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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.69 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 28-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67533 

Migração e refúgio: desafios educativos entre desigualdades e diferenças

MIGRAÇÃO E REFÚGIO: desafios educativos entre desigualdades e diferenças

MIGRATION AND REFUGE: educational challenges between inequalities and differences

MIGRACIÓN Y REFUGIO: desafíos educativos entre desigualdades y diferencias

Ana Karina Brenner1 
http://orcid.org/0000-0002-0778-3525; lattes: 7940374041513750

Marcia Soares de Alvarenga2 
http://orcid.org/0000-0002-8686-9844; lattes: 4672329547292143

1UERJ/ProPEd

2UERJ/FFP-PPGEdu - Processos Formativos e Desigualdades Sociais


Resumo

O presente texto apresenta seção temática que oferece às leitoras e aos leitores um conjunto de trabalhos que, num mosaico de abordagens temáticas, conceituais e metodológicas, tem a questão migratória como tema comum. A intensificação da crise do capital que aprofunda a precarização da força do trabalho e os conflitos políticos territoriais que provocam ações contrárias aos direitos de cidadania, aos direitos humanos e, em particular, ao direito à educação estão expressos nesta seção. Ao mesmo tempo em que se descrevem dificuldades materiais, xenofobia, descoberta do racismo, também se anunciam horizontes de possibilidades na produção de redes e movimentos de resistências organizadas na elaboração de políticas públicas para migrantes e refugiados que buscam produzir e reproduzir a vida nos espaços territoriais de destino. A escola, muito presente em cotidianos tanto de crianças e adolescentes quanto de jovens e adultos, seja pela educação básica ou no ensino superior, é a instituição que se faz mais constante nos estudos aqui apresentados. Também é pela escola/universidade que se problematiza a questão da língua, conceitualizações, ofertas e aprendizados do português bem como as múltiplas sociabilidades do contexto de migração e refúgio.

Palavras-chave: migrações; direito à; educação; interculturalidade; trabalho e educação.

Abstract

This text presents a thematic section that offers the reader a set of papers that have the migration as a common theme, in a mosaic of thematic, conceptual and methodological approaches. This section expresses the worsening of the capital crisis that deepens job insecurity and territorial political conflicts that cause actions contrary to the human rights and, in particular, the right to education. While material difficulties, xenophobia and racism are revealed, horizons of possibilities are also announced in the production of networks and organized resistance movements to ensure that there are public policies for migrants and refugees where they seek to produce and reproduce life after fleeing or moving. The school, very present in the daily life of children and adolescents as well as of young people and adults, whether through basic education or higher education, is the institution that becomes more constant in the studies gathered here. It is also through the school/university that the issue of language is problematized, as well as ways to offer possibilities for learning Portuguese and the multiple sociabilities in the context of migration and refuge.

Keywords: migrations; education rights; interculturality; work and education.

Resumen

Este texto presenta un apartado temático que ofrece al lector un conjunto de obras que tienen como tema común la cuestión migratoria, en un mosaico de abordajes temáticos, conceptuales y metodológicos. En este apartado se expresa el recrudecimiento de la crisis del capital que profundiza la precariedad laboral y los conflictos políticos territoriales que provocan acciones contrarias a los derechos de ciudadanía, los derechos humanos y, en particular, el derecho a la educación. A la vez que se describen las dificultades materiales, la xenofobia, el descubrimiento del racismo, también se anuncian horizontes de posibilidades en la producción de redes y movimientos de resistencia organizados para asegurar que existan políticas públicas para migrantes y refugiados que buscan producir y reproducir la vida en espacios territoriales de destino. La escuela, muy presente en la vida cotidiana tanto de niños y adolescentes como de jóvenes y adultos, ya sea a través de la educación básica o de la educación superior, es la institución más presente en los estudios aquí reunidos. Es también a través de la escuela/universidad que se problematiza la cuestión de la lengua, las ofertas y el aprendizaje del portugués, así como las sociabilidades en el contexto de la migración y el refugio.

Palabras clave migraciones; derecho a la educación; interculturalidad; trabajo y educación.

MIGRAÇÃO E REFÚGIO

Um mapa-múndi que não inclua a utopia, não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras a que a Humanidade está sempre apontando.

(Oscar Wilde)

[...] que cada um passe ao global, caminho difícil e mal traçado, mas que devemos abrir. Não se esqueça nunca de onde você parte, mas deixe esse lugar e junte-se ao mundo.

Ame o elo que une sua terra e a Terra e que faz parecerem-se o próximo e o estranho.

(Michel Serres)

Os séculos XIV e XV foram marcados por expressiva mudança de padrão migratório no mundo. As “grandes descobertas” produziram fluxos migratórios intensos entre países europeus e as Américas, África e partes da Ásia. Tais fluxos migratórios foram seguidos por outros, não mais qualificáveis como deslocamentos voluntários: o tráfico de pessoas escravizadas. Este trânsito forçado durou séculos e o Brasil foi o último das Américas a abolir a escravidão. A abolição inaugurou um novo processo migratório, este incentivado, inclusive por ações do Estado brasileiro, para substituição da mão de obra, especialmente nas zonas rurais brasileiras.

Os fluxos migratórios, que seguem as transformações dos modos de produção, de organização das sociedades, da distribuição mundial do trabalho e, também são consequências de conflitos territoriais, eventos naturais catastróficos entre outros motivos, passaram a ser normatizados e controlados conforme interesses de estados nacionais. Os Estados Unidos foram o primeiro país a regular a entrada de migrantes com o “Estatuto Geral da Imigração” de 1882 (BRENNER, MAGALHÃES, 2021).

Os deslocamentos humanos no território fazem parte, portanto, da dinâmica de vida desde os povos mais antigos. Nos tempos modernos articulam-se, contudo, como processos de desenvolvimento do capitalismo, consequente industrialização e processos de colonização que se atualizam, ganham novas formas.

As distinções conceituais entre deslocamentos voluntários e forçados (MIRANDA, MARTINS-BORGES, POCREAU, PELLETIER, 2004) ajudam a compreender dinâmicas do deslocamento. Se, por um lado, parecem claramente diferenciadas pela oposição estabelecida entre voluntário e forçado, por outro, a formulação de planos, de um projeto de deslocamento - uma das características da migração voluntária - tantas vezes se fundamenta nas mesmas razões daqueles que se deslocam forçadamente. Borram-se, portanto, as fronteiras das definições e diferenciações entre uma e outra categoria, entre o que é voluntário e o que é forçado nos deslocamentos humanos contemporâneos.

