INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, inúmeros avanços ocorreram na educação nacional, principalmente se considerarmos os marcos legais e investimentos técnicos e financeiros efetivados pelos governos das três esferas administrativas, os quais ampliaram e promoveram direitos aos cidadãos e, até hoje, buscam viabilizar a qualidade e a equidade na oferta dos serviços educacionais num país continental como o Brasil, notadamente marcado pela diversidade e pluralidade da composição da sua população e das especificidades locais e regionais.
Nesse contexto, destacamos a Constituição Federal (BRASIL, 1988), que assegurou a educação como direito social e consagrou em seus dispositivos, seja na sua versão original ou por meio de emendas posteriores, questões importantes, como a ampliação da idade escolar obrigatória na educação básica, os fundos de manutenção e valorização dos profissionais da educação, a inclusão e os planos de educação como instrumentos de planejamento do Estado.
A partir das premissas legais, temos a inclusão das pessoas com deficiência nas escolas comuns e, consequentemente, a necessidade de adequação dos espaços escolares quanto à acessibilidade, formação de professores, metodologias, oferecimentos de recursos e serviços e, também, o Atendimento Educacional Especializado (AEE) para o desenvolvimento das potencialidades desses sujeitos. Assim são promovidas as políticas públicas para o acesso e a permanência dos estudantes e o fortalecimento das redes públicas de ensino, por meio de investimentos na formação inicial e continuada de professores e demais profissionais da educação e infraestrutura escolar.
Com o objetivo de atender aos marcos legais existentes e às necessidades advindas da sociedade, o Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014 (BRASIL, 2014a), apresentou dispositivos ratificando a inclusão das pessoas com deficiência nas escolas comuns, tendo a Meta 4 e suas respectivas estratégias como base das ações educacionais para todos os entes federativos.
Assim, diante das conquistas logradas por meio da legislação para a garantia dos direitos aos cidadãos em matéria educacional, este artigo apresenta considerações sobre o processo de elaboração e implementação da Lei do PNE 2014-2024 e a análise da Meta 4 contida no Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação - 2020 (BRASIL, 2020), produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Estatísticas Anísio Teixeira (INEP), com o objetivo de contribuir com o debate junto a todos aqueles que estudam e militam por uma educação de qualidade, equânime e inclusiva.
Dessa forma, entende-se a inclusão educacional como aquela em que todos estejam inseridos no mesmo contexto escolar e recebam recursos, serviços e Atendimento Educacional Especializado para complementar e suplementar sua aprendizagem, visando à garantia de "condições apropriadas de atendimento às peculiaridades individuais, de forma que todos possam usufruir das oportunidades existentes (ARANHA, 2001, p. 2).
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO 2014-2014
O Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) é fruto do esforço e da mobilização dos diversos setores da área educacional e representantes da sociedade civil, por meio das conferências municipais, intermunicipais e estaduais de educação no ano de 2009, as quais antecederam a Conferência Nacional de Educação de 2010 (CONAE/2010), realizada sob a coordenação do Fórum Nacional de Educação, com abordagem de temas estruturantes do setor.
A partir desse movimento coordenado pelo Poder Executivo Federal, o texto do projeto de lei para o então novo PNE foi encaminhado ao Congresso Nacional no final do ano de 2010. Cabe destacar que a tramitação dessa matéria percorreu mais de três anos e meio, considerando as audiências públicas, reuniões, debates e a pressão social à medida que se discutia ou ressoava alguma alteração no texto da norma, principalmente na meta referente à inclusão, Meta 4, e na relativa ao financiamento, Meta 20.
