade como um modo pelo qual se privilegia o que está além dos discursos de conveniência. Conforme Favret-Saada (2005) sinaliza, há uma grande variedade de discursos espontâneos, possíveis de serem vivenciados ao experimentar tantos afetos, associados a tais momentos particulares do cotidiano. É nesse caminho que nos propomos a identificar: quais cenas compõem o currículo quando olhamos por lateralidades? Como essas cenas criam sentidos e movimentam o chão escolar? Nas próximas seções, buscaremos, inicialmente, definir as noções de etnografia e cultura. Depois, discutiremos os olhares que estabelecemos a partir de janelas galgadas na relação com os sujeitos do currículo pesquisado. Em seguida, traremos cenas de rotinas laterais – por vezes tidas como menores no âmbito das pesquisas em currículo e cultura – para apontar como construímos nossas metodologias.
QUE ETNOGRAFIA NARRAMOS?
Se por um lado entendemos o processo etnográfico como o chão de nossas possibilidades, por outro, sabemos que seus elementos constituintes são obtidos nas relações micropolíticas do mundo social no qual nos inserimos. Nesse caminhar, seria inevitável lidar com sucessivas aberturas e fechamentos. A convivência e as dúvidas nos conduziram ao encontro da reflexão de Peirano, quando se propõe a pensar a potência da etnografia. Para o autor, a etnografia “é a ideia mãe da antropologia”, isto é, “não há antropologia sem pesquisa empírica. A empiria – eventos, acontecimentos, palavras, textos, cheiros, sabores, tudo que nos afeta os sentidos –, é o material que analisamos e que, para nós, não são apenas dados coletados, mas questionamentos, fonte de renovação” (PEIRANO, 2014, p. 380).
Nesse processo de aproximação com a etnografia, enquanto modo de produzir a pesquisa, torna-se central ter em mente que “numa perspectiva pós-estruturalista, não entra em jogo pensar sobre uma suposta realidade do mundo simplesmente porque o que interessa é o sentido que damos para as coisas que estão no mundo, e só podemos dar sentido por meio da linguagem” (VEIGANETO, 1996, p. 168). Assim, o desafio aqui assumido, ao considerar o fazer etnográfico, consiste em, conforme Meyer e Paraíso (2014, p. 58), “estranhar o que é aceito como normal, desnaturalizando-o, e familiarizar-se com o estranho, (re)conhecendo a interdependência desses movimentos”. Há aqui o desafio de olhar para o universo escolar a partir de outro horizonte, realizando uma dissociação das categorias já instituídas. Esta tarefa demanda um esforço de mudança dos termos, pois a etnografia revela uma polifonia que não cabe na visão, circunscrita e estreita, utilizada em grande parte dos estudos acadêmicos realizados. Tal como Jardim (2017) assinala, é necessário descolar-se da visão atual para entender os mundos.
Nessa direção, lançamo-nos em uma reflexão sobre a inserção etnográfica como experiência de iniciação à complexidade social e política do contexto de nossos sujeitos de pesquisa, além de reconhecidamente estar a transitar por um terreno em que somos vistas como “estrangeiras”. Ao vivenciar nossos primeiros contatos com o campo, por exemplo, a dinâmica de acesso por vezes equiparou-se a validação de entrada e saída concedida quando passamos por territórios outros; uma vez que, a inserção geralmente se dá por meio da rota recomendada pelo “consulado” a fim de garantir o “visto” de entrada e permanência, pois a marca de forasteira é difundida e gera seus efeitos neste espaço-lugar que se almeja habitar. Assim, a pesquisa etnográfica está intimamente envolvida com o caráter descritivo, aprofundado e consistente das inter-relações estabelecidas no cenário investigado. Para Geertz (2008, p. 7), a produção etnográfica representa “nossa própria construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem”. Nesse sentido, é preciso destacar a cultura como uma rede de práticas e representações – com textos, imagens, conversas, códigos de comportamentos, que influenciam a vida social – e como fenômeno constitutivo das sociedades humanas que se dá pela organização de um mecanismo diferenciador. No seu interior, surgem marcadores de diferenças que definem, o adequado e o inadequado, o civilizado e não civilizado, o permitido e o não permitido. Tal visão amplia as nossas formas de perceber o mundo, os significados que atribuímos a nossas práticas e as maneiras por meio das quais nos constituímos (HALL, 1997).
É preciso estar atento/a para (re)conhecer as armadilhas que podemos enfrentar. O fazer etnográfico exige cuidados no momento da investigação entre os quais está a não projeção de um esquema de observação que defina a priori todos os possíveis comportamentos ou acontecimentos a serem registrados. Nessa direção, acreditamos que a realização da etnografia vai além de uma simples adequação teórico-metodológica com a pesquisa. A etnografia pós-moderna é “uma pesquisa-experimentação” (CARDOSO; PARAÍSO, 2013, p. 273). Como Meyer e Paraíso (2014, p. 18) expõem, nas pesquisas pós-estruturalistas, tal proposta metodológica é vista “como certo modo de perguntar, interrogar, de formular questões e de construir problemas de pesquisa”.
