INTRODUÇÃO
O cinema não apresenta apenas imagens, envolve-as num mundo (Deleuze).
Estamos cercados de imagens por todos os lados. Imagem-percepção, imagem-afecção, imagem-pulsão, imagem-ação, imagem-reflexão, imagem-relação... Imagens. Entre imagens-cinema, imagens literárias e imagens fotográficas, buscamos o vazio de imagens para fugir das representações e ir ao encontro de novas sensações, emoções, pulsações, vibrações, criando assim outras formas de expressão e novos modos de aprender e de ensinar, de fazer pesquisas, currículos e educação.
Defendemos que o uso1 de imagens cinematográficas nas pesquisas em educação é uma experiência ético-estética, política e filosófica que possibilita a violência no pensamento, desestabilizando verdades, crenças, poderes e certezas e ainda libera forças intensivas e ativas para o agenciamento de desejos e de composições que expandem os processos de resistências às tentativas de padronização curricular e mobilizam as inventividades cotidianas.
O cinema, como apresentamos na epígrafe deste texto, não apresenta apenas imagens, mas principalmente envolve-as num mundo, fazendo novas imagens para esse possível mundo, denominado imagem-tempo por Deleuze (2015). Nos seus dois livros sobre o cinema, Deleuze procura desenvolver uma taxinomia das imagens e dos signos.
Em Cinema 1: imagem-movimento, Deleuze (1983) diferencia os níveis e os tipos de imagens, produzidas pelo cinema clássico, expondo que esse modelo de cinema se sustenta por intermédio da adoção de um esquema sensório-motor que faz funcionar a relação entre as imagens dentro de um encadeamento fechado; com cortes racionais entre os planos; narrativas lineares e verídicas; com tempo passado, presente, futuro; representações através de personagens bem definidos. O autor aponta de forma crítica, em especial, para o cinema clássico hollywoodiano, pois, por meio da montagem, esse tipo de cinema constrói uma “imagem indireta do tempo”.
Na segunda obra, Cinema 2: imagem-tempo, o autor apresenta que, em outra direção, corroendo o cinema clássico (imagem-movimento), há outra proposta cinematográfica sendo produzida pelo cinema moderno (imagem-tempo), que destoa do modelo clássico. O cinema moderno abandona a narrativa verídica, a sucessão cronológica, os modelos de representação, em favor da potência do falso, das descrições cristalinas, dos cortes irracionais, das fabulações criadoras, dos personagens ordinários, num espaço qualquer em meio a situações óticas e sonoras puras, provocando um transe na “imagem-pensamento”.
Esse novo modo de produção fílmica do cinema moderno desloca o conceito de movimento para o de tempo; através desse choque ou da crise da imagem em movimento, para o filósofo, possibilitou a criação de linhas de fuga para a “vidência”, para redescobrir o mundo através das imagens cinematográficas, “[...] restituir-nos a crença no mundo: é esse o poder do cinema moderno” (DELEUZE, 2015, p. 270). Assim, o autor afirma que é preciso encontrar razões para acreditar neste mundo. Acreditar no mundo não é crer em outro mundo ou no mundo transformado, mas sim crer no corpo como germe da vida.
Inspirados em Deleuze (2015), apostamos e acreditamos no corpo-escola que se reinventa cotidianamente. É um corpo coletivo que pulsa e vibra por meio dos encontros e das redes de afetos, afecções e de complexidades. Esse corpo-escola cria currículos por meio das relações que estabelecem com as infâncias, com as juventudes, com as políticas curriculares, com os movimentos sociais. Currículos inventivos e nômades.
Lançamo-nos então em um corpo-escola vivo, não dogmatizado, mas que se reinventa a todo instante, entre docências artistas, currículos nômades, infâncias inventivas e aulas como acontecimento que se deslocam aos devires. Revitaliza processos que se distanciam da reprodução e buscam mover o pensamento com “[...] o inexperimentado, o imperceptível, o impensável, o inominável, o indizível, o inimaginável, o intolerável” (CORAZZA, 2013, p. 138).
