INTRODUÇÃO
Convivemos, cotidianamente, com as diferenças em todos os ambientes sociais, mas ainda não atingimos o patamar de consolidação de uma escola atraente para os sujeitos diversos (ARROYO, 2014). É ainda um desafio pensar um currículo que reconheça as diferenças sociais, étnicas, religiosas e culturais de nossos alunos.
Considerando que os condicionantes econômicos, sociais, políticos e culturais sempre repercutem no currículo (SILVA, 2003), não é possível admitir neutralidade na construção dos currículos destinados à formação dos sujeitos que fazem parte da nossa sociedade. Estes sujeitos, cada vez mais diversos, lutam para ter seu espaço no currículo escolar.
Ao longo de nossa história, desde a colonização, constatamos a hegemonia de grupos detentores de um maior poder econômico e de uma maior influência política em relação aos sujeitos e coletivos sociais que não gozam dessas condições. De acordo com Graça Reis e Mariza Campos (2019, p. 178) “Essas práticas de colonização de grupos não hegemônicos são regularmente conhecidas e repetem com frequência uma lógica de subalternização, desvalorização, invisibilização dos sujeitos, de suas histórias e suas ações.” Por isso, desde longa data, os sujeitos e coletivos desviantes do padrão estabelecido como “normal” foram invisibilizados ou discriminados no contexto social e na perspectiva do currículo escolar.
Assim, um dos grandes desafios da educação contemporânea é construir propostas curriculares que abranjam as especificidades existentes na realidade social da qual os alunos fazem parte. Acolher o diferente, o plural, implica no desconforto de redefinir posicionamentos assumidos de forma irrefletida em decorrência dos papéis e lugares sociais que ocupamos.
O currículo, dentre outras funções, objetiva promover uma transmissão cultural de conhecimentos socialmente construídos, considerados necessários para a manutenção, o desenvolvimento ou a transformação de uma sociedade. Neste sentido, as relações entre currículo, conhecimento e diversidade costumam ser uma arena de disputas e embates educacionais.
Compreender a diversidade, na perspectiva educacional, é fundamental para perceber que o conhecimento é produzido por meio das atividades e das relações sociais historicamente construídas por coletivos sociais e indivíduos (GOMES, 2007). Sendo assim, é necessário entender que as pessoas têm o direito legítimo de exercer sua cidadania com dignidade e a escola tem a função de valorizar as identidades plurais, respeitando as escolhas e o modo de viver de cada ser humano. Portanto, a educação formal precisa favorecer as múltiplas expressões dos sujeitos diversos que fazem parte da sociedade.
DIVERSIDADE E CURRÍCULO
Considerando que a educação é um direito constitucionalmente garantido a todo cidadão brasileiro, nos deparamos com o seguinte desafio: como educar a todos reconhecendo e respeitando a diversidade dos sujeitos e coletivos sociais constituintes de nossa sociedade? No Brasil, este desafio começa pela formação dos professores para receber e efetivamente incluir os diversos sujeitos sociais, que são denominados como “outros” (ARROYO, 2014).
Assim, somos convidados a pensar sobre quem são esses “outros” que passaram a ter acesso à educação básica e sobre o que têm a nos dizer acerca de seus conhecimentos e saberes. Certamente são sujeitos plurais, com diferentes histórias de vida e serão educados por profissionais que receberam uma formação homogeneizadora, que desconsiderava a pluralidade dos educandos de hoje. Onde encontrar referências para a nova formação exigida pelos sujeitos plurais presentes nas salas de aula? A discussão acerca da diversidade tem recebido atenção na formação inicial e continuada de professores da educação básica? Estas questões não são simples de responder, pois, na contemporaneidade, tudo está em constante transformação: alunos, professores e sociedade. Por isso, a escola é intimada a também mudar para exercer seu papel de educar.
José Carlos Libâneo (2012, p. 23) comenta, em relação às políticas de universalização do ensino, que “enquanto se apregoam índices de acesso à escola, agravam-se as desigualdades sociais do acesso ao saber, inclusive dentro da escola, devido ao impacto dos fatores intraescolares na aprendizagem”. O autor aponta para o fato de que mesmo com as políticas de acesso à escola, há ausência de uma efetiva inclusão social, pois o saber e o conhecimento são parcialmente negados às camadas populares, visto que a qualidade da educação pública oferecida aos alunos é questionável.
