Em pesquisa para a escrita de tese de doutoramento em Educação, discute-se a formação prescrita do músico popular trazida por textos/documentos curriculares do ensino superior em Música, Bacharelado e/ou Licenciatura, que implica redimensionar a institucionalização da música e do músico popular.
Para tanto, ancora-se nos pressupostos da teoria crítica do currículo (APPLE, 2006, 2010) – por operar com conceitos, que entendemos fundamentais, para o debate/discussão acerca dos processos de seleção, organização e distribuição de conhecimentos, isto é, "ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto, resistência" (SILVA, 2017, p. 17) – e da teoria das estruturas sociais – por fundamentar a busca na interação entre os agentes (indivíduos e grupos) e as instituições para encontrar uma estrutura historicizada que se impõe sobre os pensamentos e as ações (BOURDIEU, 2007, 2019).
Nos limites deste texto, incursionamos pelo exercício de estado do conhecimento, já desenvolvido na área da Música por Fernandes (2006, 2007), Sobreira (2012), Galizia e Lima (2014), na perspectiva de apropriação do conhecimento acumulado acerca das questões trazidas, ainda que superficiais, por análises dos textos/documentos curriculares eleitos, orientadas pelo ensino, pela música popular e pelo músico popular. Tais questões servem, aqui, para um processo de investigação limitado a produtos acadêmicos, teses e dissertações, como uma etapa de análise e discussão dos objetos, enfoques e perspectivas aproximadas de nosso estudo.
Para realizar o processo de levantamento de dados, buscamos por relatórios de teses e dissertações na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD)1, não orientados por recorte temporal, mas, pelos descritores "currículo", "música", "ensino superior", "curso de música", "formação do músico" e "popular", resultando em 46 relatórios, sendo 36 dissertações e 10 teses (tabela 1).
DESCRITORES | Música | Educação | Outro | Total por DESCRITOR |
---|---|---|---|---|
a) "currículo", "música" e "ensino superior" | 13 | 7 | 5 | 25 |
b) "currículo" e "curso de música" | 3 | 6 | - | 9 |
c) "formação do músico" e "popular" | 8 | 1 | 3 | 12 |
Total por ÁREA | 24 | 14 | 8 | 46 |
Fonte: elaborado pelas autoras com base em busca no site http://bdtd.ibict.br/ (2020).
A partir dessa seleção, iniciamos as análises com uma etapa de refinamento deste primeiro resultado, pois alguns dos relatórios apresentavam temas desconectados das áreas de Música e/ou Educação.
Tal refinamento levou à exclusão de oito relatórios, pertencentes a outras áreas do conhecimento, restando um total de 38 produtos para análise – 28 dissertações e 10 teses. Antes de prosseguirmos para um processo analítico mais detalhado, destacamos algumas constatações quantitativas relevantes, por representarem as relações entre os descritores utilizados e os resultados encontrados.
ANÁLISES PRELIMINARES: CATEGORIZAÇÃO DE OBJETOS E ENFOQUES
Boa parte dos relatórios se concentra na região Nordeste (15); nove na região Sudeste, oito na Centro-Oeste, seis na Sul e nenhum na região Norte. Esta distribuição é interessante por ir de encontro à costumeira centralização de produções nas regiões Sul e Sudeste. Pereira (2013a), por exemplo, apresenta um estado do conhecimento a respeito do ensino superior em música, em que utilizou os descritores "ensino superior", "música", "currículo" e também "sociologia", "licenciatura" e "conservatório". O autor aponta que a quase totalidade dos relatórios encontrados havia sido produzida nas regiões Sul e Sudeste, e apenas alguns itens no Nordeste.
Como veremos a seguir, este contraste provavelmente se deve ao fato de que as produções nas regiões Nordeste e Centro-Oeste, a respeito destes assuntos, são recentes, e boa parte delas aborda aspectos da formação musical ligados à prática instrumental e, também, à música popular. Portanto, menos vinculados à Licenciatura e ao conservatório.
