INTRODUÇÃO
Entre as políticas educacionais brasileiras, nas últimas três décadas, é perceptível o lugar de centralidade que o professor e, por conseguinte, o processo de sua formação, passam a assumir na promoção ou na garantia da qualidade da educação. A centralidade da formação de professores nas políticas e debates nacionais teve como marco legal a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 30 de dezembro de 1996, que prescreve a exigência de formação em nível superior e a previsão de uma política nacional de formação e valorização dos profissionais da educação, prenunciada desde a Constituição Federal (CF) de 1988. Após a redemocratização, e com a expansão do acesso à escola pública, aumentou a necessidade de um contingente de professores para atender à demanda crescente por educação escolar.
Tendo em vista o estabelecimento de uma política nacional de formação de professores, destaca-se a promulgação do Decreto nº 6.775, de 29 de janeiro de 2009, que instituiu a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério. E, consonante à finalidade de implantação da política nacional de Formação dos Profissionais do Magistério, no ano de 2017, houve o lançamento da Política Nacional de Formação de Professores, pautada essencialmente pelo Programa Residência Pedagógica, instituído pela Portaria nº 38, de 28 de fevereiro de 2018, editada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Em linhas gerais, o objetivo do Programa é a criação e reformulação de estágios em docência, visando elevar a qualidade da formação inicial. Nesse sentido, o estágio curricular assume importante papel na construção de experiências docentes na formação inicial. Enquanto componente curricular obrigatório nos cursos de formação inicial de professores, o estágio constitui a ligação entre as duas instâncias formadoras, qual sejam, a universidade e a escola de educação básica (LÜDKE, 2015).
Em contraponto, pode-se observar o estágio ainda como um dos pontos nevrálgicos desta formação inicial docente, uma vez que há, especialmente neste componente curricular, significativa distância/não correspondência entre o inicialmente objetivado e o efetivamente cumprido, ainda que seja considerado um dos componentes curriculares que melhor possibilitam a integração entre as dimensões teoria-prática. Nesse sentido, Barreto (2015) adverte que o estágio não tem cumprido com seu propósito de inserir efetivamente o aluno no campo profissional. Gatti (2015, p. 238) corrobora essa opinião, afirmando que “[...] os estágios, na maioria das instituições de ensino superior, carecem de um projeto que oriente a atividade dos licenciandos-estagiários”. Reforçam essa afirmação os indicativos de pesquisas realizadas acerca das maiores dificuldades observadas no desenvolvimento de estágios (CALDERANO, 2012, 2013a, 2013b; CYRINO; SOUZA NETO, 2013, 2015; GATTI; NUNES, 2009; GATTI et al., 2015; PIMENTA, 2012; PIMENTA; LIMA, 2012).
Dada a importância de discutir tal processo de formação docente, este artigo tem como objetivo evidenciar a concepção de estágio subentendida no Programa Bolsa Estágio Formação Docente (PBEFD), formulado e implementado pela Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (Sedu-ES), problematizando as atividades formativas previstas por este. Parte-se do pressuposto de que a concepção de estágio influencia significativamente o processo formativo destes futuros docentes por possibilitar (ou não) a integração teoria-prática. A discussão aqui trazida é recorte de um estudo desenvolvido no Doutorado em Educação que teve como objetivo geral analisar o referido Programa enquanto política estadual capixaba, voltada ao estágio não obrigatório na formação inicial de professores, problematizando suas potencialidades e lacunas para o desenvolvimento profissional docente, haja vista a integração teoria-prática.
Para isso, este artigo traz, na primeira seção, as premissas básicas e condições de ingresso do PBEFD; na segunda, suscita as concepções de estágio predominantes nas publicações acadêmicas encontradas por meio do mapeamento realizado para as análises; na terceira parte apresenta o percurso metodológico, ou seja, como foram feitas as análises das concepções de estágio subentendidas nesta política capixaba; e por fim, na quarta e última seção, são sintetizadas as concepções de estágio encontradas no referido Programa.
O PROGRAMA BOLSA ESTÁGIO FORMAÇÃO DOCENTE: PANORAMA GERAL DA POLÍTICA CAPIXABA
O Programa em estudo foi criado pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu-ES), na gestão de Governo de Paulo Hartung, por meio do Decreto nº 2.563-R, de 11 de agosto de 2010. No período de 2012 a 2017, ofereceu 2.168 bolsas remuneradas de estágio não obrigatório aos discentes de licenciaturas de IES públicas e privadas do Espírito Santo, de modo que estes atuassem como estagiários em escolas públicas da rede estadual do estado. Cabe esclarecer que houve um intervalo de tempo entre a criação e a assinatura dos primeiros contratos, ocorrida em 2012. Neste meio, a Sedu-ES elaborou o Projeto de Implantação do Programa, assinado em outubro de 2011, que contém orientações operacionais da proposta. Em outubro de 2014, a Portaria n. 157-R atualiza o Decreto de criação, detalhando a execução do Programa e, incorporando, ainda, elementos do Projeto de Implantação deste. Estes são basicamente os três documentos legais relativos ao PBEFD analisados neste estudo.
