INTRODUÇÃO
Neste trabalho, apresento narrativas sobre jovens e suas relações com a leitura e a escrita, como parte de minha experiência como pesquisador-professor-observador numa classe de Educação de Jovens e Adultos, em que estudei a temática da afetividade nessa modalidade de ensino.
O interesse pelo tema da afetividade decorre de minha percepção – em longas convivências nessa modalidade de educação, exercendo diferentes funções – da existência, no cotidiano da EJA, de um olhar contaminado por uma visão do que tem sido caracterizado como teoria da carência afetiva (PATTO, 1993). Não raro, os/as adolescentes, adultos – homens e mulheres – são vistos como carentes de afetividade, com baixa autoestima e com pouco interesse pelos estudos; indivíduos que se movem, se arrastam pelas salas de aula, sob o peso da desesperança.
Meu estudo sobre a afetividade, em classes de EJA, de forma divergente, considera que ela é parte indissociável de toda e qualquer ação humana. É constitutivo de todos os sujeitos em interação – jovens, adultos, docentes – bem como no próprio conhecimento (afetividade do/no/pelo conhecimento), como um artefato da atividade cultural humana. A afetividade, os afetos são, necessariamente, relacionais porque implicam relação de sentido e de significação e, portanto, os afetos são constitutivos da vida psíquica de todo indivíduo.
Por conseguinte, nas relações de ensino, a afetividade não se caracteriza apenas por uma única função (afeto positivo), mas por sua ambivalência ou plurivalência, pois é dependente da apreciação que o sujeito faz da relação com o contexto sociocultural e histórico, dos sentidos e dos significados em circulação. As emoções e os afetos, assim, se manifestariam na dinâmica interativa em circunstância dos sentidos e significados que os sujeitos atribuem às suas relações com o outro e com os objetos culturais, de ensino-aprendizagem, mediados pela linguagem.
Diante da discussão, acima, esse trabalho tem como objetivo narrar alguns acontecimentos vividos por mim, em aulas de leitura e escrita, numa classe de jovens e adultos, em que, ao privilegiar as relações intersubjetivas, em atitudes de atenção e escuta, comecei a captar evidências de possíveis interesses da classe, que poderiam se reverter em possibilidades didáticas de ação, suscitando o desejo e a vontade de ler, sem as marcas das autocráticas imposições. Assim, fui instaurando, num trabalho conjunto com a professora regente, outras possibilidades para que todos/todas se exprimissem em diferentes formas de linguagem e de material simbólico, assumindo a leitura como uma prática social, cultural, de desenvolvimento intelectual, emocional, afetivo, divertido e prazeroso.
INSPIRAÇÕES TEÓRICAS
Uma teoria só se revela boa para a gente, ou só se mostra compreensível ao nosso entendimento, quando nos ajuda a ler e organizar os fragmentos da realidade. Toda prática pressupõe uma teoria, já que nos mais “simples” atos humanos há sempre uma antecipada elaboração intelectual. A teoria não apenas nos ajuda a compreender a “independência” de uma prática, mas permite construir possibilidades de ação humana sobre a realidade, ou seja, as práticas. Uma teoria, para quem chega ao entendimento dela, carrega em si mesma, os caminhos de sua própria metodologia, delineamentos possíveis, práticas diversas a ser implementadas.
Neste trabalho, me inspirei essencialmente em dois teóricos: Paulo Freire e Lev S. Vigotski, pois, ambos, trazem uma perspectiva humanística em suas reflexões. Nesses autores, a centralidade da cultura está presente, enquanto produção humana, em seu papel formador do indivíduo e de seu desenvolvimento social, intelectual como sujeito crítico transformador. Utilizei, ainda, para a análise dos dados empíricos, outras referências próximas às ideias desses autores.
Dos primeiros textos freireano (1979; 1980a; 1980b; 1982) que li, ficou a imagem, que me acompanha há muito; nesta imagem, educar, com liberdade e para a liberdade, para o exercício da cidadania e da consciência crítica, é criar alternativas que possibilitem ao/à educando/a colocar, analogicamente, o mundo na palma das mãos e mirar, admirar, examinar, refletir, e transformar – transformando, ao mesmo tempo, a si mesmo. O mundo a ser mirado, do qual fala Freire, é o mundo constituído pela cultura, pelo poder simbólico. Educar, então, é apropriar-se, de forma crítica, desse mundo simbólico. Isto porque, homens e mulheres situam-se em tempos e espaços precisos, constituindo o que se denomina de historicidade humana.
Assim, para Freire, educar pressupõe conscientizar homens e mulheres para assumirem-se como sujeitos de práxis, históricos, comprometidos com as demandas e as transformações necessárias à humanização. Desse modo, no longo processo de aprendizagem, “... é absolutamente necessário transcender situações-limites nas quais os/as homens/mulheres são reduzidos ao estado de coisas”. (FREIRE, 1980, p. 30)
Essa transcendência é conseguida pela ação de homens e mulheres em decodificar seu mundo simbólico. Decodificá-lo, para usar uma palavra tão cara ao autor. Codificá-lo, num ininterrupto processo dialético de produção de antíteses e sínteses, eis a metáfora cognoscente e cognoscível dos dizeres freireanos. Nesse processo, os/as aprendizes, em sua humanização, problematizam as informações recebidas; refletem criticamente sobre os diversos aspectos da realidade em que estão inseridos; examinam, questionam, suas experiências representadas nos próprios códigos simbólicos.
É na arena das relações sociais – dimensão sociológica – que homens e mulheres se fazem sujeitos; mas essas relações sociais são relações de afrontamento, de confronto de poderes e se dão a ver nos diversos e diferentes contextos de vida, de experiência cultural – na dimensão antropológica. A cultura é um código que compreende objetos simbólicos e artefatos instrumentais, enquanto produtos criados, sistematizados e resultam da longa experiência histórica de toda a humanidade.
Aprender, para Freire, é desafiar, romper com o ensino domesticador, cioso em ajustar os indivíduos às relações de subalternidade; exige-se respostas que levem à aquisição da cultura de forma crítica, reflexiva, criativa, organizada e plasmada em ações transformadoras, pois é “pela ação e na ação, é que o homem [e a mulher] se contrói[em] como homem [e como mulher]” (FREIRE, 1980, p. 37). Eis aqui – nas relações sociais, buscando, de maneira original, estabelecer o enfrentamento da realidade – os sujeitos se realizando em sua historicidade. Freire, em seu humanismo, traçou, igualmente, como uma teoria, a sua metodologia de uma educação libertadora e transformadora da realidade e dos indivíduos. Neste artigo, não apresentarei essa discussão, pois, como se trata de uma temática sobre leitura, vou tomar como orientação didática um fragmento de um pequeno e muito famoso livro seu – “A Importância do Ato de Ler”.
