INTRODUÇÃO1
Após dois anos desde declarada a pandemia da Covid-19 e as medidas sanitárias tomadas para o enfrentamento da proliferação da doença, o cenário da migração venezuelana no Brasil já estava na mídia desde 2017 (MACHADO, 2021), quando houve um crescimento vertiginoso no número de solicitações de refúgio no Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça (ABRAHÃO, 2019). As escolas foram fechadas e as aulas na sua maioria foram retomadas na modalidade remota.
Mais recentemente, com os anúncios de retorno das aulas presenciais, ações têm sido tomadas para o combate à exclusão escolar, como o “Busca Ativa Escolar” que, só neste ano, conseguiu matricular cerca de 960 crianças e adolescentes refugiadas e migrantes da Venezuela. Desse número, um em cada cinco alunos é indígena2. Tal notícia deixa um questionamento sobre a aparente ausência de outras minorias sociais na escola, como é o caso dos surdos e migrantes. Para este trabalho, focalizaremos um caso mais específico, o de surdos migrantes na escola. Apesar de não serem mencionados na maioria das notícias e documentos relacionados à migração, existem relatos da presença de surdos migrantes no Brasil bem antes do aumento da crise econômica e social da Venezuela a partir de 2016 (CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA, 2021). Neste artigo, buscamos apresentar uma particularidade dos novos fluxos migratórios no Brasil, principalmente da migração venezuelana, qual seja, a migração de surdos e sua relação com questões linguísticas e de direitos humanos linguísticos (SKUTNABB-KANGAS, 2012), estes entendidos como os direitos que todo ser humano possui de poder utilizar a língua do seu povo ou a língua com a qual se identifica. Para tanto, buscamos abordar um aspecto pouco valorizado nas discussões sobre acolhimento de migrantes e refugiados na escola, o do plurilinguismo e as línguas de migração utilizadas por migrantes e refugiados, aspecto este favorável para um debate no qual a migração de surdos venezuelanos no Brasil servirá como questão motivadora.
Além desta introdução e das considerações finais, este artigo está organizado em três seções principais. Na primeira discutimos a presença de surdos migrantes no contexto da migração venezuelana em Roraima, em geral, e em particular a presença desses surdos migrantes e/ou refugiados nas escolas. Na segunda seção, descrevemos ações extensionistas desenvolvidas em universidades brasileiras que contemplam essa parcela da população e o diferencial que essas ações demonstram sobre o fenômeno em tela. Na terceira seção, a questão da migração e da surdez na escola são detalhados, assim como os desafios enfrentados para lidar com essa realidade.
“¡(LOS) SORDOS TAMBIÉN MIGRAN!”
A exclamação que dá título a esta seção foi relatada por Bentes e Araújo (2021, p. 59) e dita por uma tradutora e intérprete de língua de sinais-TILS3 venezuelana em um evento acadêmico. Apesar de parecer óbvia, a visibilidade de surdos migrantes não parece ser tão percebida, nem mesmo pelas instituições e agências nacionais e internacionais que lidam com migrantes. A título de exemplo, fizemos uma busca na maioria das referências utilizadas neste trabalho em formato pdf, pelas palavras “surdo”, “surda”, “surdez” e basicamente não foram encontrados resultados. Em alguns trabalhos são mencionados o caso de “deficientes” ou “pessoas com deficiência”, mas sempre apenas menções. Exceções são os trabalhos desenvolvidos por pesquisadores da Universidade Federal de Roraima que trabalham especificamente com a população surda migrante (BENTES; ARAÚJO, 2021; BENTES; TEÓFILO; PAIVA, 2020; BENTES; OLIVEIRA; ARAÚJO, 2020, entre outros) e que com a especificidade do fluxo migratório no estado de Roraima, ensejou a criação de um programa de extensão voltado exclusivamente para surdos migrantes, conforme será apresentado na segunda seção deste trabalho.