Para criação do Programa, o governo do Estado considerou o disposto na Lei Federal de Estágio, nº 11.788/2008; no Decreto nº 2299-R/2009 que regulamenta o estágio no âmbito do Poder Executivo Estadual, e no Parecer CNE/CP nº 9/2001 que trata das Diretrizes Curriculares para a Formação Docente, conforme disposto no Decreto de Criação (ESPÍRITO SANTO, 2010). A análise dos documentos que instituem o Programa permitiu observar que suas orientações legais estão alinhadas aos conceitos mais amplos da política de formação inicial de professores. Ainda, neste documento, a criação do Programa é justificada pela relevância dos estudantes vivenciarem, na formação inicial, a vida escolar e da sala de aula enquanto estratégia integradora do momento do saber e do fazer pedagógico, e pela importância das escolas públicas de educação básica na formação de professores. Considera-se, ainda, os resultados de um estudo promovido pela Fundação Carlos Chagas e coordenado pelas professoras Bernardete Angelina Gatti e Marina Muniz Rossa Nunes, mediante solicitação da Sedu-ES. Tal estudo traz um diagnóstico, publicado em 2009, que indica problemas no currículo da formação inicial de professores, a partir da análise de 58 propostas curriculares no estado do ES, abrangendo os cursos de Letras (7), Matemática (8), Ciências Biológicas (9) e Pedagogia (34). Entre os problemas levantados pela análise dos referidos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) de IES públicas e privadas feita pelas autoras, pode ser ressaltada a fragilidade das propostas de estágio, em especial a imprecisão de seus objetivos e ementas, assim como a ausência de atividades didático-pedagógicas advindas da sua realização.
No viés político, chama atenção este Programa pelo seu caráter de política de Estado, e não de Governo, já que possui duração de nove anos1 e perpassou por governos diferentes. Criado na gestão de Paulo Hartung, entre os anos de 2007 a 2010, o PBEFD foi continuado na gestão de Renato Casagrande nos anos de 2011 a 2014, e permaneceu na gestão de Paulo Hartung no governo do ES, entre 2015 e 2018. Com isso, o Programa foi operado por equipes técnicas da Sedu-ES diferentes, que em nenhum momento optaram pelo seu cancelamento, o que indica que este programa tem importância estratégica para a educação do ES. Somado a isso, destaca-se a influência que um grupo empresariado, chamado “Espírito Santo em Ação”, exerce no Estado. As análises de Rainha (2012) mostram que o governo Paulo Hartung elaborou o Plano de Desenvolvimento Espírito Santo 2025 sob a decisiva participação deste grupo no processo de formulação das políticas públicas deste período. Ainda, no contexto da criação do Programa, Gatti, Barreto e André (2011), enquanto analisando propostas de formação inicial docente, o consideraram como uma iniciativa importante, uma vez que, nesta época, o PBEFD era uma das poucas políticas desenvolvidas com o objetivo de aperfeiçoamento do estágio nos cursos de licenciaturas.
Conforme o artigo 3º do Decreto de criação do PBEFD, ele tem a
finalidade de contribuir para a formação profissional dos futuros professores, estreitando as relações entre teoria e prática, de modo a associar os conhecimentos do conteúdo com os conhecimentos didáticos e metodológicos, necessários à educação básica” (ESPÍRITO SANTO, 2010).
O Programa se destina aos estudantes de licenciatura que estejam, pelo menos, no 4º período do curso, abrangendo todo o Estado. Para participar deste, conforme o artigo 9º do Decreto de Atualização, o estudante deverá residir no estado do Espírito Santo, estar matriculado e ter frequência em curso de licenciatura em IES conveniada à Sedu-ES , ter disponibilidade de tempo para cumprir a carga horária do estágio (prevista no máximo em 20 horas semanais), não ser beneficiário com bolsa de outro programa do governo estadual; formalizar a adesão ao estágio via termo de compromisso; e ter sido aprovado e classificado no processo de seleção (ESPÍRITO SANTO, 2014).
Quanto ao processo de seleção dos estagiários, a Sedu-ES prevê nos documentos do Programa um agente integrador, o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), que operacionaliza o processo seletivo dos estudantes, conforme indicação da legislação federal do estágio (BRASIL, 2008). Segundo entrevistas realizadas com gestores da Secretaria e do próprio CIEE, a escolha deste agente integrador foi realizada via processo de licitação, e desde o início do Programa ele é o agente contemplado. O artigo 11 do Decreto de atualização do Programa prescreve quais são os critérios para essa seleção, previstos em edital. Destaca-se a exigência pelo coeficiente de rendimento acumulado do estudante no último período do curso de licenciatura ou último ano concluído: deve corresponder a um mínimo de 60% de aproveitamento (ESPÍRITO SANTO, 2014). A partir desta seleção e conferência dos documentos exigidos no ato da inscrição do estudante, o CIEE, junto à Sedu-ES, divulga uma classificação por ordem crescente de pontuação. Em caso de empate, a vaga é destinada ao estudante que estiver no período mais avançado do curso de licenciatura; aquele que tiver cumprido o estágio obrigatório e o de maior idade, nesta ordem. Os estudantes são chamados, mediante classificação, conforme o quantitativo de vagas oferecidas por escola da rede pública estadual.
A duração dos contratos de estágio também é prevista nos documentos legais deste Programa e está de acordo ao disposto na Lei Federal (BRASIL, 2008). O período máximo é de dois anos por unidade concedente (escolas campo), firmado por termo de compromisso, podendo ser rescindido por qualquer um dos envolvidos (estagiário, escola campo e Sedu-ES/CIEE). Conforme os documentos legais que subsidiam o Programa, em especial o decreto de criação (ESPÍRITO SANTO, 2010) o termo de compromisso deverá conter, basicamente: identificação e assinatura do estagiário e das instituições envolvidas, especificando a licenciatura e período escolar do estagiário; menção ao fato que o estágio não acarreta vínculo empregatício; valor mensal da bolsa; carga horária diária e semanal; duração do estágio, sendo mínimo de 6 meses e máximo de 24 meses; obrigação em cumprir as normas do estágio e preservar o sigilo de informações e a ética profissional e elementos do contrato didático assinado. O contrato didático é o documento que determina os afazeres cotidianos dos estudantes nas escolas campo. Segundo as orientações do Programa, tal contrato deve ser elaborado, em conjunto, pelo pedagogo tutor na escola, pelo estagiário e pelo professor que acompanhará o estágio remunerado na escola. Observa-se, por meio desta determinação, que a IES não participa desta parte do processo.