Neste livro, o movimento inicial de leitura – ainda que aleatório, das coisas do mundo, remetendo o/a leitor/a ao início do primeiro parágrafo destas Inspirações... – foi sintetizado de forma emblemática por Paulo Freire (1989, p. 9) ao dizer que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”.
Talvez uma interpretação pertinente à primeira parte dessa assertiva freireana seja a de que o autor se refira aos primeiros aprendizados, em que a leitura – isto é, a apreciação que a criança vai fazendo do seu entorno – se faz por meio das significações sociais compartilhadas nas atividades práticas de linguagem. Apreender e aprender, num primeiro momento, é, para Freire, tomar consciência, de forma pragmática, de objetos, normas e convenções sociais; é entrar e fazer parte de um mundo cuja existência só é possível por meio do acesso à linguagem. Na segunda parte da assertiva, provavelmente, Freire (1989) está se referindo à aprendizagem da leitura sistematizada, ou ao que se denomina, em linguagem pedagógica, de Alfabetização. Alfabetizar, então, seria a aprendizagem da leitura da palavra, a qual não deveria ser feita de forma artificial, mas tomada como instrumento para a compreensão crítica e reflexiva do mundo, em seus complexos ordenamentos históricos e socioculturais, políticos e econômicos.
Vigotski, o outro autor que inspira e transpira nesse trabalho, aproxima-se muito de Freire, ao explicar que o desenvolvimento do psiquismo se dá no plano histórico-cultural. Os indivíduos constituem-se na dinâmica das interações sociais, mediadas pela cultura e pela linguagem. A hominização, isto é, as diferentes funções psicológicas têm sua gênese nos processos sociais. Dependem, assim, das diferentes formas de aprendizagem para se desenvolverem. Nas palavras deste autor, “o desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento histórico geral de nossa espécie e assim deve ser entendido” (VIGOTSKI, 2000a, p. 80). Assim, aquelas características específicas que definem a espécie humana e nos distingue de outras espécies, tem sua gênese na vida social e se transforma no curso do desenvolvimento histórico-cultural.
Homens e mulheres se fazem no terreno da história e da cultura, de forma que a compreensão de seus modos de ser, agir, pensar e sentir – o funcionamento da vida psíquica – não pode ser buscada nos indivíduos tomados de forma isolada, mas a partir de suas histórias sociais. O indivíduo, assim, não se constitui em uma unidade biológica, apenas, mas também em uma unidade histórica, porque leva em seu caráter as características do desenvolvimento histórico-cultural, pois “essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social” (VIGOTSKI, 1994, p.37).
A história individual é forjada na história social, de imersão na cultural e emersão da individualidade, por meio da apreensão e aprendizagem dos modos de ser, viver e agir em sociedade. A aprendizagem – que significa a apropriação dos bens simbólicos, signos, instrumentos – provoca mudanças radicais em todos os aspectos mentais dos indivíduos. De forma que essa entrada nas relações sociais e culturais, desde o seu nascimento, é o início de sua constituição como sujeito humano e da transformação do biológico em cultural e histórico.
Vigotski chama a atenção para a importância fundamental do outro (o adulto experiente, o pai, a mãe, inicialmente, e professores/as, posteriormente) na promoção da criança. Especialmente, esse autor atribui inestimável valor ao papel da educação como responsável pelo desenvolvimento do indivíduo, pois é através da aquisição dos conhecimentos, organizados em categorias, que as funções mentais, em sua plasticidade orgânica, transformam-se em funções mentais moduladas pela cultura. Educação e aprendizagem (em seus aspectos espontâneos, cotidianos e sistematizados, formais) têm a função de transformar o biológico em cultural, de modo que aspectos como atenção, memória, imaginação, percepção, inteligência, emoção e afetos sejam mobilizados para o atendimento das necessidades individuais e de sua interação com o grupo social.
A vida psíquica, assim, desenvolve-se não apenas como um impulso regulado pela conspicuidade de elementos individuais (orgânicos), mas como processos mediados pela cultura e pela história. As manifestações afetivas, por exemplo, tanto têm vínculos com a emoção, entendida como impulsão dos aspectos neurofisiológicos, quanto são mediados semioticamente. Ou seja, são nomeados, significam nas relações e práticas sociais e têm sua expressão regulada (liberada ou constrangida) e modulada nas relações sociais (FALABELO, 2005).
Diante da argumentação acima, compreende-se que a vida afetiva abrange várias manifestações, pois comporta as emoções, fortemente, vinculadas a alterações orgânicas e expressivas e os sentimentos, que diferente das emoções não implicam em alterações corporais visíveis, remetendo aos processos de produção de sentidos mediados pela linguagem.
As manifestações afetivas e emocionais, portanto, enquanto instância de produção de sentidos, provocadas por situações corporais imediatas ou por situações abstratas, podem se expressar por emoções, palavras, gestos, olhares, murmúrios e silêncios. As formas de perceber as emoções, de reagir a elas e de manifestá-las, bem como a nomeação, o reconhecimento e a manifestação de sentimentos e o controle sobre eles são históricos e mediados pelos elementos semióticos da cultura.
Assim, as manifestações afetivas e emocionais, mesmo em sua natureza subjetiva, podem ser interpretadas pelos membros do grupo cultural, pois são exprimíveis para o outro e para o próprio indivíduo e igualmente elaborados e compreensíveis “por meio de signos, nas relações intersubjetivas” (Fontana, 2000b, p. 106). É a existência de significados estabilizados e consensualmente aceitos que permitem aos sujeitos interpretar determinados gestos, expressões faciais, variações na tonalidade das enunciações, etc., como manifestações afetivas e emocionais de alegria, afagos, medo, ira, tristeza, prazer, acolhimento, conflito, retraimento, distração, atenção, desatenção, etc. (FALABELO, 2005).