Uma primeira questão que se pode levantar seria o porquê focalizar uma parcela tão específica da população migrante. O que os surdos migrantes oferecem como problemática para que se ocupe de um caso aparentemente tão particular? O mesmo poderia ser questionado sobre as especificidades das migrações de indígenas como é o caso dos Warao (SANTOS, 2019), conforme paralelo feito entre as populações indígenas e surdas da Venezuela por Martínez (2007). As populações indígenas e surdas compartilham basicamente o estatuto de grupos minoritários no contexto dos estados nacionais onde habitam, além de minorias linguísticas que para ter acesso à educação compulsória, encaradas como direito fundamental, lidam com questões de políticas linguísticas e educacionais atravessadas por ideologias do monolinguismo, apesar de defendida a necessidade de uma educação com caráter bilíngue e intercultural (MARTÍNEZ, 2007). Esse cenário se torna ainda mais complexo quando essas populações migram e encontram no país de destino questões similares que enfrentam no sistema educacional dos seus países de origem, mas desta vez na condição de minorias dentro de outra minoria, a de minorias surdas como minorias de migrantes. Uma questão que fica então é a de onde estão os surdos que migram?
MIGRAÇÃO VENEZUELANA EM RORAIMA
Conforme afirmações de Abrahão (2019), os fluxos migratórios entre Brasil e Venezuela sempre foram uma constante na história dos dois países, nos dois sentidos de mobilidade, alternando em diferentes períodos. O aumento do fluxo da entrada de venezuelanos no Brasil ocorreu principalmente a partir de 2014, tendo um pico em 2017 com o agravamento da crise política e econômica na Venezuela. Em 2018 houve a criação da Operação Acolhida, uma forçatarefa criada em março de 2018 pelo governo federal para lidar com o “caos humanitário” nas cidades de Boa Vista e Pacaraima, em Roraima, adotando os três pilares: Ordenamento das fronteiras; Abrigamento e Interiorização (MACHADO, 2021, p. 33).
Em 2020, com a pandemia da Covid-19, a situação de vulnerabilidade da população migrantes venezuelana se agravou, o que ensejou ações diversas, inclusive de instituições federais de ensino superior-IFES, como a Universidade Federal de Roraima-UFRR, o Instituto FederalIFRR, além de organizações não-governamentais-ONGs e ações extensionistas ligadas às universidades. O trabalho inicial dessas organizações com os migrantes e refugiados na maioria das vezes se concentra nas questões laborais, deixando transparecer que questões educacionais ficam à margem. No entanto, o perfil educacional dos venezuelanos migrantes, conforme Abrahão (2019) baseado em Simões (2017), justifica relativamente uma menor preocupação com esse aspecto:
Os migrantes apresentam altos índices de educação formal. 28,4% do total possuem ensino superior completo, somados aos 3,5% que possuem pós-graduação, esse percentual sobre para 31,9% os migrantes que possuem, pelo menos, ensino superior completo. 30,5% do total possuem pelo menos o ensino médio, o que totabiliza 78% do total dos migrantes venezuelanos em Boa Vista com pelo menos o ensino médio completo. As porcentagens de ensino médio incompleto, ensino fundamental (completo e incompleto) e analfabetos somam o restante, ou seja, 22%. (ABRAHÃO, 2019, p. 67)
Essas porcentagens indicam um perfil de escolaridade que, no entanto, não condiz com a atuação que esses migrantes vão exercer no Brasil, por exemplo, é muito comum encontrar profissionais com ensino superior trabalhando em barracas, em sinais de trânsito ou outras ocupações de subsistência. Outros migrantes conseguem se colocar no mercado de trabalho de modo que possam se preocupar com outras necessidades para sua família e para seus filhos, como o da educação escolar.