Quanto ao valor da bolsa, a técnica responsável pela gestão financeira do Programa na Sedu-ES confirmou que, até março de 2014, o valor era de R$545,882; a partir de abril/2014 a quantia foi reajustada para R$570,43 e é vigente até os últimos contratos mapeados para este estudo em questão. Acrescido a este valor, há também um auxílio com o transporte. Desde então o valor da bolsa não aumentou, pois, segundo a entrevistada, o reajuste acompanha o do servidor público, que também não o recebeu. Dos dados expostos, cabe ressaltar que é considerável o investimento financeiro da Secretaria de Educação no Programa: são aproximadamente R$ 1.250.285,94, considerando as 2.168 bolsas oferecidas no período de 2012 a 2017. Além disso, destaca-se a repercussão que o PBEFD tende a produzir nos cursos de licenciatura das IES no Estado, pois, ao propor melhoria dessa formação inicial mediante os estágios, mesmo que não obrigatórios, há um estreitamento da relação entre teoria-prática, possibilitada a partir do contato com as realidades escolares.
As concepções de estágio presentes nas publicações acadêmicas: mapeamento de 2010 a 2019
Para construção do referencial teórico que embasou as análises foram mapeados periódicos e eventos reconhecidos em cenário nacional utilizando os descritores ‘estágio’, ‘estagiários’ e ‘estágio supervisionado’, considerando o período de 2010 a 2019. A justificativa para o ano de 2010 ter sido o ponto de partida foi o fato de que neste ano houve a promulgação do Decreto que criou o PBEFD no estado do Espírito Santo. O limite final do período em 2019 deveu-se ao fato de ter sido esse o ano da defesa da tese que embasa as discussões trazidas neste artigo. Compondo este mapeamento, foram consultadas, por meio da leitura dos títulos e resumos, as publicações nos encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), bem como em sete periódicos bem avaliados no cenário nacional pela CAPES3. De um total de 4.213 trabalhos publicados nas referidas fontes, 35 (0,8%) discutem o estágio na formação inicial de professores, na modalidade obrigatória. No tocante ao estágio não obrigatório, nenhuma publicação foi encontrada neste levantamento. Essa constatação também foi trazida no mapeamento realizado por Paiva e Costa (2017, p. 117-118) ao afirmarem que
[...] essa obscuridade, presente no tratamento dado ao estágio não obrigatório, emerge tanto na ausência de um arcabouço teórico que aborde o tema, como na distinção entre este e o estágio curricular, nas instituições de formação de professores, ou mesmo nos espaços nos quais o estágio acontece, em particular, nos espaços escolares.
Cabe esclarecer que, em razão da dificuldade em encontrar referencial teórico para as análises a serem empreendidas neste trabalho, optou-se pela aproximação às discussões acerca do estágio obrigatório. Para tanto, foi observada a ressalva feita por Gomes (2015) de que, apesar de terem naturezas diferentes, os estágios, obrigatório e não obrigatório, possuem a função de aproximar os estudantes de licenciaturas da realidade profissional das escolas. Os estágios também fornecem elementos importantes para a aprendizagem profissional dos conhecimentos relativos à docência: são vistos como ato educativo do percurso da formação inicial docente, independente da modalidade (obrigatória ou não), resguardando suas especificidades.
A partir da seleção inicial por meio da leitura de títulos e resumos, as 35 publicações selecionadas foram lidas na íntegra e organizadas em categorias, conforme o gráfico abaixo:
Para o recorte proposto neste artigo, a categoria concepção de estágio contou com sete publicações (20%) do total dos 35 relacionadas ao estágio. De modo geral, estas publicações refletem sobre a concepção de estágio na legislação, o histórico dessa modalidade na formação de professores, o cenário acadêmico e ainda essa concepção na visão dos sujeitos envolvidos no processo de desenvolvimento do estágio (BACELOS, MANSO, 2010; MARRAN, 2011; MILANESI, 2012; CALDERANO, 2013b; RODRIGUES, 2013; JOAQUIM, VILAS BOAS, CARRIERI, 2013; COLOMBO, BALLÃO, 2014; BENITES, SARTI, SOUZA NETO, 2015).
A concepção vigente na Lei n. 11.788/2008 descreve o estágio como ato educativo supervisionado. Isso pressupõe entender que esta atividade, enquanto componente de integração teoria-prática que contribui para o desenvolvimento profissional, deve ser acompanhada, em ambas as modalidades. A legislação federal estatui também que o estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando. E, ainda, dispõe que o estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho (BRASIL, 2008).
Marran (2011), Colombo e Ballão (2014), ao trazerem reflexões e as legislações sobre o estágio obrigatório, possibilitam que compreendamos a concepção desse componente curricular da/na formação de professores em cada período histórico. Na década de 1940, houve as primeiras tentativas legais de regulamentação do estágio no Brasil, sendo este definido como um período de trabalho a ser realizado pelo estudante em alguma indústria, haja vista ser o centro de interesse político e econômico da época. Contudo, essa concepção de estágio, que prevalece até a década de 1980, basicamente, contribui para reforçar o caráter de mão de obra barata para as indústrias e empresas em expansão no período. Poucos foram os avanços no sentido de superar essa concepção. Nessa perspectiva, tem-se uma compreensão de prática do estágio como recebimento de bolsa, de auxílio financeiro como meio de garantir uma remuneração, mas dissociado de um projeto de formação mais amplo da profissão, seja em qualquer nível (médio, técnico, superior) ou campo de conhecimento (administração, educação, engenharia, medicina, etc.).
