Deixar seu país para ir morar em outro, nesta condição de inferioridade, quer dizer, sem redes e sem poder voltar para a terra natal, me parece a última grande aventura humana. (...) Eu já sabia por ter lido. Por ter visto no cinema. Mas é diferente na vida real. Eu sou preto e todos os outros são brancos... Choque! Dany Laferrière, 2012.
Para abrir o artigo, escolhemos esta passagem do escritor haitiano radicado no Canada, Dany Laferrière, que através da literatura, evidencia o choque cultural e as micro agressões cotidianas vivenciadas por ser negro e imigrante em um país do Norte global1 . Seria diferente o sentimento das famílias africanas no contexto das migrações sul-sul? Mais especificamente no Brasil, onde a maior parte da população se autodeclara parda ou preta (IBGE, 2020), familias oriundas de países africanos vivenciariam menos situações de racismo?
Procurando investigar como tem se dado o processo de inclusão dessas crianças e famílias nas escolas públicas da Baixada Fluminense, desde 2016, temos realizado projetos de pesquisa e de extensão com o intuito de conhecer a perspectiva de diferentes sujeitos envolvidos(as) nesse processo: profissionais da educação (Russo; Mendes; Borri-Anadon, 2020); famílias (Mendes; Russo; Dias, 2020) e as próprias crianças, sejam elas imigrantes ou brasileiras. Neste artigo, apresentamos algumas análises surgidas a partir da seguinte questão: quais as perspectivas das crianças brasileiras e africanas sobre o processo de inclusão na escola pública? Para responder a essa questão específica, foram realizadas oficinas pedagógicas com crianças brasileiras, congolesas e angolanas, matriculadas em uma escola pública municipal de Duque de Caxias, na região da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Neste texto, apresentamos algumas reflexões surgidas a partir das observações e do diário de campo das educadoras responsáveis pelas oficinas pedagógicas realizadas.
Importante ressaltar que nossa hipótese inicial era - no caso das crianças congolesas, que não possuem o português como primeira língua - que a diferença linguística seria o maior obstáculo para o processo de inclusão na rotina escolar. No entanto, para a nossa surpresa, os relatos de profissionais de educação, das famílias e das crianças entrevistadas ao longo do desenvolvimento de nossa pesquisa têm mostrado que a barreira linguística representa um obstáculo menor. Outros entraves se mostram mais resistentes e duradouros, dificultando ou impedindo a inclusão dessas famílias e crianças no cotidiano escolar: o racismo estruturante de nossa sociedade e a mentalidade colonial que brasileiros(as) ainda parecem ter sobre o continente africano (Silva, 2000; Munanga, 2005).
São diversas as pesquisas e relatórios que apontam as desigualdades raciais na educação brasileira (Silva, 2018), mas são poucos os estudos que relacionam o contexto de crianças e famílias em situação de imigração e o racismo. Neste artigo gostaríamos de contribuir para esse debate a partir do tema da inclusão de crianças em situação de refúgio nas escolas brasileiras, visto que na última década, o Brasil, assim como outros países sul americanos, passaram a ser receptores de novos fluxos migratórios, em um fenômeno conhecido como “migrações Sul-Sul” (Baeninger et all, 2018; Vieira, 2015). No final de 2018, por exemplo, o Brasil recebeu cerca de 160.000 solicitações de reconhecimento da condição de refúgio. Cerca de 15% desse total, representavam famílias vindas da República Democrática do Congo2 (CONARE, 2019) e grande parte delas, vivem em regiões periféricas do estado do Rio de Janeiro. Apesar das dificuldades em mapeá-las, estima-se que as duas áreas de maior concentração em termos de moradia das famílias congolesas no estado fluminense localizam-se no complexo de favelas de Brás de Pina (bairro do subúrbio do município do Rio) e, na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (Petrus, Santos e Aragão, 2016).
Apesar do Brasil ser um país onde grande da população se reconhece como parda ou negra (IBGE, 2020), a experiência de discriminação descrita por Laferrière (2012) na abertura deste artigo muito se assemelha aos depoimentos que escutamos das mulheres e crianças congolesas em situação de imigração e refúgio no Rio de Janeiro. Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, vimos que, apesar das proximidades culturais que possam existir entre Brasil, Angola ou República Democrática do Congo (todos países do Sul Global), o choque cultural e o racismo vivenciado por pessoas negras em situação de imigração no Brasil parecem ser constantes e intensos. Como desabafou uma das mães congolesas participantes da pesquisa: “Eu descobri o que é o racismo aqui no Brasil, porque lá no Congo, éramos todos pretos!” (Russo; Mendes; Borri-Anadon, 2020).