Por muito tempo, a escola ignorou a existência de sujeitos diversos (SOUSA, 2018). No entanto, práticas educativas uniformizantes já não correspondem às expectativas de alunos que vivem numa sociedade plural, na qual reivindicam espaço para exprimir suas singularidades. Na sociedade contemporânea, todos podem lutar por ter seus direitos garantidos, desse modo, as escolas e os sistemas educacionais precisam pensar em novas propostas pedagógicas e currículos que levem em consideração os conhecimentos e saberes dos diversos sujeitos que acolhem. Neste sentido, Arroyo (2014, p. 83) questiona:
Como pensar currículos, conteúdos e metodologias, formular políticas e planejar programas educativos sem incorporar os estreitos vínculos entre as condições em que os educandos reproduzem suas existências e seus aprendizados humanos? Questões inquietantes (...) que vêm instigando outras práticas educativas, outros conhecimentos e outras relações entre mestres e educandos.
Por estas razões, a escola contemporânea precisa dialogar com os sujeitos oriundos de diversos coletivos sociais ao planejar ações pedagógicas que contemplem os anseios dos seus alunos. Numa perspectiva crítica, não é admissível ser omisso diante de questões polêmicas que afetam a escola contemporânea, como as relativas ao racismo, à sexualidade, à pobreza, à inclusão de pessoas com deficiência no ensino regular, ao papel das mídias, dentre outras. Dessa forma, os educadores precisam ter atenção à forma como o currículo escolar é construído, principalmente para não cair na armadilha do ofuscamento ou esvaziamento das diferenças (SOUSA, 2018; ALVES; SALUSTIANO, 2020). Os temas acerca da diversidade e das diferenças são complexos e envolvem questões polêmicas e conflitantes, fazendo com que muitas questões educacionais inquietantes nem sempre sejam tratadas na escola como deveriam.
Podemos mencionar, como exemplo, a abordagem que algumas escolas dão à obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, incluídas no currículo oficial por meio da Lei nº 11645/2008 (BRASIL, 2008). Observamos que, às vezes, há um tratamento “caricato” dessa temática, principalmente, por destacar apenas a capoeira e as danças indígenas, esquecendo-se de trabalhar com fatores mais amplos que implicam na construção de um conhecimento mais profundo acerca da história e da cultura dessas populações. Portanto, é preciso repensar as metodologias aplicadas para não haver um mascaramento conceitual e a negação das contribuições dos povos negros e indígenas na formação da sociedade brasileira.
Problematizar a relação entre diversidade e currículo na contemporaneidade implica em pensarmos se e como o currículo daria conta de reconhecer e acolher a diversidade no contexto escolar. Como o fazer pedagógico da escola, expresso no currículo, efetivará o direito à educação e ao conhecimento assegurados por lei? Como equacionar os conflitos resultantes de nossas afirmações teóricas e de nossos compromissos éticos e políticos em contextos em que a diversidade não considera o reconhecimento das diferenças? Enfim, em que condições o currículo se expressa como mecanismo de in(ex)clusão?
Segundo Antônio Flávio Moreira e Vera Candau (2007, p. 17), a palavra currículo expressa “distintas concepções, que derivam dos diversos modos de como a educação é concebida historicamente, bem como das influências teóricas que a afetam e se fazem hegemônicas em um dado momento.” Dessa forma, compreender os significados do currículo escolar não é uma tarefa tão simples quanto pode parecer à primeira vista, pois envolve a constante redefinição de conhecimentos, práticas pedagógicas, concepções de sujeitos, finalidades da educação etc., aspectos mutáveis em cada sociedade e tempo histórico.
Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2003, p. 15), “O currículo é sempre resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo.” Logo, compreendemos que as composições curriculares são fruto da decisão de sujeitos e instituições que estão em condições de fazer tais escolhas e as consideram relevantes em face de certos objetivos. O currículo não é isento de intenções e interesses; ele é o resultado de uma seleção feita com propósitos educacionais específicos. Não se trata de uma justaposição de conteúdos, pois em toda seleção há uma motivação e determinadas expectativas de aprendizagem. Neste sentido, o currículo tem intenções, objetivos e percurso metodológico antes mesmo de chegar às escolas. Tal fato se deve à própria forma de organização do ensino, fortemente influenciada pelos objetivos das políticas públicas nacionais e internacionais e por determinações legais, dentre inúmeros fatores intervenientes (SOUSA, 2018; ALVES; 2019; ALVES; SALUSTIANO, 2020).
José Sacristán (1998, p. 34), por sua vez, define o currículo como “projeto seletivo cultural, social, política e administrativamente condicionado, que preenche a atividade escolar e que se torna realidade dentro das condições da escola tal como se acha configurada.” Neste contexto, diferentes perspectivas teóricas e práticas levantam inúmeras questões sobre a atenção à diversidade dos sujeitos e às práticas educativas presentes no interior da escola. Os professores, principais responsáveis pela educação formal, necessitam de formação para conhecer e atuar na escola na perspectiva do reconhecimento da diversidade e da diferença.
No âmbito educacional, os primeiros documentos oficiais direcionados aos profissionais da educação básica com a função de evidenciar a temática da diversidade foram os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), tratando da pluralidade cultural. Eles serviram como referência para a elaboração de livros didáticos que nortearam o currículo escolar. A existência desses documentos oficiais abriu espaços para a discussão e a reflexão sobre temas transversais e sobre a diversidade na escola e, a despeito das justificadas críticas que sofreu, tiveram um papel importante ao problematizar determinados assuntos que eram tratados de forma isolada ou não eram sequer mencionados. Neste sentido, a produção dos Parâmetros significou uma importante tentativa de abordar a temática da diversidade em âmbito curricular nacional.
Segundo Candau (2012), a partir da década de 1990 houve um aumento do número de programas e políticas públicas que visavam o reconhecimento da diversidade e o enfrentamento das desigualdades sociais, considerando a centralidade do currículo e das práticas pedagógicas desenvolvidas no interior da escola, a exemplo da Lei nº 10639/03 e da Lei nº 11645/08 acerca da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, da criação da Secretaria de Políticas de Promoção e Igualdade Racial-SEPPIR (BRASIL, 2003) e do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009).
No que diz respeito às atuais políticas curriculares para a educação brasileira, sublinhamos a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2017), documento normativo que abrange toda a educação básica e evidencia uma tendência a “homogeneizar” a formação discente por meio do ensino baseado em competência voltadas para o mercado de trabalho, deixando em segundo lugar o ensino de conteúdos que abordam questões centrais ligadas às diferenças. Num país tão amplo e diverso como o nosso, propor um currículo nacional único pode resultar em muitos prejuízos. Nesse sentido, corroboramos com as ideias de Sandra Corazza (2016, p. 140) ao observar que “em um mundo dividido e hierarquizado por classe, gênero, etnia, religiosidade, problematizamos a própria concepção de “nacional”, desde que, deste modo, essencializamos o que é sujeito a múltiplas interpretações.”
Considerando a singularidade que marca as práticas culturais e os modos de inserção social de alunos e professores que fazem parte das escolas brasileiras, tendo em vista suas histórias de vida e o contexto no qual estão inseridos, nos perguntamos: como a BNCC, enquanto política curricular, acolherá todas as suas diferenças? Qual será o lugar da diversidade quando se pensa um currículo nacional? Como os conteúdos relacionados à diversidade devem ser trabalhados numa perspectiva escolar? Estas questões complexas merecem profundas e constantes reflexões por parte dos pesquisadores da área educacional e dos professores da educação básica. Afinal, todas as políticas educacionais e curriculares são questionáveis e precisam constantemente ser redimensionadas para, de fato, atender às demandas sociais reais da população brasileira.