Além disso, o sentido de prática atribuído à formação de professores nesse período era o que imitava os modelos teóricos existentes: significava aprendizagem de ofícios, e assim persistia a lógica do estágio obrigatório como imitação de modelos, como define Pimenta (2012). Para Andrade e Resende (2010), essa configuração mostra o estágio como a representação da prática, e a didática como da teoria, mantendo a dissociação teoria e prática. Colombo e Ballão (2014) complementam que dos anos de 1940 aos anos 2000 não houve dispositivos legais suficientes para que o estágio fosse considerado, na execução, um componente de formação plena do estudante. Apesar da década de 1980 ter sido marcada por reivindicações dos educadores pelo reconhecimento da escola como espaço de práticas sociais e pelo redimensionamento dos currículos, inclusive as práticas de ensino e estágios, Colombo e Ballão (2014) advertem que, além de não haver uma supervisão e acompanhamento adequados, o estágio obrigatório não contava com nenhum documento que estabelecesse as obrigações entre as partes envolvidas. Nesse contexto, Rodrigues (2012) aponta como fragilidade dos estágios a compreensão dos mesmos como simples cumprimento de atividades administrativas e repetitivas, como por exemplo, o preenchimento de fichas e de documentos, funções, na maioria das vezes, sem conexão com a escola e a instituição formativa, ou seja, sem uma reflexão pedagógica. A concepção de estágio, neste caso, é a de mera ferramenta para cumprimento burocrático.
Os anos de 1990 foram profícuos nas discussões em termos de políticas educacionais e de formação de professores. Nesse contexto são encaminhadas reformas expressas legalmente, em especial pós LDB 9394/1996. No âmbito da formação de professores, reconhece-se a importância que esse parâmetro legal trouxe ao elevá-la ao nível superior. Essa legislação também trouxe mudanças estruturais nos cursos de formação de professores, exigindo que o currículo da formação docente contenha pelo menos 300 horas de prática de ensino. O instrumento prevê, ainda, a associação entre teorias e práticas como fundamento da formação docente, inclusive mediante capacitação em serviço (ANDRADE; RESENDE, 2010). Destas prerrogativas, o estágio, no caso o obrigatório, passa a representar um dos principais pontos de discussão das instituições formadoras, haja vista ser considerado como componente proveitoso para a formação e associação teórico-prática, o que se estendeu aos anos 2000. Nessa perspectiva, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores (DCNFP) de 2002 previam que o estágio obrigatório fosse a efetivação, sob a supervisão de um profissional experiente, da aprendizagem da docência, de modo que a prática transcendesse o momento específico do estágio. Esse contato com a realidade, portanto, deveria ser desenvolvido em momentos de observação e reflexão, a partir de situações contextualizadas e resoluções de problemas. Considerando esta legislação, o estágio obrigatório passa a ter a carga horária de 400 horas nos cursos de formação inicial de professores, depois do início da segunda metade destes. Esse período denota uma concepção de estágio que privilegia a inserção profissional na medida em que valoriza a escola como lócus de aprendizado da profissão, de modo que os estudantes estagiários terão oportunidade de conhecer a realidade de sua profissão a partir do contato inicial com a escola e/ou outra instituição educativa, observando como as práticas acontecem neste meio. Compreendido neste sentido, o estágio como espaço de inserção à constituição profissional pode indicar a certeza ou não da área de trabalho escolhida, sobre os pontos de tensão e os encaminhamentos do trabalho docente (MARRAN, 2011).
Quando o estágio não proporciona interação com a dinâmica de aprendizagem profissional em relação direta com o professor regente, se torna mera observação passiva da realidade (CALDERANO, 2013a). A literatura do campo vem denunciando o caráter pouco participativo, fragmentado, e impreciso das propostas de formação inicial e do estágio como componente curricular destas (GATTI; NUNES, 2009; GATTI; BARRETO, 2009; PIMENTA, 2012; PIMENTA; LIMA, 2012; CALDERANO, 2012, 2013a, 2013b). Para que a inserção no campo profissional não se torne uma compreensão de estágio como simples observação passiva, sem nenhuma reflexão pedagógica mais sistemática tendo em vista a formação profissional da docência, torna-se necessário que seja compreendido como momento que possibilita ao estudante um contato inicial com a prática pedagógica. Esta concepção é compreendida a partir de Calderano (2013a, 2013b), que categoriza o estágio obrigatório como o momento em que o professor da escola básica acompanha o estagiário e orienta-o pontualmente em suas atividades, mas exclusivamente delimitadas no tempo e espaço onde ocorre o estágio curricular. Não se compreende aqui uma reflexão sistemática entre o professor da escola, estagiário, e professor formador das instituições de ensino superior sobre as situações pedagógico-didáticas e relacionais que acontecem no contexto educativo.