INVENÇÃO, ENGENHO E ARTES DO FAZER
Como, então, apreender indícios dos processos emocionais e afetivos em desenvolvimento nos sujeitos envolvidos em relações de ensino da leitura e da escrita? Freire e Vigotski1, em suas abordagens teóricas e metodológicas, foram a inspiração para que, com invenção, engenho e arte, eu investigasse a dimensão das singularidades dos sujeitos, condição central para compreender a organização e a transformação da afetividade, em suas condições de produção nas práticas de ensino e aprendizagem.
Numa rica cidade do interior paulista, aqui denominada de Primavera do Sol, depois de muitas buscas, optei em realizar a pesquisa numa Classe de EJA, num distante bairro periférico, que chamei de Bosque dos Arvoredos. Este bairro resulta das políticas urbanistas de higienização social e embelezamento da cidade e seus moradores eram oriundos de diversos remanejamentos. Palavras como violência, criminalidade e morte faziam parte do cotidiano da sala de aula.
À Professora, simpática, alegre e muito risonha, dei o nome de Iraci, em tupi, “mãe do mel”, mesmo porque ela gostaria de um nome indígena. Fiz seu gosto. O mínimo que poderia fazer diante do trabalho que fizemos juntos. Como parte da metodologia da pesquisa2, expus a ela minha ideia para compreender os indícios das manifestações emocionais e afetivas: ler poesias, por alguns minutos, no início das aulas, umas três vezes por semana. Ela concordou. A classe era de 2ª. Etapa (3º. e 4º. anos), composta de adolescentes irrequietos e barulhentos e calmos adultos e idosos.
No início, eu escolhia sozinho as poesias, preferindo aqueles autores mais conhecidos. Eu digitava e imprimia, para cada encontro com a turma, umas cinco páginas. Eu fazia a leitura, buscando explorar o ritmo, a sonoridade, a melodia. Aos poucos, a turma foi gostando e se encantou com as leituras. Com a percepção de que a técnica estava agradando, despertando a atenção e o envolvimento dos adolescentes, dos adultos e dos poucos idosos, passamos a planejar, em conjunto, eu e a professora, que pesquisava e sugeria poesias e também outros autores.
A poesia foi, assim, um disparador, um sinal de abertura para outras formas de levar a turma de jovens e adultos a experimentar a leitura e a escrita enquanto uma prática social, significativa, afetiva. A professora sugeriu: “E se trouxéssemos música, MPB?”. E eu respondi: “Mas temos que trazer as letras”. Ela, que trabalhava em dois turnos numa creche, de repente, achou tempo para também pesquisar músicas, transcrever e imprimir as letras. Algumas alunas e alguns alunos sugeriram outros estilos musicais; prontificaram-se a trazer aparelho de som. E, por muitas noites, líamos, declamávamos poesias; ouvíamos músicas. E, assim, enchíamos de som, poesia, alegria as noites frias naquela distante escola dos Arvoredos. E, alfabetizávamos!
Às vezes, as atividades com poesia e música eram tão envolvente que até mesmo esquecíamos intervalo para o lanche, até que alguém gritava: “Esquecemos o lanche!”. E, íamos para um breve lanche, geralmente suco artificial ou um capuccino ralo e frio, acompanhado de um “pão dormido”, no qual passávamos pinceladas de margarina.
E, em colaboração, íamos intensificando as atividades e a sintonia, captando os indícios afetivos da turma nas relações com os conhecimentos ali disponibilizados. Como, por certa coincidência, morávamos no centro da cidade, em bairros próximo, todos os dias, íamos e voltávamos juntos. Aproveitávamos o solavanco do ônibus para comentar a aula e também para nos insinuarmos em diferentes ousadias didáticas.
Como observador, registrei, em Diário de Campo, episódios interativos produzidos, envolvendo a turma, a professoras e eu mesmo. Na descrição, procurei registrar as condições sociais de produção das interações, bem como os dizeres, gestos, escritas e posturas assumidos pelos sujeitos nelas envolvidos, procurando aproximar-me das formas como significavam as suas vivências e como se relacionavam com o conhecimento no espaço escolar.
Assim, na descrição dos eventos, focalizou-se, como material empírico para análise: a) o contato físico-corporal: gestos de afagos, abraços, etc.; b) as expressões não-verbais: expressão corporal, tônico-posturais, olhares, gestos, expressões faciais; c) a tonalidade das enunciações orais: falas, dizeres, etc.; d) as relações aluno/a – conhecimento: a forma como são afetados/as pelos objetos simbólicos e os sentidos que enunciavam através de formas sígnicas verbais ou não: de prazer, alegria, satisfação, indiferença, negação, cansaço, dor, etc.; e) nas atitudes da professora em relação ao/à aluno/a: compreensão, paciência, irritação, reciprocidade, etc; f) na organização das atividades pedagógicas.
A seguir, apresento as descrições dos eventos ao mesmo tempo em que vou realizando os comentários analíticos.
Palavras
Eles iam chegando lentamente, pingando na sala, um a um, como todos os dias. Sobre o grande balcão lateral, arrumamos os pacotes com o material de trabalho: textos com poesias, uma atividade para brincar3 de fazer rima e outras com jogos de caça-palavras e palavras-cruzadas. Para aproveitar esses instantes iniciais, antes da turma se completar, concordamos – eu e a professora Iracy – em distribuir o jogo de Caça-Palavras, que, tendo mais o objetivo de distração e um propósito de prazer, poderia ser feito individualmente, enquanto aguardávamos, por mais alguns minutos, até que todos chegassem.
Na orientação individualizada, fomos percebendo que alguns alunos começaram a marcar palavras não listadas, mas que apareciam no jogo. Essa situação, por repetir-se com muita frequência, levou-nos a improvisar, ampliando o jogo e dando a seguinte orientação: “ – Vejam, primeiro vocês devem procurar as palavras listadas; depois, então, vocês procuram palavras que não foram indicadas, inclusive, podem formar outras palavras. Vamos ver quem encontra ou forma o maior número de palavras novas?” – lançamos o desafio. Após identificar as palavras listadas, eles se concentravam na caça a novas palavras, formando-as na horizontal, vertical e diagonal, de trás para frente e vice-versa e por vezes perguntavam: “ – De ponta cabeça, pode?”; “ – Assim, pode?” E a professora e eu fomos funcionando como “árbitros”, orientando e esclarecendo as dúvidas.