Sem perder de vista esta dinâmica que o campo etnográfico propõe, há que se considerar, por exemplo, as negociações prévias para viabilizar o acesso do/a pesquisador/a a determinadas pessoas ou lugares; o modo como pesquisadores/as são agenciados como atores ligados a determinados grupos que compõem o contexto estudado; os riscos representados pela presença do/a pesquisador/a, em determinados contextos, seja para si mesmo ou para seus interlocutores; e a natureza sigilosa ou restrita de informações obtidas informalmente, como Muller (2015) aponta. Todas estas questões precisam ter lugar ao longo da pesquisa, implicando não somente em mudanças nas estratégias de operacionalização de nossos próprios deslocamentos, mas também na reflexão sobre as condições de produção de conhecimento, inspiradas no fazer antropológico, sobre o universo social em que estamos inseridos/as.
DAS BRECHAS DA JANELA ÀS CRIAÇÕES TEXTUAIS
Estrangeiras ou marginais? Ou ainda, seríamos estrangeiras e marginais ao tentar adentrar um espaço outro? Afinal, trata-se de um sujeito-pesquisadora desejoso(a) de conhecer aspectos da vida de outras pessoas que habitam o lócus elegido. Não há nada de simples ou estável nesse cenário e é justamente sua complexidade e instabilidade que requer resistência às armadilhas do pensamento único e das explicações “óbvias” que fazem um caminho quase sempre mais curto. Pensando no contexto de governo nacional dos últimos anos, que ataca a educação pública de forma direta e constante, os efeitos gerados nos conduziram a mapear escolas que manifestam participação ativa em prol de uma sociedade mais justa, a fim de assegurar direitos ameaçados no campo educacional.
Diante dessa primeira e ampla motivação, caminhamos no sentido de direcionar, de maneira explicitamente interessada, o envolvimento direto no processo de ocupações das escolas, que ocorreram em todo o território nacional no ano de 2016, como movimento de protesto contra a reforma do Ensino Médio, instaurada como medida provisória, e contra a PEC do teto dos gastos públicos, que na época tramitava em votação, outrora aprovada. Por entender tais manifestações como potente disparador que desencadeou importantes movimentações, deslocamentos e rupturas no ambiente educacional, mapeamos, sete escolas engajadas no cenário estudado. Destas, pensamos na localização de cada uma como critério de acessibilidade a servir como novo filtrobússola, demarcando as escolas que se situavam nos arredores do centro da cidade. A partir daí, fomos diretamente a cada local na esperança de, pela porta de entrada, conhecer e habitar cada um deles por um determinado período e de delimitarmos novos critérios de escolha do lócus de pesquisa. Quatro escolas foram visitadas como espaços potenciais para o desenvolvimento do trabalho de campo. Entretanto, vivenciamos a imprevisibilidade da produção científica desde as primeiras tentativas de aproximação com o campo.
No esmiuçar da proposta de uma experiência etnográfica na escola, nos deparamos com uma frequente tendência de repúdio a qualquer olhar percebido como vigilante, mesmo tendo sinalizado que os objetivos que nos levaram a estar naquele espaço não eram monitorar ou estabelecer julgamentos individuais acerca do funcionamento da escola. Ao etnografar um currículo escolar em tempos sombrios da ideologia de gênero (PARAÍSO, 2018), fomos movidas pelo “desejo obsceno (porque tudo que se move, que escorre é obsceno) de se desmontar raciocínios generificados, performar currículos e práticas pedagógicas desgarrados do desejo de seguir materializando e naturalizando (nossos) corpos de hipo mulheres” (VASCONCELOS, CARDOSO, FELIX, 2018, p. 11).
O papel de estrangeira-marginal-observadora não fazia boas vistas. O olhar da etnografia, a princípio, assusta. Talvez pelo próprio lugar relativamente marginal que a antropologia assume no campo epistemológico – ou ao menos não tão central –, como sugere Goldman (2005). E não basta afirmar que o/a pesquisador/a não pretende comprovar teorias nem fazer grandes generalizações. A função de descrever a situação, compreendê-la, expor os seus múltiplos significados, com base em sua sustentação teórica e sua aceitabilidade, não é tão convincente assim. Outrossim, foi possível notar que a presença constante do ser estrangeira-marginal-observadora era duplamente considerada devido ao tempo estimado para o desenvolvimento do campo, uma vez que, a pesquisa etnográfica demanda por período de médio-longo prazo de imersão, diminuindo as chances de portas serem abertas.
A etnografia, tal como Goldman (2005, p. 151) sublinha, pode:
ser pensada não como procedimento de observação, de conversão (para assumir o ponto de vista do outro) onde transformação substancial (para tornar-se nativo), mas sim como uma espécie de devir-nativo, ou seja, um movimento pelo qual nos permitimos sair de nossa condição através de uma relação de afetos com uma outra condição, sem que, uma vez afetados por essa realidade outra, nos tornemos, de fato, pertencentes incondicionais a ela. Não se trata de conversão, mas de aceitar que o que acontece aos outros também pode acontecer ao pesquisador – algo aparentemente tão simples e óbvio, mas sempre potente quando se ocupa de nos fazer buscar um lugar diferente para a experiência humana na etnografia.