As guerras que produziram independência de países africanos ao longo do século XX são referência para importantes estudos sobre migração, no sentido de permitirem compreender processos de transformação social impostos pelos colonizadores em sociedades tradicionais. Sociedades essas forçadas à industrialização que demandou deslocamentos do campo para a cidade, além da transformação de camponeses em trabalhadores da indústria, fazendo com que essas pessoas passassem por um processo como que se desterrando dos lugares em que sentidos e modos de vida se produziam (SAYAD, 1998). Frequentes crises políticas internas, grande parte estimuladas pelas ex-metrópoles coloniais em associação às elites locais, também constituem condicionantes de deslocamentos forçados.

Os diferentes tipos de migração - voluntárias ou forçadas - engendram repercussões contundentes no panorama econômico, social e familiar, assim como nas experiências individuais de cada migrante. Isso implica dizer que o indivíduo que imigra fisicamente nem sempre imigra emocionalmente, uma vez que ultrapassar fronteiras geográficas não constitui a tarefa primordial da migração, mas sim transpor barreiras sociais, econômicas, culturais e linguísticas (RODRIGUES, STREY, PEREIRA, 2007).

O Brasil registrava, em 2021, 61.660 pessoas reconhecidamente refugiadas além de 115.000 pessoas na condição de solicitantes de refúgio. O número é pequeno se comparado com a soma de 82,4 milhões de refugiados, solicitantes e deslocados forçados ao redor do mundo (ACNUR, 2021). O Brasil acolhe pouco, se comparado a seu tamanho e importância geopolítica na mediação de crises internacionais que produzem deslocamentos forçados.

Relatório do Observatório das Migrações Internacionais (OBMIGRA), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, aponta que houve aumento exponencial do número de migrantes no país se considerada a última década (2011-2020). O Relatório indica, ainda, o ano de 2013 como marco de uma nova expressão migratória, a inflexão de uma migração cuja origem era o Sul Global para uma migração mais marcada por fluxos caribenhos e latino-americanos. A partir de 2013 “[...] os haitianos passam a ser a principal nacionalidade no mercado de trabalho formal no Brasil, superando as imigrações clássicas, como os portugueses” (CAVALCANTI, OLIVEIRA, SILVA, 2021, p. 14). Em 2016, ocorre rápido crescimento do fluxo de venezuelanos, que chegam pelo Norte do país e formam, junto aos haitianos, o grupo mais numeroso de imigrantes e refugiados. Haitianos e venezuelanos passam a liderar os registros de não nacionais no mercado de trabalho e, também, demandas relativas às condições de refugiados, tais como reunião familiar e inserção social e educacional, entre outras.

Apesar dos muitos fluxos e da longa história de migração em nosso país, ainda carecemos de políticas públicas consistentes de acolhimento, que dependem de produção de conhecimento, em especial em campos de saberes, como o educacional, sobre os sujeitos migrantes, seus perfis socioeconômicos e demográficos, dinâmicas e condicionantes dos deslocamentos e sobre os desafios da integração social.

No contexto da produção de conhecimento sobre essas temáticas busca-se também construir análises na interface das ciências humanas e sociais para melhores compreensões sobre crises migratórias que expressam, de forma ainda mais evidente, alteridades, diferenças e desigualdades multiplicadas. Reznik (2020) afirma que, em grande parte, os estudos sobre fluxos migratórios centram-se em abordagens interdisciplinares e sobre deslocamentos contemporâneos. E, ainda, que os estudos que se fundamentam em memórias de indivíduos e grupos, com abordagens, portanto, biográficas, seriam os mais numerosos. No que se refere especificamente ao campo educacional, pensando o que se ensina e aprende na escolarização básica sobre o tema, Reznik (2020, p. 9) observa que “[...] o tema da migração se mantém confinado a esse momento histórico [fins do século XIX e início do século XX], em correlação com o estudo sobre a ‘substituição da mão de obra escrava pelo trabalho livre’”, estando restrito ao 8º ano do ensino fundamental. Sabemos pouco sobre nossos processos históricos de migração e ainda carecemos de maior densidade no campo dos estudos dos deslocamentos humanos contemporâneos.

Para Sayad (1998, 2010), o emigrante - o que sai de seu território/país - é tantas vezes invisibilizado nos processos de integração; este sujeito é, em geral, reconhecido apenas em sua transfiguração em imigrante, percebido de acordo com os problemas da sociedade de acolhida (saúde, escolarização, trabalho etc.). O sujeito que sai - emigra - e o que chega ao novo destino - imigra - é o mesmo, mas este processo completo de saída e chegada é muitas vezes negligenciado. Há uma oposição entre dois mundos sociais, dois sistemas de relações e de representações. As expectativas do emigrante muitas vezes se frustram na experiência do imigrante.

A frase proferida por uma migrante residente na cidade de Curitiba, no Paraná, durante a realização de uma conferência livre sobre educação de migrantes e refugiados no âmbito da Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE) dá a dimensão atual dessa condição: “[...] se fala em processo de reconstrução de migrantes, mas tem também um processo de construção”. O sujeito que migrou não apenas precisa refazer-se - como sujeito, como cidadão, como ator social e político - mas também construir novas dimensões subjetivas para enfrentar a ilusão quanto à emigração e o sofrimento da imigração (SAYAD, 2010).

A seção temática desta edição da Revista Teias, com 20 artigos, escritos por pesquisadores de vários estados brasileiros, percorre em certa medida os desafios anunciados acima. Os artigos apresentam resultados de pesquisas empíricas e teóricas que refletem sobre educação e migração; multiculturalidade; processos de integração/inclusão de migrantes e refugiados; língua e cultura com refugiados em diferentes contextos educativos no Brasil e a partir de distintas perspectivas sobre a condição migrante na sociedade brasileira. O olhar histórico aparece em apenas um artigo, mas não deixa de expressar interesse mais amplo que o hegemônico dos estudos historiográficos, contemplando os anos 1950-1970. A escola, em praticamente todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, é ponto de partida de reflexões ou locus de investigação empírica na maioria dos trabalhos, contemplando, inclusive, olhares sobre a produção de currículos - que extrapolam, no cotidiano, os limites intentados por diretrizes ou bases curriculares. No entanto, o olhar sobre a condição de migração e refúgio não se restringe à escola. Família, trabalho e sociabilidade aparecem também em arranjos de investigação e análise, articulados ou não com a instituição escolar.

O tema das migrações entrançado com a problemática educacional emerge como um dos principais problemas sociais da modernidade e requer ser examinado de forma interdisciplinar. Para tanto, demanda, na área educacional e nos campos de estudos relacionados, o apoio de referenciais teórico-metodológicos capazes de confrontar ética e politicamente as situações de privação material, simbólica e psíquica de sujeitos que migram, tendo tais situações inscritas na particularidade das sociedades de capitalismo periférico e dependente, como é o caso das sociedades latino-americanas.

Os deslocamentos humanos compõem uma dimensão na história de longa duração, discutidas e abordadas em produções acadêmicas de caráter historiográfico, estudos populacionais e dinâmicas territoriais, estudos de natureza sociológica e antropológica, compondo amplo acervo sobre problemáticas suscitadas.