Com a aprovação no Congresso Nacional, o PNE foi sancionado sem vetos por meio da Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, contendo 14 artigos e um anexo com as 20 metas e as 254 estratégias que abrangem o conjunto da educação nacional, ou seja, todos os níveis, etapas e modalidades de ensino. Para melhor entendermos a organização das metas do PNE, recorremos ao material Planejando a Próxima Década – Conhecendo as 20 metas do Plano Nacional de Educação, elaborado pela extinta Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino, do Ministério da Educação (SASE/MEC), que assim apresenta:
Há metas estruturantes para a garantia do direito à educação básica com qualidade, que dizem respeito ao acesso, à universalização da alfabetização e à ampliação da escolaridade e das oportunidades educacionais. [...] Um segundo grupo de metas diz respeito especificamente à redução das desigualdades e à valorização da diversidade, caminhos imprescindíveis para a equidade. [...] Um terceiro bloco de metas trata da valorização dos profissionais da educação, considerada estratégica para que as metas anteriores sejam atingidas. [...] Um quarto grupo de metas refere-se ao ensino superior, que, em geral, é de responsabilidade dos governos federal e estaduais [...] (BRASIL, 2014b, p. 12).
Ademais, no corpo da lei do PNE, destacam-se os dispositivos que determinam aos entes federativos a implementação de medidas para que o plano se concretize, dentre os quais destacamos:
Art. 5º A execução do PNE e o cumprimento de suas metas serão objeto de monitoramento contínuo e de avaliações periódicas, realizados pelas seguintes instâncias: I - Ministério da Educação - MEC; II - Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal; III - Conselho Nacional de Educação - CNE; IV - Fórum Nacional de Educação. § 1º Compete, ainda, às instâncias referidas no caput: I - divulgar os resultados do monitoramento e das avaliações nos respectivos sítios institucionais da internet; II - analisar e propor políticas públicas para assegurar a implementação das estratégias e o cumprimento das metas; III - analisar e propor a revisão do percentual de investimento público em educação (BRASIL, 2014a).
A partir dessas orientações, os estados, o Distrito Federal e os municípios passaram a elaborar seus respectivos planos, inclusive com apoio do MEC, que disponibilizou uma rede de assistência técnica e formação para atender às equipes locais. Desse esforço colaborativo, obteve-se praticamente a totalidade dos entes federativos com planos aprovados em lei, na busca por alinhar o planejamento das ações educacionais no país.
Nessa guisa, corrobora o pensamento de Azevedo, pois o plano se constitui numa “[...] expressão do planejamento, ferramenta usada pelas sociedades objetivando o alcance de metas estabelecidas para sua organização e desenvolvimento, que nas políticas públicas guiam a ação governamental” (AZEVEDO, 2014, p. 266). Dessa forma, a sociedade passa a balizar e a fundamentar as proposições nessa área, com o devido acompanhamento, também dos conselhos e órgãos de controle, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas de todas as esferas administrativas.
No que concerne “à redução das desigualdades e à valorização da diversidade, caminhos imprescindíveis para a equidade”, propostas do PNE, um dos objetivos foi possibilitar o acesso à educação para todos os cidadãos à margem dessa importante política da sociedade, tornando inclusivos os espaços escolares, as redes e os sistemas de ensino. Nesse sentido, tomamos como recorte para o debate em pauta neste ensaio a inclusão das pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na escola comum, tendo como fonte de consulta o resultado constante no Relatório do 3º ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) – 2020, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), referente à Meta 4, Educação Especial.
REVISITANDO MARCOS HISTÓRICOS, LEGAIS E CONCEITUAIS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
Ao longo da história, as pessoas com deficiência foram marginalizadas, excluídas e discriminadas, integrando os grupos minoritários que não tinham direitos sociais respeitados. A partir das lutas, embates e discussões da sociedade civil sobre o direito ao acesso à educação, esse cenário foi se modificando, principalmente com a busca pela universalização da educação básica contida nos documentos internacionais 'Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem' (UNESCO, 1990) e 'Declaração de Salamanca e linhas de ação sobre as necessidades educativas especiais' (UNESCO, 1994), que conclamavam aos países participantes, um compromisso efetivo para:
[...] superar as disparidades educacionais deve ser assumido. Os grupos excluídos - os pobres; os meninos e meninas de rua ou trabalhadores; as populações das periferias urbanas e zonas rurais; os nômades e os trabalhadores migrantes; os povos indígenas; as minorias étnicas, raciais e linguísticas; os refugiados; os deslocados pela guerra; e os povos submetidos a um regime de ocupação - não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportunidades educacionais. As necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras1 de deficiências requerem atenção especial. É preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência, como parte integrante do sistema educativo (UNESCO, 1994, p. 3).