MIGRANTES E REFUGIADOS NAS ESCOLAS DE BOA VISTA-RR
Baseados no trabalho de Vinha e Yamaguchi (2021), obtemos alguns dados mais recentes sobre a presença de migrantes na educação básica de Roraima4. Os autores se basearam principalmente no Censo Escolar do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), além de dados do IBGE para organizar as informações, divididas pelas macrorregiões do Brasil e de determinadas cidades. Vinha e Yamaguchi (2021, p. 273), partindo de dados do OBMigra, indicam a presença de 11.375 estudantes imigrantes em Boa Vista-RR, 8.232 em Manaus-AM e 2.260 em Pacaraima-RR, cidade que faz fronteira com a Venezuela. Para o caso de Boa Vista, cidade que concentra o maior número de imigrantes venezuelanos no Norte, os autores indicam a concentração de estudantes migrantes principalmente em escolas da periferia do município, conforme figura 1 e número de estudantes migrantes nas escolas de Boa Vista, conforme tabela 1 abaixo:
Escola | Bairro - Região |
Estrangeiros |
Venezuelanos |
Proficiência média em LP(5ºano) |
Proficiênciamé diaemMAT(5ºa no) |
Posiçãoe mLP/MA T |
---|---|---|---|---|---|---|
EMProf.Carlos RaimundoRodrigues | Tancredo Neves | 280(27%) | 277 | 224,4 | 235,58 | 8ª/8ª |
EM FreiArturAgostini | SãoVicente | 258(35%) | 256 | 218,25 | 230,5 | 6ª/5ª |
EM Pequeno Polegar | Treze DeSetem bro |
242(45%) | 238 | 216,27 | 233,11 | 5ª/7ª |
EMNewtonTavares | Calunga | 237(33%) | 232 | 211,48 | 226,51 | 5ª/4ª |
EM Juslany de SouzaFlores | Jardim Tropical |
223(17%) | 220 | 199,63 | 213,83 | 1ª/1ª |
EM Profa. MariaFrancisca da SilvaLemos |
Buritis |
214(34%) |
210 |
218,36 |
232,23 |
6ª/6ª |
EM Profa. Edsonina deBarrosVilla | Estados | 188(32%) | 187 | 218,16 | 237,66 | 5ª/9ª |
EMNovaCanaã | NovaCanaã | 168(17%) | 162 | 224,43 | 235,38 | 9ª/7ª |
EM Rujane SeverianodosSa ntos |
Alvorada | 153(16%) | 151 | 204,16 | 216,79 | 3ª/2ª |
EMCantinhoFeliz | Treze DeSetem bro |
141(47%) | 141 | 206,45 | 217,13 | 3ª/2ª |
EM Profa. Glemiria GonzagaAndrade | Cidade Satélite |
139(12%) | 137 | 209,31 | 221,49 | 4ª/3ª |
EMProfa.Carmem Eugenia Macaggi | Asa Branca | 133(17%) | 132 | 219,59 | 234,75 | 7ª/7ª |
EM Aquilino da MotaDuarte | Centro | 127(28%) | 124 | 224,64 | 227,32 | 9ª/5ª |
EMLuizCanarã |
SenadorHéli oCampos |
125(9%) |
124 |
209,5 |
224,26 |
4ª/4ª |
EM Raimundo EloyGomes | Laura Moreira | 123(13%) | 118 | 196,97 | 215,75 | 1ª/2ª |
EM Profa. MariaGertrudes Mota deLima |
SantaLuzia |
111(12%) |
109 |
203,85 |
220,75 |
2ª/3ª |
EM Maria GoncalvesVi eira |
Caranã | 111(21%) | 110 | 219,58 | 237 | 6ª/8ª |
EM Delacir de MeloLima | Centenário | 109(18%) | 107 | 204,01 | 231,59 | 2ª/6ª |
EM Francisco CassiodeMorae s |
União | 108(19%) | 105 | 239,98 | 246,63 | 10ª/10ª |
EMBalduinoWottrich | MonteCristo | 105(20%) | 97 | 206,86 | 224,02 | 4ª/3ª |
EM Ana SandraNascimento Queiroz |
Cidade Satélite |
102(10%) | 101 | 242,41 | 256,19 | 10ª/10ª |
Fonte: Adaptado de Vinhas e Yamaguchi (2021, p. 276). Siglas: EM: Escola Municipal; NSE: Nível socioeconômico; LP: Língua Portuguesa; MAT: Matemática
Na tabela 1, abaixo, são apresentados os números de alunos venezuelanos por escola:
Os números acima apresentados abarcam dados mais gerais sobre migrantes e refugiados no sistema educacional de Boa Vista-RR, no entanto, nada é mencionado sobre os migrantes surdos que são figuras bastante presentes na porta de agências bancárias como pedintes (BENTES; ARAÚJO, 2021). Bentes, Oliveira e Araújo (2020, p. 129) relatam:
A presença de surdos usuários de outras línguas de sinais forma um cenário multilíngue no estado. Este cenário, consequentemente, acarreta mudanças na estrutura, principalmente educacional. Dados concedidos pela Secretaria Municipal de EducaçãoSMEC contam seis alunos surdos venezuelanos5 matriculados em creches e nos primeiros anos do ensino fundamental. Nas séries iniciais do ensino fundamental são acompanhados por professores bilíngues. Nas escolas do Estado existem cerca de cinco alunos matriculados no fundamental II e ensino médio, todos com auxílio de intérprete de Libras. (BENTES; OLIVEIRA; ARAÚJO, 2020, p. 129)
Apesar de parecerem números pífios de alunos surdos migrantes matriculados no sistema educacional de Roraima, a presença de mais de uma dezena de alunos surdos matriculados chama a atenção para a invisibilidade que os surdos migrantes vivenciam notadamente quanto à assistência a direitos básicos. Uma das motivações para isso é a inclusão dos surdos na categoria de “deficientes” ou “pessoas com deficiência” ignorando para o caso específico deles o fato de serem também uma minoria linguística6 portadora de uma cultura surda particular que compõe a existência de diferentes comunidades surdas (STROBEL, 2008). Na próxima seção, veremos como algumas instituições e iniciativas têm lidado com a questão dos surdos migrantes em Roraima e as implicações de encará-los como minorias linguísticas portadoras de direitos humanos linguísticos e a necessidade de uma educação bilíngue (SKUTNABB-KANGAS, 2012).