Não sendo novidade em termos históricos, somente uma referência, podemos lembrar dos dois maiores conflitos de dimensão mundial - a primeira e a segunda guerra mundial -, sendo que somente esta última provocou uma das maiores crises migratórias de amplitude planetária, com mais de 60 milhões de pessoas que cruzaram fronteiras. Dados recentes daOrganização das Nações Unidas (ONU) indicam existir 175 milhões de pessoas fora de seus países de origem (MENEZES, 2020). Parte desses deslocamentos se dá em função de guerras (aqui ainda não considerados os mais de 6 milhões de refugiados ucranianos deslocados neste ano de 2022) mas, também, por conflitos internos, perseguições políticas ou religiosas e, cada vez mais, em função da crise climática que produz mais catástrofes ambientais.

No atual contexto histórico, o tema tem ganhado destaque nas grandes mídias corporativas, mídias alternativas, nas redes sociais e na produção acadêmica em diversas áreas de conhecimento. No âmbito acadêmico, as pesquisas sugerem que as categorias imigração, migração forçada/voluntária, migrante legal e não legal, refúgio, solicitação de asilo político, ambiental, econômico compõem um mosaico movente de sentidos.

São categorias instáveis, trazidas nos estudos dedicados a problematizar sobre aqueles e aquelas que se deslocam pelo mundo. Deslocamentos traçados por percursos intra e trans fronteiriços e que demandam conhecer sobre implicações que provocam no viver humano. Quanto às categorias que percorrem os artigos desta seção especial, recorremos à perspectiva de Harvey (2005) sobre a importância de “friccionar blocos conceituais” no sentido de gerar fagulhas reflexivas para interrogar e superar, pela práxis humana e humanizadora, uma problemática que ultrapassa grandes temporalidades históricas e que alcança o presente.

As migrações humanas modernas e suas continuidades no tempo presente têm sido acompanhadas de vários registros em suportes diversos. Registros ancorados em imagens fotográficas, relatos gravados em escritas e/ou em audiovisuais, acompanhados ou não pelos selos protocolares das normativas e acordos de organismos internacionais. Sejam quais forem as fontes, vários são os documentos que compõem conjuntos de dados quanti-qualitativos que testemunham processos de migrações voluntárias ou forçadas abertas às análises em diversos campos de saberes.

As pesquisas teórico-conceituais, empíricas, mapeamentos de produções bibliográficas têm sido abastecidas, como já mencionamos, por várias fontes que se materializam em documentos, estando, entre estes, as próprias pesquisas em gêneros comunicacionais. São todos estes documentos de cultura, para os quais pedimos de empréstimo o profundo pensamento de Walter Benjamin: “[...] nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie” (BENJAMIN, 2005, p. 70).

A dialética benjaminiana nos convoca a ver, ouvir, falar de e com os documentos que compõem a presente seção temática, a partir de trabalhos realizados pelos autores e autoras mobilizados por interesses sobre o tema, e debruçando-se sobre dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais dos sujeitos das infâncias, das juventudes e da vida adulta. A presença deles em espaços geográficos nos centros e nas periferias brasileiras; nas cidades e no campo, interroga a sociedade brasileira e as instituições que foram reorganizadas, contando com a participação da sociedade civil, e definindo o Estado Democrático de Direito.

A publicação de dossiês em revistas especializadas sobre o tema dos deslocamentos humanos voluntários ou forçados é, ainda, reduzida. Mas percebe-se tendência de crescimento, em face às multiplicidades de processos migratórios entre e transfronteiriças. Para efeitos de referência, citamos dois dossiês publicados nos últimos anos que percorreram o tema enlaçando “migração, refúgio e educação”. Um deles é o dossiê Migração e Educação 1 da Revista Perspectiva em que encontramos estudos que examinaram fluxos migratórios de trabalhadores em itinerâncias, para subsistirem ao agravamento da superexploração das relações capitalistas, em busca por elevação ou reconhecimento de escolaridade para inserção no processo produtivo. O segundo dossiê que queremos aqui referir é Migrações Internacionais e o Direito à Educação da Revista Arquivos Analíticos de Políticas Educativas2. A educação como direito humano fundamental para jovens, adultos e crianças, na particularidade das migrações internacionais, exorta o princípio deste direito, sustentado por declarações acordadas por organismos internacionais, em específico, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), assinada por países signatários, entre os quais, o Brasil, comparando experiências, interfaces, tensões e ambiguidades que envolvem a escolarização de grupos advindos de processos migratórios.

MIGRAÇÃO E REFÚGIO EM MÚLTIPLAS ABORDAGENS

Autores e autoras se dedicaram a examinar experiências de resistência desenvolvidas por migrantes nacionais e estrangeiros em seus encontros e desencontros com a educação escolar, com políticas públicas, com a busca pela integração a partir de instituições estáveis como escolas e universidades. Por meio de seus textos, autoras e autores lançaram olhares distintos à questão migratória, indo ao encontro de sujeitos que buscam resistir à desumanização imposta pela migração e encontram em universidades, escolas, em redes de movimentos sociais referências de estabilidade, diante de sentimentos instáveis de ser e estar no mundo.

As problemáticas que circulam nos artigos desta seção “escovam a contrapelo” as insuficiências das políticas públicas para migrantes e refugiados em instituições educacionais e entidades da sociedade civil. São artigos que abordam a precarização acentuada da força de trabalho dos que migram para uma sociedade de capitalismo dependente e periférico.

Também, são textos que falam sobre as fronteiras da língua como um abrigo para quem quer ficar e nos remetem, inexoravelmente, aos direitos humanos como gramática, em um país de postiça modernidade em par com o arcaico, que bloqueia o viver com dignidade. São estudos que alertam sobre insuficiências e precariedades que desafiam o senso comum em torno da ideia de globalização como integração econômica e cultural, ocultando os jogos de integração/desintegração, inclusão/exclusão, centro/periferia. Esses duplos expressam a forma dominante do capital como novo padrão de poder mundial, ao incorporar regiões e populações do planeta, conformando:

[...] todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005, p. 118).

A interpretação de Quijano oferece uma possibilidade de diálogo entre os textos organizados para esta seção. A riqueza e diversidade de textos enunciados nessa coletânea reúne autores e autoras em seus respectivos esforços de abordarem problemáticas sobre migrações e suas emergências no amplo campo da educação para crianças, jovens e adultos que partiram de seus locais de moradia e existência diante de necessidades emergenciais para a produção da vida em outra sociedade; no caso, a sociedade brasileira. Para a composição dos trabalhos chegaram autoras/es radicados em instituições dos estados do Amazonas, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Roraima, Pará, Goiás e Mato Grosso. Lugares que, se não representam a totalidade do que tem sido produzido, são representativos do que, ainda, precisamos conhecer na construção de problemáticas de pesquisa que começam a borbulhar no campo da educação. Os artigos foram produzidos por pesquisadores de várias instituições de ensino superior, configurando um espectro geográfico de produção de pesquisas que ressaltam dinâmicas, conflitos e redes de solidariedade que permeiam as presenças e pertenças dos grupos migrantes.