Registra-se que o ensino superior, como lócus de pesquisa, figura em 28 relatórios. Os demais localizam seus objetos em outros contextos, como a educação básica, escolas de música, bandas ou espaços informais de prática musical. A discussão do Curso de Música no ensino superior organiza-se em 26 trabalhos, sendo 20 sobre Licenciatura e apenas seis sobre Bacharelado. A música popular figura, em alguma medida, em 12 relatórios.
Este mapeamento inicial permite a identificação de certas similaridades entre os assuntos abordados, os quais encontram-se agrupados nas seguintes categorias: (a) formação de professores de música, (b) currículo, (c) formação de músicos práticos2, (d) processos de ensino/aprendizagem, (e) estudos sobre práticas docentes e (f) estudos sobre disciplinas específicas do ensino superior. Vale registrar que tanto a categoria (d) quanto a categoria (e) incluem aspectos ligados ao ensino e aprendizagem de música. Contudo, na categoria (d) estão listadas pesquisas que tratam das práticas docentes apenas indiretamente, focando nos processos de aprendizagem dos alunos, enquanto a categoria (e) enfatiza estudos voltados especificamente aos saberes e práticas pedagógicas de docentes.
Cinco relatórios não se encaixam em nenhuma destas categorias, sendo seus temas referentes à projeto social (BOZZETTO, 2012), inclusão escolar (MELO, 2011), estudo histórico (VIEIRA, 2013), estudo cultural (REIS, 2013), formação do campo violonístico (SOUZA, 2012).
A tabela 2 informa a distribuição das categorias elencadas nas áreas de Música e Educação.
Objeto | Música | Educação | TOTAL |
---|---|---|---|
Formação de professores | 4 | 5 | 9 |
Currículo | 5 | 2 | 7 |
Formação de músicos | 5 | 1 | 6 |
Processos de ensino/aprendizagem | 4 | - | 4 |
Práticas docentes | 2 | 2 | 4 |
Disciplina específica | 2 | 1 | 3 |
Fonte: elaborado pelas autoras com base em busca no site http://bdtd.ibict.br/ (2020).
Observamos a importância dada ao tratamento da formação de professores em ambas as áreas. Oliveira (2011), Pires (2015) e Daenecke (2017) discorrem sobre as relações entre a formação oferecida pelas Licenciaturas e os licenciandos – como, por exemplo, suas expectativas e pretensões profissionais ou a forma como percebem o Curso em sua articulação com a função de ensinar. Azevêdo (2017) busca relações semelhantes, porém os sujeitos são professores já licenciados, que atuam na educação básica.
Silva (2011) traz outro enfoque, trabalhando com formandos e também egressos da Licenciatura, ao analisar de que forma os músicos se descobrem educadores musicais. O trabalho de Neves (2019) aborda a formação de professores de piano de forma mais ampla, considerando alguns aspectos além da trajetória acadêmica – como o ambiente cultural familiar, a formação musical inicial, atividades docentes e outras atividades profissionais dos sujeitos, desenvolvidas em contextos que não o da docência. Os estágios em Cursos de Licenciatura são analisados por Agostini (2008), Ferro (2013) e Shiozawa (2017).
Apesar de também versarem sobre a formação de professores, os trabalhos de Pires (2003), Campos (2015), Amaral (2017) e Gomes (2018) apresentam estudos mais aprofundados nas próprias estruturas dos Cursos de Licenciatura em música. Incluem a análise de documentos curriculares e normativos como parte de seus procedimentos metodológicos – quase sempre aliada a entrevistas e/ou questionários. Dentro da categoria "currículo", localizamos Santana (2015), que avalia Cursos de Bacharelado em Regência, Ferreira (2017), que analisa a presença/ausência da educação musical na estrutura curricular do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e Oliveira (2018), que busca compreender o processo de elaboração curricular por parte de professores de música atuantes no ensino fundamental.
Os três relatórios localizados na categoria "disciplina específica" – Otutumi (2008, 2013) e Teixeira (2011) – dissertam sobre a disciplina de Percepção Musical no ensino superior. Como revelam estes trabalhos, esta disciplina recebe maior atenção por parte dos pesquisadores por duas razões principais: costuma ser uma disciplina árdua para boa parte dos estudantes e professores; não é raro que a disciplina seja mal estruturada – desde sua ementa até as próprias práticas pedagógicas – uma vez que a percepção é um dos domínios técnico-musicais mais limitados por mitos como "talento" e "bom ouvido".