Nessa direção, o contato com as escolas nos levou a assumir diferentes estratégias, que foram se configurando no decorrer das tentativas, e a nos enredar em um processo de trocar as portas de entrada principal pelas brechas oportunizadas pela janela lateral e “chegar pelas beiradas”. Foi então que o pessoal e o político confluíram mais uma vez. Por meio de parcerias estabelecidas para participação em um evento ocorrido em determinada escola, outrora mapeada, e consequente observação prévia do espaço e de sua constituição enquanto dinâmica pedagógica, tivemos a chance de nos aproximar de alguns/as docentes e funcionários/as que compõem aquele lugar, nos possibilitando assim, acesso pela janela lateral.
Como estrangeiras-marginais-observadoras que se apresentavam na escola, fomos questionadas pela coordenadora sobre a finalidade da pesquisa e o porquê do interesse naquele lugar. Explicamos à coordenação os objetivos que nos guiaram e consultamos sobre a disponibilidade de realizar a parte empírica do estudo com uma turma de Ensino Médio, visto o interesse pelo protagonismo da juventude, pertencente àquela instituição. Naquela época, o segundo semestre letivo já estava em andamento, assim, fora definido que se aguardasse o início do próximo ano letivo para dar início à observação em sala de aula. No entanto, após negociações, fora disponibilizado o visto parcial para acompanhar alguns episódios “gerais” que aconteceriam na escola, a exemplo da feira de ciências, e, de diferentes momentos do cotidiano escolar, como o recreio e a sala dos professores. A partir daí, iniciamos o processo de imersão, pelas brechas. Ainda não era uma janela.
O primeiro momento da pesquisa podemos chamar de fase exploratória, uma vez que, a “imersão no campo de pesquisa” não foi propriamente realizada. Nesse princípio, o frequentar das estrangeiras-marginais-observadoras nas escolas provocou estranhamentos, refletidos nos olhares e no agir com certa desconfiança. De início, ficávamos muito soltas e praticamente não nos chamavam para nos envolvermos em nada. A posição desconfortável que a pesquisa causou estava centrada nesse papel de observadoras. Muitas idas à escola foram resumidas a espaços de conversas com funcionários/as de serviço geral e com os/as estudantes em horários livres. De todo modo, aproveitamos nossas conversas iniciais para obter mais informações sobre o ambiente e sobre o relacionamento entre os/as estudantes, com o objetivo de construir uma imagem do local a partir do olhar daqueles que o viam “por dentro”. Posteriormente, poderíamos confrontá-la com aqueles que viam a escola “de fora”, tecendo “um texto que carrega marcas de ambos” (CARDOSO, PARAÍSO, 2013, p. 279).
Nesse processo, manter-se reflexivo/a durante as etapas do fazer etnográfico é um desafio constante. Conforme salienta Oliveira-Filho (2009), em campo, não somos o tempo todo somente pesquisadores preocupados com a descoberta de uma racionalidade nos atores sociais, mas somos chamados a existir em muitos outros papéis pela própria força e vontade política dos grupos envolvidos. Além disso, antes de qualquer uma destas múltiplas posições em campo, somos e trazemos potencialidades infinitas de sentir, ver, mudar e refletir sobre a forma como compreendemos e dinamizamos o mundo com as pessoas que estudamos (GOLDMAN, 2005). Todas as práticas precisam ser situadas e estas não estão alheias ao cenário social-político geral. A etnografia é vista, de certo modo, como uma ação social, na qual as pessoas colaboram entre si para se fazerem entender. Essa relação poderá ser constituída desde que haja interação. Para nós, foi por meio das conversações que estabelecemos nossas primeiras trocas de informações com o grupo social da escola, além de buscar apreender como o grupo constrói o entendimento a partir de seus contextos, conhecimentos e vivências. Em contrapartida, os membros do grupo tentam entender e aceitar o nosso papel de estrangeiras-marginais-observadoras enquanto convivem conosco em seu cotidiano.
Acessar esse currículo, conhecer seus modos e composições, não se restringe a buscar uma janela, física ou simbólica, de entrada. Realizar etnografia em um currículo é percorrer suas lateralidades, é buscar suas nuances mais íntimas, aquilo que não está no centro da escola, aquilo que acontece para além dos documentos, dos ensinos, dos ditos. Etnografar currículos é produzir textos experienciados, é criar o que nos acontece. Podemos dizer isso de outro modo com as palavras de Clarice Lispector (1998, p. 15) “só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo”.