A legislação de estágio vigente traz como objetivo “a preparação para o trabalho produtivo dos acadêmicos, visando o aprendizado de competências próprias da atividade profissional e a contextualização curricular” (MARRAN, 2011, p. 2). Ademais, a previsão do estágio deve constar no projeto pedagógico de curso e integrar todo o itinerário formativo dos estudantes. Do ponto de vista legal, portanto, o estágio, em ambas as modalidades, é entendido/concebido como ato educativo. Contudo, cabe ressaltar que a simples afirmação de que o estágio e as práticas de ensino são momentos privilegiados de articulação teoria-prática não se mostra suficiente para dar conta da realidade da educação e dos cursos de formação de professores. Muitos são os desafios ainda apresentados, conforme sinalizam estudos de Gatti e Nunes (2009); Gatti e Barreto (2009); Pimenta e Lima (2012); Rodrigues (2012); Calderano (2012, 2013a, 2013b). Mas, dentre estes obstáculos, deve ser ressaltada a limitação da concepção de estágio como prática crítica e reflexiva na dinâmica curricular da maioria dos cursos de formação inicial de professores ao localizar esse componente formativo nos períodos finais destes. Ainda, a separação do estágio, na maioria das propostas curriculares, em níveis de ensino (por exemplo nos cursos de Pedagogia, divididos em educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, educação especial, gestão). Além disso, a delimitação de momentos de observação, participação e regência indica que há falha em uma dimensão integrada dessa formação que exige uma prática realmente reflexiva e de construção contínua. Essas constatações denotam, com base em Leal (2013, 2014), uma racionalidade prática da formação pautada por um discurso que valoriza a prática, mas se limita a considerá-la sob o viés pragmático, ou seja, aplicação da teoria aprendida no curso de formação. Para Pimenta e Lima (2012), superar essa concepção implica considerar o estágio como momento da práxis, ou seja, reflexão-ação-reflexão. Desse modo, o conhecimento profissional da docência é construído a partir do saber/fazer, em que o ofício docente é aprendido de forma constante e cíclica na dinâmica de formação/atuação profissional, com a colaboração de todos. Rodrigues (2012) complementa que, como acontece no Canadá e Finlândia, por exemplo, as propostas de formação docente consideram que o futuro docente, no caso do PBEFD, o estagiário, deve conhecer o ambiente de formação desde o primeiro ano de ingresso no curso, perpassando todo o processo. Assim sendo, o estudante terá condições de assumir, gradativamente, as responsabilidades de sua futura profissão, sempre acompanhado de um professor supervisor experiente.
Pimenta e Lima (2012) indicam que, para a superação dessa separação entre teoria e prática, o estágio obrigatório, objeto de estudo das autoras, deve ser concebido como investigação da realidade, tendo a pesquisa enquanto método de formação dos estagiários, futuros professores, permitindo a ampliação e análise dos contextos nos quais se realiza o estágio. Nestas condições, os estagiários conseguiriam desenvolver postura crítica pautada por reflexões e questionamentos advindos de situações do contexto real de inserção do estágio. Os estagiários conseguiriam, ainda, elaborar projetos que possibilitem a compreensão e problematização das situações observadas e vivenciadas no campo, no cotidiano educativo. Cabe compreender o estágio, numa perspectiva interdisciplinar e de integração teoria-prática, a partir da investigação das práticas pedagógicas nas instituições educativas, gerando novos conhecimentos a esse futuro profissional. Essa concepção implica para além de uma instrumentalização técnica ou prática (no sentido de pragmática, imediatista) da formação docente, tanto a inicial quanto a continuada. Essa perspectiva se aproxima do que se denominou de “racionalidade crítico-reflexiva” (LEAL 2013, 2014). Nessa perspectiva, tendo em vista a transformação da realidade, o estágio passa a ser considerado como
[...] um espaço interdisciplinar de formação, com a finalidade de favorecer maior conhecimento da realidade profissional, através de um processo de estudo, análise, problematização, teorização, reflexão, proposição de alternativas, intervenção e redimensionamento da ação. É apresentado como um momento privilegiado de ação-reflexão-ação, prevendo um exercício profissional pleno, com a orientação de professores mais experientes e também como elemento integrador do currículo, que possibilite a unidade teoria-prática (ANDRADE; RESENDE, 2010, p. 244).
Para isso, Calderano (2013a, 2013b) defende uma compreensão de estágio enquanto docência compartilhada, sendo um espaço efetivo de construções conjuntas de saberes e fazeres. Sendo assim, se partilha o processo de formação e de trabalho docente, rompendo com a ideia de que a universidade é a única responsável pela formação profissional, ou que detém os saberes teóricos para o entendimento das necessidades práticas. Essa concepção ainda remete à necessidade de compartilhar todas as ações, bem como o acompanhamento efetivo das atividades desenvolvidas no estágio por parte dos formadores das instituições de ensino superior, dos professores das escolas de educação básica, dos estagiários, e de toda a equipe escolar. Assim sendo, passa-se a ter condições de pautar as vivências e os processos pedagógicos por reflexões sistemáticas, embasadas, críticas e que incidem na transformação da realidade educacional, tendo em vista a melhoria desta.
De modo geral, mediante as análises da legislação e das referidas publicações do mapeamento realizado que tratavam da categoria “concepção de estágio”, observou-se que houve certo avanço no entendimento legal do estágio de uma perspectiva mais tecnicista, burocrática, aplicacionista, atrelada ao setor laboral produtivo, para uma compreensão mais reflexiva, crítica, no sentido de contribuir para a formação profissional dos futuros docentes. Isso pôde ser constatado ao verificar a prescrição do estágio, em ambas as modalidades, enquanto ato educativo, ao longo do curso de formação inicial. Isso é de importância considerável para a constituição profissional ao propiciar o estudante o contato com a profissão, com os desafios desta e com a realidade escolar como um todo. Cabe ponderar acerca da influência, seja ela positiva ou negativa, que um estágio, nas duas modalidades, tende a exercer na formação docente, ressaltando a necessidade de se desenvolver atividades relevantes para essa construção profissional e, ainda, de se acompanhar de modo efetivo esse processo.