Alguns aspectos de práticas docentes são abordados por quatro trabalhos. Silva (2010) investiga como seus sujeitos – professores de piano popular – organizam e sistematizam os conhecimentos e as habilidades do instrumento em suas práticas docentes. Almeida (2014) discute as práticas pedagógicas no ensino de instrumentos de sopro. Santos Júnior (2017) estuda a utilização de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) no planejamento de aulas de música. Os saberes da docência musical são retratados por Barros (2019), que foca especificamente em docentes-bacharéis professores de instrumento.
A formação do músico prático – em oposição ao músico educador – está presente em seis textos, que destacam a música popular. Seixas (2018) e Silva (2019) analisam processos formativos de músicos instrumentistas que atuam na prática de música popular. Alvares (2012) analisa os processos de identidades e subjetividades do músico profissional. As diferentes dimensões formativas de músicos populares são investigadas por Santos Júnior (2016), incluindo a formação musical inicial, a formação em diferentes espaços e em contextos de profissionalização. Em Presser (2013) encontramos um debate direcionado para a formação de músicos populares exclusivamente no contexto do ensino superior. O relatório de Dantas (2015), apesar de abordar, também, a Licenciatura, está nesta categoria por apresentar o ensino da guitarra elétrica nos Cursos de Música da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) com destaque à prática instrumental e à formação do músico dentro e fora do âmbito acadêmico.
Dentro da categoria "processos de ensino/aprendizagem", a música popular está tratada diretamente por Silva (2013), que analisa os processos de ensino e aprendizagem de improvisação na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Weichselbaum (2013) aborda os conhecimentos e habilidades que os licenciandos em música adquirem e sistematizam na disciplina "Flauta Doce no Contexto Escolar". Risarto (2010) aborda a leitura à primeira vista ao piano, defendendo a necessidade de uma disciplina voltada especificamente para esta habilidade nos Cursos de Música de forma geral. Fora do contexto do ensino superior, encontramos Silva (2015), que estuda o ensino-aprendizagem do Modalismo nas aulas de Linguagem Musical, em um centro de educação profissional de Goiânia.
A figura 1 mostra a quantidade de produções em cada categoria, com o passar dos anos. É possível observar a predominância da categoria (a), de forma geral – o que já seria esperado, uma vez que esta categoria engloba a maior quantidade de trabalhos (nove). Além disso, o gráfico aponta para a ausência de trabalhos por períodos mais longos, como: nenhuma pesquisa sobre (b) currículo entre 2008 e 2014, e nenhuma pesquisa a respeito de (f) disciplinas específicas entre 2014 e 2019. Por fim, não há predominâncias relevantes de uma categoria sobre outra, destacando-se apenas uma maior quantidade de relatórios apresentados no ano de 2017 (seis), nas categorias (a), (b) e (e).
Durante o processo de identificação e categorização dos temas abordados em cada trabalho, reconhecemos não só objetos e enfoques, mas, também, perspectivas adotadas pelos autores, permitindo aproximá-los ou afastá-los de nosso próprio objeto e referencial teórico-metodológico. A seguir, apresentamos relações que consideramos relevantes entre nossa pesquisa e alguns dos materiais selecionados. Operamos a partir de dois eixos de análise, a saber, 1) currículo de música e 2) formação do músico.
DISCUSSÃO
Currículo de música
Reiteramos que, ao discutir "currículo", apreendemos uma concepção que trata dos processos de seleção, organização e distribuição de conhecimentos. Perguntamo-nos: "por que esse conhecimento e não outro? Quais interesses fazem com que esse conhecimento e não outro esteja no currículo?" (SILVA, 2017, p. 16). Esta problematização do que se entende por conhecimento – e, principalmente, o que conta como conhecimento escolar – encontra pouca expressão nos relatórios localizados neste levantamento. Esta baixa representatividade, apesar do uso do descritor "currículo" no levantamento de dados, nos leva a depreender o caráter nebuloso que reveste a própria concepção de currículo nas pesquisas, tanto na área de Música quanto na área de Educação.