Sistematizar, organizar e aprofundar as observações estão intimamente associadas a essa produção textual, tradicionalmente denominada por diário de campo. Sua empregabilidade tornase substancial para a pesquisa, porém não se centraliza nele. As questões que vão compondo esses textos surgiram, grande parte, de prosseguimentos de conversas informais – fruto de piadas, comentários jocosos, feitos no intervalo ou durante as aulas, provocações entre estudantes e/ou professores – às quais tínhamos acesso justamente por fazer parte desse circuito de conversas. Essa experiência nos lança a um conjunto complexo de relações, emoções e racionalização que parece não ter fim e, portanto, precisa ser deliberadamente encerrado. Por isso, a escrita é permeada por nossas escolhas do que escrever e até que ponto escrever. Ao longo do tempo, os registros se modificam. O estabelecimento de uma maior relação com as pessoas permitiu “afetamentos”, no sentido concedido ao termo por Favret-Saada (2005, p. 158): a “afecção” como um dispositivo metodológico. Assumimos um lugar na escola, vivemos sua dinâmica e questões, deixamo-nos afetar por sua lógica.
Com o passar do tempo, novas brechas foram surgindo. Fomos incluídas no grupo de professores/as e passamos a receber o cronograma de atividades da escola. Houve um grande auxílio por parte da professora Luz1, que estava à frente da organização de atividades que tratavam de temáticas, também laterais à dinâmica curricular, como bullying, diversidade, racismo, xenofobia e intolerância religiosa. Isso proporcionou nossa aproximação, uma vez que, nos diálogos e negociações de acesso ao campo, relatamos as referências da pesquisa nos marcadores de diferença. Assim, temáticas nos atravessavam e nos aproximavam em partilhas e diálogos. Luz também fazia cópias extras de textos discutidos em sala e outras produções de professores/as que se somavam às dela na organização das atividades temáticas. Ela nos inteirava sobre o porquê daquelas atividades. A profa. Luz foi uma das principais frestas da janela de inserção no campo.
Nesse segundo momento da pesquisa efetivamente houve imersão e constituiu-se um relacionamento estável com as pessoas da escola. Nele, não existiam roteiros, gravador, rotina de pesquisa, somente textos de campo produzidos após o turno escolar. A ida à escola era para vivenciá-la, em atividades com os/as alunos/as, os/as professores/as e com a direção. No desenvolver da relação, o processo de observação e experimentação foi se tornando aceitável, no sentido do esforço empreendido para habitar esse lugar. O desconforto ante o local de poder da figura da estrangeira-marginal-observadora, todavia, era fruto dessa não familiarização com a feitura da etnografia que ali se efetivava. Faz-se necessário ressaltar que, estes afetos não se referem a sentimentos, emoções, mas àquilo que afeta e modifica e, nesse processo, gera movimentos que nos fazem ampliar nosso olhar para outras questões em campo, mas também conceber um lugar para os afetos na etnografia. Sobre esse lugar, Goldman (2005, p. 153) nos chama atenção para:
(i) o reconhecimento da potência da afecção em nos fazer atentar para dimensões antes ignoradas sobre as formas como as pessoas criam e recriam territórios existenciais, cuja apreensão é cada vez mais incompleta quanto mais cartesiano e externo é o olhar do pesquisador; (ii) e as reflexões que estas experiências instigam sobre como conceber o trabalho etnográfico e a relação de alteridade que lhe é subsidiária.
Assim, optamos fazer da participação um “instrumento de conhecimento” como aponta Favret-Saada (2005, p. 157). Vale pontuar o que chamamos de participação, de forma a entendermos que o/a pesquisador/a poderá estabelecer uma interação com a situação a ser estudada, aceitando assim que afetará e será afetado/a pelo meio no qual está inserido/a. Paulatinamente, aproveitamos frestas para transitar na escola. Pudemos ter acesso a documentos, como o plano político-pedagógico, além dos textos e exercícios utilizados. Em muitos momentos, discentes questionaram quando íamos dar aula e docentes o que fazíamos ou anotávamos. O contexto nacional de ataques, cortes e reformas na educação pública, sobretudo direcionado a docentes, se refletia nessa sensação de vigilância e desconfiança da pesquisa, gerando efeitos de recusa à presença ou às temáticas que poderíamos representar. Mesmo assim, houve integração ao círculo de professores/as e funcionários/as.
Participar, sermos afetadas, mobilizou formas de compreendermos esse currículo. Instituímos parceiros com quem mantínhamos uma comunicação específica, no sentido situacional. Ser afetado/a, “não implica identificar-se com o ponto de vista nativo” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160), mas “ver seu projeto de conhecimento se desfazer”. Há, aí, uma inerente relação intelectual, ou seja, a compreensão que envolve as duas culturas, a do/a pesquisador/a e a do/a pesquisado/a. A relação estabelecida ao adentrar nesse currículo não foi uma fusão de visões com as da escola, também não era uma empatia, como se colocar no lugar delas. Efetivamente, ocupamos um currículo, o habitamos e por ele fomos habitadas, não nos tornando iguais ao “nativo” (estudante ou docente), mas experenciamos intensidades que constituem nossos interlocutores. “Ser afetado” possibilita a transformação do experimento como algo conceitual, passível de elaboração de sentido. Conforme Barbosa Neto (2012, p. 239) destaca, ser afetado é “essa experiência de criação que escapa à representação, uma experiência que é simultaneamente de campo e de texto, e, sobretudo, de sua sutil e delicada conexão”.