AÇÕES DE VISIBILIZAÇÃO DE SURDOS MIGRANTES
Com a midiatização da Operação Acolhida em Roraima a partir de 2018 e a indispensável participação das instituições e agências que já trabalhavam diretamente com a questão da migração venezuelana, apenas a partir de 2020, com ações de cunho extensionista de universidade pública, é que os surdos migrantes passaram a ter alguma visibilidade nas discussões e debates sobre acesso à educação e aos demais direitos humanos. As ações extensionistas foram capitaneadas pelo Programa Interinstitucional de Apoio a Migrantes e Refugiados Surdos - MiSordo (Migrante Sordo). O Programa teve início em meados de 2020 na Universidade Federal de Roraima e a partir de 2022 com a Universidade Federal do Oeste do Pará-Ufopa com ações direcionadas à formação de professores para o acolhimento e inclusão de surdos migrantes. As primeiras ações do Programa MiSordo tiveram como eixo a acessibilidade de informação com as demandas da própria comunidade surda migrante como, por exemplo, apoio com a regularização documental, informações básicas de como acessar o sistema de saúde e justiça e auxílio na busca por emprego ou solicitação de benefícios sociais, conforme ações relatadas por Bentes e Araújo (2021) e Bentes, Teófilo e Paiva (2020).
Nos trabalhos que descrevem as ações do Programa, um aspecto que chama bastante a atenção é o uso da Língua de Sinais Venezuela-LSV por parte dos voluntários durante o atendimento aos surdos migrantes. Os professores e alunos envolvidos no Programa MiSordo relatam a necessidade que sentiram de aprender ou tentar sinalizar na língua de sinais dos migrantes, havendo com isso não um acúmulo de trabalho, mas um ganho nos seus repertórios linguístico e cultural ao se prontificarem a aprender a língua do outro. Esse cenário vivenciado nesse programa extensionista universitário contrasta em certa medida com as diversas experiências de atendimento a imigrantes e questões de barreiras linguísticas (OLIVEIRA; SILVA, 2017). Não é mais o imigrante que é obrigado a aprender urgentemente a língua oficial do país acolhedor, mas a possibilidade de ser atendido inicialmente no novo país pela sua própria língua é uma postura que vai além do simples respeito ao migrante, como também a possibilidade de ter no rol das línguas e culturas que compõem a diversidade linguística do Brasil uma língua de sinais estrangeira com o estatuto de língua de sinais de fronteira ou de migração, nas palavras de Araújo e Bentes (2020).
Essa postura adotada no Programa MiSordo tem sido provocativa para as agências nacionais e internacionais que lidam diretamente com a migração e refúgio, reiterando a necessidade da presença de intérpretes humanitários em todas as etapas de acolhimento como também na continuidade dos atendimentos, preferencialmente na língua de sinais dos surdos migrantes, sem desconsiderar as línguas espanhola e portuguesa, além da Libras nos processos de acessibilidade.