Nessa conjuntura, dados estatísticos mostraram que 70% das pessoas eram analfabetas nos países em desenvolvimento (UNESCO, 1990). Essa informação promoveu discussões sobre as diversas formas de exclusão nos espaços escolares, os meios para erradicá-las, bem como a reorganização das escolas para que se tornassem inclusivas. A partir da década de 1990, o Brasil, como signatário da 'Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem' (UNESCO, 1990), implementou políticas educacionais decorrentes do Plano Decenal de Educação para Todos (1993), visando "uma base política para a sociedade construir uma nova escola [...]" para desenvolver um “[...] conjunto de competências básicas cognitivas e sociais para todos, crianças, jovens e adultos" (BRASIL, 1993, p. 14).
No que se refere à legislação educacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 9.394/96 apresenta um capítulo específico para a educação especial (Capítulo V) que, dentre outros dispositivos, conceitua essa modalidade de ensino como aquela "[...] oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação" (BRASIL, 1996, Art. 58).
O atendimento educacional das pessoas com deficiência era realizado por instituições filantrópicas, de forma assistencialista, as quais recebiam repasse financeiro do poder público. Essa oferta era caracterizada como educação especial, acontecia de forma substitutiva ao ensino comum, com organização, currículos e práticas pedagógicas diferenciadas, e era disponibilizada em espaços separados, denominados classes e escolas especiais (MAZZOTTA, 2011).
A partir de 2001, políticas educacionais com o foco na inclusão foram implantadas para promover o acesso e, também, disponibilizar o Atendimento Educacional Especializado, os serviços e recursos necessários para a permanência e o desenvolvimento dos estudantes, preferencialmente em escolas comuns (BRASIL, 2001).
Na esteira desse movimento e, ainda, influenciado pela globalização e pelo discurso da inclusão educacional, o Brasil começou a reorganizar as políticas educacionais e os sistemas de ensino para que se tornassem inclusivos, respeitando os direitos humanos e as características individuais. Assim, o "Governo Federal opta pela matrícula dessa população em salas comuns de escolas públicas, acompanhado (ou não) de um atendimento educacional especializado, prioritariamente na forma de salas de recursos multifuncionais" (KASSAR, 2011, p. 72).
De forma tênue e gradativa, a partir de 2001, a inclusão educacional foi acontecendo nas escolas públicas (GARCIA, 2016), impulsionada, a partir de 2008, pela instituição da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEI) para garantir a:
Transversalidade da educação especial desde a educação infantil até a educação superior; atendimento educacional especializado; continuidade da escolarização nos níveis mais elevados do ensino; formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão escolar; participação da família e da comunidade; acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes, na comunicação e informação; e articulação intersetorial na implementação das políticas públicas (BRASIL, 2008).
A partir da elaboração da PNEEI e dos decretos, resoluções, programas e políticas educacionais implementados no Brasil em decorrência dessa política, o acesso ao atendimento educacional das pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, avançou consideravelmente. Segundo Garcia (2016, p. 45):
Apreendemos esse documento como uma estratégia política de produzir um novo consenso articulado, no plano específico, em torno de ideias como o direito à educação dos estudantes da educação especial, a escola regular e o atendimento educacional especializado como forma de atender ao direito à educação, a necessidade de reconhecer a diversidade e as diferenças humanas, a importância dos recursos de acessibilidade.
Outro instrumento legal que agrega dispositivos visando ao aprimoramento da oferta da educação inclusiva é o Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), que em sua Meta 4 expressa as lutas e discussões advindas da sociedade civil pela garantia do direito à educação, respeito às características individuais e acessibilidade ao prever a universalização do acesso à educação básica e ao AEE. O PNE assevera que a oferta dessa modalidade deve ser “preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados” (BRASIL, 2014a, p. 55), premissas fortemente marcadas na PNEEI de 2008.
A meta em referência é constituída por dezenove estratégias que abordam a universalização do atendimento escolar; o atendimento educacional especializado a todos os estudantes que integram esse público; a implantação de salas de recursos multifuncionais; a formação continuada dos professores para o AEE; a educação bilíngue; a acessibilidade nas escolas públicas; o financiamento pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB); dentre outras questões relacionadas à temática.
