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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.69 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 28-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.66104 

Migração e refúgio: desafios educativos entre desigualdades e diferenças

NAS DIÁSPORAS E ENCRUZILHADAS DO COTIDIANO ESCOLAR: As travessias dos currículos praticados de uma escola municipal de Manaus

IN THE DIASPORA AND CROSSROADS OF SCHOOL DAILY LIFE: The crossings of the curriculum practiced in a municipal school in Manaus

EN LAS DIÁSPORAS Y ENCRUCIJADAS DE LA VIDA COTIDIANA ESCOLAR: Los cruces de los currículos practicados en una escuela municipal de Manaus

1Universidade do Estado do Amazonas/Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação PPGED UFPA.


Resumo

O presente artigo emerge da pesquisa de doutorado em Educação, ainda em andamento, interessada na compreensão das experiências educativas da EMEF Prof. Waldir Garcia, comunidade escolar constituída por sujeitos oriundos de diferentes movimentos diaspóricos na cidade de Manaus, e que, a despeito de não serem convidados a compor o clube da humanidade, nas palavras do líder indígena e pensador Ailton Krenak, ainda teimam em inventar e criar os seus saber[es]xistências. Diante da presença de filhos da comunidade haitiana, chegada à cidade de Manaus no fluxo migratório ocorrido nos anos de 2010 e, mais recentemente, da comunidade venezuelana, cuja presença se intensificou a partir do ano de 2018, o objetivo deste trabalho é discutir que o cerne das experiências curriculares produzidas nessa escola se adere a uma perspectiva fronteiriça, de encruzilhada, enredada em diálogo com as diásporas vividas pelos seus sujeitos e que rasuram e desorganizam os limites e controles impostos à escola. O referencial teórico-epistemológicometodológico dessa discussão se vincula ao campo dos estudos com os cotidianos escolares e seus currículos praticados, bem como à Pedagogia das Encruzilhadas. As reflexões sobre esta comunidade escolar permitem vislumbrar que os seus currículos praticados, podem estar a incorporar as gingas e as vozes dos sujeitos que a integram e o modo como atribuem significados, performatizam e narrativizam as práticas de educação, vida e arte no solo da escola, transcriando e (re)territorializando as suas múltiplas experiências existenciais e processos identitários.

Palavras-chave: currículos praticados; pedagogia das encruzilhadas; diáspora curricular.

Abstract

This article emerges from the doctoral research in Education, still in progress, interested in understanding the educational experiences of EMEF Prof. Waldir Garcia, a school community made up of subjects from different diasporic movements in the city of Manaus, and who, despite not being invited to compose the humanity club, in the words of indigenous leader and thinker Ailton Krenak, still insist on inventing and creating their knowledge and existences. Faced with the presence of children from the Haitian community, who arrived in the city of Manaus in the migratory flow that took place in 2010 and, more recently, from the Venezuelan community, whose presence intensified from 2018 onwards, the objective of this work is to discuss that the The core of the curricular experiences produced in this school adheres to a border perspective, of crossroads, entangled in dialogue with the diasporas lived by its subjects and that erase and disorganize the limits and controls imposed on the school. The theoretical-epistemological-methodological framework of this discussion is linked to the field of studies with school routines and their practiced curricula, as well as to the Pedagogy of Crossroads. The reflections on this school community allow us to see that its practiced curricula may be incorporating the swings and voices of the subjects that integrate it and the way they attribute meanings, perform and narrativize the practices of education, life and art on the ground of the school, transcreating and (re)territorializing their multiple existential experiences and identity processes.

Keywords: curriculum practiced; pedagogy of the crossroads; curriculum diaspora.