Este resultado era esperado, uma vez que já havíamos constatado, a partir do levantamento feito por Sobreira (2012)3, que existe pouca representatividade de estudos que conjuguem Educação Musical e teorizações do campo do currículo. Além disso, de acordo com Marques (2011), a Música enquanto área acadêmico-científica não costuma questionar "a própria noção de autoridade envolvida no estabelecimento de seu cânon acadêmico" (MARQUES, 2011, p. 50, grifo nosso). Isto porque, "no âmbito acadêmico-institucional em música [...] tende-se a conceber as práticas pedagógicas como algo dissociado das questões políticas e culturais mais amplas da sociedade" (MARQUES, 2011, p. 50).
Pires (2003) apresenta reflexões sobre a identidade dos Cursos de Licenciatura em Música, tomando como objeto seis Cursos de Licenciatura no estado de Minas Gerais. As análises documentais realizadas pela autora revelam que "os cursos têm adotado soluções formalistas, restringindo-se, quase sempre, às determinações legais" (PIRES, 2003, p. 142).
Campos (2015) trata da formação de professores de música que atuam no ensino fundamental, formados no Curso de Licenciatura em Música das universidades da região Centro-Oeste do Brasil. Segundo a autora, os documentos oficiais que regulamentam a formação de professores para atuação na educação básica conferem "um caráter utilitarista à formação de professores, pautada na certificação de competências, na flexibilização curricular e na avaliação, em função de sua sintonia com o mercado" (CAMPOS, 2015, p. 159). Assim, o perfil do graduado termina por definir-se em função das demandas mercadológicas. Campos (2015) afirma, ainda, que os projetos político-pedagógicos analisados parecem aderir acriticamente a estes documentos.
Gomes (2018) corrobora este entendimento e conclui sua tese afirmando que "a busca da autonomia deveria ser almejada nos Cursos superiores a partir do desenvolvimento do protagonismo docente, [que] capacita o profissional para sua atuação" (GOMES, 2018, p. 161). Parte dos estudos desta autora é realizada com o propósito de compreender como tem se dado a inserção da educação infantil nos Cursos de Licenciatura em Música das Instituições de Ensino Superior (IES) das capitais da região Nordeste. Neste âmbito, elabora uma breve discussão acerca de concepções curriculares, destacando "a compreensão das condições do contexto nas quais se desenvolveram os currículos, a concepção cultural que envolve o projeto curricular [...] e a impossibilidade de análises curriculares tendo como elemento apenas o projeto curricular" (GOMES, 2018, p. 103-104).
Em sua dissertação, Amaral (2017) se aproxima de uma visão mais ampla de currículo, ao investigar o processo inicial de implementação do Curso de Licenciatura em música da universidade do estado do Amapá. Apesar de apenas citá-los brevemente, sem se aprofundar no debate, são perceptíveis em sua fundamentação teórica alguns dos pressupostos da teoria crítica do currículo. É possível observar certa unidade nestes quatro relatórios, que não só têm em comum o estudo curricular de Licenciaturas em Música, mas compartilham, de forma geral, a constatação de que falta identidade às Licenciaturas, e de que o perfil dos ingressos e outros aspectos da realidade social envolvidos na formação de professores têm sido suprimidos pelos documentos curriculares.
Santana (2015), que apresenta um estudo sobre Bacharelados, toca em algumas questões curriculares durante suas análises. Em um dado momento, traça um breve histórico das teorizações curriculares e, posteriormente, afirma adotar uma visão de currículo enquanto produtor de identidades. No entanto, as análises da autora estão mais voltadas à inclusão/exclusão de determinadas disciplinas no contexto dos Bacharelados em Regência, e também no próprio perfil dos ingressos e egressos deste Curso.