Buscamos experimentar uma pesquisa cartográfica com os cotidianos de escolas, que se desdobra por entre os signos artísticos das imagens cinematográficas em redes de conversações nos encontros com crianças, jovens e professores em movimentos de pensamentos, na tentativa de potencializar currículos, aulas, docências, para além de um corpo estabilizado, mas disparado pelas múltiplas redes de afectos e perceptos, em processos de criação e de artistagens docentes (CORAZZA, 2013).
A busca por imagens cinematográficas, literárias, fotográficas etc., consideradas disparadoras de movimentos de pensamento na pesquisa cartográfica com o cotidiano escolar, tem sido um desafio para o grupo de pesquisa X, que objetiva desconstruir algumas verdades impostas para a educação e pensar em outros possíveis para as pesquisas com as infâncias, as juventudes, a formação de professores e as políticas curriculares. O pesquisador, nessa perspectiva, se envolve no processo de pesquisa, apresentando suas sensações, percepções e afecções que emergem por meio do encontro com as imagens, e se entrelaça ainda às redes de conversações com professoras, crianças, adolescentes e outros membros da comunidade escolar.
Este artigo constitui-se de diferentes movimentos de pesquisas, cartografados em redes de conversações (CARVALHO, 2009) com crianças, jovens e professoras a partir de encontros com as imagens cinematográficas. A cartografia dos movimentos nos levou a problematizar a força das imagens-cinema disparadas nos encontros de formação de professoras, nos cotidianos da educação básica, em meio às imagens de pensamento das crianças e dos jovens nos processos de aprender-ensinar e de criar currículos.
Ao mobilizar encontros de crianças, jovens e professoras com as imagens-cinematográficas, lançamo-nos aos devires. Devires-pensamentos potencializados pelo choque. Choque provocado por uma imagem que irrompe os corpos projetados em representações e os agencia com os afetos que pedem passagem, abrindo os possíveis para a invenção de novas imagens de pensamento. Mas toda e qualquer imagem é capaz de produzir em nós o choque? Que imagens provocam deslocamento de pensamento? Por que essas imagens e não outras? Deleuze (2015, p. 249) afirma que a “[...] imagem cinematográfica tem de ter um efeito de choque sobre o pensamento e forçar o pensamento a pensar-se a si mesmo e a pensar o todo. É a própria definição do sublime”. O todo como tempo puro — a diferença.
Nesse percurso, ao defendermos o uso das imagens em redes de conversações nas pesquisas em educação, consideramos que toda imagem pode nos oferecer algo a pensar, pois ela comporta um pensamento e expressa uma forma de pensar. Dessa forma, aliamo-nos à obra Cinema 2: imagem-tempo, de Deleuze (2015), apontando para o conjunto das imagens-tempo como as mais potentes imagens para forçar o pensamento a uma diferenciação, para violentar o pensamento, provocar afetos e afecções e fazer expandir a força de ação coletiva na invenção de novos possíveis para a educação.
Procuramos, portanto, nos distanciar da ideia de imagem-pensamento do cinema clássico, da imagem-movimento, dos esquemas sensório-motores, da narrativa orgânica. Em contrapartida, nos aproximamos das intenções/ideias do cinema moderno, da imagem-tempo, para poder ver/ouvir/sentir imagens ótico-sonoras puras, imagens-cristal com toda a sua função fabuladora, como multiplicidades que problematizam o modelo de verdade, de linearidade, de identidade, para “[...] quebrar o curso ou a sequência empíricos do tempo, a sucessão cronológica, a separação do antes e do depois” (DELEUZE, 2015, p. 244).
Quando a imagem apresenta um excesso de clichês, o pensamento cai na representação, distanciando-o da criação pela diferença. A narrativa orgânica de uma imagem dogmática busca sempre o verdadeiro e normalmente engessa o corpo em uma ação habitual, um vazio que não produz sentidos, nem violenta o pensamento a pensar.