As margens das janelas, que nos possibilitaram trilhar caminhos na pesquisa, evidenciam a necessidade de, por vezes, descentralizar o olhar para que outras lateralidades possam ser acessadas. Nesse (re)direcionar de acesso, os diálogos se fazem fundamentais para o desenvolvimento do estudo, pois eles se apresentam como uma conversa informal entre pesquisador/a e interlocutores/as e podem vir a trazer informações que, por vezes, parecem banais e atemporais sobre o contexto em estudo. Todavia, pode ser justamente ali que os pontos cruciais para o entendimento de determinados aspectos se apresentam (LOURENÇO, 2010). Ideias, posições, pontos de vista apresentados por estudantes e professores/as, devem ser encarados enquanto conceitos a serem analisados na busca de um sentido, pois são manifestações sociais dentro do leque de inteligibilidade de ambas as culturas envolvidas. Tal como Viveiros de Castro (2012, p. 125) ressalta, “o que eles refletem é uma certa relação de inteligibilidade entre as duas culturas e o que eles projetam são as duas culturas como seus pressupostos imaginados”. Nesse sentido, para o autor, os conceitos operam “um duplo desenraizamento: são como vetores sempre a apontar para o outro lado, interfaces transcontextuais cuja função é representar, no sentido diplomático do termo, o outro no seio do mesmo, lá como cá” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 125).
O diálogo foi a primeira instância que nos permitiu uma aprendizagem sobre o contexto de estudo, mas ele nem sempre ocorre da maneira mais explícita e linear. Temos de atentar a todas as formas de linguagem implícitas em um diálogo, seja no calar sobre determinado assunto, no cuidado ao falar sobre um tema, no resgate de assuntos atemporais. Afinal, essas marcas distintivas “não emergem da ordem natural das coisas, mas de jogos de poder que elaboram seus sentidos validados no interior dos sistemas simbólicos da linguagem e da cultura” (COSTA, 2015, p. 491) e são sempre rastreáveis. Todavia, dialogar confere sentido à pesquisa. Assim, o diálogo permite envolver e ser envolvido, criando uma espécie de vínculo que nos permite um maior acesso ao outro (LOURENÇO, 2010).
Nesse fazer, a problemática de pesquisa se desenvolve no seu próprio andamento, compreendendo que o campo não é um lugar onde se provam hipóteses, mas um local de encontro, propício à reflexão. Nesse encontro, se constituem os saberes, frutos da ligação do aporte conceitual e do conteúdo subjetivo que o/a pesquisador/a acessa. Ser uma ilustre desconhecida-estrangeira-marginal-observadora faz vivenciar questões práticas da escola pública, como a produção do “saber das pessoas (e que não é de modo algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas a contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam)” (FOUCAULT, 2005, p. 12); esta posição nos permite ainda refletir sobre a desqualificação do trabalho docente em variadas instâncias e a atuação do corpo gestor como o “olho do Estado”, tentando com isso manter uma ordem, mesmo que não ocorresse na prática. Ao passo que, também nos lança a visualizar experiências de contestação a práticas de controle e regulação que permeia o chão escolar. É sobre essas vivências que fomentam currículos menores que discorremos na seção que segue.
ROTINAS LATERAIS: CENAS DOS CURRÍCULOS MENORES
Os/as estudantes entram pelo saguão, um espaço amplo e bem iluminado, cercado de janelas e murais de avisos. Nos murais, ao lado do bebedor, havia informativos sobre estágios, eventos, normas de convivência da escola com direitos e deveres, salas e disciplina de cada ambiente, cursos diversos, ofertados para o público de jovens estudantes, e um aviso em letras maiúsculas e em negrito que iniciava dizendo “ATENÇÃO ALUNAS”. O aviso se referia ao modo de vestir das estudantes, lembrando-lhes que se viessem ao colégio com blusas, vestidos, saias ou shorts muito curtos, ou blusas muito decotadas receberiam advertências e seriam encaminhadas de volta para casa para trocar de roupa, tendo como premissa o uso obrigatório da camisa de farda. Há outro mural, ao lado do portão de entrada do colégio, no qual estão as listas de estudantes de todas as turmas, de todos os turnos, e as normas de convivência. As turmas têm em média trinta estudantes. Os discentes se dividem em grupos nos espaços. Havia uma turma em frente às escadas do auditório, em sua maioria meninas, em rodas de atualizações mexendo no celular. É comum a presença de celulares, fones de ouvido, cores e brilhos nos adereços e vestimentas dos estudantes, marcas como Vans, Adidas e Converse.