Oliveira (2018), que aborda as questões curriculares do ensino fundamental, entende o currículo como "uma prática discursiva, uma prática de poder, de significação e atribuição de sentidos" (OLIVEIRA, 2018, p. 25). Frisamos que esta autora, apesar de se distanciar de nossa pesquisa por adotar uma tendência pós-estruturalista em sua dissertação, explora as questões do currículo de forma detalhada e cuidadosa.
Formação do músico
A compreensão da música como fenômeno social permite a conscientização das ideologias musicais instituídas, que não são apenas reproduzidas, mas constantemente atualizadas. As diferentes músicas que lutam por uma posição privilegiada, e que se organizam em função do habitus de classe, condicionadamente têm no espaço acadêmico o lugar de um processo de diferenciação progressiva, uma arena de luta de classes.
No presente levantamento, observamos Pierre Bourdieu como uma fonte teórica frequente, em particular, nos estudos que investigam o ensino superior de Música. Alguns relatórios reconhecem, especialmente, os conflitos simbólicos da luta dos agentes pelo reconhecimento das propriedades objetivas das/nas formações dos músicos.
Em seus estudos sobre o ensino superior de Música no estado de São Paulo, Barros (2019) traça um breve panorama histórico sobre o ensino de instrumento musical – desde suas práticas não-formais até sua institucionalização, baseada no modelo conservatorial4.
Com a criação do Conservatório Imperial de Música, o ensino de tal arte transcende o lugar secundário que ocupava em instituições destinadas a outros fins, estabelecendo um espaço institucional de formação musical no Brasil. A própria denominação de "conservatório" evidencia o estabelecimento de uma instituição modelada a partir dos já constituídos e consolidados conservatórios europeus (QUEIROZ, 2017, p. 139).
Desta forma, certas "práxis musicais não alinhadas às perspectivas da música erudita ocidental [...] foram excluídas de contextos 'civilizados' de produção musical e, consequentemente, do processo de institucionalização do ensino de música" (QUEIROZ, 2017, p. 137). Neste contexto, então, Barros (2019) problematiza as práticas dos docentes-bacharéis professores de instrumento e suas ações técnicas baseadas em modelos tradicionais. O autor conclui que, dentre outros aspectos, as práticas conservatoriais dos professores continuam se reproduzindo e atualizando5 porque estes, muitas vezes, atuam de forma pouco reflexiva, sem uma consciência crítica do ensino do instrumento, que poderia contribuir para mudanças paradigmáticas do habitus conservatorial destes agentes.
Acrescemos que o conceito de habitus conservatorial, construído por Pereira (2013b), ancora-se no sistema de pensamento de Pierre Bourdieu – especialmente a partir de seus conceitos de habitus e campo. Dessa forma, apreendemos esse conceito como aquele reproduzido nos espaços de educação musical, cujo modelo assemelha-se aos dos conservatórios de música,
[…] ligados a uma ideologia musical que engendra e possibilita a reificação e a legitimação da supremacia da música erudita e submete as outras práticas musicais aos seus sistemas de valoração e modos de estudo que acabam por excluí-las do conteúdo escolar, destituindo-as de importância (PEREIRA, 2013b, p. 149).
Como revelam os trabalhos aqui analisados, o processo de diferenciação progressiva das "diferentes músicas", que se dá no espaço acadêmico, é ainda mais acentuado quando se trata da música popular. Entendemos o músico popular como aquele que estabelece a contradição entre o 'imposto', o 'autêntico', a 'elite' e o 'comum', predominante e subordinado ao debate da cultura erudita. Vale acrescentar que tal cultura, nos limites da música, engloba, majoritariamente, o que se entende como “música clássica”, ou “música de concerto”, aquela legitimada pelo modelo conservatorial. Tal entendimento aproxima-se do conceito de cultura popular, isto é,
[...] o que sobra após a subtração da alta cultura da totalidade das práticas culturais. Ela é vista como o banal e o insignificante da vida cotidiana, e geralmente é uma forma de gosto popular considerada indigna de legitimação acadêmica ou alto prestígio social (GIROUX & SIMON, 1995, p. 97).
A identidade diferenciada do músico popular demonstra o quanto o universo de formação acadêmica, particularmente o Bacharelado, materializa as diferenças entre o erudito e o popular e rompe um processo formativo e profissional comumente desenvolvido anterior e independentemente do Curso de Música em nível superior.