Quando a violência já não é da imagem e das suas vibrações, mas a do representado, cai-se numa arbitrariedade sanguinolenta, quando a grandeza já não é da composição, mas uma pura e simples inflação do representado, já não há excitação cerebral ou nascimento do pensamento (DELEUZE, 2015, p. 258).
De que modo, então, o pensamento é forçado a movimentar-se? Deleuze (1987), em Proust e os signos, afirma que o “[...] que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; [...] O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira” (DELEUZE, 1987, p. 96). Para ele, o encontro com os signos artísticos possibilita o movimento do pensar em dimensões estéticas alternativas.
Segundo Deleuze (1987), os signos não são do mesmo tipo, ou seja, eles se diferenciam, evoluem, podem, momentaneamente, se paralisar e serem substituídos, assim como a pluralidade de mundos. O signo mundano/vazio aparece como aquele que substitui uma ação ou um pensamento. Os signos amorosos são signos mentirosos que se dirigem a nós escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos. Os signos sensíveis são signos materiais que nos dão uma sensação de alegria, mas não surgem como produto de uma associação de ideias; portanto, não são signos suficientes. Os signos artísticos reagem sobre todos os signos, principalmente sobre os signos sensíveis, pois fornecem-lhes “[...] o colorido de um sentido estético e penetram no que eles ainda tinham de opaco” (DELEUZE, 1987, p. 14), possibilitando uma transformação.
Deleuze problematiza a superioridade dos signos da Arte em relação aos outros e esclarece que somente o signo da arte é imaterial e de um sentido espiritual. A essência artista não se encarna apenas nos signos imateriais da obra de arte, mas também nos outros domínios que serão integrados nela. Assim, a arte “[...] atravessa os meios mais opacos, os signos mais materiais, onde perde algumas de suas características originais, absorvendo outras [...] Há leis de transformação da essência em relação com as determinações da vida” (DELEUZE, 1987, p. 51).
Nesse sentido, acreditamos nas imagens-cinematográficas como movimentos de pensamento e possibilidades de transformação para os modos de produção de pesquisa, pois o encontro dos praticantes com os signos da arte “[...] implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas” (DELEUZE, 1987, p. 96), fazendo surgir outros possíveis para se pensar a pesquisa e a educação.
Por isso, objetivamos apostar no cinema como processos de produção de vida, de devir-pensamento que nos distanciam da lógica hierárquica de um método pautado na razão, no idealismo do sujeito sobre o objeto, na busca por verdades e resultados. Por outro lado, a força das imagens aproxima nossos corpos aos devires e aos afetos que nos atravessam ao praticarmos uma cartografia sentimental (ROLNIK, 2007) dos encontros.
Imersos nesse desejo, nosso campo problemático se constitui como outra possibilidade de produção de pesquisa com o cotidiano escolar a partir do encontro com o cinema, no qual questionamos: que efeitos2 as imagens cinematográficas podem disparar nos processos de produção de pesquisa? As imagens cinematográficas “[...] expandem as múltiplas formas de conhecimentossignificações, possibilitando inventarmos novos modos de fazer pesquisa?” (SILVA, 2019, p. 284-285).
Organizamos o texto em três partes. Iniciamos com uma introdução, que justifica nossa aposta no cinema como modo de produção de pesquisa, ressaltando que os signos artísticos são possibilidades de transformação de pensamento. Na segunda parte, tratamos da força das imagens-cinema na pesquisa cartográfica como experiência ético-estética e política, mobilizadora de novos processos de subjetivações, apresentando fragmentos de movimentos de pesquisas que fizeram uso do curta-metragem Alike como disparador das redes de afetos e de conversações. Por fim, defendemos que as relações entre imagens cinematográficas e educação possibilitam a liberação da vida inventiva na escola, evocando a alegria de encontros que potencializam uma abertura do campo dos possíveis para docências artísticas, aulas como acontecimento inventivo, infâncias, currículos, enfim, para as pesquisas em educação.