Os jogos de “caça-palavras” e “palavras-cruzadas”, como se sabe, são práticas lúdicas de letramento. São jogos de regras que exploram a dimensão gráfica das palavras e a sinonímia. Foi interessante observar que, no primeiro momento, pedimos para que seguissem a regra – quando tentavam fugir dela –, que era caçar somente as palavras já dadas em uma lista, na intenção de controlar, como é próprio e necessário ao jogo de regras, o comportamento impulsivo (Rocha, 1997). Para o segundo momento, então, propusemos – a partir dos indícios apontados por eles/elas – a subversão da regra do jogo, pela incorporação de outras regras possíveis, criando, assim outras formas de relação com o material simbólico que tinham em mãos e outras possibilidades de se experimentarem na atividade lúdica com a palavra.
Essa segunda forma de relação com o jogo pareceu-me que foi a parte mais motivadora, intensificando o caráter lúdico da atividade, com a turma empenhada em encontrar e formar novas palavras, algumas de acordo com a oralidade. Foi interessante observar as estratégias diferenciadas, que emergiram no intento de realizar a tarefa com sucesso. Criaram-se estratégias, as mais inusitadas, para compor as palavras. Alguns/algumas faziam como que um “caminho de cobra”, em zigue-zague, para combinar letras ou sílabas e formar uma palavra. Eu e a professora éramos constantemente solicitados para “arbitrar” sobre a pertinência de uma determinada palavra formada, quando alguém se mostrava em dúvida. Era ocasião para instaurar a interlocução sobre o sentido e o significado de uma palavra.
Surpresos, fomos percebendo que o jogo, além de acentuar o interesse e a motivação, tivera o seu foco mudado. A regra original envolvia os alunos/alunas numa atividade de reconhecimento, de identificação. As novas regras criaram novos elementos de dificuldade, pois a composição de palavras dependia das possibilidades de arranjo na disposição das letras na tabela oferecida pelo jogo. Além disso, a mudança da regra fez emergir o problema da significação, tornando-se, ela, o critério de aceitabilidade das combinações produzidas.
Na tentativa de compor o maior número de palavras, produziam combinações de letras sem significado. Imediatamente, procurávamos esclarecer que, apesar das combinações de letras serem passíveis de oralização, elas não formavam uma palavra porque não possuíam um significado. Chamávamos a atenção da turma para isso e os estimulávamos a formar outras combinatórias, às vezes sugerindo algumas palavras que visualizávamos.
O jogo foi vivido como jogo. Os adolescentes, Cristiano e Renato, sentados, um ao lado do outro, em acirrada competição, protegiam suas “criações” do indevido olhar do colega. Eu e Iracy tivemos que nos desdobrar para ouvir e dissuadir os argumentos daqueles que defendiam a validade e a pertinência de combinatórias sem significado. Seu Roberto, por exemplo, não queria se desfazer de umas três sem significado. Renato, protestava. Cristiano, me olhava e murmurava, interrogativo: “ – Essa não vale, não?”. Josué, uns 19 anos, não deixava por menos, defendia, explicava, argumentava que a palavra era uma “palavra”. A jovem Lúcia4, incansável – um filho no colo e outro cochilando numa carteira – chamava-me e protestava quando eu lhe dizia que aquela palavra não valia. A professora consultava-me com o olhar e não tínhamos outra alternativa senão dizer que não era uma palavra, era uma “palavra”, mas sem significado e, portanto, não servia para comunicar, porque não expressava uma ideia, um sentido. Brincávamos: “ – É uma palavra que não é palavra, porque, para ser palavra, precisa dizer alguma coisa, precisa ter significação, precisa representar um objeto concreto, abstrato, etc.”.
Seu Raimundo, uns 45 anos, pedreiro, com paciência ia construindo sua lista de palavras, empilhando uma sobre a outra. Quase não falava, apenas me chamava através de gestos para eu ir conferir os seus “tijolinhos” de palavras. “Estão corretas, Seu Raimundo, têm significado”. E, em calosas e ásperas mãos, apertava a minha, em afetivo e silencioso agradecimento. Lembro daquela noite em que, a professora e eu, levamos a turma ao pátio com o objetivo de organizar um “Mural” com a produção escrita do mês. A professora à frente, cercada de adolescentes tagarelas, mais atrás, os adultos e uma ou outra mãe puxando suas crianças. Enquanto a professora ensinava algumas técnicas de como organizarem suas produções, observei seu Raimundo, quietinho como sempre, com cuidado, ilustrava a poesia de Drummond, No Meio do Caminho. Com suavidade e leveza, a imagem de um bosque foi se delineando, um pequeno e sinuoso igarapé, margeado por blocos de pedras e musgos; um criança, em pé, observando a obra, restava.
Anderson, próximo a seu Raimundo, me chama para ver suas “criações”. Sorridente, alegre, barulhento, sempre falante, dava altas e gostosas gargalhadas quando eu brincava com uma ou outra palavra criada por ele, mas que “não era uma palavra”. Ele riscava e, em bom humor, reclamava que das 19 perdera 4. Aparentava uns 27 anos, trabalhava num açougue. No início, ele tentava acompanhar a leitura, mas ainda tinha muitas dificuldades. A professora incentiva, corrigia, ele sorria grande; um ou outro colega ajudava e ele ia afinando a pronúncia e desenvolvendo o ritmo da leitura. Sempre, após a minha leitura individual, fazíamos uma leitura com a turma, abrindo espaço para que lessem partes que haviam gostado. Certo dia Anderson me disse: “– Levei as poesias pra minha esposa, ela leu e mandou dá parabéns pra vocês. Eu também levei para meus colegas do açougue, eles gostaram, li pra eles, meio torto, meio...” – e abria-se todo em risadas.