As ações do Programa MiSordo dão conta que, passadas as questões de acolhimento iniciais voltadas ao estabelecimento no país, as demandas de atenção educacional e profissional começam a aparecer. Com isso, as ações seguintes passam a ser basicamente de formação e aprendizagem das quatro línguas presentes na relação com os surdos migrantes, a LSV, o espanhol, a Libras e o português. Conforme atestado sobre o Programa MiSordo, a promoção de cursos e oficinas para agentes de regulação migratória, polícia federal, ONGs e sociedade em geral foi ponto de partida para perceber o complexo cenário originado pelas diferenças nas modalidades das línguas. Enquanto tais agências e ONGs consideram irrelevante o número de surdos atendidos para mudar suas estruturas, os surdos enfrentam problemas, para muitos considerados pequenos, com questões básicas de sobrevivência duplicadas pela barreira idiomática e os estereótipos da deficiência.
Enquanto as agências e instituições responsáveis por atendimento aos migrantes não parecem ver a real diferença que faz prestigiar a língua de sinais dos surdos migrantes, os professores e alunos envolvidos nas ações do MiSordo não só se interessam em utilizar a LSV como língua de mediação no acolhimento aos surdos migrantes como até já cunharam um termo próprio para a variedade de contato ou interlíngua que parece surgir do contato entre a Libras e a LSV, a LibraSV (Lê-se librassivê). Aprender a língua do outro tem sido o prisma de uma compreensão efetiva de acolhimento. Acolher o surdo em sua língua materna7 significa sair da zona de conforto e tem sido encarado como eficaz para uma melhor inclusão, conduta esta que vai na contramão das ações que primam apenas por ensinar a língua de sinais nacional, no caso a Libras, ou o português como língua de acolhimento (PLAc) aos migrantes surdos, como as experiências relatadas por Leite e Oliveira (2021).
É possível verificar que as ações do Programa MiSordo8 se concentram inicialmente na acolhida do surdo migrante e na preocupação em aprender a língua de sinais, bem como no acesso à informação principalmente as relacionadas à regularização migratória, contando para isso com o trabalho de parceiros e de voluntários. Considerando o exposto acima, passamos a tecer algumas reflexões sobre a relação de surdos migrantes com a educação, concentrando a discussão sobre a relação entre educação, migração/refúgio com a surdez e estes temas perpassados pelo viés dos direitos humanos linguísticos.
EDUCAÇÃO, MIGRAÇÃO, REFÚGIO E DIREITOS HUMANOS LINGUÍSTICOS
Encarar a realidade educacional das pessoas surdas no Brasil requer uma preocupação com a questão da educação bilíngue principalmente, da forma como é defendida pelo movimento surdo e por estudiosos do tema (QUADROS, 2006). No entanto, quando se encara essa mesma luta e o direito fundamental à educação em condição de migração ou refúgio, a realidade torna-se mais complexa por ser invocado não apenas o direito a uma educação bilíngue, mas a inclusão do aluno migrante, seja pela educação bilíngue já defendida para os surdos nacionais ou uma educação diferenciada e intercultural que considere a condição de ser migrante ou refugiado do aluno. Nas duas situações, os direitos humanos linguísticos são raramente mencionados ou operacionalizados para que se assegure uma real inclusão no sistema educacional do país acolhedor (SKUTNABBKANGAS, 2012; RODRIGUES, 2016).
Para abarcarmos mais detalhadamente esses domínios da discussão, trazemos duas perspectivas possíveis na abordagem da educação de surdos migrantes. A primeira direcionada para uma alegada “inclusão” pautada na assimilação do surdo à cultura do país acolhedor, desdobrandose em duas outras situações apontadas como formas de sanar ou amenizar a (não) inclusão do aluno surdo migrante na escola, quais sejam, o ensino da língua de sinais nacional como língua de acolhimento (Libras como língua de sinais de acolhimento ou LibrasAc)9 e a formação e atuação de tradutores e intérpretes de língua de sinais-TILS no contexto humanitário. A segunda abordagem é aquela centrada nos direitos humanos linguísticos e as implicações de respeitar a língua de sinais materna e a cultura surda que constitui a identidade dos migrantes e refugiados surdos.