Para isso, dialogamos com Deleuze (1987, 2015) e Carvalho (2009, 2019), como nossos intercessores teóricos principais ao tomarmos como aporte teórico-metodológico o encontro das imagens cinematográficas em redes de conversações com praticantes dos cotidianos escolares. Apostando nos acontecimentos que atravessam esse encontro como produtores de conhecimentos e de redes de afetos, possibilitando a expansão da alegria e da potência de ação coletiva (CARVALHO, 2019).
IMAGENS-CINEMA, REDES DE AFETOS E DE CONVERSAÇÕES: MOBILIZANDO PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÕES
A escolha de um filme e de um curta-metragem para exibição com crianças e/ou com professoras não é individual, está imersa em um desejo coletivo por um comum que, ao nos unir, nos diferencia. Compreendemos a “[...] constituição do ‘comum’ como algo que acontece na e em relação” (CARVALHO, 2009, p. 163). Ao entrarmos nas redes de saberes, fazeres e poderes dos sujeitos praticantes dos cotidianos escolares afetamos e somos afetados pelos acontecimentos e pelas imagens que nos atravessam.
Dessa forma, a imagem escolhida já provocou primeiramente em nós, pesquisadores, o choque no pensamento. Mas o que nos interessa é a força dessa imagem em redes de conversações e os desdobramentos que surgirão a partir desse encontro com a imagem. Cabe ressaltar que não se trata de uma imagem fílmica que, em todo o seu desenrolar, nos movimenta; não é sobre um filme que nos prende do início ao fim, mas sobre uma imagem, aquela imagem, aquele instante que nos afeta, que provoca a duração e nos faz entrar nos desvios dos encontros que abalam a nossa sensibilidade.
No desenrolar de nossas pesquisas, nosso corpo se envolveu com as imagens cinematográficas do curta-metragem espanhol Alike, dirigido por Daniel Martínez Lara e Rafa Cano Méndez, de 2015, vencedor do Prêmio Goya de melhor curta-metragem de animação. A animação mostra a rotina de Paste, uma criança criativa e sensível aos afetos que pedem passagem, e de seu pai, Copi, um adulto cuidadoso com seu filho e preocupado com as obrigações cotidianas de uma sociedade estigmatizada pela reprodução do capitalismo.
O curta se passa no dia a dia de pai e filho ao saírem para o trabalho e para a escola respectivamente. Ambos vão andando pela cidade acinzentada, entre corpos condicionados a movimentos repetitivos de ir e vir, quando o menino depara com uma cena diferente: um gramado verde, uma árvore repleta de flores vermelhas meio alaranjada e um músico tocando violino ao lado. Paste se deixa envolver pelo ritmo do encontro, admirando a arte de fazer a vida em meio ao caos, mas bruscamente é interrompido pelo pai que lhe entrega a mochila escolar e o conduz ao caminho da escola, como se ali estivesse a indicação do caminho “correto” para o seu encontro com a “verdade”.
Eu sugiro passarmos o Alike no próximo encontro, porque algumas cenas dessa animação “dá a pensar” (risos). Acho uma animação sensível, que nos leva a problematizar essa vida idealizada que estamos construindo e acabamos nos robotizando com o acúmulo de trabalho e abrindo mão do prazer e da invenção. Tem uma cena nesse curta que aparece uma tela preta. Parece que acabou, é uma interrupção, uma pausa. Eu achei o máximo, pois essa pausa, é como se fosse um respiro. A vida nos pede isso, um respiro, uma oxigenação. Parece que a tela preta é o espaço vazio, que se abre para outros possíveis.
Sabe aquela imagem em que o pai coloca a mochila nas costas da criança? Vocês repararam que a mochila reduz de tamanho ao ser colocada nas costas? Os livros aparecem grandes e ao fechar a mochila para entregar ao filho, parece que ele mesmo reduz o tamanho. Essa cena provoca-me pensar a importância que damos ao conhecimento, a problematizar que conhecimentos a escola considera importante.
