INTRODUÇÃO
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus quiser
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O poema de Mario de Andrade (O Poeta come amendoim) desvela o que é a pátria, o lugar não escolhido, podendo ser desejado ou não, onde seja possível comer e dormir, é o “acaso de migrações”. O lugar que permite a produção da sobrevivência, mas não necessariamente a fixação, a constituição de família, o acesso a direitos sociais e trabalhistas permanentes, a liberdade de circulação. O sociólogo italiano Pietro Basso (2013) evidencia que a situação atual dos imigrantes é expressão do ideal do capital, uma força de trabalho nua, sem pátria, sem documentos, sem família, completamente à disposição do capital, o qual tem controle quase absoluto sobre a produção e reprodução social deste trabalhador.
De acordo com Marx e Engels, n’A Ideologia Alemã, “o primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos.” (2007, p. 41). E o primeiro ato histórico é “a geração dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da vida material em si”. (ibid, p. 50). No contexto das relações capitalistas de produção, a venda da força de trabalho é a premissa necessária para o acesso dos trabalhadores aos meios de vida. Portanto, para sobreviver, o trabalhador precisa encontrar quem compre sua força de trabalho.
Considerando que a acumulação capitalista sempre produz uma população relativamente supérflua, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, resulta uma população excedente que constitui o exército industrial de reserva, nos termos de Marx (2017). Deste modo, grandes massas humanas tornam-se disponíveis para serem lançadas em diferentes ramos de produção e/ou diferentes locais. A população excedente ora é recrutada e ora é repelida, assim como as fronteiras, que podem ser abertas ou fechadas, conforme convém aos grupos corporativos empresariais e ao Estado.
Observamos uma massa de trabalhadores completamente disponível ao capital, dado o aumento do desemprego e subemprego. As transformações do processo de produção (seja do lado do capital ou do lado dos trabalhadores) impulsionam o movimento migratório nacional e internacional. Do lado do capital, apresentam-se “soluções” para as suas crises que afetam direta e indiretamente os trabalhadores e provocam deslocamentos. De acordo com Beverly Silver (2005), tais soluções são de ordem espacial (realocação geográfica da produção), de produto (criação de novas linhas de produção menos sujeitas à competição e a conflitos), tecnológica/organizacional (a qual reduz a força de trabalho viva e amplia a terceirização e o trabalho temporário) e financeira (deslocamento do capital da produção para as finanças e especulação). Trata-se, segundo a autora, da contínua recriação das contradições entre capital e trabalho.
Tais contradições são evidenciadas na situação dos trabalhadores expulsos do seu trabalho e do local de moradia. A classe trabalhadora, ao estar sujeita a baixos salários e condições de vida precárias, ao enfrentar o desemprego e constituir-se como população relativamente supérflua, é compelida a migrar em busca de trabalho e melhores condições de vida.
Antunes (2018) analisa a emergência de um novo proletariado de serviços, o aumento da precarização do trabalho e a expansão da superpopulação relativa na atualidade, evidenciando o trabalhador imigrante como um expressivo segmento do proletariado global que é, “simultânea e contraditoriamente, tão imprescindível quanto supérfluo para o sistema do capital” (p. 20).
O deslocamento cada vez mais frequente e incerto de trabalhadores provoca modificações no local de partida e no local de chegada, bem como nas pessoas que ficam e nas que partem. De acordo com a pesquisadora Maria Aparecida Silva (2005, p. 54), “partir e ficar são faces de uma mesma realidade social, que, embora dividida no espaço, acha-se unida no tempo.” O trabalhador que migra é produzido no seio de relações sociais que resultam em expulsão; ao inserir-se num outro local se vê envolto numa realidade social definida por laços sociais pertencentes a um determinado espaço social e cultural. É uma classe errante, que vai se tornando descartável num determinado local e “estranha” ou “intrusa” no novo local para onde se dirige.
Tal situação permite analisar a realidade educacional, da mesma forma marcada pela partida e chegada. O fenômeno é observado nas crescentes transferências entre escolas ou até mesmo na evasão escolar, ou o que vimos denominando de expulsão da escola (VENDRAMINI et al, 2020, p. 04-05). Um conjunto de mecanismos internos e externos empurram as crianças e os jovens para fora da escola, o qual aparece ocultado no termo abandono escolar. Um dos mecanismos refere-se ao deslocamento do jovem ou da sua família. Ao serem inseridos em outra escola, espera-se que se adaptem e deixem para trás sua cultura, modo de vida, hábitos, linguagem, etc., além da exposição à discriminação, racismo e xenofobia.