Educação de surdos migrantes e refugiados direcionada para a (não) inclusão
A negação entre parêntese no título desta subseção reforça o aspecto de tentativas de aplicação das leis já vigentes no Brasil sobre inclusão de surdos tanto na educação básica como no ensino superior e as problemáticas de uma efetiva inclusão a partir de uma educação bilíngue no ensino fundamental e com a presença de TILS no ensino médio e superior (RODRIGUES, 2016). Para a situação de migração e refúgio, os dois recursos adotados, o do bilinguismo bimodal, ou seja, do bilinguismo entre uma língua falada e outra sinalizada, e o do papel do TILS educacional, resvalam na questão da língua materna do aluno surdo migrante. Duas possíveis alternativas de atuação para esse cenário são adotar o uso da língua de sinais nacional como língua de acolhimento, a LibrasAc, similar ao caso do português como língua de acolhimento (PLAc) e a presença de TILS que atuem em contexto humanitário.
O estatuto da Libras como língua de acolhimento: LibrasAc
O modelo bilíngue de educação de surdos no Brasil pode ser apontado como aquele a ser seguido também no acolhimento de alunos migrantes surdos nas escolas brasileiras, ou seja, o acolhimento deve ser bilíngue. Documentos de orientação para o acolhimento a estudantes imigrantes mencionam a figura do “professor interlocutor” na mediação linguística entre o aluno surdo migrante e as demais instâncias escolares (SALGADO; ARAÚJO, U., 2018, p. 13), mas sem especificar como seria essa interlocução. Já Bentes, Oliveira e Araújo (2020) levantam a questão
[...] (1) Os alunos migrantes precisam aprender o português como língua de uso escrito? (2) Os alunos migrantes precisam aprender a Libras como “língua franca”, “língua de instrução” e “língua de uso”? (3) Ou estes alunos necessitam continuar usando o espanhol como L1 no processo de aquisição da escrita? E, ainda, os professores precisam aprender LSV ou o espanhol? Questionamentos que só uma pesquisa baseada nas experiências de ensino-aprendizagem, com os surdos migrantes venezuelanos, será capaz de responder. A pesquisa indicará [...] se realmente os alunos terão que aprender a Libras ou se será os professores que terão que aprender a LSV ou as duas possibilidades. (BENTES; OLIVEIRA; ARAÚJO, 2020, p. 124)
Os autores não respondem diretamente às perguntas aventadas, mas transcrevem a fala de uma professora que relata a experiência de trabalhar com uma criança surda venezuelana e que o tratamento dado a ela é o mesmo para as crianças surdas brasileiras, com o uso dos AEE (Atendimento Educacional Especializado10) e o uso da Libras em sala de aula (BENTES; OLIVEIRA; ARAÚJO, 2020, p. 128, 134).
Para o caso de surdos venezuelanos, a observação de algumas famílias migrantes nos últimos cinco anos demonstra que os filhos ouvintes de pais surdos acabam por adquirir alguma fluência nos dois pares de línguas orais e de sinais das suas vivências: LSV-espanhol e Librasportuguês, atuando quase sempre como intérpretes de seus progenitores e de outros amigos ou familiares surdos. Já as crianças e adolescentes surdas podem adquirir mais rapidamente do que os pais a fluência na língua de sinais nacional, a Libras, ensejando situações de interpretação intramodal entre línguas de sinais no par LSV-Libras. Casos que acontecem no âmbito do Programa MiSordo, quando há informações em Libras, sobretudo em relação a benefícios governamentais e ajudas humanitárias, imediatamente são passadas para a LSV por surdos migrantes que estão há mais tempo no país. Com isso, é possível acreditar que a Libras acabe por figurar como principal ou única candidata a língua franca ou língua de acolhimento no contexto escolar para os alunos surdos migrantes de uma primeira geração nascida no Brasil.
A afirmação anterior contrasta com informações que se tem de casos de surdos venezuelanos que não conhecem e não dominam a língua de sinais do país de origem, a LSV. Temos notícias de crianças surdas matriculadas em escolas de Boa Vista que se comunicavam com seus pais por meio de sistemas de sinais caseiros11 e não a LSV ou a Libras.
A questão que se mantém é a de se a Libras como língua de sinais nacional poderá cumprir satisfatoriamente com a inclusão dos alunos surdos migrantes, considerando as problemáticas já vivenciadas pelos surdos brasileiros e no acesso ao aprendizado do português L2 na modalidade escrita (RODRIGUES, 2016). Em outras palavras, questiona-se se os alunos surdos migrantes terão real acesso ao português e ao espanhol nas suas modalidades escritas, tendo sua escolarização mediada pela Libras como possível língua de acolhimento e, posteriormente, adicional.