As imagens de Alike foram disparadoras de inúmeras redes de conversas nos/dos encontros de formação de professoras e com os alunos nas escolas onde produzimos pesquisa. Como as redes de conversações não esperam o filme acabar para acontecer, a todo o tempo fomos atravessados por narrativas, gestos, suspiros, movimentos, silêncios que emergiam com as imagens cinematográficas.
Com os sentidos voltados para as imagens-cinema, o corpo coletivo das professoras foi tomado pelos afetos de uma cena específica. Por um instante, foi possível adentrar no desdobramento do tempo das imagens do curta, na cena em que o menino desenha, expressando sua criatividade no papel, mas em seguida é interrompido, sendo repreendido pelo professor por não seguir o modelo estabelecido.
“Ah, tadinho!”, “É isso mesmo que acontece”, diziam as professoras entre si, e outras apenas riam da cena, como se a imagem as tivesse despertado para alguma memória... E assim, emoções, risadas e comentários foram surgindo nas redes de conversações entre professoras e imagens-cinema. Percebemos ali um instante que movimentou os corpos-pensamentos de professoras a darem vida às imagens, atribuindo-lhes sentidos e significações.
As diversas manifestações de sentidos que as imagens-cinema provocaram entre as professoras as levaram a problematizar práticas educativas dogmáticas e endurecidas às quais já estavam submetidas, suscitando repensar processos mais inventivos na tentativa de tecer outros possíveis para a educação.
Ampliamos a discussão levantada pelas professoras para pensar: por que a cena do desenho da criança nos tocou? Há espaço para as crianças criarem quando propomos alguma atividade? Como lidamos com a questão do “erro”? Por que a ação daquele professor em repreender o desenho do menino nos afetou? O que as imagens nos dizem sobre nós mesmos?
Não buscamos com esse artigo responder a essas perguntas, mas problematizar a força da imagem-cinema como produtora de sentidos, na tentativa de deslocar as práticas docentes, o conceito de infância, de aprendizagem, os processos curriculares, enfim, de movimentar o pensamento em outros modos de pensarfazer escola4.
As conversações com as professoras nos apontam para possibilidades de se perfurar os clichês, de fazer com que o pensamento saia dos eixos, os quais fixam no lugar comum, para mobilizar outros pensamentos, para deslocar o pensamento em devires, como nos diz Deleuze (2015), para extrair a potência das imagens e nos tornarmos visionários.
Para Deleuze (2015), o vidente ou visionário é aquele que vê no cristal a imagem em suas duas faces, atual e virtual, o presente e o passado, a dobra do tempo, a representação e a diferença. Só o vidente consegue extrair dos clichês a verdadeira imagem, uma imagem pura e inventiva, imagem de vidência, imagem-vida.
Assim, professoras se tornam visionárias ao adentrarem no jorro do tempo das imagens de Alike, entre uma criança que pinta seus sonhos, que cria em meio ao caos e de docentes que veem no cristal do tempo o duplo de imagens, a coalescência do passado e do presente. Uma cena que movimentou seus corpos em devires-pensamentos, provocando o despertamento dos clichês para o encontro com uma imagem de vida.
Quando a gente se forma, a gente sai pensando que a nossa função é ensinar e levar o aluno a aprender. Temos que ensinar a escrever, a ler... Só que nós precisamos aprender e ensinar para além das letras. Trabalhar, sim! Mas não podemos perder a alegria, as brincadeiras, principalmente aqui, na educação infantil.
Eu fiquei muito deprimida com o filme (choro). O que estamos fazendo com a gente? Vivemos uma loucura em sala de aula. O que estamos produzindo? A gente sai de casa com uma vontade enorme de viver..., mas algo nos rouba essa força. Aí vêm as crianças, elas nos beijam, abraçam e nos revitalizam.