Dantas (2015) dá destaque às singularidades das práticas musicais populares e aos efeitos que suas características exercem sobre o ensino da guitarra elétrica em nível superior.
[...] as práticas da guitarra elétrica estão intimamente imbricadas à pluralidade de expressões da música popular urbana, não sendo possível compreender caminhos para a formação do guitarrista de forma descontextualizada dos aspectos que dão forma e sentido a essa prática social (DANTAS, 2015, p. 155).
Ainda segundo este autor, "[…] as expectativas e demandas dos discentes estão vinculadas às suas experiências de vida e a intenção de cada um em dar continuidade à sua trajetória com o instrumento" (DANTAS, 2015, p. 157). Segundo Presser (2013), 78% dos candidatos ao Curso de Bacharelado em Música Popular já exerceram/exercem atividades profissionais. O autor indica também a frequente ausência dos alunos nas aulas do Curso, justamente devido a compromissos profissionais. Não raramente, o aluno vê-se obrigado a escolher entre a profissão (apresentações, aulas e outros compromissos) e a universidade. Esta questão, aliada à dificuldade dos alunos em relacionar os conteúdos aprendidos no Curso às suas práticas musicais diárias – ou seja, aos problemas encontrados em uma estrutura curricular conservatorial – leva o aluno, em muitos casos, a desistir do Curso.
Silva (2013) apresenta aspectos interessantes a respeito de processos de ensino e aprendizagem de música popular no ensino superior, por abordar a improvisação, definida pelo autor como a "[…] habilidade de criar um solo no momento da performance" (SILVA, 2013, p. 166). É uma prática que, no contexto da música popular, desenvolveu-se basicamente em espaços informais de prática musical, isto é, aqueles que não são institucionalizados, que dizem respeito a um contexto não escolar e, hoje em dia, torna-se uma das habilidades técnicas mais valorizadas e difundidas dentro do âmbito acadêmico – em Cursos de Música Popular. No Brasil, como afirmado por Silva (2013), o estudo da improvisação costuma ser fortemente influenciado por aspectos da pedagogia do jazz e da música instrumental brasileira.
Desta forma, há uma série de aspectos a respeito do aprendizado desta habilidade que norteiam acalorados debates no âmbito acadêmico, como a "[…] discussão das habilidades de ouvido e o uso da notação musical" (SILVA, 2013, p. 169). A música popular, ao menos em suas origens, está ligada à oralidade, enquanto que o uso da notação musical costuma ser diretamente associado às práticas de música erudita. Neste sentido, os alunos que buscam o Curso de Música Popular podem esperar um ambiente "menos austero" de aprendizado, como revela o depoimento de um estudante entrevistado por Presser (2013, p. 99), que afirma ter escolhido o Curso de Música Popular para "[…] fugir um pouco do erudito... Quanto mais puder fugir da partitura, melhor [...]". Este tipo de debate remete a uma importante problematização a respeito da institucionalização da música popular:
O que quer a música popular na universidade? Legitimidade, reconhecimento, status. Todavia, a própria música popular opera seleções em seu ingresso na universidade: não é toda e qualquer manifestação popular que adentra no âmbito do ensino superior, mas "a boa música popular". Quais os critérios para essa seleção? Critérios estabelecidos pela ideologia musical incorporada [...]. Tal fato reflete a luta pela posição privilegiada, a luta por uma maior cotação no valor como capital cultural (PEREIRA, 2013b, p. 158-159).
As transformações sofridas pela música popular em seu processo de institucionalização são precisamente o reflexo desta luta pela posição privilegiada. Isto porque, mesmo não referendada, a música erudita é apreendida como parâmetro de estruturação das disciplinas, no campo curricular, e de hierarquização dos capitais culturais em disputa – já que habita as doxas, o senso comum, e nomos, leis gerais que o governam – desse campo.