O MONITORAMENTO DA META 4 DO PNE (2014-2024)
O monitoramento contínuo e as avaliações periódicas do PNE estão resguardados na letra da lei, inclusive determinando as instâncias responsáveis por esse processo. De acordo com o §2º do art. 5º da lei em tela, o INEP, órgão do Poder Executivo vinculado ao Ministério da Educação, a cada dois anos, “[...] publicará estudos para aferir a evolução no cumprimento das metas estabelecidas [...], com informações organizadas por ente federado e consolidadas em âmbito nacional” (BRASIL, 2014a).
Assim, há que se considerar que os dados apresentados pelo INEP revelam a análise técnica e quantitativa de cada uma das metas, detalhada por indicadores, para subsidiar as instâncias responsáveis por essa ação. Por se tratar de documento público, toda a sociedade pode, ainda, se beneficiar e utilizar essas informações para o devido acompanhamento, estudos e pesquisas.
Nessas circunstâncias, convém refletir sobre o monitoramento e a avaliação do PNE, compreendendo a necessidade e intencionalidade desse processo imbricado, cujo resultado, geralmente, deve reverberar nas políticas educacionais a serem implementadas no país, servindo como base para a tomada de decisões, proposição de medidas saneadoras para as metas e estratégias que não obtiveram o alcance esperado no tempo analisado. Conforme assevera JANUZZI (2014, p. 32), o monitoramento:
[...] constitui um processo sistemático e contínuo de acompanhamento de uma política, programa ou projeto, baseado em um conjunto restrito – mas significativo e periódico – de informações, que permite uma rápida avaliação situacional e uma identificação de fragilidades na execução, com o objetivo de subsidiar a intervenção oportuna e a correção tempestiva para o atingimento de seus resultados e impactos.
Seguindo essa lógica e considerando a importância de se estabelecer um processo de monitoramento e avaliação dos planos de educação que atenda aos contextos e necessidades locais, Dourado, Grossi Jr. e Furtado (2016, p. 457) destacam que:
[...] os entes federativos devem ter clareza de que o monitoramento e a avaliação dos planos de educação tornam-se elementos imprescindíveis à tomada de decisões dos gestores públicos, visando a garantir a relação eficiência, eficácia e efetividade do que foi planejado, os possíveis ajustes no percurso, a participação da sociedade e a transparência necessária.
No que se refere especificamente ao monitoramento do PNE (2014-2024), o INEP produziu os documentos Plano Nacional de Educação – PNE 2014-2024: Linha de Base, Relatório do 1º Ciclo de Monitoramento das metas do PNE: Biênio 2014-2016, Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação – 2018 e Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação – 2020, em cumprimento aos preceitos legais e com o objetivo de subsidiar o processo em pauta.
No contexto desse monitoramento, retomamos a Meta 4 com a proposta de:
Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados (BRASIL, 2014a, grifo nosso).
Analisando o histórico da educação especial e inclusiva na área educacional brasileira, a meta mostra-se ousada e impõe inúmeros desafios aos gestores do setor e toda sociedade. Nota-se que o acesso à educação infantil ainda é limitado em muitas regiões do país, o ensino médio apresenta elevadas taxas de evasão e reprovação, altos índices de analfabetismo e analfabetismo funcional e o baixo desempenho dos estudantes aferidos por meio do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
Nessa perspectiva, universalizar a educação é cumprir o direito constitucional que tem como princípio a garantia da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola para todos, “sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988), para fortalecer a participação e desenvolver a cidadania. Para CURY (2013, p. 202):
[...] o direito à educação se liga, intrinsecamente, à função pública do Estado na medida em que só ele pode estender universalmente a escola para todos e assim atender o conjunto dos cidadãos com imparcialidade de modo a fazer cumprir os grandes objetivos da democracia e da justiça.