A fala encharcada de emoção, sensibilidade, prudência e cuidado das professoras nos põe a pensar que os processos vivenciados e compartilhados no encontro com as imagens cinematográficas em meio às redes de conversações apontam como tem sido fecundo esse modo de se relacionar com as imagens. Esse modo não flerta com a imposição, a hierarquização e a subordinação, todavia se mostra fértil pela cooperação, pela conversação, que incita a abandonar formas endurecidas de se pensar a escola, os currículos, a formação, revitalizando processos inventivos nas escolas.
Por vezes é preciso restaurar as partes perdidas, reencontrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que se lhe subtraiu para a tornar “interessante”. Mas por vezes, pelo contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços brancos, rarefazer a imagem, suprimir-lhe muitas coisas que tinham sido acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo. Há que dividir ou fazer o vazio para reencontrar o inteiro (DELEUZE, 2015, p. 38-39).
Sabemos que nem tudo no pensamento é novidade, há em nós muito mais processos recognitivos do que a pura invenção. Uma maquinaria de práticas discursivas invade os territórios escolares, que acabam se automatizando a cumprir o tempo cronometrado, as aprendizagens ditas essenciais, a esvaziar apenas a pilha de atividades previstas, para recomeçar o novo dia com a mesma rotina.
O barulho das teclas da máquina de datilografia, as cores cinzas da cidade, o movimento dos trabalhadores em processo de adoecimento, o corpo cansado, encurvado e encharcado de afetos tristes, tudo isso provoca-nos pensar a tensão existente entre processos recognitivos e inventivos, bem como a criar uma expectativa de que surgirá, entremeado a esses paradoxos cotidianos, um acontecimento provocador de aberturas e de possibilidades. Para isso, é necessário esvaziar, fazer buracos para encontrar a imagem invisível aos olhos. Para Bergson (2006), apenas quando permitimos afrouxar o nosso sistema habitual é que damos passagem para o nosso impulso criador. Esse afrouxamento do nosso esquema sensório-motor nos coloca na dobra do pensamento entre a representação e a diferença.
Na filosofia deleuziana, há duas imagens de pensamento: a “imagem dogmática” e o “pensamento sem imagem”. Na imagem dogmática do pensamento, impera a repetição, a identidade e a representação de modos-figuras dominantes do pensamento. Já o pensamento sem imagem é aquele que, ao não fixar uma imagem, porque não pretende o “um”, uma identificação, uma fixação, um rosto, impele a desterritorialização do arco de imagens dogmáticas e põe o espectador a pensar, pois pluraliza pela diferença e cria outras, novas imagens. Deleuze (2015), em sua obra Cinema 2: a imagem-tempo, problematiza que essas duas imagens coexistem em um plano de imanência, não é sobre uma imagem ou outra, mas imagens-movimento e imagens-tempo em coalescência, indiscerníveis, em constante relação.
O que nos interessa para a produção de pesquisa, ao mobilizarmos encontros com as imagens-cinema, é esse desdobramento, o duplo de imagens atuais-virtuais que compõe os cristais do tempo, pois o movimento do pensamento se potencializa na dobra e no jorro do tempo (DELEUZE, 2015).
Sendo o visionário, aquele que extrai da imagem uma imagem de vidência, o tempo em seu desdobramento não cronológico, mas intensivo. Só o visionário enxerga no cristal a vida inventiva, “[...] a poderosa Vida não orgânica que cinge o mundo” (DELEUZE, 2015, p. 130). Essa força provocada pela imagem move professoras, crianças e jovens a criarem outras imagens de vida para a escola para além da normatividade dominante.
As imagens-cinema criam uma realidade impensada e impensável que foge dos modelos e irrompe os clichês. O cinema apresenta o invisível, o cotidiano escolar que não se revela em dados mensuráveis, nem em prescrições curriculares, mas sim pelo presente criado por seus praticantes ordinários que (re)inventam as maneiras de fazer, expandindo o campo dos possíveis para a educação. O que nos interessa é afirmar a crença no mundo, a crença nas escolas e nos seus praticantes, a crença nas pesquisas cartográficas com os cotidianos escolares.