Assim, ao músico popular, o ingresso no Curso de Música, particularmente o Bacharelado, parece não revelar uma continuidade de seus processos formativos, culminando no questionamento das diferenças de formações. Nos aproximamos da compreensão da formação do músico popular como uma forma particular da atividade social, como algo "desligado" do grande grupo de instituições que definem os capitais sociais, de forma que determinados grupos e classes têm historicamente sido ajudados, ao passo que outros têm sido tratados de maneira menos adequada. Esta compreensão ecoa no presente levantamento, em que apenas dois relatórios que tratam da formação do músico popular discutem o ensino superior, enquanto os demais abordam a formação do músico popular onde ela ainda é mais frequente: fora do âmbito acadêmico.
Silva (2019), que analisa o processo formativo de bateristas pernambucanos, revela como a valorização do músico instrumentista – atuante, portanto, no campo artístico – não precisa estar vinculada a qualificações acadêmicas. Seus sujeitos recebem reconhecimento artístico semelhante, apesar de possuírem formações diversas. Segundo Santos Júnior (2016), "as práticas de aprendizagem dos músicos contemporâneos revelam que [os] contextos [...] formais, não-formais e informais estão se aglutinando" (SANTOS JÚNIOR, 2016, p. 36).
[...] todos esses mundos de educação estão em constante processo de diálogos e interações, mediadas pelos diferentes sujeitos que circulam pelos muitos lugares de formação em música. Assim, os indivíduos que são formados musicalmente por uma escola, também são educados pelas mídias, pelas performances musicais locais, pelas músicas das ruas e, assim, reciprocamente, acontece em todos os contextos sócio-educacionais de aprendizagem musical (QUEIROZ, 2013, p. 96).
Souza (2012), ao analisar o processo de constituição do campo violonístico nas IES do Ceará, trata de sujeitos que são violonistas e também professores, ou seja, agentes que devem acumular diferentes capitais para dar legitimidade ao trabalho que exercem e que, por isso, transitam entre os campos artístico e acadêmico. O autor examina os processos envolvidos nesta transição, especialmente no ingresso dos agentes no magistério do ensino superior, considerando aspectos como
o habitus, o conhecimento em torno da história e das instituições pelas quais os sujeitos passaram, a maneira como os agentes começaram a se envolver com o violão, as experiências pedagógicas, a maneira como atuam no campo de produção artística e [...] que tipos de capitais acumulados eles detêm (SOUZA, 2012, p. 56).
O autor afirma ainda que, "a partir do momento que o ensino de violão se insere na universidade, cria-se um campo específico, considerando que a razão de sua existência reside nas relações que se estabelecem entre os agentes e as instituições" (SOUZA, 2012, p. 121).
Por fim, apreendemos que, como parte do exercício de estado do conhecimento, estes relatórios fundam um retrato das pesquisas nos campos educacional e artístico, estabelecendo não apenas as temáticas e categorias que vêm sendo o foco destes campos, mas também a problemática concepção de currículo nestes contextos. Revela-se, também, a necessidade de pesquisas que aprofundem análises curriculares acerca da formação do músico popular com discussões para além das questões técnico-musicais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Das análises realizadas, procedem reflexões que nos permitem arejar algumas de nossas expectativas e perspectivas iniciais. Primeiramente, é notável o fato de que apenas 20% dos relatórios resultantes da busca a partir do descritor "currículo", com efeito discutem questões curriculares com alguma clareza e/ou profundidade. Como mencionado anteriormente, este dado revela o quanto o currículo, como base empírica e especialmente como objeto, navega por caminhos obscuros nas pesquisas analisadas.
O presente levantamento mostra que o currículo de música é tratado com mais frequência e vigor quando se aproxima das Licenciaturas. Vimos que, em alguns casos, o lócus de pesquisa transita também pela educação básica. Além disso, constatamos que o currículo de música dos Bacharelados definitivamente não tem sido um enfoque habitual. A unidade que vislumbramos a partir deste eixo de análise é, nos currículos de música de forma geral, uma recusa de aspectos da realidade social dos agentes envolvidos neste campo, sejam eles professores, ingressos ou egressos dos Cursos de Música. Em suas análises, os autores dão destaque aos documentos curriculares que pouco se atualizam ou pouco se concretizam nas práticas pedagógicas por desconsiderarem estes aspectos.