Resumen

Este artículo surge de la investigación doctoral en Educación, aún en curso, interesada en comprender las experiencias educativas de la EMEF Prof. Waldir García, comunidad escolar conformada por sujetos de diferentes movimientos diaspóricos de la ciudad de Manaus, y que, todavía, no siendo invitados a componer el club de la humanidad, en palabras del líder y pensador indígena Ailton Krenak, aún insisten en inventar y crear sus conocimientos e existencias. Ante la presencia de niños y niñas de la comunidad haitiana, que llegó a la ciudad de Manaus en el flujo migratorio ocurrido en 2010 y, más recientemente, de la comunidad venezolana, cuya presencia se intensificó a partir de 2018, el objetivo de este trabajo es discutir que el núcleo de las experiencias curriculares producidas en esta escuela se adhiere a una perspectiva de frontera, de encrucijada, enredada en diálogo con las diásporas vividas por sus sujetos y que borran y desorganizan los límites y controles impuestos a la escuela. El marco teórico-epistemológico-metodológico de esta discusión está vinculado al campo de estudios con las rutinas escolares y sus currículos practicados, así como a la Pedagogía de las Encrucijadas. Las reflexiones sobre esta comunidad escolar permiten ver que sus currículos practicados pueden ir incorporando los vaivenes y voces de los sujetos que la integran y la forma en que atribuyen significados, realizan y narrativizan las prácticas de educación, vida y arte en el terreno de la escuela, transcreando y (re)territorializando sus múltiples experiencias existenciales y procesos identitarios.

Palabras clave currículos practicados; pedagogía de las encrucijadas; diáspora currícular.

ENTRE AS COSMOPOÉTICAS DE REFÚGIO E A CRIAÇÃO CURRICULAR COTIDIANA

Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade?

(Ailton Krenak)

Por mais que o colonialismo tenha nos submetido ao desmantelo cognitivo, à desordem das memórias, à quebra das pertenças e ao trauma, hoje somos herdeiros daqueles que se reconstruíram a partir de seus cacos.

(Simas & Rufino)

O presente ensaio emerge de um processo de estudo iniciado a partir da busca de compreensão das experiências educativas de uma comunidade escolar situada na fissura entre a idealização da cidade modernizada e a cidade praticada por aqueles e aquelas que são jogados para as suas margens, oriundos e oriundas de diferentes movimentos diaspóricos, e que, a despeito de não serem convidados e convidadas a compor o clube da humanidade, nas palavras do líder indígena e pensador Ailton Krenak (2019), ainda teimam em inventar e criar os seus saber[es]xistências1.

Desde os fins de 2015, acompanho a situação atravessada pela EMEF Prof. Waldir Garcia - escola de tempo integral atuando nos anos iniciais do Ensino Fundamental - que está localizada nas bordas do Centro Histórico da cidade de Manaus, à margem de um igarapé2 degradado e mortificado e, nos últimos cinco anos, objeto de um projeto governamental de “saneamento socioambiental” que insidiosamente expulsou os moradores para regiões ainda mais periféricas da cidade manauara. A ação imposta neste território provocou o esvaziamento dessa escola e o seu quase fechamento.

Em minha primeira imersão nessa realidade, cuja experiência apresento em uma dissertação de mestrado, acompanhei o movimento da comunidade escolar para garantir a permanência da escola naquele território e as negociações político-pedagógicas elaboradas para a implantação da educação em tempo integral no ano de 2016, como tática de resistência e modo a assegurar dignamente o atendimento aos filhos e filhas das famílias de moradores e moradoras remanescentes naquele enclave urbano e da comunidade haitiana, chegada à cidade de Manaus no fluxo migratório ocorrido nos anos de 2010 e que, com o apoio da Pastoral do Migrante, conseguiu fixar residência no Bairro de São Geraldo, onde está localizada a escola. Mais recentemente, a escola também tem recebido crianças venezuelanas oriundas de famílias de migrantes e refugiados, cuja presença se intensificou em Manaus a partir do ano de 2018.

Nesta travessia pela sobrevivência dos sujeitos individuais e coletivos, abraçados, (eu diria mais: aquilombados), nessa comunidade escolar - tornada um importante ponto da rede de apoio às famílias de migrantes e refugiados -, suponho que interessantes cruzos3 epistêmicos e culturais estão sendo vividos, apontando outros caminhos na/da experiência educativa, e são eles que me interessa compreender.