Um menino se encarregava de divulgar o que o 3º ano está vendendo em voz alta. Quase similar ao centro comercial da cidade pelo burburinho intenso, pelas pessoas de diversos estilos dividindo o mesmo espaço, pela venda de lanches no “grito”. Os/as discentes que estavam vendendo os lanches usaram o quadro de avisos para colocar os preços dos alimentos. Alguns estudantes optam pelo refeitório, outros pelos lanches vendidos e os demais ficam no corredor ou jogando futebol ou apenas conversando. Eles/as se distribuem por todos os espaços possíveis do colégio. A escola é o espaço de encontro desses/as estudantes, muitos se deslocam até o colégio, utilizando o transporte escolar público, alguns/as vindos/as de casa e outros/as do trabalho – um número significativo de estudantes do turno da tarde. Os/as estudantes que moram perto do colégio costumam ir a pé ou de bicicleta, estrategicamente vão acompanhados/as ou em grupos, por conta de frequentes assaltos que acontecem na região.
Esses/as jovens possuem linguagens, ou até mesmo “dialetos” específicos – as gírias –, que não necessariamente se formam dentro do ambiente escolar, mas são aprendidas também nos contextos pelos quais eles/as transitaram ou transitam, para além da escola. Esses dialetos estão presentes em agrupamentos específicos, os quais podem ser identificados, como expõe o estudante Nino durante uma conversa: “grupo no recreio tipo, tem aqueles moleques que são da favela ali que falam as gírias dele tipo “pai, môfio”, os manos que sobem no skate, que é ‘mano’, ‘pode crê’, os ‘suaves’ que são mais hippie, mas eu não vejo isso aqui, tipo ah pode crê, ‘vamo’ ali fumar um baseado” (DC, 05/2019)2. Outro grupo que pode ser identificado facilmente pelas suas vestimentas e também pelo seu comportamento é o grupo de estudantes religiosas. Em uma cena cotidiana, observamos entre as vendedoras de lanches, duas meninas religiosas. O colégio, tanto no turno da manhã como no da tarde tem um número significativo de alunas religiosas. Dizemos isso por notar os símbolos que remetem a uma religião específica – saião, cabelo bem comprido e posturas recatadas –, mas o mesmo não podemos dizer dos meninos, pois não há símbolos que os identifiquem.
Os grupos tendem a ser identificados pelos demais por aspectos simbólicos tais como a vestimenta, a linguagem e o comportamento. Remetemos ao comportamento por entendermos que alguns grupos têm aspectos simbólicos mais representativos do que a vestimenta, como por exemplo, o dos estudantes homo/bissexuais. Esses estudantes não formam um grupo específico, contudo, e também por isso, são identificados por alguns sinais e ao trocarem afetos com seus “ficantes”. No recreio, uma das pesquisadoras desse artigo sentou-se ao lado de um casal homossexual. Esse casal é de meninos, mas parecia haver um casal de meninas logo à frente. Os dois casais próximos trocavam manifestações de carinho – beijos, abraços e carícias – de forma tranquila, dando a impressão de que o ambiente acolhe tais manifestações e por isso eles/as agiam normalmente.
A escola, de maneira geral, parece não se incomodar em relação à identidade sexual de seus/suas estudantes, permitindo assim, à primeira vista, que eles/as vivenciem isso dentro do ambiente escolar. Um dos alunos começou a puxar assunto. Conversaram e em um determinado ponto da conversa ele comentou ter se surpreendido com a quantidade de alunos homossexuais presentes na escola e com a naturalidade com a qual agem ali. Disse ainda que são bem recebidos/as e percebem que todos/as se sentem à vontade para se “assumir” no Ensino Médio, pois no Ensino Fundamental não têm coragem e não têm certeza sobre suas sexualidades. Reverbera aqui crenças do imaginário social, a partir de uma perspectiva geracional, que localizam no Ensino Médio uma espécie de ritual de passagem para a juventude, carregando valores, permissões e certas responsabilidades designadas. Além da autodescoberta, alguns/as estudantes entendem o jovem como um sujeito que vivencia a liberdade de escolhas e que, por meio delas, projetará seu futuro. Segundo um dos estudantes:
Eu acho que ser jovem não é tipo, ah, sou jovem e vou fazer tudo então, porque daqui uns anos não vou poder fazer. Acho que ser jovem é o momento em que tem que se dedicar, estudar, escolher o futuro... acho que aprender, aprender cada vez mais, ser educado, não porque é jovem vai sair extravasando por tudo, acho que ser jovem não é só o assunto de ah vou pra balada ou passar noite e dia bebendo ou querer sair pra tudo porque é jovem. (DC, 29/04/2019).
A experimentação é algo muito presente na vida dessa categoria social, uma vez que o jovem está formando a sua identidade e busca vivenciar o maior número de situações, para a partir delas conseguir se constituir enquanto sujeito histórico. Isso é marcado nas falas e comentários a respeito do grupo, sobretudo quando há acontecimentos/episódios em que o não planejado é acionado. Isso pode ser observado quando uma professora se refere às músicas e às danças que fugiram do roteiro estipulado em uma determinada atividade de apresentações:
Tão aprendendo a se descobrir e acham que devem exibir tudo que aprendem no mundo aqui na escola também. Eles sempre inventam e dão o jeitinho de trazer o que fazem entre eles assim, de música, de dança, de um tudo. É a fase também, né? Faz com que eles fiquem ligado nisso quase que 24 horas por dia. É vídeo disso, é passo daqui, é dança da moda, é meme, é tudo que for para experimentar coisas novas. Menina, tem muitos que acabam querendo experimentar tantas coisas novas que acabam levando isso pro lado errado. (DC, 21/06/2019).