Ainda que a presença de crianças e jovens migrantes seja perceptível em todos os níveis do ensino, chama a atenção a particularidade da Educação de Jovens e Adultos - EJA. Nossas pesquisas junto à EJA do município de Florianópolis, em Santa Catarina, evidenciam a presença significativa de migrantes. Em 2018, 55,4% dos estudantes eram migrantes; em 2019, eram 65,6%; em 2020, 64%; e em 2021, 62,9% dos matriculados.
A EJA é uma modalidade de ensino que atende majoritariamente jovens e adultos da classe trabalhadora. Uma classe que se reproduz sob condições cada vez mais precárias, no que se refere às relações e condições de trabalho (desemprego, baixos salários, longas jornadas, informalidade, retirada de direitos trabalhistas, entre outros), bem como às condições de reprodução social, agravadas pelo desmonte dos serviços públicos, referentes à assistência social, previdência, oferta de creches e escolas, entre outros. No que diz respeito à educação, temos observado a redução da oferta do ensino por parte do Estado, em especial no período noturno, o fechamento de escolas, o avanço da privatização e as reformas neoliberais (BNCC, Novo Ensino Médio, entre outras) que rebaixam a formação dos trabalhadores e de seus filhos, reduzindo-a à instrução e ao desenvolvimento de habilidades e competências para o trabalho simples. Esta realidade afeta de modo particular os migrantes, os quais veem interrompido seu percurso escolar, dada a necessidade de mudar de bairro, cidade, estado ou até mesmo de país.
Os jovens e adultos que retomam sua escolaridade interrompida ou que migram do ensino regular para a modalidade EJA enfrentam dificuldades para seguir com a escolarização. O elemento que frequentemente concorre com o estudo é o trabalho. Este representa a possibilidade de o jovem manter-se como estudante, mas também se torna empecilho para a sua permanência na escola, especialmente por reduzir as horas de dedicação aos estudos e as condições de concentração, foco e abstração, requeridos para o processo de ensino-aprendizagem. Os itinerários escolares dos jovens migrantes, especificamente, são marcados por interrupções, reprovações, defasagens idade-série, rotatividade de escolas, de turno e de modalidades educativas.
Diante de tais problemáticas, o eixo que orienta o presente artigo diz respeito à origem dos estudantes da EJA, sua situação de itinerância e as dificuldades enfrentadas para a conciliação entre o estudo e o trabalho. Os dados e análises são fruto de pesquisa junto a estudantes matriculados na EJA do município de Florianópolis/SC, com base na consulta às fichas de matrícula (dos anos 2018, 2019, 2020 e 2021) e na realização de grupos focais1 e entrevistas2com estudantes migrantes dos núcleos da região Norte/Nordeste da ilha de Florianópolis, os quais concentram maior número de migrantes.
A ORIGEM DOS ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM FLORIANÓPOLIS
A análise quantitativa dos dados de matrícula permite compreender as particularidades da composição social dos estudantes da EJA em Florianópolis, demonstrando ser esta modalidade de ensino a principal alternativa para os estudantes migrantes que buscam retomar sua trajetória escolar. Esses dados gerais servem como referência para a escolha das amostras, coletadas a partir dos núcleos com maior incidência de migrantes.
O número de pessoas que nasceu em outras localidades fora da capital catarinense corresponde a 62,9% das matrículas totais dos núcleos da rede municipal, estando compreendidos os estudantes naturais da Grande Florianópolis (GF) e os imigrantes (EE - Estado Estrangeiro). O número de nascidos em Florianópolis representa apenas 30,5% dos matriculados. Apesar da queda em relação à porcentagem apresentada no ano de 2020, de 64%, o número de migrantes inscritos permanece crescendo em termos absolutos desde 2018, conforme apontam os dados.