Como afirma Gomes (2012), o racismo é inerente à ordem social brasileira, pois ao mesmo tempo em que a escola, por vezes, toma medidas a respeito de situações pontuais de preconceito ou discriminação no cotidiano, as referências e as atitudes racistas ainda ocupam um lugar de hegemonia no contexto social de inserção dessas famílias, principalmente àquelas em situação de imigração. Um triste exemplo disso foi o brutal assassinato de Moise Kabagambe, estudante congolês que vivia há mais de quatro anos no Rio de Janeiro e que muitos com quem trabalhava - na região da orla da Barra da Tijuca - sequer sabiam seu nome. Era chamado genericamente de “Angolano” ou “Soldado”, fato que diz muito sobre a vida das pessoas em situação de refúgio no Rio de Janeiro. Além de todos os desafios diários para sobreviver em outro país, sofrem com a invisibilidade e o racismo, que lhes negam os direitos mais básicos e até o da própria vida, como aconteceu infelizmente com Moise.
Acreditamos que a importância dessa pesquisa seja justamente o fato de lançar luz sobre a necessidade de uma maior relação entre os estudos migratórios e o debate sobre relações étnicoraciais no Brasil, principalmente no campo educativo. Apesar do crescente número de crianças em situação de imigração e/ou refúgio matriculadas nas escolas públicas do país3 , ainda são escassos os artigos sobre o tema e ainda mais restritos aqueles que discutem as estruturas racistas que ainda moldam as relações sociais e escolares no processo de inclusão dessas crianças e famílias na escola.
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Para essa pesquisa, utilizamos o conceito de inclusão para analisar o processo de acolhimento das crianças e famílias em situação de imigração nas escolas públicas. Ao fazê-lo, temos como base uma compreensão do conceito como um processo multidimensional (social, econômico, linguístico e cultural) e bidirecional que envolve os esforços por parte da pessoa em situação de imigração (que procura se integrar na sociedade de acolhimento), mas sobretudo, inclui a responsabilização do Estado e dos cidadãos do país de acolhimento, vistos como atores corresponsáveis nesse processo de integração (Legault e Rachédi, 2008). Portanto, a partir desta perspectiva, tanto os sujeitos em situação de imigração, quanto as sociedades que os acolhem, ambos são afetados e participam como atores nesse processo.
Outro conceito importante em nossa pesquisa é o de interseccionalidade. A partir das importantes reflexões desenvolvidas por Crenshaw (1991), procuramos identificar e discutir como as diferentes categorias sociais, principalmente aquelas voltadas para classificar populações de origens minoritárias, se sobrepõem e se reforçam, gerando especificidades que não podem ser entendidas de forma independente. Essa preocupação se acentua ainda mais, na tentativa de compreender fenômenos tão complexos quanto os relacionados aos estudos migratórios. Na perspectiva interseccional, classe, gênero, raça, status migratório, entre outras categorias, são, portanto, entendidas como interdependentes e construídas em contextos sócio-históricos concretos, entremeados por relações de poder.
O conceito de raça, por exemplo, é visto em nosso estudo, como uma construção social: uma categoria chave para compreender as desigualdades econômicas e a divisão de classes em nossas sociedades desde o período colonial. Como analisa Aníbal Quijano (2005), essa “construção mental” da raça (Quijano, 2005, p. 117) foi usada para legitimar relações de dominação, colocando qualquer população não europeia em uma posição de subalternidade, para justificar e empreender o processo colonial. Nesse sentido, baseamo-nos também em Quijano (2009) para utilizar uma outra categoria importante para o nosso trabalho, o conceito de colonialidade.
Através de nossa pesquisa, percebemos como a permanência de estruturas globais e nacionais, reforçam hierarquias estabelecidas por ideologias coloniais e eurocêntricas, que se fazem presentes também nas representações sobre crianças africanas no contexto escolar brasileiro. No caso das crianças e famílias angolanas e congolesas, nosso campo de estudo tem evidenciado que, além da escassez de serviços públicos voltados para o seu acolhimento, precisam enfrentar também um contexto de muitos preconceitos e estereótipos relacionados ao fato de serem vistas como “negro(a)”, “africano(a)” e “refugiado(a)”. Assim, como explicam Grosfoguel, Oso e Christou (2014), nos estudos migratórios não é possível ignorar que:
[...] os imigrantes não chegam em um espaço vazio ou neutro, mas em espaços metropolitanos já "poluídos" por relações de poder raciais com uma longa história colonial, imaginário colonial, conhecimento colonial e hierarquias raciais / étnicas ligadas a uma história do império; em outras palavras, os migrantes chegam em um espaço de relações de poder que já é informado e constituído pela colonialidade (2014, p. 07, tradução das autoras ).
Desse modo, apesar de reconhecer que brasileiros das classes populares também vivenciam diversos níveis de diferenciação social e discriminação racial em suas vidas cotidianas, as pessoas em situação de imigração e negras experimentam outras formas de discriminação racial quando chegam ao Brasil, e esta discriminação é potencializada pelo fato de serem estrangeiras e oriundas de países africanos, como veremos mais adiante.