Driblando a precariedade das vidas das crianças, de suas famílias, dos trabalhadores e das trabalhadoras que integram a comunidade da EMEF Prof. Waldir Garcia, a escola vem incorporado à sua política o acolhimento dos conhecimentos desses sujeitos e, em primeiro plano, o reconhecimento do direito a existência desses sujeitos subalternizados, abarcando responsabilidades e compromissos diante dos seus currículos praticados (OLIVEIRA, 2003), no âmbito de um projeto de escola de tempo integral em disputa, frente ao descompromisso do Estado com as condições de vida da população residente no bairro e com a própria escola, como instituição promotora de justiça social e cognitiva (SANTOS, 2010).

Se por um lado, constato as circunstâncias do abandono estatal, por outro, percebo os mecanismos de controle operados por meio das pressões exercidas sobre a escola quanto aos resultados educacionais (definidos por avaliações externas em larga escala) e a política instituída para a uniformização curricular (corporificada na Base Nacional Comum Curricular - BNCC), agregada ao discurso empresarial-neoliberal hoje hegemônico no campo da Educação. No entanto, é pelas brechas do cotidiano que a comunidade da EMEF Prof. Waldir Garcia tem cavado as suas trincheiras interculturais e políticas driblando as imposições e prescrições curriculares oficiais. Isto se traduz, por exemplo, nas línguas que vão se projetando no espaço da escola e que são inscritas como objeto legítimo de estudo: o crioulo haitiano e o castelhano - línguas maternas de parte de seu alunado -, que passaram a habitar os espaços e tempos de formação e atuação docente nessa escola; e nas possibilidades educativas que também vão se constituindo na organização de tempos e espaços curriculares, validando diferentes mediações pedagógicas, transformando os recantos da escola - como a cozinha e o canteiro da horta e da compostagem - e da cidade - o teatro, a praça, a feira e a margem do igarapé - em espaços e tempos de criação e negociação de saberes.

Inventando terreiros4 onde práticas culturais se entretecem, seja no bailado do Boi Bumbá Garcioso - agremiação folclórica criada pela escola, tendo como tripa (aquele que dá vida ao boi) um estudante haitiano que reinventa com o seu corpo outros rodopios inesperados, outras performances para o boi - ou na culinária tradicional dos países de origem de seus estudantes - adicionando diferentes temperos do saber5 na escola -, desvios, intersecções e rotas de fuga vêm transfigurando possibilidades emancipatórias no cotidiano da EMEF Prof. Waldir Garcia e, recriando (por que não?) cosmopoéticas de refúgio6 no coração da escola. Há, portanto, uma potência transgressora nos saberes inscritos nos corpos dos sujeitos que a habitam - expressivamente, pessoas negras (afro-caribenhas) e ameríndias (venezuelanas e brasileiras) de diferentes processos diaspóricos - que merece atenção.

A título de ensaio, mas já anunciando possibilidades, minha aposta é que o cerne das experiências curriculares produzidas nessa comunidade escolar se adere a uma perspectiva fronteiriça, de encruzilhada7, enredadas em diálogo com/nas diásporas vividas pelos seus sujeitos e que rasuram e desorganizam os limites e controles impostos à escola. Conhecer tais travessias, como recurso epistêmico que permite entender os seus currículos praticados, exige considerar muito seriamente as gingas8 e as vozes dos sujeitos que a integram e o modo como atribuem significados, performatizam e narrativizam as práticas de educação, vida e arte no solo da escola, transcriando e (re)territorializando as suas múltiplas experiências existenciais e processos identitários.

Ainda no rastro desta travessia, não posso desconsiderar o grave momento presente de pandemia do novo coronavírus e a suspensão das atividades escolares presenciais durante os anos de 2020 e 2021, com a adoção do emergencial ensino remoto. Tal situação pandêmica e a sua trágica gestão em nível local e nacional agudizou a condição de segregação social no território9 onde a escola está fincada e, de modo inequívoco, explicitou a dor social e os problemas econômicos existentes na comunidade, mas, também, a importância vital da própria escola.