A BNCC constitui um currículo baseado em competências que, segundo Ângela Albino e Andréia Silva (2019, p. 140), “visa a preparação do homem para atender às condições contemporâneas de produção de bens e serviços em suas novas formas de organização do trabalho”. Portanto, as competências tão destacadas na BNCC foram concebidas para atender a necessidades capitalistas, dentro da lógica neoliberal. No texto da BNCC, os conteúdos que ensejariam o aprofundamento de questões relacionadas à diversidade e à diferença ocupam um lugar secundário, constituindo cerca de 40% dos conteúdos diversificados, enquanto os considerados essenciais, contemplados na parte comum do currículo, representam 60% dos conteúdos obrigatórios (ALVES; SALUSTIANO, 2020). As pautas de reivindicações de negros, mulheres, indígenas, pessoas com deficiências e pobres, por exemplo, não são compatíveis com o modelo de formação que as competências da BNCC querem impor no currículo educacional brasileiro.
Tendo em vista as considerações acima, ressaltamos a importância e a necessidade de participação dos educadores de todos os níveis de escolaridade nos movimentos sociais e no debate contemporâneo acerca do reconhecimento das diferenças presentes, atualmente, nas salas de aula. Sublinhamos, da mesma forma, a urgência de ampliar e aprofundar a compreensão dessas questões na formação inicial e continuada dos professores da educação básica, instância em que há maior escassez de estudos sobre essa temática.
DIVERSIDADE E MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA NA SALA DE AULA
O docente possui um papel primordial ao mediar situações de aprendizagem fundamentadas na escuta e no diálogo com os educandos, objetivando produzir conhecimentos necessários para a vida e não apenas para a escola. Nesse contexto, compreender o papel da mediação é fundamental para a prática pedagógica. Ao discutir a mediação pedagógica, Marta Kohl de Oliveira (1992, p.27) observa que
Se por um lado a ideia de mediação remete a processo de representação mental, por outro lado refere-se ao fato de que os sistemas simbólicos que se interpõem entre sujeito e objeto de conhecimento têm origem social. Isto é, é a cultura que fornece ao indivíduo os sistemas simbólicos de representação da realidade e, por meio deles, o universo de significações que permite construir uma ordenação, uma interpretação, dos dados do mundo real.
Oliveira (1992) destaca o papel da cultura nos estudos de Vygotsky, aspecto claramente relacionado às concepções e às práticas acerca da diversidade, que devem ser expressas no currículo enquanto conteúdo, nas relações com o outro e nas interações entre alunos e entre estes e o professor, que se encontram na condição de sujeitos cognoscentes e mediadores de aprendizagem.
Maria Cecília Góes (1997) abordou a dimensão cognitiva da mediação pedagógica, apontando a importância do modelo SSO (Sujeito cognoscente, Sujeito mediador e Objeto de conhecimento) para a compreensão dos processos de produção de conhecimentos, ressaltando a participação do aluno, do professor e dos conteúdos na relação de ensino-aprendizagem. Por outro lado, Dorivaldo Salustiano, Rita Figueiredo e Anna Fernandes (2007) demonstram que a mediação pedagógica não se restringe à dimensão cognitiva; envolve aspectos políticos, sociais e relações de poder e que as aprendizagens dos alunos enquanto sujeitos sociais também são influenciadas por conflitos e contradições da vida em sociedade.
No que diz respeito à diversidade de sujeitos, conhecimentos e saberes, a mediação do professor é fundamental para o reconhecimento e para as afirmações dos alunos com base nos valores e nas práticas culturais do meio social e cultural no qual estão inseridos. A compreensão das relações entre estes aspectos e os condicionantes econômicos e políticos também é necessária para o entendimento da realidade do aluno. Portanto, na perspectiva da educação para a diversidade, a mediação precisa ser considerada de uma perspectiva crítica e ampla, não apenas psicológica ou pedagógica.
Neste sentido, é relevante considerar o papel das redes sociais, da internet e das vivências socioculturais como mediadores da organização curricular. Estes aspectos interrogam a prática do professor que precisa estar atendo às múltiplas formas pelas quais a diversidade se faz presente em sua sala de aula, para assim poder interagir com seus alunos. De acordo com Vygotsky (2007), a interação social é o elemento-chave para a aprendizagem e para o desenvolvimento humano porque somos seres sociohistóricos, construídos no seio de uma cultura.
No contexto da educação escolar, a mediação do professor deve propiciar condições que contribuam para interagir com a diversidade do mundo contemporâneo e se beneficiar do que ela pode proporcionar ao seu trabalho pedagógico. Ademais, é importante para o educador compreender que a diversidade, como fonte de múltiplas possibilidades de interação, pode produzir conflitos, resistências, situações paradoxais que também fazem parte das relações de saber e poder.