Percurso teórico-metodológico da análise realizada
Em análises de políticas ou programas educacionais, é necessário considerar que ocorre uma multiplicidade de jogos e disputas, como numa espécie de arena. Nesse sentido, como embasamento teórico-metodológico, foi adotada a concepção de “ciclo de políticas” formulada por Ball (2001). Em entrevista concedida aos pesquisadores Mainardes e Marcondes (2009), Ball esclarece que o ciclo de políticas é um método, um instrumento, uma forma para entender as políticas. Mainardes (2006; 2018) ainda reforça que esse referencial teórico-metodológico contribui para a análise da trajetória das políticas e propostas, uma vez que, permite vislumbrar parte da complexidade em que a política está envolta. No entanto, ainda esclarece que não se deve atribuir caráter estático a esse referencial, mas sim dinâmico e flexível. Dito isto, é possível entender, a partir de Ball (2001), como as políticas vão se configurando e movimentando-se dentro/entre os diferentes contextos e como elas vão se reconfigurando, nesta espécie de arena que envolve complexidade, lutas, disputas de interesses e atores diversos.
Nessa perspectiva, a abordagem qualitativa de pesquisa embasou este estudo, considerando que o objeto de análise é fenômeno social e complexo. Concorda-se com Minayo (2008) de que teoria e metodologia não podem ser separadas neste tipo de estudo, pois, além da pesquisa ser premissa básica da ciência, representa ainda uma atitude prático-teórica sucessiva de aproximação à realidade que nunca se esgota. Portanto, as análises realizadas foram a bibliográfica, a documental e a de conteúdo. Cabe ressaltar que a análise documental “[...] deve respeitar a pertinência aos objetivos inicialmente propostos, evitando-se tanto o alargamento exagerado da busca, quanto o seu estreitamento” (EVANGELISTA, 2012, p. 56). A análise documental foi realizada nos principais documentos do PBEFD: o Decreto de Criação (ESPÍRITO SANTO, 2010); o Projeto de Implantação, elaborado e assinado pela Sedu-ES, onde contém orientações operacionais (ESPÍRITO SANTO, 2011) e a Portaria de Atualização que designa a execução do Programa e atualiza o decreto de criação e incorpora elementos do projeto de implantação (ESPÍRITO SANTO, 2014). No âmbito da IES pesquisada, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), analisou-se as Resoluções do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo que regulamentam os estágios no âmbito da Ufes4, conforme critérios definidos pela Pró- Reitoria de Graduação (Prograd), bem como os contratos didáticos de estagiários, considerando a amostra da grande Vitória/ES, abarcando as superintendências Regionais de Educação (SRE) de Carapina, Vila Velha e Cariacica, pois abrangem as escolas da grande Vitória.
Com relação à pesquisa empírica, as entrevistas semiestruturadas foram escolhidas como instrumentos. Como técnica de interpretação dos dados utilizou-se a análise de conteúdo, que, para Franco (2007) e Bardin (2016), é um conjunto de procedimentos sistemáticos e objetivos que analisa a comunicação visando obter indicadores que possibilitem a inferência de conhecimentos relativos às mensagens obtidas. Foi com essa intenção que se optou por dar esse tratamento aos dados, a partir de roteiros das entrevistas semiestruturadas. Para seleção dos participantes, foi adotada a técnica snowball (bola de neve), apontada por Flick (2009, p. 113) como “[...] caminho para a seleção de entrevistados”. Estas entrevistas foram realizadas no ano de 2017. Foram selecionados: seis gestores da Sedu-ES diretamente envolvidos com o Programa desde sua criação, em 2010; dois gestores do Programa no CIEE junto à Secretaria; seis gestores da Ufes, lotados na Pró-Reitoria de Graduação e envolvidos diretamente com o Programa por cuidar dos trâmites legais relativos aos estágios obrigatórios e não obrigatórios na IES e, por fim, quatro formadores de professores responsáveis pelo estágio não obrigatório na Ufes, sendo dois do curso de Pedagogia, um de Letras e um do curso de Matemática. Cumpre esclarecer que estes entrevistados foram identificados com siglas e números, a fim de preservar suas identidades. A escolha da Ufes como campo de pesquisa se justifica por se tratar de renomada e única universidade federal do estado do ES. A análise de conteúdo foi seguida pelas categorias elencadas a partir da revisão bibliográfica, sendo: políticas de estágio ou de formação docente; papel dos atores na política; execução e metodologias de estágio; concepção de estágio, que se trata da categoria recortada para as discussões apresentadas neste artigo e a categoria outras, criada para agrupar excertos que não se enquadrassem em nenhuma das anteriores.
A(s) concepção(ões) de estágio subentendida (s) no PBEFD: delineando os resultados
No âmbito do Programa Bolsa Estágio Formação Docente, pôde ser observado que os preceitos de seus documentos legais estão alinhados aos conceitos mais amplos da política de formação inicial de professores. Segundo o texto introdutório do Decreto (ESPÍRITO SANTO, 2010), a criação do PBEFD considera a relevância dos estudantes vivenciarem a vida escolar e a de sala de aula como estratégia integradora do momento do saber e do fazer pedagógico. Considera também a importância das escolas públicas de educação básica na formação de professores, oferecendo-lhes oportunidade, via estágio, de atuação no cotidiano escolar. Pela análise documental dos contratos didáticos realizada, foi observado que os componentes deste coincidem com o previsto legalmente, tanto no decreto de criação do Programa (ESPÍRITO SANTO, 2010) quanto no decreto de atualização (ESPÍRITO SANTO, 2014). Para firmar o estágio, portanto, além da exigência do termo de compromisso, como disposto na legislação federal vigente (BRASIL, 2008), há o contrato didático que organiza as atividades a serem desenvolvidas neste.