O conjunto de artigos submetidos e aprovados para esta seção temática teve temas, abordagens e locus de pesquisa que inspiraram a organização deles em quatro eixos: Migração e refúgio nos e a partir dos espaços escolares; Políticas e normativas educacionais para a questão das migrações: da educação infantil ao ensino superior; Integração de migrantes e refugiados e a questão da língua e A migração e o refúgio no ‘mundo da vida’.

Estamos cientes de que esse arranjo guarda algo de arbitrário, notadamente por ser esta uma publicação coletiva, a partir de um chamamento temático comum, mas não de combinações prévias quanto a perspectivas teóricas e metodológicas. Ainda assim, o agrupamento é expressão de um esforço de reflexão das autoras deste artigo e organizadoras da seção temática, no sentido de perceber recorrências e ausências nos estudos aqui apresentados, levantando questões para que os pesquisadores da área possam encontrar inspirações para novos caminhos de pesquisa, seguindo passos já trilhados e, quiçá, dando-lhes continuidade e aprofundamento.

Migração e refúgio nos e a partir dos espaços escolares

No conjunto de trabalhos que tematizamos como aqueles que tratam da Migração e refúgio nos e a partir dos espaços escolares, as autoras abordam dilemas dos processos de escolarização de crianças pequenas e de jovens e adultos migrantes. As crianças, jovens e adultos de vida em trânsito, sejam nacionais ou estrangeiros, buscam a escola como instituição estável para reativarem processos de enraizamentos, laços culturais, como forma de reconstruir referências afetivas para estruturar o sentimento de vida, por meio de relações integradoras que se espera sejam promovidas por inter-relações entre direito à educação, direito à cidade e direitos de cidadania.

As expectativas geradas por estas relações podem ser e não ser tão auspiciosas. No primeiro artigo deste eixo, Kelly Russo, Leila Mendes e Sandra Marcelino, da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ) discutem, no artigo Aprendi o que é racismo no Brasil: crianças africanas e brasileiras na escola pública, situações de racismo vividas e narradas por crianças em uma escola pública localizada no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A partir de oficinas pedagógicas desenvolvidas com crianças congolesas, angolanas e brasileiras, estas expuseram situações de práticas racistas na escola. As crianças africanas, sobretudo, relataram viver frequentes situações de racismo, manifestações de preconceito e de discriminações dentro e fora da escola, especialmente por serem estrangeiras e africanas. A partir de vários autores/as que sustentam o debate crítico sobre preconceitos e racismo no ambiente escolar, as autoras defendem a intensificação de projetos e práticas antirracistas e interculturais nas escolas, envolvendo toda a equipe e comunidade escolar, como compromisso do acolhimento e inclusão.

A inclusão calcada no acolhimento à diferença e à alteridade comparece no artigo Surdos migrantes na escola: questões de inclusão e direitos humanos linguísticos em estudos desenvolvidos por Paulo Jeferson Pilar Araújo, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Thais Bentes, docente da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Tendo como contexto a migração de venezuelanos para Roraima, estado que, em 2017, foi palco dos maiores conflitos por empregos, acesso ao sistema público de saúde e educação (SIMÕES, 2017). Os autores problematizam a presença de migrantes surdos na instituição escolar e discutem as ações articuladas no âmbito de programas extensionistas, destacando, em particular, o Programa MiSordo que atua na mediação junto às escolas. Ao descreverem as várias ações de apoio e acolhimento aos migrantes venezuelanos surdos, os autores defendem que o uso da Língua de Sinais Venezuelana (LSV) juntamente com a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), com o espanhol e o português deve ter caráter permanente, desde a acolhida até as diferentes etapas e níveis da educação escolar. Esta orientação tem por objetivo promover políticas linguísticas e políticas educacionais para migrantes surdos que superem os limites do uso do Português como Língua de Acolhimento (PLAc) como uma referência exclusiva do direito à educação para comunidades linguísticas de migrantes surdos.

O terceiro artigo deste eixo temático, intitulado Nas diásporas e encruzilhadas dos currículos praticados de uma escola municipal de Manaus, no estado do Amazonas, de autoria de Ceane Simões, professora da Universidade Estadual do Amazonas, retoma reflexões de mestrado da autora. Os resultados apresentados na dissertação dialogam e são atualizados com os efeitos da presença de imigrantes haitianos e venezuelanos em práticas curriculares na Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof. Waldir Garcia. A autora argumenta que as experiências produzidas por migrantes aderem “[...] a uma perspectiva fronteiriça, de encruzilhada, enredadas em diálogo” às suas inquietações epistemológicas. Desse modo, em conversas com os sujeitos “atravessados” por diferentes experiências diaspóricas que resistem ao apagamento de suas heranças, buscam (re)afirmar suas existências. A autora viceja “cruzos” epistêmicos e culturais experimentados nos currículos criados no cotidiano da escola locus da produção de suas reflexões.

Por sua vez, o quarto texto desta primeira seção aborda a questão do direito à educação de jovens e adultos migrantes oriundos da classe trabalhadora. No artigo Os desafios na escolarização de trabalhadores migrantes da Educação de Jovens e Adultos, Célia Regina Vendramini, Eron Keoma do Nascimento e Larissa Pereira do Livramento, professores da Universidade Federal de Santa Catarina, tratam de tema quase ausente na literatura acadêmica, ao menos no âmbito da relação trabalho e educação, dos migrantes que chegam ao Brasil. Ao longo do artigo, as pesquisadoras chamam atenção para o fato de que aqueles aos quais é imposta a situação de imigração constituem “[...] uma massa de trabalhadores completamente disponível ao capital, dado o aumento do desemprego e subemprego” em escala global.

A particularidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e migrantes trabalhadores, sobretudo de haitianos, no município de Florianópolis, mostra uma das vias pela qual se efetiva o processo de expropriação da força de trabalho que (a)tinge, com as tintas da espoliação, a vida da classe trabalhadora obrigada a migrar. A EJA, enquanto modalidade de ensino, se origina da reiterada negação do direito à educação de brasileiros e migrantes estrangeiros. Isto revela quão forte é o fato de que a busca pelo acesso à escola e às condições de nela permanecer impõem a estes trabalhadores e trabalhadoras “[...] sacrificar horas de sono e descanso, convívio com a família e amigos, entre outros aspectos que constituem a vida para além do tempo de trabalho”, em face às precariedades do trabalho desprotegido e da negação de demais direitos sociais.