Aspectos metodológicos
Seja pela falta de documentação das famílias, seja pelo fato de poucas secretarias de educação disporem de procedimentos específicos que auxiliem a identificação de crianças em situação de imigração em suas redes, constatamos a falta de informações sobre estudantes imigrantes nas secretarias municipais e estadual de educação do estado do Rio de Janeiro. Confirmamos o que outras pesquisas já indicaram: o cadastramento de estudantes imigrantes matriculados(as) no estado do Rio de Janeiro é feito de forma generalizada ou até mesmo equivocada. No município de Duque de Caxias, percebemos que em algumas escolas esses estudantes eram classificados como “especiais”, devido suas especificidades linguísticas e culturais, aumentando o número de estudantes classificados como “com deficiência” ou deficientes (acho que usaria entre aspas).
Neste sentido, essa forma precarizada de registro de estudantes em situação de imigração termina por causar, como bem analisa André (2016, p.56), “um processo de invisibilidade social e administrativa, no sentido de não figurarem nos registros escolares de forma estruturada e acessível”, o que dificulta ainda mais o desenvolvimento de políticas voltadas para o suporte material e pedagógico que essas famílias necessitam, assim como para apoiar profissionais da educação que acolhem em suas classes, estudantes que não tem o português como primeira língua. Considerando esta dificuldade, foi fundamental o apoio que recebemos da Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias e da equipe escolar, para realizar um estudo de caso na instituição pública municipal que recebia o maior número de crianças imigrantes, localizada no bairro de Gramacho. Nesta escola, entre os meses de abril e junho de 2019, foi utilizado como metodologia a realização de seis oficinas pedagógicas, cada uma com três horas de duração, envolvendo a participação de 13 crianças matriculadas nos primeiros anos do Ensino Fundamental, com faixas etárias entre sete e onze anos de idade, sendo sete congolesas, uma angolana e cinco brasileiras. Essas oficinas aconteceram no contraturno escolar, no auditório da própria escola municipal, e as crianças participantes foram indicadas pela coordenação da escola, de acordo com a disponibilidade de horário e interesse das famílias em participarem da pesquisa. Cada oficina abordou um tema específico, buscando compreender diferentes aspectos do processo de integração vivenciado por esses(as) estudantes e suas famílias.
Para este artigo, usamos como fonte de análise o registro do diário de campo, as reflexões realizadas pela educadora responsável em ministrar as oficinas (uma das autoras deste artigo), além dos materiais produzidos pelas crianças durante os encontros. Através da análise de conteúdo (Bardin, 1978) das transcrições das falas das crianças e também dos registros do diário de campo e reflexões da educadora, identificamos as principais categorias que emergiram para a melhor compreensão sobre nossa principal questão neste estudo: qual é a visão das crianças (brasileiras e africanas) sobre o processo de inclusão nesta escola pública.
Sobre o contexto do estudo, a escola municipal onde foi realizado o estudo de caso é localizada no bairro de Gramacho, no município de Duque de Caxias, na região da Baixada Fluminense. Esse município foi definido certa vez como “a periferia da periferia da cidade do Rio de Janeiro” (SOUZA, 2002), por fazer parte de uma região que apresenta índices de qualidade de vida muito piores do que muitas favelas existentes na capital fluminense, em termos de emprego, moradia e condições de vida, saneamento, índices de saúde e altas taxas de homicídio (ALVES, 2003). Desse modo, as famílias em situação de imigração e/ou refúgio encontram um contexto de extrema precariedade ao se instalarem nessa região do estado.
De acordo com a Secretaria de Educação deste município em dezembro de 2017, havia cerca de 80 famílias congolesas na cidade, totalizando cerca de 50 alunos(as) em situação de imigração/refúgio matriculados(as) na rede municipal. Embora, diferentes escolas de Duque de Caxias recebam alunos(as) em situação de refúgio, a Escola Municipal Gramacho (nome fictício), foi selecionada para a realização desta pesquisa por apresentar a maior quantidade e constância de estudantes imigrantes
TRAVESSIAS E RUPTURAS: DESAFIOS DE QUEM CHEGA
Travessia é a palavra que transcreve o percurso de quem chega em terras estranhas, trazendo outra cultura, outra língua e o desejo de integração para a sobrevivência. O conceito de diferença, aqui considerado, com base em Bhabha (1998), não se confunde com o de diversidade: ser negro, branco, homo ou heterossexual, não são condições naturais ou essencializadas, mas construções históricas e culturais produzidas em meio às relações sociais e de poder. Também vale destacar que consideramos as identidades como construções históricas, múltiplas, mutáveis e contraditórias (Hall, 2006). Cada criança é única e transita pelas diferentes identidades que vão sendo constituídas ao longo do processo de interação que se dá em suas experiências e trajetórias. Os encontros e as atividades propostas ao longo das oficinas procuraram apontar a forma como essas crianças, brasileiras e em situação de imigração, se mostraram nesse período.
Durante as oficinas pedagógicas, foram desenvolvidas dinâmicas e atividades lúdicas com o objetivo de criar uma relação de confiança entre os(as) participantes e propiciar espaços de trocas e de constante interação entre as(os) participantes. De fato, durante os encontros podemos observar que a boa interação entre as crianças possibilitou a construção de um ambiente onde a maior parte delas pode se sentir segura para falar sobre suas experiências e compartilhar opiniões. Em uma das primeiras oficinas, por exemplo, através de uma dinâmica com utilização de imagens, tivemos a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre as histórias e trajetórias das crianças imigrantes antes da chegada ao Brasil.