A meta em referência pressupõe, ainda, “a garantia de sistema educacional inclusivo”, o qual acolherá a população de forma adequada para o desenvolvimento das potencialidades dos estudantes. Assim, faz-se necessário compreender o conceito de sistema, o qual SAVIANI (2008, p. 2015) entende como:
[...] um conjunto de atividades que se cumprem tendo em vista determinada finalidade, o que implica que as referidas atividades são organizadas segundo normas que decorrem dos valores que estão na base da finalidade preconizada. Assim, o sistema implica organização sob normas próprias (o que lhe confere um elevado grau de autonomia) e comuns (isto é, que obrigam a todos os seus integrantes).
Nessa perspectiva, um sistema educacional inclusivo “remete para a ampliação dos direitos e inserção social de grupos historicamente marginalizados” (MICHELS, GARCIA, 2014, p. 164). Para tanto, o PNE destaca como proposta que os sistemas de ensino sejam inclusivos, por meio da consecução das suas metas e estratégias. Tecnicamente, convém pontuar que uma meta é aferida por meio dos seus indicadores e que, no caso específico da Meta 4, temos:
Indicador 4A: Percentual da populacão de 4 a 17 anos de idade com deficiencia que frequenta a escola. Indicador 4B: Percentual de matrículas em classes comuns da educacao basica de alunos de 4 a 17 anos de idade com deficiencia, TGD e altas habilidades ou superdotacão. Indicador 4C: Percentual de matrículas na educacão básica de alunos de 4 a 17 anos de idade com deficiencia, TGD, altas habilidades ou superdotacão que recebem atendimento educacional especializado (BRASIL, 2020).
Assim, tendo como premissa o diálogo acerca do previsto nos indicadores da Meta 4 do PNE e com base nos documentos oficiais acerca do monitoramento deste importante planejamento da política educacional brasileira, com destaque para o Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) – 2020 e as Sinopses Estatísticas da Educação Básica, produzidos pelo Inep, depreendemos os seguintes dados e análises:
A Tabela 1 apresenta o número de matrículas da Educação Especial no conjunto da Educação Básica entre os anos de 2013 a 2019, com aumento de 68% nas classes comuns, passando de 648.921 matrículas em 2013 para 1.090.805 em 2019. Um dado que ainda chama atenção são as matrículas em “classes exclusivas2”, as quais obtiveram decréscimo de 17,62% no período analisado, no entanto, ainda representam 160.162 estudantes.
Ano | Total | Classes comuns | Classes exclusivas |
---|---|---|---|
2013 | 843.342 | 648.921 | 194.421 |
2014 | 886.815 | 698.768 | 188.047 |
2015 | 930.683 | 750.983 | 179.700 |
2016 | 971.372 | 796.486 | 174.886 |
2017 | 1.066.446 | 896.809 | 169.637 |
2018 | 1.181.276 | 1.014.661 | 166.615 |
2019 | 1.250.967 | 1.090.805 | 160.162 |
Fonte: organizada pelos autores com base na Sinopse Estatística da Educação Básica (BRASIL, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019a).
Ampliando o escopo dessa análise, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), comparando dados do Censo 2010, estima que 6,7% da população apresenta algum tipo de deficiência. Calcula-se, ainda, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (2018), que o Brasil possui 35,5 milhões de crianças com até 12 anos de idade. Desse total, considerando a estimativa do IBGE, temos 2.130.000 crianças com alguma deficiência e, dessas, 1.250.967 estão matriculadas. Assim, podemos concluir que 41,26% desse público não tem acesso a nenhum tipo de educação, seja nas escolas comuns ou nas escolas especiais. Se considerarmos que a idade escolar obrigatória compreende dos 4 aos 17 anos e ampliarmos a análise dos dados, esse percentual poderá ser maior.
Fonte: Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) – 2020 (BRASIL, 2020)
Nota-se claramente que as redes estaduais e municipais de ensino concentram a maior parte da oferta das matrículas das pessoas público da Educação Especial no período 2013-2019 em classes comuns, com percentuais superiores a 94 pontos.