Portanto, é fundamental compreender o papel dos alunos com interlocutores dos processos educativos, como sujeitos que interagem e participam das aulas. No processo interativo em que se dá a mediação pedagógica, tanto o aluno quanto o professor acabam refletindo suas vivências plurais e as influências da sociedade contemporânea que contribuem para suas aprendizagens.
Conforme observa Vera Werneck (2019, p. 63) “O objetivo do ensino não é apenas a transmissão do já conhecido, mas o desenvolvimento da capacidade de observação e de reflexão crítica.” Dessa forma, o professor, enquanto mediador do processo de construção do conhecimento, pode se beneficiar das interações e tensões presentes na sala de aula para favorecer uma reflexão crítica acerca dos dilemas da educação para a diversidade. Em nossa perspectiva, a discussão de temáticas relacionadas à diversidade implica em realizar uma crítica ao ensino tradicional que sempre privilegiou o ensino conteudista.
METODOLOGIA
Nosso estudo teve como objetivo central conhecer o entendimento de professoras dos anos iniciais do ensino fundamental de uma escola pública acerca da diversidade no currículo escolar. Para tanto, desenvolvemos uma investigação qualitativa (MINAYO, 2008; MOREIRA; CALEFFE, 2008), mediante o emprego dos princípios teórico-metodológicos da análise de conteúdo (BARDIN, 2016). O estudo foi cadastrado na Plataforma Brasil (BRASIL, 2017) e obteve aprovação de Comitê de Ética em Pesquisas em virtude da observância dos preceitos estabelecidos pelas Resoluções nº 466/2012 e 510/2016, acerca da pesquisa envolvendo seres humanos (BRASIL, 2012; 2016).
O lócus da pesquisa foi uma escola pública da rede municipal de uma cidade do interior da Paraíba. Os sujeitos participantes do estudo foram quatro professoras que lecionavam nos anos iniciais do ensino fundamental (2º ao 5º anos) há mais de cinco anos, licenciadas em Pedagogia e efetivadas no serviço público por meio de concurso para a função de magistério. Objetivando preservar suas identidades, as docentes são referidas neste artigo por pseudônimos de sua própria escolha. Os dados objeto de análise foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas (GIL, 2010).
ANÁLISE DOS DADOS E RESULTADOS
Nesta seção, apresentamos e discutimos a compreensão das professoras Bianca (2º ano), Lis (3º ano), Pérola (4º ano) e Cíntia (5º ano), acerca da diversidade no contexto do currículo e das práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula, conforme expressaram por meio de entrevistas acima referidas.
A professora Bianca destacou a diversidade como conteúdo de ensino sobre a cultura afrobrasileira. Ela afirmou abordar a temática da diversidade “quando a gente traz pra sala de aula uma atividade da cultura-afro, [...] a gente faz um conto e pede pra eles fazerem uma ilustração e no final você vê a beleza, a riqueza que é”. A docente parece reconhecer a importância das conquistas legais, baseadas na Lei nº 11645/08, ao acrescentar que “era um assunto que estava adormecido, que ninguém dizia e se não fosse a exigência das leis, hoje ninguém falava do assunto. Então é de fundamental importância.”
Ao pensar na diversidade como um conteúdo de ensino, a professora mencionou as atividades que desenvolveu sobre a cultura afro, afirmando ser um assunto interessante para ser trabalhado em sala de aula. É importante lembrar que a inserção da cultura afro como objeto de ensino no currículo escolar demonstra que o currículo é um campo de conflitos e um território político incontestável (SILVA, 2003), pois os negros conseguiram, depois muitos anos de luta e reivindicações, fazer com que elementos da sua cultura fossem inseridos no currículo nacional, provocando alterações na lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9394/96.