Entre as imagens disponibilizadas nessa atividade, aquelas que representavam famílias reunidas, brincadeiras infantis ou mulheres com turbantes foram as mais comumente escolhidas pelas crianças imigrantes. Foram as ilustrações que pareceram provocar mais as falas das crianças sobre um lugar vivido onde a história, a pertença, os laços afetivos foram construídos e forçadamente rompidos em prol de mais segurança de vida.
Curiosas, as crianças brasileiras perguntavam onde estava a família dos colegas congoleses e por que não vieram ou não estavam todos juntos. Eles falavam sempre do desejo de voltar para seus países de origem e as crianças brasileiras queriam saber mais, então [as crianças da RDC] contavam sobre a situação da guerra e os motivos que os trouxeram para o Brasil. (Diário de Campo, 31/05/2019)
Destacamos aqui o registro que a educadora fez a partir da memória de Diara (nome fictício4 ), menina angolana, que durante a mesma dinâmica, escolheu a figura de um idoso com uma criança no colo para expressar a saudade da família que ficara em Angola:
Saudade da avó que ficou para trás e um primo muito querido que brincava com ela e já são quatro anos que não os veem. Eu perguntei se em algum momento eles conseguiam fazer algum tipo de contato, ela me disse que as vezes por email, mas pouco e nessas conversas costumam falar sobre “as coisas de lá e de cá”. (Diário de Campo, 31/05/2019)
Para a melhor compreensão da situação e das experiências vivenciadas por crianças e famílias em situação de imigração, buscamos nos conceitos de enraizamento e desenraizamento, trabalhados por Simone Weil (1978), referências para a nossa análise. Para esta autora do campo da psicologia social, o enraizamento pode ser definido como “a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana”, visto que:
O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente (Weil, 1978; apud Maalouf, 2005, p. 347).
Sair deste espaço de coletividade, muitas vezes de modo abrupto e não desejado, como ocorreu com a maior parte das famílias em situação de refúgio e de imigração forçada envolvidas em nossa pesquisa, significa vivenciar um duro processo de desenraizamento, ocasionado pela necessidade abrupta de ruptura com o passado.
Neste sentido, mostra-se ainda um desafio para as escolas brasileiras, que em sua maioria invisibilizam a diversidade (Alexandre; Abramowicz, 2017), considerar o processo de ensino e aprendizagem na perspectiva multicultural e plurilíngue, visto que migrar não pode ser compreendido apenas como um deslocamento, mas também como um processo que traz uma série de rupturas que surgem a partir deste deslocamento, tais como: de laços familiares, de grupos de pertencimentos, de costumes, valores, cultura, de relação de produção, dentre outros (Malouffe, 2005; James, 1997). Além disso, igualmente importante é considerar que ao falar de crianças ou famílias “imigrantes” ou “refugiadas”, corremos o risco de silenciar a imensa heterogeneidade de histórias, experiências e travessias singulares de cada uma dessas pessoas e famílias, como também apontam Alexandre; Abramowicz (2017).
Durante as atividades realizadas com as crianças, por exemplo, um outro aspecto a destacar é a multiplicidade de vivências e de histórias que cada uma representava: não existe uma massa homogênea de “crianças imigrantes”, mas um grupo constituído de diferentes sujeitos, com experiências de vida, valores, culturas e línguas variadas.
No conjunto de crianças envolvidas na pesquisa, por exemplo, representavam não só diferenças nacionais (brasileiras, congolesas e angolanas), como também especificidades étnicas e linguísticas existentes dentro de um mesmo país. Entre as famílias oriundas da República Democrática do Congo, por exemplo, descobrimos a existência de grupos étnico-linguísticos distintos: algumas se reconhecem como Bakongo (provenientes das províncias de Basconko, Kinshasa e Bandundu) e outras como Swahili (províncias Nord-Kivu e Sud-Kivu) (Almeida, 2017; Petrus et al, 2016). Pertencer a uma identidade étnico-cultural específica, significa reconhecer a existência de valores, culturas e línguas distintas e, entre as famílias congolesas, embora o francês seja a língua oficial do país, nossa aproximação com essas famílias nos mostrou que nem todas falam ou compreendem bem o francês, característica mais restrita a(os) mais escolarizados(as)5 .
Outro aspecto importante a ser ressaltado é a ruptura de classe social que as crianças que chegaram em situação de imigração parecem ter vivenciado nessa trajetória de imigração. Conforme citamos anteriormente, Duque de Caxias é um município que apresenta um contexto de grande precariedade e vulnerabilidade, sobretudo na região onde se situa essa escola municipal. Durante o desenvolvimento da pesquisa, procuramos identificar as percepções docentes sobre o perfil dos(as) estudantes desta unidade escolar, e este grupo os definia como crianças “muito carentes de tudo” por viverem em uma região vista como “um bolsão de pobreza muito grande”.