Os resultados obtidos na coleta de dados configuram-se como expressão da composição populacional de Florianópolis, onde a migração segue uma tendência de crescimento exponencial. De acordo com as estatísticas apresentadas no último censo do IBGE, realizado em 2010, a microrregião de Florianópolis apresentou o maior índice de migrantes recebidos em todo o estado, com 66.064 migrantes oriundos de outros estados brasileiros e 128.440 do próprio estado de Santa Catarina, o que representa 22,13% do total de 878.852 habitantes da região à época.
Diante desse contexto, é possível inferir que o número de migrantes segue uma tendência crescente na Educação de Jovens e Adultos, acompanhando os índices gerais da população residente no município. Dentre as hipóteses que podem explicar esse fato, há que se considerar a baixa escolaridade da população migrante (VENDRAMINI et al, 2020, p. 09), a importância do vínculo com a escola, seja no caráter social, de integração, troca de experiências e acolhimento a uma nova realidade, ou no âmbito econômico, considerando a busca pela ampliação da qualificação para ascender, manter-se ou retornar ao mercado de trabalho.
A compreensão das relações entre migração, escolarização e mundo do trabalho ocorre de maneira integrada ao entendimento das contradições do modo de produção capitalista, traçando um panorama entre dados concretos e elementos da vida cotidiana, de forma a identificar o movimento que configura o processo. Por exemplo, entre os estados que possuem maior presença dos estudantes migrantes, com exceção dos que compõem a região Sul - Bahia com 11,3%, Pará com 9% e São Paulo com 4,5% - estão aqueles que vêm apresentando altos índices de desemprego e subocupação da força de trabalho, sendo a Bahia, estado que apresenta a terceira maior taxa combinada de desocupação e subocupação por insuficiência de horas trabalhadas do Brasil, com 33,9%, o Pará com 22,6%, acima da média nacional, que é de 21% e o estado de São Paulo, com 19,9% da sua população sem acesso ao emprego.
Tendo em vista a forma flexível que a acumulação de capital se apresenta na atualidade e as transformações no mundo do trabalho decorrentes em parte do avanço das novas tecnologias digitais, aprofundou-se o processo de precarização estrutural da força de trabalho, reduzindo direitos trabalhistas, ampliando as terceirizações, os trabalhos informais, as jornadas intermitentes (ANTUNES, 2018, p. 26) e, pelo fato de o capital deslocar-se territorialmente com mais frequência, ampliaram as migrações forçadas e o contingente da superpopulação relativa estagnada (MARX, 2017). Nesse sentido, as contradições presentes nesse contexto afetam principalmente a reprodução da vida cotidiana dos migrantes, no âmbito do trabalho, da moradia, das relações pessoais, no acesso à cultura e lazer e, especialmente, no percurso escolar desse segmento.
As barreiras impostas na tentativa de conciliação entre trabalho e educação, somadas ao deslocamento espacial imposto às famílias de trabalhadores, as quais percorrem diferentes cidades e estados, levam à interrupção da trajetória educacional de jovens e adultos de forma recorrente, pois a escola permanece em segundo plano frente à necessidade concreta de priorizar a busca por uma vida digna, com comida no prato e um teto para morar (VENDRAMINI, 2017, p. 436). Diante dos impasses que são colocados, a alternativa mais viável para o retorno ao ambiente escolar é a EJA - Educação de Jovens e Adultos, considerando seu caráter flexível que visa suprir as demandas de trabalhadores que, em determinado momento da vida, interromperam a sua trajetória escolar e geralmente possuem pouco tempo disponível para se dedicar aos estudos. Esse cenário confronta o discurso hegemônico acerca do fluxo migratório em direção à Florianópolis, conforme aponta Silva:
Desmitificar o constructo de Florianópolis como cenário de contos de fada - cheia de oportunidades, dotada de excelência e inconfundíveis belezas naturais - associado ao discurso do empreendedorismo, voluntariado e superação da pobreza via políticas de inclusão, contribuíram para situar a análise da relação entre escola e trabalho para os jovens da EJA em um patamar no qual torna-se evidente reconhecê-los como trabalhadores sempre disponíveis a vender a sua força de trabalho, praticamente, a qualquer preço. (SILVA, 2019, p. 170).