Os TILS em contexto humanitário
Desde a entrada dos surdos migrantes no Brasil, a presença de um TILS é essencial. No entanto, o TILS brasileiro é formado para atuar no par linguístico Libras-português (motivo pelo qual alguns preferem a sigla TILSP). Balestro e Gorovitz (2021) discutem o papel do mediador linguístico na entrevista de solicitação de refúgio, enquanto Oliveira e Silva (2017) discutem as barreiras linguísticas que geram violações de direitos humanos, dentre elas justamente a ausência de intérpretes na esfera pública.
Para o contexto humanitário vivenciado na migração de venezuelanos em Roraima, o trabalho de TILS humanitários tem sido desenvolvido por voluntários, principalmente de programas extensionistas como o MiSordo descrito na segunda seção, ONGs e entidades religiosas, conforme descrito por Oliveira e Silva (2017). No entanto, um dos maiores empecilhos talvez seja a não formação específica dos TILS para atuar nesses contextos humanitários, com a fluência em uma língua de sinais estrangeira de pouca visibilidade internacional como a LSV.
As duas abordagens para a problemática da inserção de surdos migrantes na escola descritas acima parecem ser as melhores alternativas para a situação em tela, no entanto, o ensino da Libras como língua de acolhimento ou adicional é ainda incipiente e o papel da Libras como língua de sinais institucionalizada deverá ser repensada para os casos de outras comunidades surdas e suas particularidades linguísticas, como é o caso dos surdos migrantes ou de comunidades de vila ou aldeias e suas variedades de línguas de sinais emergentes (ARAÚJO; BENTES, 2020). Nesse rol de alternativas não é possível distanciar temas interseccionais como aspectos sócio-históricos, políticos, culturais, ideológicos, de direitos (internacionais) e dos Estudos da Tradução. Nesse último quesito a interpretação humanitária traz à cena o emaranhado de tópicos a serem contestados na atual conjuntura da formação de tradutores e intérpretes de língua de sinais. Um problema considerado fácil de ser resolvido pelas escolas onde mais uma vez a ideia de língua de sinais universal e de que os “outros” tem o dever de aprender a língua nacional coloca a parcela de crianças e jovens matriculados expostos à Libras sem considerar a aquisição da LSV como língua materna.
Educação de surdos migrantes e refugiados centrada nos direitos humanos linguísticos
As ações do Programa MiSordo e a postura adotada de uso da língua de sinais dos surdos migrantes para o atendimento inicial demonstra um outro direcionamento, centrado nos pressupostos dos direitos humanos linguísticos (SKUTNABB-KANGAS, 2012). Nessa perspectiva, a língua de sinais do outro, surdo e migrante, devem ser respeitados com a disposição de se aprender a língua de sinais estrangeira e, pelo menos de início, buscar a comunicação na língua de migração.
No contexto escolar esse ideal seria totalmente rechaçado já que as línguas nacionais e oficial são as que possuem o prestígio decorrente das ideologias do monolinguismo. Invocar os pressupostos dos direitos humanos linguísticos como centrais para a real inclusão de alunos surdos migrantes corroboram a necessidade de uma política linguística e educacional que contemple as línguas nacionais como de acolhimento sem, no entanto, apagar a presença da língua materna do migrante ou refugiado, adotando assim a categoria de línguas adicionais para que sejam assegurados os direitos dos migrantes e refugiados de aprender a língua do país de destino, mas sem ser obrigado compulsoriamente a passar por processos de substituição linguística (language shift), conforme Skutnabb-Kangas (2012, p. 244).
Dessa forma, o que o programa MiSordo tem realizado de modo mais natural, a continuação da presença e uso da LSV no acompanhamento de surdos migrantes só podem ter uma maior durabilidade se forem pautados nas premissas dos direitos humanos linguísticos.