Para esses(as) profissionais da educação, estudantes brasileiros ou em situação de imigração eram vistos como “iguais na pobreza” (Russo; Mendes; Borri-Anadon 2020, p.262).
No entanto, em relação as crianças em situação de imigração, ao longo dos três anos de desenvolvimento do projeto de pesquisa, o contato com as famílias e a partir das falas das crianças participantes das oficinas, percebemos que a vinda ao Brasil também representou, para algumas delas, uma ruptura não só com laços étnicos e culturais com seu país de origem, como também significou transformações na sua condição de classe.
Durante os encontros, algumas crianças congolesas faziam desenhos ou relatavam memórias sobre suas casas no país de origem, geralmente retratadas como espaçosas, com vários cômodos, e nos relatos orais, incluíam informações sobre babás ou outros empregados(as) domésticos(as). Algumas das crianças congolesas também compartilhavam suas experiências em escolas privadas, geralmente inacessíveis para as classes populares. Outro indício que indicaria que boa parte das crianças congolesas pertenciam a classe média em seu país de origem é o fato de terem tido a possibilidade de comprar passagens aéreas em voos diretos, com poucas conexões até o Brasil:
Perguntamos se alguém havia vindo de barco, mas disseram que ninguém deles. Algumas crianças fizeram questão de explicar que haviam vindo de avião, mas que sabiam que outras pessoas vinham de barco e que morriam. Não sabiam explicar como morriam, mas diziam que fugiam em barcos perigosos e que muitos não conseguiam chegar. A notícia se espalhava depois. (Diário de Campo, 31/05/2019)
As crianças brasileiras, angolana e congolesas matriculadas nesta escola pública, compartilhavam um contexto social de grande precariedade em relação ao acesso a recursos e serviços básicos, como também a escola inserida em um entorno social marcado pela violência urbana. Como define Scalon (2011 apud Langfeldt, p.65), é preciso compreender pobreza, mais do que baixa ou falta de renda, é a “falta de capacidades básicas que induz à vulnerabilidade, exclusão, falta de poder, participação e voz, exposição ao medo e à violência; em suma, com a exclusão dos direitos básicos e do bem-estar ”6 (tradução nossa).
Desse modo, compreender como as crianças percebem o contexto de pobreza e de violência onde estão inseridas cotidianamente e de que forma essa convivência impacta a vida das crianças e seus desenvolvimentos na rotina desta escola, mostrou-se como uma tarefa importante para desdobramentos futuros desse estudo. Entre eles, para as crianças em contexto de imigração, uma forma de violência vivenciada em seu cotidiano citado como um aspecto negativo e constante: a discriminação por serem negros(as) e estrangeiros(as).
RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS E RACISMO: EXPERIÊNCIAS E PERCEPÇÕES NO COTIDIANO ESCOLAR
Diferentes pesquisas apontam como o racismo é um fenômeno que está presente no cotidiano da escola, nas práticas pedagógicas, nas brincadeiras e no olhar do outro sobre os corpos com seus respectivos marcadores fenotípicos. Há um processo dinâmico e visível em que corpos racializados e gêneros ocupam lugares e representatividades diferenciadas na escola e são alvos de estigmas e preconceitos (Alexandre; Abramowicz, 2017),. Em estudos anteriores, vimos como docentes percebem como recorrentes as situações de racismo e de xenofobia que as crianças e famílias em situação de imigração vivenciam no contexto de Duque de Caxias:
Eles sofrem primeiro por serem estrangeiros [...]. Por mais que a escola tenha a maioria dela formada por crianças negras, existe preconceito. Eles olham para o outro que tem a pele mais escura que a deles. Eles acham que é para mexer ou chamar o outro disso ou daquilo. (Docente 3 apud Russo; Mendes; BorriAnadon, 2020, p.265).
Sim, eles sofrem preconceito por causa da cor, por causa do modo de se vestir, por causa do modo de se comportar e por causa do modo de falar, mas em nenhum momento eles ficam cabisbaixo ou desistem de ser do jeito que eles são. (Docente 2 apud Russo; Mendes; Borri-Anadon, 2020, p.266).