CONCLUSÃO: REVITALIZANDO NOVOS MODOS DE FAZER PESQUISA
Eu achava que cinema tinha que ser algo extracurricular, que devia ser exibido quando não tivéssemos mais nada para fazer, com o objetivo de relaxar. Hoje, depois de assistir ao filme, conversar com as colegas, ser implicada por tantas questões, penso diferente. Penso que, talvez, a entrada do cinema na escola pode ser muito potente para problematizarmos muitas questões que atravessam o cotidiano escolar.
Em nossas experiências nos encontros com as imagens-cinematográficas nos cotidianos escolares, temos procurado, para além de falar sobre filmes, principalmente engendrar conversas e problematizar sobre os seus efeitos. Buscamos, como lembra Zouain (2019), cartografar os efeitos de pensamentos que emergem nas experimentações com o cinema; bem como entender que sentidos provocam para a composição de territórios existenciais de currículos; questionando as relações entre imagens-cinema, estudantes e professores na abertura do campo dos possíveis de docências e aulas inventivas.
Ao escolher filmes que fogem das representações clichês, almejamos constituir uma nova práticapolítica com as imagens cinematográficas na educação, afirmando múltiplos usos possíveis do cinema nos currículos escolares, na formação de professores, nos processos de aprender e ensinar, nos movimentos de pesquisa. O uso da arte-cinema é um modo de violentar o pensamento, de abrir rasgões para que forças intensivas expandam as possibilidades para uma docência inventiva, que não se deixa encapsular em uma padronização curricular, numa atitude ético-política e estética que acaba por invocar outro patamar para o cinema nas pesquisas educacionais.
Indo ao encontro do enunciado da professora, o uso de cinema em meio a redes de conversações nas escolas tem se constituído como um território potente para tecer problematizações acerca daquilo que atravessa a escola, as práticas docentes, as políticas curriculares, os afazeres burocráticos e os processos de aprendizagem. Tal potência consiste em tornar sensíveis os movimentos da vida, compartilhar um território existencial como experiência singular, uma vez que essas “[...] demandas vitais têm o poder de polinização dos públicos que a elas têm acesso, o que tende a mobilizar a força coletiva de transfiguração das formas da realidade e de transvalorização das formas da realidade e de seus valores” (ROLNIK, 2018, p. 167).
Em nossos movimentos de pesquisa com as imagens cinematográficas, nossas experimentações com elas têm mostrado que professores e estudantes provocados pelas imagens-filme expressam sentimentos/pensamentos que expandem, conforme nos ensina Carvalho (2009), a força do coletivo nas redes de afetos, conversações e ações complexas. “Compondo momentos intensivos-inventivos de formação, possibilitam múltiplas criações curriculares, tecidas em meio a uma grupalidade que se expande de maneira intempestiva, colaborativa, inventiva” (FERNANDES, 2019, p. 138).
Os movimentos de pesquisa com as imagens cinematográficas em redes de conversações constituem-se espaços de trocas de experiências e de criação coletiva, pois as conversas são para nós um gesto ético-político de ouvir o outro, de enxergar o outro como um campo de saber, sobretudo diante de uma macro/micropolítica de negação da ciência, de silenciamento de pesquisadores e professores. As conversas, mobilizadas pelas afecções das imagens, violentam o pensamento, fazendo circular uma multiplicidade de saberes e de culturas que provocam processos aprendentes que se articulam em rede, fazendo emergir novos movimentos curriculares e outros possíveis para as pesquisas em educação.
Muito embora não haja garantias, em nossas composições, ao explorarmos as intensidades e as vibrações que ocorrem em uma pesquisa cartográfica com os cotidianos que usam o signo artístico do cinema para a liberação da vida inventiva na escola, temos evocado a alegria dos bons encontros como forma de resistência ante as forças entristecedoras, que tentam apequenar a vida em sua potência expansiva.