Portanto, sem desconsiderar os desafios do momento presente, irmanada com aqueles e aquelas que cotidianamente se reconstroem taticamente a partir de seus cacos (RUFINO, 2019b) para (re)inventar a vida, as minhas inquietações epistemológicas apontam para os cruzos epistêmicos e culturais que estão sendo experimentados nos currículos criados no cotidiano da EMEF Prof. Waldir Garcia em diálogo com os sujeitos atravessados por diferentes experiências diaspóricas. Nesse encontro-refúgio, será importante compreender o que narrativizam e performatizam esses sujeitos com a/na escola, transcriando e (re)territorializando as suas múltiplas experiências existenciais e processos identitários. Talvez, pensar nas práticas culturais e de saberes que estão surgindo nas encruzilhadas do que a escola constituiu até então - e do vir a ser, que já está em curso - ajude a perceber a substância política/poética/ética/estética ao seu projeto de educação integral.

CRIAÇÃO COTIDIANA & PEDAGOGIA DAS ENCRUZILHADAS X CARTOGRAFIAS ABISSSAIS

De acordo com Santos (2010), o pensamento colonial produziu, e ainda produz, cartografias abissais e dicotomias; nega copresenças e contemporaneidades criando dualismos e reducionismos que atingem as práticas sociais na medida em que as experiências plurais nelas vividas, bem como os seus autores, são ativamente invisibilizados e declarados como nãoexistentes; atrasados; sub-humanos, resultando no desperdício das experiências sociais. Contra esse modo de operar no mundo, temos sido convocadas e convocados a produzir outras linguagens, outras sensibilidades e modos de conhecer.

Assente à necessidade de contestação e subversão do paradigma dominante e do seu caráter de abissalidade nos modos de produzir e valorizar conhecimentos, os estudos com os cotidianos escolares assumem a dimensão da complexidade das experiências produzidas nos espaçostempos educativos e de suas redes de tessitura de conhecimentos como válidas e necessárias. Para isso, é fundamental compreender o cotidiano como o espaçotempo dos “aconteceres” que, para além da repetição, comporta em si a criação, ainda que nele nada pareça se passar, pois, de acordo com Pais (2003, p. 28):

O quotidiano - costuma dizer-se - é o que se passa todos os dias: no quotidiano nada se passa que fuja à ordem da rotina e da monotonia. Então o quotidiano seria o que no dia a dia se passa quando nada se parece passar. Mas interrogando as modalidades através das quais se passa o quotidiano - modalidades que caracterizam ou representam a vida passante do quotidiano - nos damos conta de que é nos aspectos frívolos e anódinos da vida social, no “nada de novo” do quotidiano, que encontramos condições e possibilidades de resistência que alimentam a sua própria rotura.

É nessas possibilidades de “rotura” que se fundam os cruzos como devir e movimento inacabado, atravessamento, rasura, contaminação, catalização, acúmulo e bricolagem; como perspectiva que mira e pratica a transgressão; que opera para engolir o diferente sem a pretensão de exterminá-lo, mas de adicioná-lo, de acordo com Rufino (2019b). O cotidiano escolar seria então esse espaçotempo de adições “e...e...e...”.

Compreendo, concordando com Oliveira (2008), que o que constitui a vida das escolas extrapola as pretensões das regulamentações oficiais (ou mesmo as regulações não formais), que no mais das vezes invisibiliza as formas de fazerpensar os currículos nos cotidianos escolares, em nome de um projeto pedagógico hegemônico que contrai as experiências produzidas nesses contextos e silencia os sujeitos criadores desses conhecimentos. No sentido oposto, a autora insiste no seguinte:

Para compreender o que de fato acontece nos processos educacionais que escapa aos modelos pedagógicos e propostas curriculares oficiais, é preciso considerar como formas de saber/fazer/pensar/sentir/estar no mundo válidas, tudo aquilo que a escola tem sido levada a negligenciar em nome da primazia do saber científico e da cultura ocidental branca e burguesa sobre os/as demais. É fundamental, para podermos entender tudo o que está nas escolas e na vida dos alunos e que vai além dessa racionalidade, que não compreendamos como desvio ou erro os acontecimentos não-enquadráveis naquilo que a razão metonímica permite enquadrar, recuperando a riqueza da vida real para além deles (OLIVEIRA, 2008, p. 70).