Durante o desenvolvimento das oficinas com as crianças brasileiras, angolana e congolesa, foi recorrente na fala das crianças o tema das relações raciais e as experiências de preconceito racial vivenciadas pelas crianças imigrantes dentro e fora da escola. Apesar deste ser um lugar apreciado pelas crianças, durante as oficinas alguns momentos de preconceito e discriminação foram narrados por elas como a parte negativa. É, portanto, preciso considerar que a escola é um espaço que congrega diferentes relações sociais e a existência de conflitos, de violência, de contradições e de discriminação de diferentes origens. Neste microuniverso social, as crianças vivenciam diferentes experiências registradas em suas memórias afetivas, como registrado no caderno de campo da professora que ministrou a oficina:
Várias crianças disseram gostar muito da escola no Brasil, mas reclamaram da experiência ruim da escola no Brasil foram as situações de preconceito que sofreu. Abayomi mencionou o nome de uma menina chamada Emanuelle que a chamava de “macaca preta vinda da África”, que deveria voltar; a chamava de preta. Certa vez ficou muito brava e brigou na quadra tirando sangue da menina, segundo ela. Também disse que isso era bullying, pois acontecia todos os dias, mas era somente essa menina quem fazia e repetia que ela “não era igual a eles e nem merecia estar nessa escola”. Disse Abayomi reproduzindo a fala da menina. (Diário de campo, 05/07/2019)
A fala de Abayomi7 parece ter sido um disparador para as demais colegas congolesas Ayó e Bintu também narrarem suas experiências, destacando o preconceito como uma experiência ruim na escola brasileira. Ambas disseram que eram “zoadas” pelo cabelo, pelas tranças coloridas e os colegas da escola diziam que elas usavam peruca. As narrativas das crianças muito se assemelham as percepções dos profissionais desta mesma escola, assim como das famílias imigrantes envolvidas em outras etapas do desenvolvimento desta pesquisa, que igualmente sinalizaram serem frequentes reações de preconceito e discriminação pelo modo como as mulheres e crianças angolanas e congolesas usam seus cabelos ou pelo tipo de roupas coloridas que costumam utilizar.
Relatos de situações de racismo na escola não devem ser naturalizados, todavia, ainda é recorrente atitudes de alguns professores que ignoram ou minimizam as piadas e apelidos racistas ocorridos em sala de aula assumindo assim a “política da avestruz” (Munanga, 2005). Seja por não saber como lidar, seja por preconceitos introjetados. Compreender o olhar da criança negra na escola, sobre a escola nas vivências diárias ainda é um desafio a ser rompido, pois passa não somente pelo silenciamento, mas pela observância sutil expressa em uma fala ou observação, como mostra o registro:
Abayomi falou que o maior estranhamento que sentiu ao chegar ao Brasil foi ver uma quantidade muito grande de pessoas brancas, pois “lá na África, no Congo não é assim”. (Diário de Campo, 07/06/2019).
Estar em um lugar diferente ou integrar o diferente na rotina cultural já estabelecida é um desafio, dado que, a diferença ocupa um lugar central quando a realidade social de universos distintos, Brasil, Angola e Congo, congrega culturas diferentes e produzem distinções visíveis e/ou imaginárias como códigos de marcação entre o grupo do “nós” e do “outro”.
Diferentes pesquisas revelam que no cotidiano das relações sociais na escola, as crianças e adolescentes negros/as experimentam inúmeras manifestações que os colocam como preteridos pelos professores, estigmatizados pelo rótulo do fracasso, silenciados pelos colegas brancos e tantas outras manifestações que engessam esses sujeitos de se perceberem como possíveis escolhidos (Cavalleiro, 2003; Munanga, 2005; Marcelino, 2019; Alexandre; Abramowicz, 2017. A experiência de crianças negras na escola compõe um mosaico repleto de medos, baixa autoestima, não identificação racial, além de estereótipos que desqualificam ou animalizam os sujeitos. E com crianças em situação de imigração? Como a escola lida com esse grupo? Desse modo, outro ponto a ser abordado refere-se a como a escola lida com as diferenças e a pluralidade de culturas. Como sinalizam Petrus et all (2016):
De que forma aparece na escola a “tensão” que se cria nesse processo contínuo de mudança e de interações necessárias entre diferentes realidades; os aspectos de “encontro” e “tensão” entre diferentes culturas, que se colocam para os imigrantes em geral. Que práticas a escola e seus diversos integrantes vêm desenvolvendo para que a recepção, acolhimento e permanência desses alunos sejam mais integradores e inclusivos. (Petrus et all, 2016, p.16)
No debate sobre relações étnico-raciais no Brasil, Julio Tavares (2015) considera que engatilhamos e reproduzimos simbologias herdadas da “máquina cognitiva colonial” (Idem, p.325) que faz com que tenhamos comportamentos repetitivos de desqualificação à imagem de uma pessoa de cor e, em contrapartida, visualizamos no branco a cidadania de primeira classe, a humanidade, a beleza e perfeição, ou seja, características hegemônicas e aceitas socialmente. E no tocante as crianças negras e imigrantes: seria possível relacionar a experiência do racismo com a de colonialidade, por terem vindo de países do continente africano?
O debate das relações raciais, sobretudo, no campo da educação brasileira tem ocupado um espaço significativo a partir de diversas abordagens, principalmente com a implementação da Lei 10.639/2003 que inclui o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira como disciplina obrigatória na Educação Básica. Na pesquisa desenvolvida sobre o processo de integração de crianças africanas na escola brasileira, esse debate se fez importante a partir do momento que percebemos tanto nas falas dos profissionais de educação, quanto das crianças envolvidas, diferentes relatos que descreviam um cotidiano repleto de experiências de discriminação por serem negras. Ser negro e ser imigrante, as interseccionalidades ou “avenidas identitárias”, conforme fala Akotirene (2019), descortinam a inseparável estrutura do racismo, do capitalismo e da colonialidade implicados nos geosignificados de ser negro/a, refugiado/a dentro de uma escola repleta de outras crianças negras.