A formação do músico – em especial, do músico popular – é um objeto que revela alguns pontos em comum nos relatórios analisados: 1) o "caráter tradicional" do ensino superior em música, que pode ser sintetizado pelos questionamentos envolvidos na noção de habitus conservatorial; 2) a discrepância entre espaços acadêmicos e não-acadêmicos de formação do músico; 3) a carência de pesquisas que se ocupem da formação do músico prático no ensino superior – ou seja, dos Bacharelados.
Contudo, nesses pontos comuns, ainda, nos deparamos com questões em torno da aprendizagem do músico popular, como aquela que
envolve uma complexidade de atos mentais ainda pouco explorados e compreendidos no processo de ensino-aprendizagem da música. Aspectos como memória, atenção e percepção constituem a base para a compreensão de como esses profissionais aprendem e constroem o seu conhecimento. [...] Aspectos técnicos e de interpretação, improvisar, conhecer cifras, tablatura e/ou partitura, tocar sequências harmônicas e escalas, acompanhar e/ou fazer solos em diferentes contextos, dominar um vasto repertório musical são algumas dessas habilidades frequentemente implícitas no trabalho desses profissionais (LACORTE & GALVÃO, 2007, pp. 30-31).
Dos atos aos aspectos, parecem se fazer presentes requerimentos da música popular por “[...] uma aproximação diversa, porque, em muitos casos, ela é transmitida oralmente e, dessa forma, tanto a performance quanto a gravação – distintas de qualquer notação – devem ser tidas como objetos de estudo" (PEREIRA, 2013b, p. 203). Diante disso, a participação da Universidade na afirmação do confronto entre as práticas musicais do cotidiano e as práticas musicais da universidade responde, em parte, à premissa do currículo como instituinte de sentidos, como enunciação da cultura, como espaço em que o ensino de música torna-se atos de criação dos sujeitos e da própria música.
As análises aqui apresentadas indicam que os pressupostos estéticos que sustentam os "saberes superiores" da música erudita continuam a sustentar práticas pedagógicas desatentas às transformações sociais colocadas por formas culturais da esfera popular contemporânea, que acabam por requerer novas atitudes interpretativas. "O popular tem sido visto com frequência pelos educadores como agente potencialmente perturbador de relações de poder vigentes" (GIROUX & SIMON, 1995, p. 101). É significativa a observação de que a força do habitus conservatorial parece transparecer mesmo nos espaços e práticas dos quais seria esperada uma postura minimamente transformadora, como os próprios Cursos de Música Popular. É o caso, por exemplo, dos docentes-bacharéis professores de instrumento (BARROS, 2019) e das polêmicas envolvidas no ensino de improvisação (SILVA, 2013).
O processo analítico aqui apresentado esteve constantemente permeado pela questão: em que medida estes relatórios dialogam com nossa pesquisa? Constatamos a existência de algumas semelhanças, porém, de forma fragmentada. A apropriação deste conhecimento acumulado demonstra alguns aspectos relevantes. O músico popular, especialmente o bacharel, acaba por ocupar-se da prática musical e, mesmo quando se ocupa também da prática docente, não é um agente que representa a pesquisa científica a respeito de sua própria formação. No outro lado está o licenciado em música, que, como se espera, dedica-se a pesquisas a respeito da formação docente.
Afinal, de quem é a responsabilidade das pesquisas a respeito da formação proposta ao músico popular no ensino superior? Como relatado, o currículo de música e a formação do músico têm sido abordados em alguma medida. No entanto, não encontramos estudos que tratem simultaneamente do currículo do Curso de Música no ensino superior e da formação do músico popular. Estas considerações dão força à construção de nossa pesquisa, pois justificam a necessidade de mais investigações e aprofundamentos a respeito destes assuntos.
A par desse retrato da investigação, afirmamos a pretensão de provocar e suscitar a percepção indispensável e necessária para o entendimento do processo e da dinâmica do fenômeno musical dentro dos Cursos de Formação do Músico Popular em Instituições de Ensino Superior.