Mediante análise, foi constatado que as atividades previstas neste contrato didático estão condizentes com os propósitos centrais do Programa. Pode-se afirmar que as aprendizagens que o PBEFD busca construir, pelo menos em termos prescritos, concordam com as propostas de formação pautadas pelo desenvolvimento profissional docente, que preveem o domínio de conhecimentos técnicos, pedagógicos, didáticos, culturais e de senso colaborativo (NÓVOA, 1995, 2012; IMBERNÓN, 2009, 2016; TARDIF, 2012).
As entrevistas realizadas, por sua vez, revelam, na percepção dos participantes, discrepância do que é proposto com o que é efetivamente cumprido, principalmente se considerarmos a falta de acompanhamento e o não cumprimento das atividades previstas em contrato didático, conforme excerto abaixo da fala de um dos gestores da Ufes entrevistado:
Olha, na verdade eu vejo que isso fica mais no plano do proposto, da teoria, porque pelas experiências que eu escutei, dos relatos, pelo pouco que eu conheço do programa isso de fato não está caminhando. As metodologias que estão sendo implantadas não estão caminhando para esses objetivos. [...] Percebi esse distanciamento e é uma falha tanto da universidade quanto da Sedu, acontece em ambas as partes. (Entrevista, GEUFES4).
Em concordância, afirma um dos formadores da Ufes entrevistado, como mostra excerto a seguir:
Eu acho importante e fico me perguntando se... essa é uma preocupação nossa no colegiado, esses alunos estão sendo utilizados como mão-de-obra barata. [...] Então, quando a coisa é feita, quando o contrato é assinado, quando as ações previstas são respeitadas, a formação para o aluno é natural. Quando aquele contrato é só uma maquiagem, essa é a sensação que eu tenho em alguns casos, aí não acontece a formação. (Entrevista, FORUFES3).
Ainda, evidencia-se, pelas entrevistas realizadas especialmente com os formadores de professores da Ufes, a falta de acompanhamento e interação entre os atores envolvidos na execução das atividades do estágio proposto, como enfatiza o excerto da fala do formador de Matemática desta IES ao afirmar que “a gente não tem nenhum controle desse estágio fora da universidade, não faz nenhum tipo de acompanhamento, não que eu saiba” (Entrevista, FORUFES4).
De modo geral, observou-se que a Sedu-ES, como ator institucional responsável pela criação e implantação da proposta no Estado, tende a “defender” os objetivos preestabelecidos nos documentos do Programa, especialmente o que se destina a contribuir para a formação profissional dos estagiários, futuros docentes, conforme trecho de entrevista realizada com gestor da secretaria:
[...] propiciar que o estagiário esteja dentro da escola participando ativamente de todas as orientações. A formação dele se dá através de uma metodologia e uma didática, inseridas nas práticas da escola e orientando a sempre perguntar e tentar aprender e não estar lá aprendendo por osmose, mas aprendendo por compreensão e entendimento [...] pois assim vai acontecer aprendizado daquilo que a gente quer, a associação entre teoria-prática. (Entrevista, GESEDU6).
Em consonância, nas falas de entrevistados na própria Sedu-ES há o reconhecimento de que realmente não houve momentos sistemáticos de avaliação destas ações no sentido de monitorar como elas vem se desenvolvendo no Programa. Portanto, as análises realizadas permitiram inferir sobre a(s) concepção(ões) de estágio presente(s) no PBEFD. Cabe assinalar que as concepções de estágio encontradas, no entendimento do estudo realizado, não são excludentes, ou seja, numa mesma proposta, como a do Programa em análise, pode ser encontrada mais de uma concepção.
A amplitude com que são previstos os objetivos prescritos do PBEFD, especialmente pelas atividades indicadas no contrato didático se aproximam a uma concepção de estágio mais crítica, reflexiva, ou, como Calderano (2013a; 2013b) classifica em “estágio como momento da práxis”. Isso pressupõe dois aspectos básicos: pesquisa como método de formação dos futuros professores e investigação da realidade, bem como docência compartilhada, que requer espaço efetivo de construções conjuntas de saberes/fazeres. Entretanto, as falas acima destacadas, e as análises realizadas denunciam a falta de atrelamento às IES o desenvolvimento das atividades propostas. Esse ponto é uma fragilidade considerável do Programa analisado, haja vista que, para ser uma proposta que supere a dicotomia teoria-prática, como expressa seu objetivo central, as atividades desenvolvidas no estágio precisam ser pautadas e acompanhadas mediante integração entre a escola campo, a Sedu-ES e a Ufes, compondo o que Foerste (2005) chama de “parceria colaborativa”.
Ao ser ressaltada a importância financeira do Programa, pelos entrevistados tanto da Sedu-ES quanto da Ufes, aparece a concepção de estágio enquanto recebimento de bolsa. Desta concepção a ênfase é na remuneração como principal fator de contribuição do PBEFD à formação inicial. Não deixa de ser pertinente essa característica marcante do Programa haja vista ofertar estágio não obrigatório remunerado, e, ainda, colaborar na renda dos cursistas das licenciaturas, especialmente. Por isso, importa destacar a relevância de propostas como essa no curso de formação inicial, tendo em vista o estímulo às funções laborais que se voltem para a docência. A preocupação que decorre deste ponto, como problematiza Colombo e Ballão (2014), é a de representar mão de obra de baixo custo, atendendo exclusivamente aos interesses empresariais.