ESTUDOS MIGRATÓRIOS, RACISMO E A PERSPECTIVA INTERSECCIONAL
Como explicitamos em outra seção deste artigo, a perspectiva da interseccionalidade nos ajuda a identificar e a discutir a situação específica de crianças em situação de imigração no Rio de Janeiro, pois são negras, africanas, imigrantes, falantes de outras línguas, com status de refugiadas, e que vivem em uma área periférica de um país do sul global. Mas estas classificações não podem ser percebidas simplesmente como marcadores que são adicionados, vulnerabilizando mais ou menos um determinado sujeito. Partimos da compreensão da interseccionalidade buscando compreender como essas classificações se relacionam criando especificidades de acordo com cada contexto. Como analisa Bastia (2014):
Conceitualmente, essa estrutura propõe que as várias categorias de opressão sejam entendidas como interconectadas e interdependentes, ao invés de categorias essencialistas separadas, dadas as limitações de privilegiar um sistema de opressão sobre outro e a impossibilidade de explicar as desigualdades por meio de uma única estrutura de opressão8 (Bastia, 2014, p. 239, tradução das autoras).
Nesse sentido, outra contribuição dada pelas crianças a partir de suas narrativas advindas de experiências cotidianas e escolares nos ajudaram a refletir sobre como a perspectiva interseccional é importante para compreender e desconstruir processos discriminatórios que persistem no espaço escolar. Vale destacar que todas as crianças participantes das oficinas poderiam ser consideradas como pardas e negras, mas mesmo neste contexto, alguns marcadores ou categorias sociais pesavam mais que outros.
Ricardo Henriques e Nelson Valle (1992) apontam que a grande maioria dos negros no Brasil estão expostos a efeitos permanentes de desqualificação e desigualdades que são subsequentes e determinam um lugar de subalternidade geracional produzindo um ciclo cumulativo de desvantagens. No caso das crianças imigrantes, vivências e relatos delas e de suas famílias apontavam a exposição frequente de situações de racismo, de preconceito e de discriminação dentro e fora da escola, principalmente por serem estrangeiras e africanas. Cavalleiro (2003) contribui para esse debate ao considerar como no espaço escolar, existe toda uma linguagem nãoverbal expressa por meio de comportamentos sociais, disposições e afirma: “De modo silencioso ocorrem situações no espaço escolar, que podem influenciar a socialização das crianças, mostrando-lhes diferentes lugares para pessoas brancas e negras.” (Cavalleiro, 2003, p. 98).
As narrativas das crianças em situação de imigração mostraram a todos nós uma outra realidade e despertou nas brasileiras uma curiosidade e conhecimento de culturas e dinâmicas sociais que somente a interação entre os diferentes, mediada de forma cuidadosa e respeitosa, é capaz de promover. O que observamos no nosso contexto empírico é exatamente o resultado da interação entre a socialização familiar e os contextos educativos, registrando muitas vezes conflitos e contradições, como também o de potencialidade para a transformação dessas relações.
Durante a atividade da última oficina, em grupos, brasileiros(as) e imigrantes foram convidados(as) a criarem uma história em que o enredo versasse sobre o encontro entre as crianças brasileiras e imigrantes na escola. A produção dos(as) brasileiros(as) mostrou o preconceito inicial até à descoberta de quem era esse “outro”. No caderno de campo, foram transcritas algumas falas das crianças:
Ouvi dizer que no país deles, eles costumavam a fazer festival de pipa, tradição de carnaval, mas sei que nesse país tem muita violência e um dia eles precisaram ir embora por causa da guerra e ficaram assustados. Chegando no Brasil eles ficaram também assustados com a violência, mas também alegres porque tem cores e alegria. Quando chegaram em minha escola chamou a atenção porque eles eram diferentes porque eles nunca viram escola e porque tinham uma língua diferente. Antes de conhecer bem eles, eu achei que eles estavam assustados e nós fomos preconceituosos com eles porque implicamos por causa do cabelo, das roupas e da pele. Hoje eu acho eles “legal” e aprendi a língua deles. (Registro da atividade realizada pelo grupo de crianças brasileiras, Diário de Campo, 05/07/2019).
Desse modo, na produção das crianças brasileiras podemos perceber como a primeira reação em relação a chegada de crianças imigrantes na escola foi o de estranhamento, mas também o preconceito contra esse grupo que se vestia e falava diferente. O etnocentrismo em que o grupo do “eu/nosso” atribui sobre o outro um olhar intolerante e codificado pelo estereótipo de “engraçado, esquisito, feio” entre outros. Rocha (1988) analisa como essa relação entre “nós” e “outros” tende a fixar práticas que muitas vezes são muito mais fluidas. O autor analisa como o grupo do outro, “o diferente” às vezes faz ações ou defende valores compartilhados com o grupo identificado como o “nós”, mas quando como foi feita pelo “outro”, deixamos de as reconhecer como também nossas.