Por isso, invoco, a partir de Rufino (2019b), o reconhecimento dos saberes de fresta, de ginga, inapreensíveis pela lógica totalitária, que se faz possível pela perspectiva de uma Pedagogia das Encruzilhadas. Essa pedagogia decolonial, pedagogia de fronteira, é a operação de transgressão dos parâmetros assentados na colonialidade que produzem a violência e o desencanto da vida. Assim, importa para esse autor problematizar a própria noção de pedagogia, reivindicando-a como um complexo de experiências, práticas e invenções produtoras de presenças e da multiplicidade de saberes, fenômeno que se implica entre vida, arte e conhecimento, para a emergência de novos seres. Assim,

A luta por outras educações, experiências, linguagens e gramáticas é uma luta pela vida. A educação como um fenômeno radicalizado na condição humana trata diretamente da emergência e do exercício dos seres como construtores dos tempos e das possibilidades. Assim, o elemento racial surge como um dos fundamentos da agenda política/educativa do colonialismo europeu e suas formas de gerenciamento da vida. Dessa forma, a agenda política/educativa investida pelo colonialismo praticou e continua a praticar, ao longo de séculos, desvios ontológicos e epistemicídios. Uma educação que rasure os parâmetros impostos por esse modelo haverá de despachar esse carrego rasurando as escritas de terror por respostas responsáveis. (...) terá a necessidade de parir novos seres sem que a credibilidade desses se construa em detrimento da dos outros (RUFINO, 2019b, p. 75).

O autor dá um passo adiante quando reconhece que “a problemática do conhecimento é fundamentalmente étnico-racial” (idem, p. 12), daí a importância de um reposicionamento histórico daqueles que praticam os saberes que cruzam a esfera do tempo e do espaço, encarnados naqueles que foram produzidos como outros. Este lugar da “outridade”, daqueles e daquelas que foram racializados, promove apagamentos históricos para os quais não basta se pôr em oposição, de acordo com Kilomba (2020), pois é preciso tornar-se sujeito, ou seja, aquele/aquela que escreve a sua própria história. O ato de escrever a própria história, de narrar-se, de reinventar-se, de tornarse oposição ao projeto colonial, é a luta a contra os silenciamentos históricos. E, como bem aponta bell hooks10 (2019) sobre os atos de fala, erguer a voz como prática de liberdade, significa, para nós, não um gesto de palavras vazias, mas a expressão da transição da condição de objeto para a de sujeito. Para nós, amazônidas, a luta contra os silenciamentos que nos foram impostos é uma questão fulcral para a defesa dos nossos diferentes modos de ser.

O NARRAR A SI MESMO E A LUTA CONTRA O APAGAMENTO DA HERANÇA DIASPÓRICA

Neste campo, a historiadora amazonense Patrícia Melo Sampaio11, explicita a construção sistemática de uma narrativa de apagamentos na Amazônia, onde a construção da memória oficial, por exemplo, invisibilizou a presença negra neste território, tanto numa perspectiva da “importância econômica da escravidão”, quanto na compreensão da ressignificação dos modos de existir do povo negro, que por aqui formou quilombos e mocambos, e de sua importância cultural. A representação de uma Amazônia extrativista e das drogas do sertão coletadas pelos nativos e caboclos, deslocou o tema da escravidão e, principalmente, do reconhecimento das culturas da diáspora africana para um plano secundarizado, senão negado, constituindo um vazio na nossa historiografia regional (SAMPAIO, 2011).