Aproximei-me de D. Glaucy, parecia lutar, solitária, com a criação de palavrinhas. Foi logo me advertindo, em sorriso, posta: “– Ah, professor, não fiz quase nada!”. Por volta de uns 50 anos, trabalhava como doméstica. “Lavo, passo, cozinho, arrumo casa e ainda cuido de duas crianças”. A professora Iracy se aproximou e, entre descontraídos risos, a ajudamos a fazer a sua lista de palavras crescer, sugerindo, corrigindo, instigando-lhe a raciocinar, criar. Eu, particularmente, a admirava, desde aquele dia em que, após o lanche, ela me narrou fragmentos de sua vida. Um vento gélido varria o pátio, a turma quase toda já retornara à sala; ela permanecia ali: “Já sofri muito professor, desde lá de Goiás; meu marido judiava muito de mim; já criei meus filhos; o menino mora comigo, a menina foi para Goiás. Hoje estou sozinha, deixei o traste pra lá... Não quero mais saber de marido... Agora, quero estudar...”. Glaucy olha para nós, a cada palavra que cria sozinha e diz, sorrindo: “Eu gosto muito de vocês, porque vocês ensinam a gente a ser romântico [referia-se às leituras de poesia] e ensinam a gente nessas coisas aqui...”. Relembro a imagem de sua esguia figura, cabelos compridos, vestido bem passado, por volta das 18h30, descendo a ladeira, rumo à escola, em pontualidade e dedicação; cadernos, livros e estojo de canetas, nos braços, aprumados, em distinta pose de jovem colegial.
Sorrimos e a deixamos com suas palavrinhas.
Ao final, a produção de palavras novas encontradas ou formadas foi muito grande e aos poucos, fomos nos dando conta que, no envolvimento lúdico, possibilitamos, efetivamente, à turma, a elaboração de alguns elementos distintivos do complexo conceito de palavra. Na vida cotidiana, usamos as palavras sem nos darmos conta de que, como lembra Vigotski (2000a, p. 150), “uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da ‘palavra’, seu componente indissociável”. No jogo, a relação entre significante e significado foi ressaltada, passando a orientar as ações dos participantes. Assim, aos poucos, fomos mediando uma relação com a linguagem, esta relação exigiu um outro olhar para as práticas cotidianas, em seu movimento de reflexão intelectual (FREIRE, 1982). Vigotski (2000b, p. 125), destacando as possibilidades do jogo, em especial o jogo de faz de conta, chama a atenção para o fato de aquilo que na vida real passa despercebido pelo sujeito, torna-se uma regra de comportamento no brinquedo. Nas condições de um jogo de regras experimenta-se essa dimensão: combinando letras e sílabas, o conceito de palavra ganhou destaque e mediou o comportamento da classe em situação lúdica.
Para se apropriarem do conceito de palavra, operaram com diversas funções mentais, pois, conforme Fontana (1997), diferentes funções intelectuais participam da elaboração do significado da palavra – atenção, formação de imagens, associação, comparação, inferência, abstração, seleção, análise, síntese (generalização).
Surpreso, ouvi confessarem-me que nunca haviam feito nenhum desses tipos de jogos. Essa constatação permitiu-me inferir que, naquele dia, experimentaram, para além do prazer do jogo, um outro modo de aprender e uma outra possibilidade de fazer e de viver a escola. Freireanamente, diria que: a atividade possibilitou que os sujeitos, em aprendizagem, tomassem as palavras e as colocassem na palma da mão, admirando-as, refletindo sobre suas significações, problematizando-as, conscientizando-se. (FREIRE, 1980a)
Por fim, o empenho foi tão intenso que tomou todo o tempo de aula. Diferentemente dos dias anteriores, não tivemos a poesia e nem a descontraída “Dinâmica de Grupo”. O jogo se encarregou de envolver a turma numa atmosfera de motivação e aprendizagens difíceis e necessárias. Nesse evento, observa-se a dimensão emocional e afetiva mobilizando os sujeitos em suas demandas cognitivas, centradas no esforço de criar, desafiar-se, refletir criticamente, inventar, eleger, decidir.
Já no ônibus, a professora suspirou, enunciando-me suas intelectuais manifestações e afetivas apreciações, como vem fazendo ultimamente, após nossos encontros, sem que eu perguntasse: “ – Foi muito bom, hoje..., você viu? Eles gostaram...”.
Dicionário
Era para ser um simples exercício de caçar o significado de palavras no dicionário, conforme se fazia sempre, após o final das leituras de poesias – esse, pelo menos, era o sentido inicial que atribuíamos a essa atividade. Formamos, então, pequenos grupos, aos quais distribuímos dicionários que traziam alguns verbetes ilustrados. Com as folhas de poesias em mãos, a classe deveria sublinhar aquelas palavras que não conheciam e pesquisar seu significado.
A professora e eu orientávamos os grupos. Reliam os poemas, consultavam-nos sobre as palavras que desconheciam; ajudávamos, ainda, a destacar outras mais. Observei que essa atividade provocou um grande interesse e, principalmente, motivou a interlocução entre os alunos/alunas, a professora e eu. Alguns aproveitavam o manuseio do dicionário para buscar o significado de outras palavras que lhes chamavam a atenção, como ficou evidenciado em muitas solicitações.
Num determinado momento, ouço Cristiano discutir baixinho com Renato, 14 anos, e o assunto é alguma palavra do dicionário. Vendo-se observado, Cristiano faz um gesto, chamando-me. Mostra-me, então, o que seria o móvel da discussão: a palavra pipi. “ – Olhe aqui, ele [Renato] está dizendo que não é isso” – e Cristiano marca com a ponta do dedo o segundo significado que o dicionário dá para pipi: “pênis”. O primeiro é “urinar”. “ – Não é que significa também isso aqui?”, mas não fala a palavra, apenas a aponta. Concordo com ele. Cristiano mostra, para Renato, que estava certo, mas este lhe lança um olhar desconfiado.
Minutos depois, mais uma vez, sou chamado. Era o grupo de adolescentes – Cristiano, Renato, Ander e Iago – que demonstrava curiosidade por algumas figuras do dicionário, o que parecia ser o motivo da discussão. Dicionário aberto, os quatro, em círculo, examinavam alguma coisa. Aproximei-me. Cristiano apontou-me uma das duas imagens de carros antigos que ilustravam a palavra automóvel e fez-me algumas perguntas sobre elas. Observei as imagens, mas minha ignorância sobre o assunto não me permitia ir além de dizer que aqueles carros não eram mais fabricados e só existiam com colecionadores. Os meninos opinavam, discutiam entre si, interrogavam-me. Cristiano parecia não se conformar com as minhas evasivas respostas. Em uma segunda ocasião, volta a me perguntar, baixinho – voz quase inaudível, forçando-me a curvar-me sobre sua carteira – o preço daqueles carros. “ – São muito caros? Vale muito dinheiro, não vale?”. Renato, ao ouvir a pergunta, responde interrogativo: “ – Claro, você não viu que é de coleção?”. Ander entra na discussão, interrogando-me: “ – Ó, professor, mas pode comprar eles, não pode?”.