A experimentação, a autodescoberta e as inúmeras possibilidades de escolhas foram pontos apresentados pelos estudantes e docentes que afetam diretamente a visão projetada sobre o jovem. Nesse universo juvenil, resistências de diversas ordens se fazem presentes e sinalizam conflitos e confrontos que permeiam as relações no âmbito escolar. O grupo de estudantes religiosas, por exemplo – identificamos apenas meninas –, é um grupo que tem algum tipo de resistência em conviver e aceitar os/as discentes homossexuais, como relata Juca em uma outra conversa:
Eu sou gay e aí, no começo do ano teve uma colega minha que falou pra mim que eu ia pro inferno e que ela não podia ser minha amiga porque eu sou gay. E aí eu fiquei tipo muito triste com isso e tudo mais, mas aí na metade do ano agora, semana passada, ela veio me pedir perdão por isso, porque ela sabia que isso tinha sido um erro da parte dela. (DC, 06/06/2019).
Sondar as entrelinhas dos conflitos presentes na dinâmica relacional, que conforma o cotidiano escolar, nos possibilita encarar as linhas sobrepostas da experimentação e da sensibilização que inscrevem subjetividades. Estas inscrições selam movimentos, deslocamentos, encontros, reconhecimento, linhas de fuga, como um todo referente às partes e as partes ao todo, pertencimentos e estranhezas, compreensão do fazer parte de multiplicidades, de diferenças. Ao passo que, evidencia o papel da instituição escolar e dos currículos como espaços privilegiados em que tais experimentações geram diálogos, entre os múltiplos conhecimentos, entrecruzamento de ideias, de práticas e de saberes. É, pois, onde se dá a construção do currículo a partir dele mesmo, visibilizando as linhas emergentes do cotidiano curricular ao compreender as múltiplas possibilidades, sem buscar uma unidade homogênea, e ao operar com as suas próprias marcas de diferença – “diferença sem outro; é a diferença em si. É o movimento que no meio da repetição se cria. A diferença se desenrola como movimento criador” (PARAÍSO, 2010, p. 27).
Outrossim, essas diferenças acenam para o exame do contorno de transformações de conflitos e sustentam a linha tênue entre as diversas ideias e existências possíveis, nem sempre pacíficas, como bem nos sinaliza alguns diálogos espontâneos, tal como nos disse a Dilma em uma de nossas conversas de corredor:
É estranho algumas coisas que faço no automático, sabe? Sou uma pessoa contra a agressividade, acredito mesmo na conversa na paz, mas também tenho algumas coisas minhas que critico, como quando eu percebo que aumento o tom de voz, as vezes do nada, sabe? Mas, também sei que uso isso para ter a atenção [...] Na minha função ali, acho que preciso de autoridade e isso é tipo uma estratégia, tipo carta de combate que você usa para se manter. Aí, sou eu com o tom de voz, essa é a minha carta. Mas, no fundo sou um amorzinho. (DC, 16/08/2019).
Ao perceber a escola como um convite a fascinantes desafios, um lugar onde lidamos com as interrogações, acompanhando essa pluralidade de gêneros, crenças, vestimentas e linguagens, observamos a criticidade dos/as estudantes. Eles/as debatem com professores/as quando não estão de acordo, conversam entre eles/as sobre questões de administração da escola, concordaram com a greve dos/as docentes, em reação aos cortes na educação e ao parcelamento dos seus salários, e protestaram junto em frente ao colégio, entre outras posições assumidas. Esses/as jovens são bem articulados/as e lutam pelos e por seus direitos dentro da escola, ao passo que também mantêm viva a dinâmica escolar com todas suas tensões, contradições e conflitos. Instigá-los/as, ouvi-los/as, confrontá-los/as, notar os avisos nos murais, os crucifixos, as saias, sair das aulas, sentar-se no chão e conhecer suas marcas preferidas, permitiu “tornar material empírico qualquer artefato cultural que se apresentar conectado ao objeto de análise” (CARDOSO, PARAÍSO, 2013, p. 285). E possibilitou-nos, sobretudo, um olhar lateral acerca do que compreendemos por currículo.
Experimentar esse currículo, conhecer seus sujeitos e provocar suas menores cenas, implica operarmos “em favor da obscenidade, do que é deixado fora de cena nos espaços educacionais, o ‘fora’, o interstício, a movência, a obscenidade dos corpos, a qual poderia transformar, talvez, corpos hipo em hiper.” (VASCONCELOS, CARDOSO, FELIX, 2018, p. 8). Percorrer cenas desses currículos menores, propicia conhecer, igualmente, uma educação menor, uma educação como ato de “revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão” (GALLO, 2002, p. 173).