Outra concepção de estágio que apareceu subentendida nas falas dos entrevistados, de modo geral, acerca de sua compreensão do Programa cotejadas com a finalidade expressa nos documentos legais deste, é a “inserção profissional”, em que as atividades desenvolvidas no estágio do PBEFD valorizam o contexto prático, onde a escola aparece como lócus essencial à constituição da profissionalidade (TARDIF, 2012; NOVOA, 2015).
Também foi identificada como concepção de estágio, a partir especialmente das falas dos gestores da Sedu-ES, aquela em que o estágio é visto como “contato inicial com a prática pedagógica” (CALDERANO, 2013a). Pelas falas deste grupo de entrevistados foi observada a pertinência de os estagiários vivenciarem a realidade profissional. Por outro lado, os estudos do campo indicam, no caso do estágio obrigatório, que essa concepção pode se apresentar limitada, pois nesta há uma orientação pontual do professor ao estagiário, situada no tempo previsto no estágio; não há reflexão sistemática entre professor da escola, estagiário e professor formador da IES (CALDERANO, 2013b). Entende-se que, se a interação entre todos os atores institucionais do Programa é falha, logo, não existe a possibilidade de desenvolver a reflexão sistemática das atividades desenvolvidas, necessária ao desenvolvimento profissional (NÓVOA, 1995, 2015; IMBERNÓN, 2016).
Um dos formadores entrevistado, vinculado ao curso de Letras, quando perguntado sobre o acompanhamento das atividades desenvolvidas no Programa responde que se considera um “assinador de contratos e relatórios” (Entrevista, FORUFES3). Esse trecho, condizente com falas de outros formadores entrevistados, denota outra concepção de estágio subentendida no PBEFD, que é a de “cumprimento burocrático” (CALDERANO, 2013a), expressa pela assinatura de documentos, relatórios, folhas de frequência, dentre outros.
Desse modo, o Programa Bolsa Estágio acaba, na prática, sob a ótica das análises de conteúdo das entrevistas realizadas, não correspondendo integralmente ao seu objetivo central, como previsto em documentos, que é promover integração teoria-prática como forma de melhorar a formação inicial docente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observou-se que as atividades prescritas no contrato didático do PBEFD são amplas e abrangem desde o planejamento docente às atividades fora de sala de aula, como participação em reuniões de pais e reflexões sobre a profissão docente, o que colabora para a constituição da profissionalidade docente. Contudo, ao não possibilitar um acompanhamento efetivo por parte dos formadores envolvidos (estagiários, gestores, professores das escolas e das IES), a dinâmica de operacionalização do Programa fragiliza esse potencial para a formação docente pautada pelo desenvolvimento profissional.
De modo mais amplo, importa considerar que pensar o estágio, bem como propostas políticas voltadas a esse componente na formação inicial de professores, pautado pelo desenvolvimento profissional docente, traz à tona a necessidade de desenvolver, de forma articulada, políticas de formação e de valorização docente. Especificamente, ressalta-se a importância do desenvolvimento de propostas como o PBEFD por possibilitar essa valorização e inserção profissional, que tende a propiciar o aprendizado do contexto real da docência. Contudo, enfatiza-se a necessidade de um acompanhamento sistemático e reflexivo destas vivências, o que denota a principal fragilidade do Programa analisado, ao não envolver a Ufes ativamente neste processo. Soma-se a esta fragilidade uma concepção de estágio que perpassa o Programa que é a de cumprimento burocrático em detrimento de uma efetiva reflexão sistematizada sobre a vivência proporcionada pelo estágio do Programa. Por fim, a análise empreendida acerca do PBEFD, em nível micro, se aproxima dos problemas próprios das licenciaturas, em nível macro. Nesse sentido, compreende-se, como Fonseca (1999), que “cada caso não é um caso”, tendo em vista que, as discussões aqui apresentadas trazem influências de um contexto mais amplo vivido pelas licenciaturas. Destaca-se o afastamento crônico da universidade em relação às escolas de educação básica, o que é agravado pelo tempo da escola campo ser diferente do tempo acadêmico/calendário da formação proposta pela IES. Ainda, importa situar o desprestígio pelo qual passam as licenciaturas no país, refletindo no baixo interesse de ingresso de estudantes do ensino médio nestes cursos, alguns com índices mais críticos. Desse modo, se na análise deste Programa observou-se as mesmas fragilidades do contexto macro das licenciaturas e se a implementação de propostas que articulem teoria-prática na formação docente é frágil, é provável que isso ocorra em outras propostas, considerando que o dilema da integração teoria-prática persiste na formação de professores.
As discussões acerca da análise do Programa, aqui trazidas, apresentam particularidades que servem para influenciar novas propostas, tendo em vista a melhoria da formação docente. Torna-se necessário resgatar o processo formativo proporcionado pelo estágio atrelado à pesquisa como princípio educativo (VEIGA, 2009; DEMO, 2011; PIMENTA, LIMA, 2012). O que requer melhorar infraestrutura e recursos necessários a um bom acompanhamento do processo vivenciado nos estágios e na formação, de modo geral. Também inclui a necessidade em atribuir maior importância às atividades de ensino no âmbito das universidades, especialmente. E ainda, ressignificar as culturas profissionais existentes no campo educacional e da formação de professores, proporcionando momentos coletivos de trocas de experiências e debates sobre a educação, as escolas e os sujeitos que interagem nestas realidades, que são situadas e contextualizadas. Isso tudo implica repensar práticas cristalizadas; incentivar as boas ações existentes na educação; importa a nós, educadores e formadores de professores, garantir a constituição do senso de coletividade nos profissionais da educação, rompendo com práticas individualistas e restritas a julgamentos pessoais, dentre outras. Implica conceber, efetivamente, a “comunidade de prática formativa” (IMBERNÓN, 2016).