E prosseguiram no que parecia ser uma interminável discussão sobre automóveis, enquanto fui atender a outro grupo, sem muito a acrescer às inúmeras hipóteses que levantavam e que, longe de arrefecer, mais parecia atiçar o interesse pelo assunto. Funções cognitivas em movimento, em ativação... tomando os objetos na palma da mão... problematizando-os.
Esses adolescentes – que se mostravam em emoções e afetos – sempre silenciosos, tímidos e introvertidos nas muitas situações de aprendizagem, diante daquelas imagens de automóveis, envolviam-se em acirrada e envolvente interlocução. Essa situação evidenciou-me que a introspecção deles, em sala de aula, não poderia ser atribuída a traços inerentes a suas personalidades, mas relacionava-se com as formas de relação com o conhecimento possibilitado a eles: ao tomarem como objeto de interlocução uma temática de seu interesse e sobre a qual possuíam algum conhecimento prévio, aquela carapaça de silentes, que lhes definia o comportamento cotidiano, desfazia-se.
No momento em que narro esse episódio, volto-me às anotações do meu Diário de Campo, vou reconstruindo aquela cena e outros sentidos e significados vão se desencadeando à minha frente, vendo aquela atividade não mais como um simples ato de buscar palavras desconhecidas para eles/elas. Por certo, pergunto-me: onde ficou o dicionário? Onde estavam as folhas de poesia e as palavras que deveriam buscar? Restavam sobre a carteira, imóveis; mas, a partir dele (o dicionário) e sobre elas (as folhas de poesias) desdobraram-se outros sentidos que alimentaram e intensificaram o processo discursivo e intelectivo. As diminutas imagens, em preto e branco, sem maiores atrativos visuais, quase insignificantes, provocaram curiosidades, evocaram a imaginação, o alargamento dos sentidos, suscitando envolventes reflexões. Como aprendizes de arqueologia, tomaram aquelas imagens em fragmentos e transformaram-nas em objeto de seu interesse, dando-lhes destaque acentuado, ampliando a dimensão sígnica que pareciam não ter, enquanto, em pálida cor, ilustravam o verbete.
Revivendo e recompondo os pormenores para construir essa narrativa, evoquei a imagem daquele leitor de Calvino (2003, p. 257), para quem o texto é mero pretexto para atiçar a imaginação, e que nos murmura assim:
– Não se espante de ver meu olhar constantemente perdido. Este é mesmo meu modo de ler, e só assim a leitura me é proveitosa. Se um livro me interessa de verdade, não consigo avançar além de umas poucas linhas sem que a minha mente, tendo captado uma ideia que o texto propõe, um sentimento, uma dúvida, uma imagem, saia pela tangente e salte de pensamento em pensamento, de imagem em imagem, num itinerário de raciocínios e fantasias que sinto a necessidade de percorrer até o fim, afastando-me do livro até perdê-lo de vista
O dicionário, visto em sua formalidade e seu objetivo instrucional e informativo, como o depositário das palavras, desencadeia uma série de sentidos outros, porque é um texto em aberto. São, assim, os efeitos de sentidos dando-se a ver na relação com o material simbólico, em situação didática. Bakhtin nos chama a atenção para o fato de que o sentido é potencialmente infinito, mas só se atualiza no contato com outro sentido (o sentido do outro). “Ele [o sentido] deve sempre entrar em contato com outro sentido para revelar os novos momentos de sua infinitude” (BAKHTIN, 2000, p. 386).
O acesso ao dicionário possibilitava-lhes buscar mais do que as palavras já dadas no texto. Na relação com o dicionário, emergiram outros sentidos, pois “o sentido não se atualiza sozinho, procede de dois sentidos que se encontram e entram em contato” (BAKHTIN, 2000, p. 386). Por que caminhos, por que desejos, motivos e secretas curiosidades chegaram, Cristiano e Renato, à palavra “pipi”? Certamente, porque a leitura, enquanto produção variada e incontida de significados e sentidos, remete o leitor a suas vivências, experiências, desejos (FREIRE, 1986). A relação com o objeto cultural evocou sentidos latentes, sentidos obscuros, interditados. Isto porque, “[…] os fenômenos do sentido podem existir de uma forma latente, potencial, e revelar-se somente num contexto de sentido que lhes favoreça a descoberta” (BAKHTIN, 2000, p. 365).
Como campo de sentidos – e não apenas de significados encapsulados por definições formais –, o dicionário abriu-se, assim, à aventura, à relação polissêmica com os seus leitores, remetendo-os à cata de outros significados. Foram eles, portanto, não apenas em busca das palavras “permitidas”, mas daquelas proibidas, interditadas, tanto que Cristiano parecia dar-se conta disso, pois apenas apontava com o dedo a palavra “pênis”, sem pronunciá-la. Além desta, por quais outras palavras vetadas, não reveladas por eles, socialmente excluídas, não passaram eles? Experimentaram-se, dessa forma, na exploração dos recursos semióticos do dicionário, em articulação com o contexto vivencial, necessidades, curiosidades..., uma vez que “linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto” (FREIRE, 1986, p. 11-12). Ao articular a linguagem à realidade, ao imaginário, aos desejos e às íntimas, inúmeras e diferentes necessidades do leitor (afetivas, estéticas, cognitivas etc.), a leitura abre-se como uma experiência a ser vivida com mais intensidade, pois conhecimento e vida se entrelaçam como verso e anverso de uma mesma realidade, a realidade humana, em sua inteireza.
A leitura constitui-se, assim, como possibilidade de descortinamento de sentidos outros, muito além daquilo que nós, professores/as, esperamos, quando planejamos a nossa ação pedagógica. Talvez, aí, se revele a pertinência da assertiva de Bakhtin (1997), quando nos diz que os sentidos são dados, não por nós, mas pelo outro. A nossa tarefa, no processo de leitura, seria, então, possibilitar o acesso dos alunos/alunas ao material simbólico, através de uma mediação que provoque a relação com a cultura e, ao mesmo tempo, permita a eles/elas aventurar-se na busca e descoberta da pluralidade de sentidos, sem deixar de considerar, contudo, o processo de leitura como uma relação social – “a entrada no mundo da leitura é fruto de relações simbólicas, sociais e econômicas” (KRAMER, 1999, p. 134); deixar que os estudantes se experimentem na descoberta desses objetos culturais, desses grandes monumentos, guardiões da cultura, como o é o dicionário – sempre em repouso sobre a mesa ou na estante com seu ar de cerimônia e respeito casto.