Políticas e normativas educacionais para a questão das migrações: da educação infantil ao ensino superior

Este segundo conjunto de artigos resulta de contribuições de autoras/es que tomaram como referência de estudos dois principais atores sociais: crianças e adultos migrantes como sujeitos do direito à educação.

A questão da inserção de crianças pequenas e adultos migrantes internacionais nos sistemas escolares brasileiros, além de interpelações a legislações que visem assegurar a eficácia dessas garantias como instrumentos de políticas públicas, são discutidas nos textos desse eixo. Debatem o desafio de categorias entrelaçadas de identidade, multiculturalidade, interculturalidade, diversidade e racismo presentes na busca pela escola, evidenciando múltiplas possibilidades de análise, considerando os contextos nos quais se expressa o fenômeno das migrações internacionais.

Sobre essa realidade, o artigo Crianças (i)migrantes e educação infantil: o que dizem as pesquisas acadêmicas brasileiras, das autoras Fernanda Cargnin Gonçalves Daniel, professora da rede pública municipal de Curitiba e Catarina Moro, professora da Universidade Federal do Paraná, tem por objetivo situar um debate nas produções acadêmicas no tocante às crianças imigrantes e à Educação Infantil. Em suas análises, as autoras constatam significativo aumento de pesquisas que abordam a relação entre crianças imigrantes e Educação Infantil, em especial, a partir do ano de 2020. No estudo sistemático de teses e dissertações, destacam os temas da diferença, da diversidade, do racismo e do acolhimento de crianças imigrantes nas instituições educacionais. Muito embora as pesquisas revelem a “[...] não valorização da cultura imigrante nas instituições”, ao mesmo tempo, expõem tentativas de práticas de acolhimento das crianças no espaço escolar. A pouca presença de pesquisas que abordam a relação Educação Infantil, família e migração, ao menos nos repositórios consultados pelas autoras, contrasta com as inquietações verificadas em países da América do Norte e da Europa, como observado por Martins (2001, p. 21).

O estudo apresentado por Dinelle Rejane da Silva Lisboa, que atua como bibliotecáriadocumentalista da Universidade Federal do Pará, e Marcio Antonio Raiol dos Santos, docente desta mesma universidade, no artigo A produção de conhecimento sobre multiculturalismo e currículo da educação básica: análise de dissertações e teses de programas de pós-graduação em educação brasileiros (2011-2020) é dedicado à compreensão de concepções do tema do multiculturalismo em seus nexos com as teorias críticas e pós-críticas do currículo que comparecem com maior destaque entre as produções acadêmicas analisadas. Autora e autor do artigo asseveram que as teorias críticas e pós-críticas de currículo predominaram entre as produções de teses e dissertações analisadas. Tendo como chave de leitura a perspectiva multicultural, o artigo indica pistas reflexivas que levam a desvendar como os currículos podem enredar práticas contraditórias no chão da escola, seja de caráter monocultural seja multicultural. Em qualquer caso, o debate continua em aberto, pois nos confrontamos com determinadas posições que tanto se contrapõem e buscam superar sistemas de opressões quanto as que buscam perenizá-los no campo educacional.

As políticas públicas sobre a questão migratória são objetos, respectivamente, dos três artigos publicados a seguir, que discutem a situação de matrículas de migrantes em escolas públicas e a efetividade das normativas que garantam acesso à educação de qualidade.

No artigo Educação para além das matrículas: crianças migrantes, refugiadas, e a Resolução nº 1/2020, Rômulo Sousa de Azevedo, do Instituto Federal do Mato Grosso e integrante da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da UFG e Cláudia Tavares do Amaral, docente da Universidade Federal de Catalão (UFCAT), em Goiás, valendo-se da materialidade da Resolução, partem das críticas construídas por diversos autores com os quais dialogam para asseverar que as políticas educacionais para migrantes e refugiados desvelam que, no Brasil, ainda são insuficientes as ações políticas para a garantia do direito à educação de crianças e adolescentes. O estudo trilha a perspectiva históricodialética para analisar uma fonte documental, a Resolução nº 01/2020, emitida pelo Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB), como parte da realidade social mais ampla. Desse modo, interpelar um documento implica buscar sua materialidade e desvelar o objeto histórico de sentido sob as estratificações das convenções fixadas, seu percurso nas instâncias governamentais e pressões exercidas pela sociedade civil para sua implementação. Por este caminho teórico-metodológico, conceitos-chave e a lógica interna da Resolução tomados como signos ideológicos por excelência, como ensina Mikhail Bakhtin, são postos em contrapalavra a partir do que vivenciam professoras e estudantes das escolas que receberam crianças migrantes e refugiadas. Os autores compreendem que a aludida normativa “[...] representa um avanço político, mas o que informará sua efetividade será o acompanhamento da resolução nos próximos anos”, para o que nos parece ser decisiva a força dos movimentos sociais ao colocarem em suas agendas de lutas o direito à educação para além do acesso às instituições escolares.

Também Marcia Jose Damasio, professora da rede pública municipal de Santa Catarina e Marilda Merência Rodrigues, professora da Universidade Federal da Fronteira Sul, interrogam as políticas públicas para migrantes que acessam redes escolares, no artigo Os imigrantes chegam às escolas… e as políticas públicas?. As autoras organizam dados documentais da pesquisa sobre políticas públicas e migração, cruzando fontes bibliográficas de caráter acadêmico e normativo, bem como recorrem a sites institucionais de notícias para captar dinâmicas das ações e demandas dos sujeitos imigrantes. Na particularidade dos haitianos que se deslocaram para o Brasil, nas pesquisas acadêmicas analisadas, constatam-se vários obstáculos para que, esses migrantes, acessem o direito à educação, sendo entre os mais relevantes as implicações linguísticas para os não falantes da língua portuguesa. Tais implicações aprofundam contradições específicas no processo migratório, seja no aspecto de inserção em postos de trabalho seja na inserção nas escolas para seus filhos e filhas e para os adultos. Entre vários aspectos examinados, as autoras chamam atenção para o risco de não se ter uma política específica que cuide da população imigrante e do trabalho docente, sendo necessário dotar as escolas com recursos pedagógicos e destinação de carga horária para estudos e formação dos profissionais de educação, no sentido de disporem de condições necessárias e adequadas para o trabalho junto aos migrantes, de modo a que cheguem às escolas junto com políticas públicas.