Ali, havia algo de próprio, de singular. E nos sentíamos desafiadas a falar sobre esse currículo, procurando refletir sobre as categorias e o corpo teórico, por meio do que vivenciávamos na escola. A cada dia de pesquisa, produzimos nossos registros, textos conflituosos entre nossas bagagens – correntes teóricas e resultados de pesquisas outras – e os descentramentos provocados pelas experiências. Tal produto textual foi “mais geral do que a explicação nativa, presa às particularidades de seu contexto, [...] e mais denso que o esquema teórico inicial do pesquisador” (MAGNANI, 2002, p. 17).
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Assumir o campo epistemológico da pesquisa que se propõe metodologicamente a interseccionar currículos escolares e culturas implica considerar os diferentes significados torrencialmente produzidos em uma instância de puro movimento. É ver-se como pesquisador/a do múltiplo, do mutável, do inconstante, do não-fixo, do ficcional. É estar atento/a às brechas, aos escapes, às rasuras, e aí aproveitá-los como única possibilidade de pensar o não pensado. É experimentar ao compor uma escrita invenção. Afinal, “é na escrita que o movimento da pesquisa, finalmente, ganha seu sopro de vida” (RANNIERY, 2014, p. 302). Uma escrita que propõe, a nós pesquisadores/as e aos pesquisados/as, tantos outros modos de fazer circular discursos e sujeitos em tantas outras instâncias culturais como nossos currículos escolares.
Uma escrita que junta registros diários, conecta falas em entrevistas e conversas, contrapõe murais e vestimentas, projetos pedagógicos e regras da agremiação. Uma escrita que é texto, diário, reinvenção do campo. Uma escrita que busca “experimentar, em lugar de interpretar. Dizer coisas simples em nome próprio, e nada além. Experimentar, abrir-se às multiplicidades, às intensidades que percorrem, de ponta a ponta, a própria pele. Essa anarquia, que Nietzsche inventa na filosofia: potência do menor” (MONTEBELLO, 2010, p. 141).
Mas não tratamos de qualquer currículo. Tomamos como referência o currículo menor, “aquele feito no cotidiano das escolas” (PARAÍSO, 2010, p. 18). Um currículo menor que se ocupa das mínimas composições. Um currículo menor do sentar no chão, do bate-papo no recreio, dos avisos nos murais, das listas, da lamentação da professora, das confissões na mesa do café dos/as docentes, da dança no festival, da mesa da diretora, da quadra de esportes, das vestimentas, dos livros nas estantes ou nas mãos de jovens estudantes. Um currículo menor que se escancara quando passamos a “estranhar o que é aceito como normal, desnaturalizando, e familiariza-se com o estranho, (re)conhecendo a interdependência desses movimentos” (MEYER, 2014, p. 60).
Estar (ou ser) posto/a à janela lateral de uma rotina curricular é entregar-se à subjetividade estrangeira-marginal-observadora. É deixar-se afetar pelos acontecimentos dali observados. É compor um ângulo próprio – a partir de suas próprias bússolas teórico-culturais e daqueles/as que lhe afetam – para olhar os movimentos pungentes da cena educacional. Nessa posição de sujeito pesquisador/a, reconhece-se que em um método de pesquisa “há uma variedade de sujeitos e processos do mundo da educação que não cessam de escapar, de mudar de natureza, que vivem uma organização própria sem necessidade alguma de um sistema que lhes dê uma unidade” (RANNIERY, 2014, p. 282). E, da janela, podemos espreitar!
Mesmo que também sejamos espionados/as do lado de fora – por órgãos de fomento à pesquisa, governo, pares, vigias da moral e dos bons costumes, que tentam nos aprisionar em certos moldes de fazer educação e pesquisa – devido às nossas roupagens teóricas ou posturas metodológicas, seguir é imperativo. Afinal, já nos acostumamos e aprendemos com muitos modos de violência e de resistência presentes em currículos encontrados em nossas caminhadas de pesquisa. Já construímos outros significados possíveis às definições fixadas, aos locais laterais que nos colocaram.
Como em um terreno onde se avança e se recua, reposicionamentos e demarcações são comuns. Trata-se de um espaço de muitas ambivalências, os contextos não são instâncias estanques que podem ser apreendidas como uma totalidade, como temos observado ao longo desse trabalho. Um movimento de deriva, ou de ‘desterritorialização’, nos possibilita pensar novas estilísticas no fazer pesquisa. O que está em questão é o descentramento do currículo, deslocando-o do lugar central e privilegiado, para compreender como, em diferentes épocas, as pessoas são transformadas e colocadas em determinadas posições de sujeitos. O descentramento nos ajuda a visibilizar os currículos menores e fazem muito sentido quando indexadas ao que pode ser observado no cotidiano das salas de aula e fora dela, pela janela. O permitido e o não permitido se entrelaçam, se desmaterializam, se especializam e se dissimulam, deixam de se situar em lugares fixos para se situar em redes cada vez mais flexíveis, assim garantem sua manutenção e sua propagação, em níveis muito menos expostos, laterais, quase imperceptíveis, mantendo uma alta eficácia na condução continuada das subjetividades, a partir de uma dispersão de ênfases.