A leitura seria isso, por conseguinte: promessa de descobertas, provocação e evocação da diversidade de sentidos que são produzidos na relação com o objeto semiótico, mediado pelo outro/outra, pelo professor/pela professora, na especificidade do ato pedagógico.
Acrescente-se, ainda, um comentário a mais, que nos parece importante. O dicionário, para nós, – pessoas habilitadas e proficientes em leitura e escrita –, não passa mais por esse tipo de exploração, o que, de certo modo, não nos permite visualizar, muitas vezes, outras possibilidades como aquelas feitas pelos jovens, pelos adultos e pelas crianças quando diante desse material, em fase de apropriação da leitura e da escrita. Observando outros alunos e alunas, em outros grupos, percebemos o mesmo movimento em direção à exploração de outros significados não dados. Procuravam, certamente, as palavras dadas, mas não deixavam de satisfazer curiosidades outras. Algumas vezes, éramos chamados para esclarecer o significado de uma palavra – fora do texto – que um e outro não haviam entendido. Assim, já habituados a um dado tipo de uso social desse recurso, nem sempre atentamos para o fato de que o que vemos precisamente enquanto uso pedagógico para o dicionário, pode não ser precisamente o que veem os/as alunos/as, conforme demonstraram nesse episódio.
A relação leitor – obra semiótica – mediador rompe com a imediaticidade de significados e sentidos “planejados”, que imaginamos controlar ou regular em nosso docente ofício; os sentidos articulam-se mais intensa e amplamente à vida dos indivíduos e de suas experiências sociais e culturais. As fronteiras entre o dado e o imaginado pela escola se entrelaçam com as fronteiras do vivido, do experimentado e dos desejos do sujeito leitor/a: tais fronteiras se rompem e a leitura “escolar” ganha sentidos outros, se enriquecendo e consubstanciando-se com os atos e eventos da vida, afetando-nos em nossa subjetividade, nos fazendo voltar para dentro e para fora de nós mesmos, num processo dialético de constituição e transformação, com o sujeito experimentando a sua própria metamorfose.
Ler, por conseguinte, – é o que me inspira esse episódio – é um tecer em aberto num enlace de fios e pontos que se cruzam e se entrecruzam, sem que as urdiduras das tramas se presumam fechadas, pois estão elas, inescapavelmente, a enunciar-se e deixar-se verter em horizontes de sentidos possíveis ante o leitor.
Carro
Não é um assunto que me desperte curiosidade, nem mesmo os antigos. Mas naquele momento, senti o quanto esse conhecimento me fizera falta para sustentar a discussão com os meninos. Em casa, digitando o Diário de Campo, fui dando-me conta que poderia aproveitar aquele inesperado interesse para aproximá-los da leitura ainda mais. Ou, para corrigir a minha desinformação. Na manhã seguinte, fui a um dos “Sebos” da cidade e, para minha sorte, encontrei uma revista, de ótima qualidade, que trazia a história dos automóveis, muito bem ilustrada em papel de fino gosto. Comprei alguns exemplares e números diferentes, sequenciais.
Em nosso encontro seguinte, como esses adolescentes costumavam chegar mais cedo, entreguei-lhes as revistas, antes de começar a aula. Em círculo e em curiosidade, folheavam, admiravam, apontavam, liam. Fiquei ali, junto a eles, lendo com eles, por eles e para eles (PADILHA, 2002), explicando as muitas perguntas que faziam. Em seguida, com a aula já se iniciando, distribuí um exemplar para cada um, com números diferentes, para que continuassem a leitura em outro momento e, assim que terminassem, permutassem com os colegas. Ficaram surpresos quando lhes disse que poderiam levá-las. “ – Pode mesmo?” – me perguntaram, em olhares de dúvida.
Ao retornar do intervalo, encontrei-os, novamente, conversando sobre as imagens dos automóveis; em suas mãos, as revistas abertas. O tema que alimentava a interlocução entre eles era um desses primeiros carros produzidos pela Peugeot. “ – Esse não é um dos carros mais caros do mundo, não é?” – me pergunta Ander. Explico-lhe que aquele modelo de carro não é mais fabricado. Que seu valor é histórico, somente existe no museu, etc.. Iago entra na conversa discordando de Cristiano, que dera um valor para o carro.
Assim, aproveitando os poucos minutos da entrada do intervalo, antes do recomeço da aula, eles prosseguiram numa calorosa interlocução, com o respaldo das informações lidas ao lado de cada imagem. Iago contou-nos, então, com conhecimento de causa que num sítio aonde ia sempre aos finais de semana (para ajudar seu cunhado, que é o caseiro, no trabalho braçal), havia muitos carros antigos, colecionados pelo dono: “ – Marverick, Aerwilles...”; e foi nomeando alguns deles. Enfático e envolvente, bastante diferente do menino silente que se enrosca na carteira e responde à professora em sussurros, assumiu, momentaneamente, o centro da interlocução, explicando aos colegas e a mim, em riquezas de detalhes, como eram os carros do sítio. Com curiosidade, atentos, nós o escutávamos. No movimento interdiscursivo, como numa ciranda, Iago veio ao centro, foi o destaque, ganhou visibilidade como sujeito da enunciação.
Atentos aos detalhes, Cristiano destacou a direção de um dos carros, semelhante ao guidão de uma bicicleta. Iago destacou as correntes que fazem mover as rodas, “parece com as de moto, né?”. Cristiano: “ – Esse aqui é o freio de mão... Esse aqui é onde passa a marcha para o carro andar...” – descrevia ele, dando vida a uma voz quase inaudível na sala de aula. “ – Ele não tem o pedal do freio” –, constata Ander. É que pela imagem, não se vê os pedais. “ – Esse carro numa ladeira deve correr muito, né?” – me perguntou Iago. Expliquei-lhe que esses primeiros modelos faziam em média 14 e 15 Km/h, conforme informava uma nota na revista.