A análise dos percentuais das escolas da iniciativa privada indica um crescimento de 437% entre 2013 e 2019; em 2013 eram 39.082 matrículas e, em 2019, 210.245. Esses dados indicam que mesmo com a oferta da educação nas escolas privadas de livre iniciativa e respeitando as normas gerais, o acesso do público da educação especial sempre foi restrito. No entanto, a partir do Estatuto das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2015), a negação da matrícula e a cobrança por atendimentos educacionais complementares tornaram-se passíveis de punição por discriminação, preconceito e violação ao princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, previsto na Constituição Federal (1988), o que tem contribuído para o aumento desse indicador.
É importante sinalizar que o acesso a escola, de todas as crianças e adolescentes, precisa ser entendido de fato como estado de direito e não como concessão. Enquanto entendimento (político, educacional, social) de estado de direito, tem-se uma prática alicerçada no reconhecimento do outro e de suas formas de ser. Esse reconhecimento, por sua vez, sinaliza um avanço no processo civilizador da sociedade que a materializa. Sendo assim, estes elementos colaboram no decorrer de sua consolidação para formas menos arbitrárias de inter-relacionamentos entre pessoas. Ou seja, há um melhor equilíbrio nas relações de poder entre grupos e intragrupos sociais. Todos estes aspectos favorecem uma modificação de paradigma que leva ao estudante com deficiência deixar de ser o ser anômico (sem poder) nas relações estabelecidas no interior da escola, e por conseguinte, ao longo dos tempos, nas relações sociais mais amplas. (SILVA, TAVARES; ARAÚJO, 2006)
Ano | Educação Infantil | Ensino Fundamental | Ensino Médio |
---|---|---|---|
2013 | 42.982 | 505.505 | 47.356 |
2014 | 47.496 | 540.628 | 56.563 |
2015 | 51.891 | 576.795 | 64.488 |
2016 | 58.772 | 607.232 | 74.007 |
2017 | 69.218 | 668.652 | 93.231 |
2018 | 81.254 | 741.426 | 115.051 |
2019 | 99.105 | 791.893 | 124.998 |
Fonte: organização dos autores com base na Sinopse Estatística da Educação Básica (BRASIL, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019a).
Os dados acima mostram que o maior quantitativo de matrículas se concentra no ensino fundamental, fato que pode associar-se a inúmeros fatores, dentre eles as políticas de financiamento que remontam à década de 1990, decorrentes do Plano Decenal de Educação para Todos (BRASIL, 1993). Cabe destacar o aumento de 130% nas matrículas na educação infantil e de 163% no ensino médio no período analisado.
Fonte: Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) – 2020 (BRASIL, 2020)
De acordo com dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), 372.368 matrículas (BRASIL, 2019b) receberam, em 2019, recursos para o AEE por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FUNDEB). Esse atendimento:
[...] é realizado, prioritariamente, na Sala de Recursos Multifuncionais da própria escola ou em outra escola de ensino regular, no turno inverso da escolarização, podendo ser realizado, também, em centro de atendimento educacional especializado público ou privado sem fins lucrativos, conveniado com a Secretaria de Educação" (BRASIL, 2019b).
O quantitativo de matrículas nas escolas comuns, discriminado na Tabela 1, aponta 1.090.805 estudantes em 2019. Percebe-se que somente 34,13 % desses estudantes recebem o AEE, sinalizando o cumprimento da Meta 4, no que se refere a universalizar o AEE, está muito longe ser efetivado. Outro fator que merece atenção é a queda no percentual de atendimento evidenciada na série histórica 2013-2019.
A análise do percentual de matrículas da população público da Educação Especial que recebe Atendimento Educacional Especializado, apresentado na Figura 3, reforça a existência de desigualdades regionais no país, considerando que regiões que historicamente acumulam perdas e ausências de investimentos nas diversas áreas sociais corroboram baixos indicadores nesta oferta, como o Norte e o Nordeste.