No último artigo agrupado nesse tema, Migrações e educação de adultos deslocados: uma reflexão sobre direitos educativos, Rita de Cássia da Cruz Silva, doutoranda da USP/FE e Maria Clara Di Pierro, docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, recuperam e sistematizam importante reflexão sobre normativas do Direito Internacional e dos Direitos Humanos que consolidaram o direito à educação para todas as pessoas, incluindo migrantes e refugiados nos territórios de acolhimento. A complexidade dos temas discorridos pelas autoras sugere recobrir problemáticas amplas que nos instigam sobre rumos teórico-conceituais que podem ser assumidos para abordar a questão migratória. Conforme podemos apreender no texto, os termos acionados guardam sentidos diferentes entre si, sobretudo quando se relacionam às funções educativas e socializadoras das escolas em sociedades que recebem migrantes de culturas diferentes. Ancoradas nas normativas da UNESCO sobre educação de grupos deslocados, as autoras encontram nas diretrizes deste organismo internacional a defesa do paradigma intercultural “para toda a sociedade”. De todo modo, e a despeito dessas diretrizes, há que se perguntar sobre a existência de algo mais profundo do que aparenta a superfície das palavras postas em contraposição quando acionadas para o debate sobre migrações e seus desdobramentos políticos, sociais e culturais.

Integração de migrantes e refugiados e a questão da língua

Já apontamos, no começo deste artigo, que a organização da produção em eixos temáticos guarda certa arbitrariedade, pois alguns deles poderiam tanto estar agrupados em um tema quanto em outro. Mas os agrupamentos se formaram também em função de diálogos possíveis entre os artigos do conjunto. Neste agrupamento de artigos encontramos trabalhos que abordam mais especificamente questões relacionadas com as culturas em diálogo, em função da migração ou refúgio, e das questões linguísticas de oferta e aprendizado da língua portuguesa. Artigo que trata da presença de surdos em escolas de Roraima também aporta contribuições sobre este tema, mas está apresentado no primeiro subtema, por ser um estudo que se realiza em escola da educação básica e problematiza a questão do refúgio a partir da instituição escolar. Assim, também o artigo apresentado no segundo eixo aporta contribuição a este terceiro, quando, da discussão sobre políticas públicas para migrantes, levantam que o domínio da língua é um entrave significativo e que demanda políticas orientadas a este fim.

Do mesmo modo, o artigo Entre pedagogias e saberes ‘outros’: contribuições da interculturalidade para o direito à educação de migrantes no Brasil, de autoria de Tatyana Scheila Friedrich e Jaqueline Bertoldo, ambas vinculadas à Universidade Federal do Paraná e integrantes da Cátedra Sérgio Vieira de Mello para refugiados, poderia estar junto aos artigos que falam da escola, mas a problematização da questão cultural muito dialoga com as discussões sobre a língua como meio de integração e de produção de si em contexto de migração e refúgio. Fundamentando-se em Derrida as autoras afirmam que “[...] a questão da hospitalidade começa na língua, ao exigir do(a) estrangeiro(a) que nos compreenda”. Elas afirmam que na organização dos Estados-nação o reconhecimento e efetividade dos direitos humanos está submetido a um vínculo de nacionalidade, mas “[...] os sujeitos, enquanto destinatários e titulares de direitos, quando migram, contestam os limites políticos da fronteira que delimita aqueles que podem ou não ter acesso a esses direitos”. Considerando os desafios enfrentados à garantia do direito à educação para sujeitos cada vez mais diversos e oriundos de distintas culturas, aportam contribuições da “[...] interculturalidade crítica para (re)pensar e (re)fazer o direito à educação de migrantes e pessoas em situação de refúgio na realidade brasileira”. Indicam que “[...] a exclusão do(a) estrangeiro(a) é constitutiva da identidade nacional e da própria subjetividade humana” e, neste sentido, o migrante representa um paradoxo “[...] diante da suposta unicidade - cultural, linguística, étnico-racial - da identidade nacional”.

O artigo Acolhimento de estudantes refugiados no ensino superior por meio do acompanhamento terapêutico: uma aprendizagem das ‘co-moções’ é de autoria de Suellen Ferreira Luz e Rodrigo Lages e Silva, vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tratam do acolhimento educacional de estudantes em situação de refúgio no ensino superior nesta mesma instituição de ensino, durante o período pandêmico, visando aproximar saúde mental e educação em sua abordagem. Tal proposta se fundamenta na política de ações afirmativas da instituição que assegurou acesso à universidade a pessoas em condição de migração ou refúgio e careciam de políticas de apoio à permanência. A autora e o autor afirmam que “[...] a partir dos encontros com os acompanhantes terapêuticos, emergiram problemáticas que extrapolam vidas individuais [...] pensar acolhimento, saúde mental e educação não é possível, portanto, sem habitar esse campo problemático” entre o político - que é coletivo -, e o individual. A dimensão de “co-moções” vincula-se a “[...] práticas relacionais que envolvem um redimensionamento da emoção pensada como reação aguda a um estresse ambiental”. Os pesquisadores e migrantes/refugiados envolvidos na proposta lidaram com os desafios do encontro mediado por “objeto tecnológico” que se opunha à concepção de corpo que os orientava e encontraram na importância da comunicação saídas para o aparente paradoxo. As experiências dos migrantes incidiam sobre as estratégias de ação das equipes de atendimento terapêutico. E do atendimento emergiam as interfaces entre educação e saúde mental. “Há um desejo de reviver suas histórias, de sustentar as diferenças e contribuir com a possibilidade de existir sem tantas restrições, sem precisar apenas incorporar uma nacionalidade”.

O terceiro artigo deste conjunto, assim como o segundo, tem foco de investigação em estudantes estrangeiros no ensino superior. Se no segundo a condição de migrante era bastante marcada, neste, os estudantes podem ser considerados migrantes temporários, se é que se possa produzir tal concepção. O que se pretende marcar aqui é a diferença entre sujeitos que chegam ao Brasil vislumbrando um horizonte longo de permanência e sujeitos que chegam tendo um horizonte de quatro ou cinco anos com retorno programado ao fim da graduação - ainda que novos planos possam ser traçados e impliquem prolongamento da permanência. Em Construindo uma universidade internacionalizada: um estudo sobre a permanência estudantil na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Luciana dos Santos Jorge, Carla Craice da Silva e Luciana Schleder Almeida discutem peculiaridades de uma universidade em que 25% do corpo discente é formado por estrangeiros oriundos de Países de Língua Oficial Portuguesa (Palop), principalmente do continente africano. É um corpo discente predominantemente negro e africano. A pesquisa apresentada se desenvolveu com uma primeira aproximação quantitativa seguida de aprofundamento qualitativo, fundamentando-se nos conceitos de afiliação institucional (Coulon) e de permanência universitária (Dyane Santos). Os estudantes estrangeiros - migrantes ou refugiados - vivem desafios específicos relacionados com sua condição de um não nacional, mas também vivem, de maneira exacerbada, desafios comuns a todos os estudantes brasileiros. Compreender afiliação institucional e permanência universitária dos estudantes estrangeiros permite conhecer também, em grande medida, questões mais universais dos estudantes universitários no Brasil.