Migração, refúgio e surdez: repensando políticas linguísticas e educacionais na migração
Buscamos pincelar até aqui como o espectro da surdez no cenário da migração e refúgio e a figura dos surdos migrantes impactam e problematizam ainda mais os desafios para uma verdadeira escola inclusiva. Como efeito desse impacto, diariamente o Programa MiSordo recebe demandas para a mediação junto às escolas. Surdos procuram a equipe do Programa para ter auxílio de intérpretes que os compreendam (em LSV) nas reuniões da escola. Questões como compreender as tarefas escolares, recados e avisos da escola em língua portuguesa são constantemente solicitados. No início de 2021, solicitações de auxílio para matrículas suscitaram o contato com a Secretaria Estadual de Educação, setor de Educação Especial e Coordenação do Centro de Atendimento ao Surdo-CAS de Roraima, na tentativa de propor parceria que pudesse garantir atenção específica aos migrantes surdos no âmbito escolar. No entanto, a recepção da proposta não foi bem aceita sob a alegação de que os surdos venezuelanos estavam amparados pelas ações do CAS com intérpretes de Libras. O que revela mais uma vez a visão engessada do monolinguismo sobre a Libras para dar conta do processo de ensino e aprendizagem. Um total descaso com as especificidades das comunidades surdas, nacionais e migrantes, é a resposta dada pela referida Secretaria quando questionada sobre as matrículas dos alunos surdos serem realizadas por meio de um número de call-center oficial, ignorando totalmente a população surda nesse quesito. Com isso, os surdos migrantes compostos por famílias inteiras de surdos ou ouvintes usuários do espanhol não conseguem compreender o processo para efetivação das matrículas12.
Vê-se com isso que a postura tomada pelo Programa MiSordo de atenção dada aos surdos migrantes com respeito à sua língua de sinais materna demonstra que a LSV deverá continuar presente nas ações, desde a acolhida até a real inserção do surdo migrante na sociedade brasileira, resta saber quais estratégias serão melhor desenhadas para que se garanta o direito humano linguístico de se utilizar a própria língua em um outro país com outra comunidades surdas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O atual fluxo migratório de venezuelanos para o Brasil tem descortinado uma realidade diferente em diversos setores sociais, parte dela é a presença de surdos migrantes e refugiados, principalmente no estado de Roraima. As particularidades da migração de surdos trazem no seu bojo uma outra realidade até então invisibilizada, a de que surdos também migram, como é o título de uma das seções deste artigo. Complementando esse título, o objetivo deste artigo foi o de afirmar e confirmar: os surdos migrantes também estudam! E com isso, trazer à tona temas de discussão sobre direitos humanos linguísticos e a presença desses surdos no contexto escolar.
Após a apresentação do cenário de migração e refúgio em Roraima na primeira seção e uma problematização da presença de surdos no espaço escolar, trouxemos para a discussão as ações do programa interinstitucional de extensão MiSordo (Migrante Sordo), enfatizando um aspecto relevante nesse programa na relação com os surdos e comunidade surda venezuelana migrante, a disposição de realizar o acolhimento desses surdos na língua de sinais deles mesmos, a Língua de Sinais Venezuelana-LSV (BENTES; ARAÚJO, 2021; BENTES; TEÓFILO; PAIVA, 2020). Essa postura traz um novo olhar para as políticas linguísticas e políticas educacionais adotadas em relação ao surdo migrante que vá além do uso do português como língua de acolhimento (PLAc) ou da Libras como língua de acolhimento (LibrasAc) (LEITE; OLIVEIRA, 2021). Nessa perspectiva, os direitos humanos linguísticos dos surdos migrantes e refugiados são realmente considerados ao ponto de oferecer às línguas dos surdos migrantes um papel de agentividade maior e não de apagamento ou marginalização. No contexto escolar, seguindo as ações do Programa MiSordo como referência, verificamos que o uso da LSV juntamente com a Libras (ou a LibraSV) e do espanhol com o português (portunhol?) devem se manter perenemente, desde a acolhida até as diferentes etapas educacionais (da educação básica ao ensino superior).
Os direitos humanos linguísticos (SKUTNABB-KANGAS, 2012) são invocados nesse processo, apesar de sabermos que esse debate no Brasil é ainda tímido (OLIVEIRA; SILVA, 2017) e que a presença de migrantes venezuelanos, surdos ou ouvintes, poderá acarretar um novo cenário de diversidade linguística no Brasil com a LSV figurando como língua de sinais de fronteira ou migração (ARAÚJO; BENTES, 2020). No entanto, temos como certo que os direitos humanos linguísticos são apenas um começo de ações, conforme as palavras de Skutnabb-Kangas (2012, p. 247) ao final do seu capítulo: “Os direitos humanos linguísticos são um instrumento necessário, mas não suficiente para a luta por justiça social”13. (Tradução nossa).