O caso particular do estado do Amazonas e, em especial, a capital manauara - cidade fronteiriça, onde grupos sociais e étnicos subordinados não interessavam na construção do imaginário da cidade civilizada, higienizada, “cidade de pessoas bem educadas e polidas” dos barões da borracha, nos fins do século XIX e início do século XX -, foi pródigo na produção de histórias fragmentadas, subsumida na mestiçagem do povo amazonense. Talvez seja possível falar, neste caso, de uma presença ausente tanto dos povos originários, quanto os da afrodiáspora, pois, como destacou Sampaio (2020), até mesmo os diferentes grupos étnicos chegados do Nordeste brasileiro para compor o chamado exército da borracha na região amazônica, foram cristalizados na figura genérica do “nordestino”. O que, mais uma vez, relegou ao lugar da desimportância a cultura das populações negras vindas para essa região em diferentes períodos históricos. Com a chegada da população negra haitiana a Manaus, a partir do ano de 2010, e, também, da população venezuelana, não estaria sucedendo o mesmo processo de apagamento e de produção de presenças ausentes?

A respeito da narrativa político-ideológica da mestiçagem na identidade brasileira, compreendo com Kabengele Munanga (2010) que a luta dos excluídos e a consciência de seu lugar ativo na construção da sociedade brasileira passa pela recuperação do seu passado histórico (falsificado e negado) e, portanto, da compreensão da negritude e do pertencimento étnico para além da tendência ao essencialismo biológico ou social, uma vez que as dimensões da identidade resultam de processos de negociação e renegociação, assumindo um papel tático frente à estrutura social racista.

É dentro de limites de falsificação e negação da presença negra e indígena que o pensamento colonial/pedagogia colonial quer circunscrever a escola, resultando em reiterados processos de silenciamento em nome da lógica “universal” eurocentrada e das hierarquias de classe, de gênero, sexuais, linguísticas, geográficas, raciais do sistema mundo heteropatriarcal-capitalistacolonial.

A IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO DE FRONTEIRA E A TÁTICA DE LUTA PELA EXISTÊNCIA

Em confronto com tais falsificações e silenciamentos, trago Ramón Grosfoguel (2010) apontando a necessidade de um pensamento de fronteira12 e de um corpo-política do conhecimento, da formulação de um lócus de enunciação, ou seja, de um lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala. Também evoco Frantz Fanon (2008), em Pele Negra, Máscaras Brancas, que ao discutir os processos da sociogênese da subjetividade (relacionada, portanto, aos seus determinantes históricos e sociais) - necessária à operação de desalienação do negro -, chamou atenção para a questão da linguagem, pois:

Todo povo colonizado - isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem na nação civilizadora isto é, da cultura metropolitana (FANON, 2008, p. 34).

Neste breve apanhado, enuncio a “questão da linguagem” e das possibilidades de “narrarse” como operação tática de luta pela existência feita pelos grupos subordinados que se perfaz com o apoio das epistemologias de fronteira, das cosmologias do subalterno (GROSFOGUEL, 2010) em confluência com os intelectuais do Atlântico Negro, desafiando os cânones científicos que operam o monolinguismo epistêmico (BERNARDINO-COSTA, 2019). E, nesses termos, não é próprio falar em linguagem, mas em linguagens, considerando os diferentes repertórios narrativos inscritos no e pelo corpo como expressão simbólica traduzida em diferentes práticas performativas, como o teatro, a dança, as brincadeiras, os jogos, a oralidade, por exemplo. O corpo é aqui pensado como instituição máxima e integrante da experiência comunitária e como território (RUFINO, 2019a); como local de inscrição de conhecimento e como portal de sabedoria, conforme (MARTINS, 2003). Assim,

(...) o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc (MARTINS, 2003, p. 66).

Pensar nas performances narrativas do corpo como potente dispositivo para contar histórias, tecer significações, é também uma possibilidade estética, política, metodológica e epistemológica para abrir os paraquedas coloridos aos modos de Ailton Krenak e, com as artesanias, costurar “histórias feitas de retalhos coloridos” (PASSOS; SANTOS, 2011) para imaginar outras fabulações que possibilitem descolonizar o “(...) olhar sobre os sujeitos, suas experiências, seus conhecimentos e a forma como os produzem” (GOMES, 2019, p. 235).