Os artigos de Dayane Cortez e Angela Cristina Di Palma Back, Considerações sobre o Português como Língua de Acolhimento e seus impactos na política linguística e de Helen Parnes Miranda e Sonia Regina de Souza Fernandes, Interculturalidade e PLAc: reflexões acerca de educação e cidadania de migrantes e refugiados, abordam propriamente questões linguísticas e de ensino da língua portuguesa como aspecto específico para refugiados e migrantes. Cortez e Back, da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), propõem, em um ensaio, “[...] reflexão sobre o papel das políticas linguísticas no estabelecimento do acesso ao ensino-aprendizagem do Português como Língua de Acolhimento (PLAc)”. Contemplam discussão sobre a inclusão de sujeitos escolares não falantes de língua portuguesa oriundos de fluxos migratórios incluindo dados relativos ao perfil dos migrantes que habitam o território brasileiro. Apoiam-se em autores como Michail Bakhtin, Paulo Freire e bel hooks para pensar prática de ensino de língua que “[...] não perpetue colonialismos e opressões, mas sim, uma política linguística do ensino de PLAc inclusiva, neste mundo cada vez mais diaspórico e multicultural”.

A migração e o refúgio no ‘mundo da vida’

Este último conjunto de artigos que compõe a seção temática de Teias reúne resultados de pesquisa e reflexões que observam, colhem narrativas, analisam processos de vida em condições de refúgio em espaços que não tomam a escola (básica ou universidade) como locus de realização do campo de investigação. São estudos que não têm a escola como ponto central de análise ou de realização da pesquisa de campo, embora a instituição escolar também apareça na interface com os múltiplos tempos e espaços em que a vida se faz. São cinco os artigos desse conjunto temático.

O artigo Processos educativos de crianças em periferias urbanas: o que muda quando a casa vai ficando muito longe da escola? de autoria de Maria Tereza Goudard Tavares e Carolina Silva de Alencar, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, articula perspectivas teóricas de diferentes campos do conhecimento para pensar a questão da infância (CHRISTENSEN, O’BRIEN, 2003) sob a perspectiva do direito à cidade (LEFEBVRE, 1991), tomando Bourdieu (2007) e a teoria dos campos para construir essas articulações. E aparece neste artigo algo que não apareceu em nenhum outro: a dimensão do deslocamento forçado interno, mais especificamente internamente a uma cidade. As autoras discutem processos de ocupação urbana e os deslocamentos que grupos populacionais se veem obrigados a fazer porque, segundo o geógrafo Milton Santos (1996), os pobres, mesmo quando permanecendo na mesma cidade, são migrantes em função de que a casa é propriedade dentro de uma sociedade mercantil, mercadoria da qual é preciso se desfazer quando as condições materiais de sua mantença se desfazem. Com dados empíricos trazidos de diferentes estudos realizados pelo grupo de pesquisa liderado por Tavares, “[...] demonstram os impactos da concentração da pobreza econômica e territorial sobre percursos escolares individuais e familiares”.

A escola é lugar de encontro com a problemática analisada, mas a questão em análise está no fora da escola que incide sobre as possibilidades de estar no dentro da escola.

O artigo Jovens em contexto de refúgio: narrativas que revelam modos de vida e o lugar da escola, de autoria de Paulo Carrano e Viviane Magalhães, da Universidade Federal Fluminense, tematiza jovens em condição de refúgio e também aborda a escola, mas tal qual o artigo acima, não a toma como lugar de partida seja do campo de pesquisa seja das análises. O termo condição de refúgio é utilizado para demarcar uma condição que é mais ampla do que o refúgio per se. Refere-se a migrantes, refugiados, solicitantes de refúgio e também a filhos de migrantes africanos por perceber que mesmo sendo uma geração nascida no Brasil, vivem sob os efeitos materiais e simbólicos do deslocamento, uma condição de refúgio. Os jovens e as jovens participantes da pesquisa, que narram suas histórias a partir de registros fotográficos realizados a convite da pesquisadora, compartilham representações sobre cotidianos, hábitos, costumes, entretenimentos e socialização familiar. A escola aparece, nas narrativas dos e das jovens, como “um fator relevante do ato de migrar” ao revelar-se como instituição de difícil acesso em seus países de origem e uma das razões articuladoras do projeto migratório das famílias.

Este é um conjunto de trabalhos heterogêneo nas abordagens temáticas, teóricas e metodológicas. Se os dois primeiros artigos aqui aglutinados tratavam de questões do direito à cidade na infância e a vida de jovens em condição de refúgio, os dois seguintes abordarão novas perspectivas a partir de nacionalidades específicas de refúgio, um em abordagem contemporânea - mas contemplando uma nacionalidade de longa história migratória no território brasileiro -, e outro de abordagem histórica.

Em ‘Japonesa, abre o olho’: racismo, xenofobia e misoginia contra mulheres amarelas, Julia Tiemi Kurihara e João Paulo Baliscei, da Universidade Estadual de Maringá, problematizam, a partir dos estudos de cultura visual, as diversas expressões de violências simbólicas contra mulheres amarelas. Aportam contribuições históricas sobre a migração de japoneses ao Brasil, no contexto da política de branqueamento que se desenvolveu no período imediatamente pós-abolição, quando japoneses teriam sido vistos, pelas elites nacionais, como pessoas assimiláveis, trabalhadoras, muito bem enquadradas neste projeto. Porém, passam a ser considerados uma ameaça ao “domínio dos brancos”, a partir de 1914, “[...] devido às conquistas expansionistas do Japão”. Fundamentados em volume significativo de trabalhos de pesquisa de caráter variado sobre a migração japonesa no Brasil discutem questões de identidade, cultura nacional, pertencimento, representações sociais e estereótipos, xenofobia e outras violências sofridas. As violências são exemplificadas em casos pessoais e, também, em expressões visuais variadas, divulgadas em mídias sociais e meios de comunicação hegemônicos. E avançam na reflexão com um pequeno conjunto de imagens de obras de arte que expressam determinadas percepções sobre identidades nacionais, representações e estereótipos.

O artigo Migração chinesa em Governador Valadares-MG: ‘primeira onda’ e os desafios de deixar o país de origem em situações de conflito aborda outra comunidade também identificada como amarela, assim como no debate do artigo anterior a este. Neste caso, chinesa. A partir da história oral desses migrantes, os autores do artigo Franco Dani Araújo e Pinto, da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), Carmen Silvia de Moraes Rial, da Universidade Federal de Santa Catarina e Sueli Siqueira, da Univale, analisam o fluxo migratório de indivíduos e famílias chinesas ao município de Governador Valadares, Minas Gerais, entre os anos de 1950 e 1970.