Quando as crianças imigrantes desenvolveram a mesma atividade, demonstraram a decepção com o fato de terem que lidar com outros tipos de violência, mas apontam um final feliz da descoberta da amizade, após terem compartilhado o espaço das oficinas.
No Brasil, as crianças costumam a brincar na escola e no shopping. Percebi que nesse país tem muita violência, muitas escolas públicas e carros. Às vezes eles contam que fofoca tem em todo mundo, tem violência, mas também tem paz. Quando cheguei aqui achei que teria mais paz, fosse normal, mas é ruim porque teve muito tiroteio. Ao chegar à escola já comecei a ouvir muitos xingamentos e então eu fui na diretoria para conhecer a sala da minha nova escola no Brasil. Antes de conhecer eles eu só dei um “tchau” e boa tarde porque eu não conhecia eles e não podia dar muita confiança. Hoje eu acho eles bem legais. Com eles aprendi amizade, respeito, harmonia, generosidade e educação com amor. (Registro da atividade das crianças congolesas e angolana, Diário de Campo, 05/07/2019).
Destacamos assim, que o espaço das oficinas e o contexto da pesquisa propiciou uma interação maior entre crianças brasileiras e imigrantes, facilitando a identificação de elementos de aproximação e afinidade entre os grupos. Na situação específica das crianças imigrantes, André (2016) mostra que múltiplas questões devem ser pensadas quando o tema é a inclusão destes(as) alunos(as) na rede pública brasileira, tais como: “barreiras na comunicação, necessidade de auxílio para aprendizagem do idioma local, valorização da língua materna, relações interétnicas, importância das trocas culturais, despreparo das escolas para a condução do ensino desses alunos, os processos de adaptação e integração escolar e a garantia do acesso à educação escolar” (André, 2016, p.57). Além desses aspectos, consideramos igualmente importante considerarmos a colonialidade ainda existente, configurando as hierarquias sociais subjacentes às nacionalidades em um plano mais macro que apenas o contexto local.
REFLEXÕES FINAIS: DESAFIOS MAIS QUE CONCLUSÕES
Ao longo de nossa pesquisa ficou evidente como a escola brasileira, incluindo profissionais da educação, assim como os cursos de formação inicial de professores(as), ainda são pouco sensíveis ao contexto de acolhimento de crianças e famílias em situação de imigração. São muitas as infâncias que habitam a escola brasileira, considerando especialmente nosso contexto multicultural mas, apesar dessa diversidade, ainda vemos fortemente enraizado no cotidiano escolar o mito do monolinguismo, que apaga as minorias linguísticas existentes no Brasil, como a realidade de 200 línguas indígenas faladas nas aldeias e nas cidades em quase todas as regiões do país, além das especificidades das comunidades surdas e de imigrantes, que juntas, representam uma parcela considerável do total de estudantes presentes nas escolas públicas brasileiras (Cavalcanti, 1999; Liberati, 2019).
Outro tema importante que precisamos considerar é a forma como o racismo estrutural e sistêmico se perpetua na sociedade brasileira e é reproduzido no cotidiano escolar: além de enfrentarem desafios linguísticos e culturais para conseguirem se inserir na sociedade de acolhimento, as famílias e crianças congolesas e angolana lidam com diversas formas de preconceito e discriminação, fortemente ancoradas no racismo e em uma visão pejorativa do continente africano.
O modo como os recorrentes processos de ruptura que as crianças e famílias em situação de imigração vivenciam influenciam e impactam suas relações na escola e em seu entorno: processos que ora se expressavam nas narrativas de violência do bairro, ora nas memórias atravessadas pelo Atlântico, mergulhadas em saudade de uma história de vida e afetiva que ficara para trás. Também as narrativas sobre as incertezas do futuro em um país ainda desconhecido. Estas considerações apontam para as múltiplas questões que devem ser pensadas quando é discutida a inserção destes(as) alunos(as) na rede pública, tais como: barreiras na comunicação, a importância de reconhecimento do contexto multicultural e plurilinguístico, as relações étnicoraciais, a criação de contextos acolhedores e respeitosos para as trocas culturais e por fim, a garantia do acesso à educação escolar.
Ao longo dos três anos de desenvolvimento dessa pesquisa, narrativas sobre a experiência do racismo, em suas múltiplas expressões e significados, atravessa o cotidiano de todas as crianças envolvidas na pesquisa, mas afeta de modo ainda mais contundente e expressivo a experiência das famílias e crianças de origem africana. Nesse sentido, os resultados de nossa pesquisa reforçam o que estudos anteriores já apontaram, a urgência e a necessidade de se desenvolver de forma sistemática, constante e permanente práticas antirracistas e interculturais nas escolas, envolvendo toda a equipe e comunidade escolar, em um compromisso comum pela construção de ambientes inclusivos que efetivem a garantia do direito ao acesso de um espaço propicio para a socialização e para a aprendizagem na escola.