Apostamos então na invenção como dimensão política da alegria nos processos formativos de professores, bem como nos currículos, nas docências e nas infâncias, entendendo que “[...] a questão política nos remete ao compromisso de apostar na vida: na potência da vida que se afirma, cotidiana e coletivamente, em meio a diferentes forças que impelem, impulsionam e engendram singularidades, invenção e criação” (CARVALHO, SILVA, DELBONI, 2017, p. 84).
Há, dessa forma, um compromisso com a vida potente e inventiva que se afirma nos cotidianos escolares em múltiplas possibilidades de fazer, pensar e ser na escola. Os signos artísticos podem potencializar essa inventividade do pensamento, ao passo que um devir-alegria pode insurgir em meio aos encontros dos corpos-pensamentos com a arte. No caso da nossa pesquisa, há uma potência da alegria que emerge com as imagens cinematográficas.
Essa alegria se potencializa pelo pulsar de vida de um instante que nos toca, como em Alike, em meio à cena que nos afetou a pensar os processos de ensino-aprendizagem da criança em suas redes de afetos, um conjunto de imagens-tempo que nos fez sacudir os maus encontros de um sistema enrijecido por imagens-clichê, mas que também é atravessado por linhas de fuga que se desdobram em possibilidades alternativas de existência. É um encontro com a arte de um violino que, ao ser tocado, embala os corpos, no curta-metragem e fora dele, a resistir.
Resistir. Um devir-alegria é uma possibilidade de resistirmos às imposições, pois estamos abertos, por meio dele, aos fluxos, à construção do sensível e às experimentações (CARVALHO, 2019). A dimensão política da alegria nos impulsiona a continuarmos sempre em busca dos possíveis, para além de uma atmosfera densa que paira na tentativa de nos sufocar, mas lançandonos em meio ao sopro de vida dos encontros.
Encontros com as imagens, com os corpos, com o pensamento, com as redes de conversações. Tais encontros apostam na alegria como possibilidade de criação. Nesse sentido, “[...] um movimento cheio de vitalismo, de aposta na vida, que é tecida em diferentes intensidades, a invenção, como dimensão política da alegria, arte de instaurar modos de existência na escola, enreda-se no encontro, no agenciamento” (CARVALHO, SILVA, DELBONI, 2017, p. 90).
Assim, nossa tentativa de revitalizar novos modos de fazer pesquisa desdobra-se com a força dos encontros das imagens cinematográficas em redes de conversações nos cotidianos escolares, potencializando a alegria como força revolucionária, como aquela que, segundo uma professora, apesar das mazelas do dia-dia, das paixões tristes que nos assolam e tentam nos roubar a vida, no meio do turbilhão de coisas que precisamos enfrentar, uma cena do filme a fez lembrar das crianças na escola, que “nos beijam, abraçam e nos revitalizam”.
As crianças revigoram por meio de linhas de fugas para que o corpo se oxigene, para que o corpo crie forças para escapar dos dogmatismos, dos fundamentalismos, das paixões tristes que nos engessam e nos enfraquecem. Essas forças coletivas criam resistências inventivas, fazendo com que as escolas não percam de vista a potência dos bons encontros, dos afetos alegres, da amizade, do riso, das fabulações e dos devaneios. Os jovens nos convocam a continuar sonhando e lutando por um mundo onde todos tenham saúde, educação e para cuja construção possamos participar como professores que lutam pela autonomia docente, pela escola pública, gratuita, laica, pela democracia, pelos direitos conquistados.
É possível entrar em relação com crianças, jovens e professoras, seguir seus desejos, suas invenções, suas artistagens. Compor com as suas brincadeiras, com os seus projetos, com os seus desejos ativa a potência da alegria nas escolas e na pesquisa. A potência de ação coletiva se expande com essa alegria que contagia, pois ela é, conforme afirmam Hardt e Negri (2016), um bem coletivo. Alegria é o que se precisa sobremaneira, atualmente...