Destacamos que as conquistas dos afrodescendentes decorrem, dentre outros fatores, da organização do movimento negro, da luta desse coletivo pelo fim de práticas racistas e discriminatórias que marcam a história do Brasil. Segundo Nilma Gomes (2012, p.735), a educação aparece como foco central na história do movimento negro, por ser compreendida
como um direito paulatinamente conquistado por aqueles que lutam pela democracia, como uma possibilidade a mais de ascensão social, como aposta na produção de conhecimentos que valorizem o diálogo entre os diferentes sujeitos sociais e suas culturas e como espaço de formação de cidadãos que se posicionem contra toda e qualquer forma de discriminação.
Nesta perspectiva, dentre as conquistas legais mais significativas dos negros podemos citar a alteração da atual LDB (Lei nº 9394/96), por meio da Lei nº 10639/03 e da Lei nº 11645/08 com a inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”; a criação da Secretaria de Políticas de Promoção e Igualdade Racial – SEPPIR (BRASIL, 2003); a criação, no Ministério da Educação, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD em 2004; o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009); e a Lei nº 12.288/10, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial (BRASIL, 2010).
Ao tratar da diversidade, Bianca associa essa temática à inclusão, no currículo, do ensino da história e da cultura afro-indígena, enfatizando que tais conteúdos só foram abordados de fato por causa das exigências legais. Portanto, percebemos que as conquistas legais possuem muita força para redimensionar o currículo escolar e favorecer uma nova perspectiva para o trabalho docente. Entretanto, a docente parece compreender as questões da diversidade numa perspectiva celebratória (SOUSA, 2018; ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011), pois não chega a problematizar as razões do silenciamento da diversidade no currículo escolar e o longo processo de reivindicações que antecederam essas conquistas. Ela apenas fala que é um tema rico para ser trabalhado na sala de aula, nos fazendo pensar numa perspectiva harmônica de ensinoaprendizagem, desconsiderando a perspectiva histórica e a análise das relações de poder nos processos de mediação pedagógica, necessárias a uma compreensão crítica do tema.
A professora Lis indicou compreender a diversidade como um conteúdo de ensino relacionado às diferenças, afirmando: “eu trabalho a diversidade nesse sentido de diferenças [...] de todos os âmbitos, seja religioso, econômico, eles já visualizam quem é rico, quem é pobre, as condições de quem tem e de quem não tem, porque os alunos hoje em dia são muito diferentes.” Ela destacou principalmente as diferentes condições econômicas de seus alunos, argumentando que eles já percebem seus efeitos: “Eles já têm outra leitura de mundo, eles já observam, quando você lança uma questão para eles, [...] eles já abrem pra outras questões.” Essa professora parece considerar os alunos de hoje diferentes, no sentido de serem espertos e terem uma percepção mais crítica do mundo em que vivem. A menção ao fato de que seus alunos do 3º ano “visualizam quem é rico, quem é pobre, as condições de quem tem e de quem não tem” indica, implicitamente, que eles pareciam estar cientes dos efeitos da desigualdade associadas a diferentes práticas religiosas e condições econômicas que fazem parte de suas vidas.
José Barros (2005, p. 347) observa que “falar sobre desigualdade implica em nos colocarmos em um ponto de vista, em um certo patamar ou espaço de reflexão (econômico, político, jurídico, social, e assim por diante)”. Talvez a ausência de uma reflexão mais profunda, como apontada por Barros, se deva ao fato de que Lis tenha abordado o tema levando em consideração a faixa etária média de oito anos de idade das crianças, tratando as informações conforme o nível de complexidade esperado para uma turma do 3º ano do ensino fundamental. Entretanto, mesmo considerando as dificuldades da temática em relação ao público, a professora Lis demonstrou um esforço para discutir a diversidade numa perspectiva mais crítica ao apontar para os sentidos das diferenças feitas desigualdade nas vivências religiosas e nas condições econômicas.