Conforme Kramer (1999), a formação do leitor, em sua complexidade, faz-se nas práticas de leitura, na relação com os materiais simbólicos impressos, que suscitam o desejo de ler. As revistas sobre os automóveis despertaram curiosidades, motivando-os à leitura e à interlocução. O conhecimento, mais uma vez, a intensificar as relações interdiscursivas, dando a ver interesses, envolvimento, disposição, confiança.
Quadrinhos
Em outra ocasião, lembro-me que a professora Iracy levou-me uma coleção de livros didáticos de 5ª a 8ª série (do ensino regular), para que eu selecionasse textos narrativos e poéticos para trabalhar com a turma. Ao entrarmos na sala, deixei-os sobre o balcão lateral. Imediatamente, Renato, ao ver os livros, levantou-se de sua carteira e foi folheá-los. “ – Quer ler?” – lhe perguntei, observando a sua curiosidade. Pegou um e sentou-se na sua carteira e passou a ler. E depois pegou mais outro, antes de iniciarmos a aula. Esses livros, nas bordas, à direita, traziam histórias em quadrinhos, em pequenas tirinhas. Lúcia, Edinéia, em igual movimento, pegaram do balcão, os outros volumes, seguindo o exemplo de Renato.
Eu acabara de fazer mais uma descoberta sobre indícios de preferência de leitura daqueles/as alunos/as. Voltei ao “Sebo”, no dia seguinte, onde havia visto muitas revistas usadas, a preços quase que simbólicos, e comprei alguns pacotes, com vários exemplares diversificados: Mônica, Chico Bento, Pateta, Mickey etc.
Na aula seguinte, foi em afetos de alegria que meninos, meninas e adultos receberam as revistas em quadrinho. E, enquanto aguardávamos a turma completar-se em seu todo, as revistas passavam de mão em mão, com um e outro, uma e outra, disputando aquelas de sua preferência. Pelas reações – afetivo-volitivas, cognitivas – fui descobrindo caminhos para seguir com eles, intensificando o processo de leitura, suscitando o desejo e a vontade de ler, sem imposições e obrigatoriedade. Quer dizer, pelas pistas que foram emergindo nas nossas relações intersubjetivas, fui instaurando, junto com eles/elas e por eles/elas, novas possibilidades para a turma como um todo se experimentar, em diferentes formas de linguagem e material simbólico, assumindo a leitura como uma prática social e cultural.
Na continuidade, nos encontros seguintes, além de revistas em quadrinho, passei a levar, também, revistas de diversos conteúdos, de ótima qualidade, para adultos, informativas, femininas etc. Material diversificado que atendia ao interesse de jovens e adultos. E, ressalto que a professora não ficava fora desse movimento: não deixava de escolher também aquelas revistas que lhes interessavam.
Acho interessante destacar que, a partir dessa atitude de escuta e atenção aos indícios que revelavam o interesse dos/as alunos/as, o funcionamento da leitura na sala de aula foi se ampliando. A poesia se constituiu, assim, numa espécie de disparador de outros percursos de leitura, abrindo caminho para a vivência de diferentes práticas. Das poesias, fomos aos dicionários, que, por sua vez, suscitaram outras curiosidades, levando-nos às revistas sobre a história dos automóveis; o interesse pelos livros didáticos e as estorinhas neles contidas nos levaram a disponibilizar para leitura gibis e outras revistas de conteúdo informativo, adulto, feminino etc. A prática de leitura seguiu, então, um itinerário que se abria ao investimento do leitor em diferentes e diversificados produtos simbólicos.
A intenção inicial de provocar a exposição direta, intensiva, da classe a materiais escritos diversificados, explorando, assim, as várias funções da linguagem, foi ganhando forma e consistência a cada encontro, modulada e sustentada pela receptividade e envolvimento dos/as alunos/as. Suas manifestações afetivas nos afetaram como profissionais, mobilizando-nos (eu e a professora Iracy), de modo mais intenso, em direção a objetivos a que nos propuséramos.
Se pudermos extrair algum ensinamento do que estou narrando aqui, este deve ser o da valorização do trabalho de escuta dos dizeres e da atenção aos arranjos afetivos e cognitivos por meio dos quais os alunos se aproximam e se relacionam com o conhecimento, acolhendo os sentidos que produzem e os sentimentos que expressam, de forma a intensificá-los, a inseri-los mais plena e amplamente na diversidade cultural.
Por certo, fazendo e refazendo descobertas, procurando no texto e no contexto de sua história social respostas e sentidos a seus desejos e curiosidades, a leitura, então, abre-se ao sujeito-leitor com a promessa de preenchê-lo em sua incompletude, em suas limitações. Então, a leitura funciona em espiral, em redemoinho, abrindo-nos novas trincheiras, descortinando novas possibilidades de experiência existencial, seduzindo-nos, assim, a mergulhar incontinente nesse movimento dialético de nosso acabamento, que é sempre inacabamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A afetividade que se indicia nos episódios, acima, é aquela que se dá a ver nas relações de ensino e aprendizagem, manifestando-se nas atitudes e comportamentos dos sujeitos – alunos/alunas, professores/professoras – na relação que estabelecem com o conhecimento escolares, revelando prazer, aceitação, envolvimento e também atitudes de recusa, de indiferença às relações pedagógicas, enunciadas em diferentes formas de linguagem. Nesta narrativa, no entanto, observamos o deslocamento do/da leitor/a em direção aos acontecimentos de leitura, de forma intensa e envolvente: a leitura como provocação ao prazer de ler nos atos de aprender a Ser.
Observa-se nos acontecimentos narrados o envolvimento com os objetos simbólicos, mobilizando diferentes funções e estados psíquicos, como interesse intelectual, emoções e afetos, se inter-relacionando e mobilizando as ações de aprendizagem.
Atenção, imaginação, curiosidade, perguntas, admiração, cuidado, esmero, preocupação em fazer as atividades, evidenciando que o prazer é possível nas práticas de apropriação do conhecimento, isto quando o intelectual, a emoção e a afetividade se unem em sua indissociabilidade. Certamente porque os atos do aprender não se resumem a um procedimento cognitivo. Logo, o sujeito não é só cognição, mas emoção e afetos, os quais se fazem presentes nas relações didáticas.
Por fim, a prática de leitura vivenciada indicia uma concepção de linguagem como processo de significação e de compreensão do mundo, da realidade e da vida e de constituição crítica da consciência e do agir humano.