PALAVRAS NAS/DAS ENCRUZILHADAS

O ensaio aqui apresentado foi uma maneira que encontrei para dialogar com o movimento de abertura e mudança que a Escola Municipal Prof. Waldir Garcia - na presença de diferentes sujeitos, oriundos de múltiplos processos diaspóricos -, é convocada a realizar cotidianamente.

Incorporar corpos, narrativas e identidades, numa perspectiva de encruzilhada é produzir conhecimentos e copresenças, o que também faz da escola e de seus currículos praticados um espaçotempo de [re]existências.

1O termo evoca o sentido de inseparabilidade entre ser e saber. Nos estudos com os cotidianos escolares, optamos por criar neologismos quando consideramos que as palavras existentes reforçam as dicotomias produzidas pelo pensamento moderno. “As dicotomias herdadas da Modernidade têm significado limites aos processos de pensamento que precisamos desenvolver para compreender os múltiplos cotidianos das inúmeras redes educativas que formamos e nas quais fomos formados”. (ALVES, 2014, p.1470)

2O Cachoeira Grande é um dos igarapés que margeia o bairro de São Geraldo, onde está localizada a EMEF Prof. Waldir Garcia.

3São operações táticas fundamentadas nas culturas de síncope e que desorganizam as normatizações impostas; são movimentos inacabados, rasuras, atravessamento de fronteiras, nos termos propostos por Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino (2018).

4Conforme Simas e Rufino (2018), terreiro é qualquer espaçotempo em que o saber é praticado e ritualizado significando um contexto educativo múltiplo. Dele emergem histórias alinhavadas às redes de saberes de mundo ancestrais, atlânticas, cosmológicas, assentadas na corporeidade, oralidade, comunitarismo e circularidade. Terreiro é todo campo, material ou não, de invenção que transborda para o campo simbólico e político. (Rufino, 2019a).

5Projeto Temperos do Saber desenvolvido pela escola em 2018. Como o próprio nome sugere, valoriza a culinária enquanto prática cultural e reconhecimento da diversidade dos saberes e das identidades culturais presentes na escola

6Conceito proposto pelo filósofo Denetèm Touam Bona (2020) como invenção de mundos, espaços de liberdade, marronagem e desvios que reabilitam a potência da imaginação e do sonho.

7Lugar do entre que expõe as contradições do mundo cindido, essencializado, dualizado, racializado - do registro colonial - para afirmar as diversidades da vida como poética/política para a invenção de novos seres (RUFINO, 2019b).

8Da capoeira, a ginga é o movimento, arte da esquiva que ilude e desnorteia o oponente; saber do corpo. Aqui também pensada como tática de praticante (CERTEAU, 2014).

9Segregação que envolve múltiplos elementos: a situação das famílias que ainda ocupam palafitas à margem do igarapé da Cachoeira Grande (Zona Centro-Sul de Manaus); das que foram removidas para bairros mais afastados; das famílias haitianas que se fixaram em moradias do “asfalto”, com o apoio da Pastoral do Migrante localizada na paróquia do bairro e das famílias venezuelanas ocupantes de abrigos provisórios oferecidos pela Prefeitura Municipal de Manaus.

10Respeitamos a opção política e epistemológica da autora - cujo nome de nascimento é Gloria Jean Watkins -, em adotar a grafia do seu nome artístico em letras minúsculas, em homenagem a sua avó, buscando romper com convenções linguísticas e acadêmicas e dar ênfase ao seu trabalho e não à sua pessoa.

11Presentemente, a autora passou a adotar sobrenome Alves-Melo, como ato de rebeldia antipatriarcal e ressignificação da sua identidade. A segunda edição revista e ampliada da obra “O fim do silêncio: Presença negra na Amazônia”, por ela organizada e recém lançada em abril de 2022 pela Editora CRV, já contempla essa mudança. Contudo, acessei os seus trabalhos publicados nos anos 2011 e 2020, ainda com o sobrenome Melo Sampaio.

12Como perspectiva epistêmica em contraponto aos fundamentalismos (hegemônicos ou marginais) e como possibilidade de descolonização dos conhecimentos.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 1 de Março de 2022; Aceito: 1 de Maio de 2022

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