A professora Pérola explicitou sua percepção em relação à diversidade explicando como trabalhava a temática como um conteúdo de ensino. Ela fazia relações com temas do cotidiano, pois, de acordo com seu relato, estes “tratam da questão do preconceito, de não aceitar o diferente”. Além disso, ressaltou que o tema “também vem presente nos livros didáticos”. Para esta professora, o livro didático aparece como um importante norteador da sua prática pedagógica. Quando perguntada se a diversidade influencia na aprendizagem dos alunos, Pérola também a destacou como condição dos sujeitos e como objeto de ensino: “Sim, influencia bastante porque eles próprios vivem num contexto de diversidade.” Assim, a professora reconhece que a diversidade é inerente à vida dos próprios alunos. Ela também afirma: “a partir do momento que eu começo a abordar esse tema na sala de aula, das diferentes formas, eu percebo que eles começam a se perceberem como seres diferentes e participantes”. De acordo com Pérola, como os alunos vivem num contexto de diversidade e suas aulas são voltadas para a realidade deles, a diversidade pode ser considerada um conteúdo de ensino. Na sua argumentação, a diferença aparece como sinônimo da diversidade e uma concepção acrítica da diversidade se sobressai, posto que as desigualdades características das condições de vida dos sujeitos são vistas como expressão de sua diversidade e não como exploração socioeconômica.
Já a professora Cíntia, ao ser questionada sobre como a diversidade se faz presente no currículo escolar, respondeu que “deve haver maior debate para que se possa questionar e ver, realmente, enquanto currículo, [como se] pode melhorar essa temática em sala de aula”. Constatamos, neste caso, a falta de comentários ou problematização do tema na prática docente da professora. Por outro lado, ela menciona a necessidade de “maior debate [...] para que se possa questionar e ver, realmente, [como se] pode melhorar essa temática em sala de aula”, enfatizando, assim, a importância de ampliar sua compreensão acerca desse tema na formação inicial e continuada. Conforme Moreira e Candau (2007, p. 9), “os currículos são orientados pela dinâmica da sociedade. Cabe a nós, como profissionais da Educação, encontrar respostas” para os desafios atuais.
Assim, quando refletimos sobre a diversidade como tema de ensino, percebemos a importância das lutas dos movimentos sociais nos debates pedagógicos que envolvem o currículo e a Pedagogia. A docente Cíntia não chega a mencionar a importância das reivindicações dos coletivos diversos (ARROYO, 2014), mas reconhece a necessidade de questionar a diversidade no currículo escolar.
De acordo com o entendimento das professoras Pérola e Cíntia, a diversidade foi identificada como um tema importante que precisa ser trabalhado em sala de aula, pois faz parte da vida dos alunos e do cotidiano escolar. Entretanto, é perceptível que as docentes não possuem muita apropriação teórica para falar da temática. Tal situação sugere a ausência de formação inicial e continuada consistentes acerca de questões referentes à diversidade e diferença no currículo escolar. Quanto a este aspecto, Cynthia Duk (2006) ressalta que, na maioria das vezes, a formação dos professores é pobre e insuficiente para lidar com as situações existentes na prática escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A diversidade é um tema importante e está presente na sociedade e no cotidiano da sala de aula, seja, por intermédio do currículo oficial ou mediante práticas do currículo oculto. Tendo em vista as muitas conquistas legais em prol dos coletivos diversos (ARROYO, 2014), verificamos a ampliação do acesso à educação básica para muitos sujeitos sociais que antes não frequentavam a escola. Entretanto, estes sujeitos que conquistaram o direito à educação escolar querem muito mais do que apenas poder frequentar as escolas; desejam ter seus conhecimentos e saberes, sua cultura e histórias de vidas reconhecidos e respeitados, inclusive no currículo escolar.
Neste sentido, a mediação pedagógica ocupa um papel fundamental na medida em que contribui para a construção de conhecimentos que possibilitam refletir sobre a realidade, construir conhecimentos e se posicionar ante os desafios da sociedade contemporânea. Os docentes, enquanto mediadores da construção dos conhecimentos curriculares, são convidados a combater práticas discriminatórias e excludentes, oportunizando a expressão e a visibilidade de sujeitos silenciados e invisibilizados na escola e na sociedade.
Os dados evidenciaram que as professoras sujeito deste estudo reconhecem a importância e necessidade de abordar a diversidade como temática significativa no currículo escolar e buscam incluí-la em suas práticas pedagógicas. Destacaram também a importância das conquistas legais para a visibilidade de conteúdos relacionados à diversidade, respaldo sem o qual a cultura afroindígena, as desigualdades econômicas, a diversidade de credos ou práticas religiosas, dentre outros aspectos, continuariam negligenciados enquanto objeto de estudo.