E, fechando esta seção especial que tematiza Migrações e refúgio, temos a produção de Rafaela Farias Pacheco e Iúri Novaes Luna, da Universidade Federal de Santa Catarina. No artigo Carreira psicossocial de refugiadas com ensino superior: reconstruções identitárias e trabalho, por meio de estudo de caso com duas refugiadas latino-americanas, exploram os desafios da inserção profissional em contexto de refúgio. São pessoas que concluíram o ensino superior em seus países de origem e enfrentam os entraves à reinserção profissional e a demanda por reconstrução de identidades profissionais. Destacam-se “[...] a recolocação laboral, as transições de carreira, as atuais práticas cotidianas de trabalho e as construções identitárias”. Em entrevistas narrativas, duas refugiadas “[...] relatam uma sensação de perda de controle sobre a vida ao chegarem no Brasil e, muitas vezes, se queixam de ter que ‘começar do zero’ após anos de educação e vida profissional”.

UM CONVITE À LEITURA

A escola, talvez por ser instituição que acolhe desde a primeira infância até jovens-adultos, se considerarmos as etapas da educação formal (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior), e da infância à terceira idade se considerarmos modalidades, notadamente a Educação de Jovens e Adultos, aparece como ponto de partida de análise da maior parte dos artigos. Seja em abordagens documentais ou estudos de caso observacionais ou pesquisas de tipo pesquisa-ação. Os artigos que problematizam e analisam a presença de migrantes e refugiados nas escolas, nos diferentes níveis, etapas e modalidades de ensino, trazem vários desafios entrançados ao direito à educação das infâncias, de jovens e adultos migrantes que coalham o chão das escolas. Apresentam realidades emergentes em um período de barbárie da globalização econômica que tensionam as categorias interculturalidade, multiculturalidade, desenraizamentos, requerendo estudos interdisciplinares para compreender a saga dos que migram.

Chama atenção, do ponto de vista metodológico, que a maior parte dos estudos se fundamentou em análises documentais, seja em levantamentos de tipo estado do conhecimento com estudos de teses, dissertações e artigos publicados sobre o tema, seja em análises de leis e normativas legais produzidas em distintas esferas de ação estatal. Contrariamente ao que percebe Reznik (2020) na introdução ao livro História da imigração no Brasil e referida no começo deste artigo, no conjunto de artigos publicados na seção temática, são poucos os estudos que abordam narrativas e memórias de migrantes e refugiados. Aqui parece haver instigante espaço de investigação para pesquisadores do campo da educação que se interessem pelo estudo dos deslocamentos humanos a partir dos aportes das memórias, das narrativas, das pesquisas (auto)biográficas que têm produção já consolidada no Brasil.

O que também se percebe deste conjunto de artigos é a produção de olhares renovados sobre antigas problemáticas de pesquisa. Olhar a escola partindo das experiências e perspectivas de migrantes e refugiados; pensar a universidade segundo renovados desafios produzidos pelas especificidades de estudantes que vivem contextos de refúgio; problematizar normativas gerais em função da especificidade migrante.

Sposito (2003, p. 222), analisando a relação entre o escolar e o não escolar que se expressa na escola, afirma que uma modalidade de relação - entre três descritas pela autora - no interior da instituição escola torna “[...] mais fortes e explícitos processos muitas vezes difusos e latentes presentes na sociedade brasileira”. As relações mais intensas e contínuas na vida escolar, diferentemente de relações fragmentadas no bairro e na rua devido às transformações da dinâmica social e da violência urbana, podem tornar mais nítidas na escola práticas discriminatórias e violentas. A escola se torna lugar de maior visibilidade de conflitos e tensões sociais diante da ausência de outros espaços de interação, convivência e mediação intensivas nas sociedades. Neste sentido, a pesquisa sobre migração e refúgio a partir da escola (da Educação Infantil ao Superior) pode revelar tensionamentos sociais que explicam mais a sociedade do que apenas a escola.

De maneira semelhante, o estudo sobre jovens em condição de refúgio também tem o potencial de revelar questão não apenas sobre deslocamentos humanos, mas também sobre a condição juvenil no Brasil, em seus aspectos mais universais.

As leituras das abordagens dos artigos foram discutidas considerando diferentes sustentações teórico-metodológicas, ressaltando-se o caráter interdisciplinar do tema. Os textos identificam que expressões dos preconceitos raciais, linguísticos, culturais nos impulsionam a aprendizados novos e sensibilidades de encontros entre os que chegam e os que aqui estamos.

Os textos são portadores de fios das contradições alinhavadas a partir de fontes diversas, sejam de caráter empírico, na forma de ensaio ou de mapeamento da produção bibliográfica, o que remete à perspectiva de que as problemáticas tratadas não escapam do interesse do campo educacional. Mostram, também, que migrações fazem parte da realidade social que muda, mudando, também, expressões que ressignificam categorias de interculturalidade, multiculturalidade, diversidade, desenraizamento, sociabilidade. Essas categorias são, em grande parte, difíceis de serem conformadas a um enquadramento teórico-conceitual, pois a hegemonia de seus sentidos continua em disputa, incluindo organismos internacionais.

Contudo, o que não escapa da leitura das pesquisadoras e pesquisadores é a realidade que emerge da barbárie da globalização econômica e seus desdobramentos nos processos migratórios, requerendo estudos interdisciplinares e amplos debates para compreender os percursos dos que migram, e de que modos suas lutas pela produção da vida afetam e são afetadas pela sociedade brasileira.

As relações entre família, crianças, jovens e adultos migrantes e as instituições da sociedade, em especial a escola, são relações, ainda, difíceis de serem apreendidas de maneira imediata. Mesmo assim, os textos trazem elementos relevantes para análises desveladas por pesquisas empíricas e pelas literaturas levantadas, expondo dilemas de que condições de vida precárias fazem com que fronteiras se alarguem, paradoxalmente, para lugares de menos direitos.

Ainda que os textos sejam percebidos como documentos da barbárie da questão migratória, em face de múltiplos recortes temáticos, trazem astúcias e estratégias dos que migram, ampliando possibilidades de (re)existência em lugares como escolas, universidades e redes de movimentos sociais.

Nossa expectativa, como organizadoras, e integrantes da Cátedra Sérgio Vieira de Mello para Refugiados, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é de que a presente seção temática possa contribuir para sistematizar outras experiências de estudos e pesquisas. O conjunto diverso de artigos enseja olhares renovados sobre antigos problemas: olhar a escola como migrantes; problematizar normativas gerais a partir da especificidade migrante; refletir sobre o tornar-se jovem pela peculiar condição refugiada; problematizar a multiculturalidade levando em conta experiências cotidianas. Que este conjunto de artigos se junte a outros e favoreça a interlocução interinstitucional para debates e superações das novas e velhas expressões da barbárie.

1Migrações e Educação. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/issue/view/2936.

2Migrações e o direito à educação. Disponível em v. 29 n. January - July (2021) | Arquivos Analíticos de Políticas Educativas (asu.edu).

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Recebido: 1 de Maio de 2022; Aceito: 1 de Maio de 2022

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