Fonte: Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) – 2020 (BRASIL, 2020)
Para além das análises quantitativas que os dados proporcionam, há que se considerar e apontar para o debate as informações que tratam das políticas educacionais dessa área, no que se refere ao planejamento, à gestão, à execução e, principalmente, à qualidade dos serviços prestados e à participação social. Nessa seara, dialogamos sobre qualidade enquanto um conceito polissêmico, o qual não pode ser imposto e sim debatido e pactuado. A qualidade da educação para Dourado e Oliveira (2009, p. 203) é vista como um “[...] conceito histórico, que se altera no tempo e no espaço, ou seja, o alcance do referido conceito vincula-se às demandas e exigências sociais”, compreendendo:
[...] dimensões extra e intraescolares e, nessa ótica, devem se considerar os diferentes atores, a dinâmica pedagógica, ou seja, os processos de ensinoaprendizagem, os currículos, as expectativas de aprendizagem, bem como os diferentes fatores extraescolares que interferem direta ou indiretamente nos resultados educativos (DOURADO; OLIVEIRA, 2009, p. 205).
Os autores destacam, ainda, aspectos essenciais para a construção de um sistema educacional com qualidade, dentre eles:
a) as dimensões, intra e extraescolares devem ser consideradas de maneira articulada na efetivação de uma política educacional direcionada à garantia de escola de qualidade para todos, em todos os níveis e modalidades; b) a construção de uma escola de qualidade deve considerar a dimensão socioeconômica e cultural, uma vez que o ato educativo escolar se dá em um contexto de posições e disposições no espaço social (de conformidade com o acúmulo de capital econômico, social e cultural dos sujeitos-usuários da escola), de heterogeneidade e pluralidade sociocultural, de problemas sociais que repercutem na escola, tais como fracasso escolar, desvalorização social dos segmentos menos favorecidos, incluindo a autoestima dos alunos etc.; d) o reconhecimento de que a qualidade da escola para todos, entendida como qualidade social, implica garantir a promoção e atualização histórico-cultural, em termos de formação sólida, crítica, ética e solidária, articulada com políticas públicas de inclusão e de resgate social (DOURADO; OLIVEIRA, p. 212).
Vista a partir da compreensão de que a escola é um espaço que contribui com as mudanças nas relações sociais pela produção e disseminação do saber historicamente produzido, a qualidade fica comprometida quando se trata do desequilíbrio no acesso (SAMPAIO; OLIVEIRA, 2015), que é uma das dimensões da desigualdade educacional e necessita ter suas causas e implicações compreendidas para a formulação de políticas públicas educacionais.
Desse modo, as políticas públicas intencionam materializar os direitos garantidos em leis, evidenciando as ações voltadas aos cidadãos que delas estão à margem, inclusive quando se trata da política educacional. Portanto, convém destacarmos que a materialização da Meta 4 do PNE não está somente relacionada à universalização do acesso para a população público da Educação Especial, considerando o quantitativo das matrículas, pois oportunizar somente o acesso não é garantia de que essa população alcance a aprendizagem de acordo com as suas necessidades e especificidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O PNE (2014-2024) se constitui num amplo instrumento de planejamento da educação nacional para o decênio 2014-2024, elaborado a partir do debate ocorrido nas conferências de educação, envolvendo as diversas representações da área. A lei que instituiu o PNE (2014-2024) previu o processo de monitoramento constante e avaliações periódicas com representantes de instituições que atuam na proposição e consecução das políticas educacionais.
A partir dos dados oficiais e, principalmente, os que constam no documento produzido pelo Inep, denominado Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação – 2020, obtivemos um panorama quantitativo acerca da inclusão das pessoas com deficiência em classes nos sistemas de ensino, conforme preconiza o PNE, assim como a oferta em classes exclusivas e o Atendimento Educacional Especializado, tendo como recorte histórico o período de 2013 a 2019.
Além disso, na análise do Censo Escolar, coletado e divulgado anualmente pelo Inep, nota-se a ausência dos dados da oferta do Atendimento Educacional Especializado, tanto nas salas de recursos multifuncionais nas escolas comuns de educação básica quanto nos centros de atendimento educacional especializado, já que em muitas situações as instituições conveniadas assumem esse atendimento em detrimento ao papel do Estado.
Assim, a atual conjuntura de governo com cortes nos recursos financeiros para a educação sinaliza uma preocupação quanto à materialização do PNE (2014-2024), especificamente da Meta 4, pois a política entra em conflito com dispositivos do plano e de outras propostas vinculadas ao movimento mundial da educação inclusiva. Além disso, não há como avançar em qualquer proposição sem que haja o devido financiamento.