Outro indicador que corrobora com o argumento da situação de precariedade em que vive a classe trabalhadora migrante pode ser conferido nos dados do Cadastro Único para Programas Sociais - CadÚnico, um instrumento do poder público federal que possui como objetivo mapear, contabilizar e cadastrar todas as famílias e pessoas que são afetadas pela desigualdade social ou, como é normalmente categorizado, encontram-se em situação de “vulnerabilidade socioeconômica” e tentam pleitear vagas em programas governamentais de redistribuição de renda. Contudo, é importante destacar que o conjunto desses dados não reflete a totalidade das condições de vida dos trabalhadores, tampouco dos migrantes, pois abrange apenas a parcela da população que teve oportunidade de acessar o cadastro. Dessa forma, podemos supor que o número de trabalhadores em situação de desemprego ou precariedade tende a ser maior do que é apresentado nas estatísticas oficiais, tendo em vista o crescimento do número de pessoas em situação de rua e de migrantes internacionais com dificuldades de regularizar sua documentação, citando apenas dois exemplos. Entretanto, mesmo não apresentando todos os componentes necessários para uma análise minuciosa, os números apresentados pelo CadÚnico são fundamentais para compreender as condições de vida dos trabalhadores.
O número de cadastrados na plataforma serve como importante instrumento para mensurar, parcialmente, a quantidade de trabalhadores que vive à margem do trabalho formal e, por consequência, compõe a grande massa do exército de reserva disponível às necessidades do capital, conforme já citado, a qual não tem acesso à renda fixa, estabilidade empregatícia e necessita do suporte de programas sociais para sua sobrevivência e de sua família. Nesse sentido, os dados do CadÚnico de 2020, disponibilizados pela Secretaria Municipal de Assistência Social de Florianópolis, foram utilizados para analisar a situação concreta e a origem da parcela mais precarizada da população, buscando traçar correlações entre a questão migratória, as condições de vida desses setores da classe trabalhadora e o perfil dos estudantes matriculados na EJA.
De acordo com os dados apresentados, podemos constatar que 62,2% dos cadastrados no sistema são migrantes, tanto nacionais como estrangeiros, frente aos 37,8% de nativos cadastrados, indicando que, dentre as parcelas da sociedade mais precarizadas, a maioria é composta por migrantes. Compreendemos a situação da população migrante como uma massa populacional permanentemente disponível às necessidades de expansão e retração do capital, devido aos processos de expropriações aos quais estão sujeitos (FONTES, 2010, p. 44). Estão desprovidos de meios de produção e de subsistência, como terra, moradia, estabilidade, direitos trabalhistas, organização sindical e contato com redes de solidariedade (como amigos, familiares, entre outros), o que os empurra para uma vida de condições precárias, necessitando recorrer à assistência social pública para garantir a reprodução de suas vidas, diante dos subempregos disponíveis e do desemprego em massa que assola o país atualmente.
A particularidade dos Polos na região Norte-Nordeste da Ilha
A Educação de Jovens e Adultos em Florianópolis, vinculada à rede municipal de educação, está organizada em núcleos e em polos que atendem o ensino fundamental, dos anos iniciais aos anos finais. Os núcleos são definidos com base nas regiões em que se encontram as escolas, já os polos, por sua vez, correspondem às unidades de ensino onde é oferecida a modalidade.
Atualmente a EJA está presente nas 5 regiões da cidade, constituída por 26 polos, os quais estão inseridos em 10 núcleos divididos em Centro 1, 2 e 3, Continente 1 e 2, Sul 1 e 2, Norte 1 e 2 e Leste 1.
Inseridos respectivamente nos Núcleos EJA Leste I e EJA Norte I, os polos do Rio Vermelho e Ingleses, bairros situados na região norte-nordeste da Ilha, foram selecionados como amostragem para o aprofundamento da pesquisa em função da alta presença de migrantes, tendo como base análises das fichas de matrícula físicas e grupos focais. Nesses polos as taxas de migrantes possuem uma média elevada, sendo de 73,6% (Rio Vermelho) e 71,7% (Ingleses) nos dados de matrícula de 2021. Diante desse quadro, o artigo busca compreender as particularidades sociais e econômicas que compõem as condições de vida desses estudantes, observando as correlações entre as categorias reprodução social, migração e educação.
Seguindo a mesma tendência dos dados gerais da EJA em Florianópolis, mas de forma mais acentuada, os polos Rio Vermelho e Ingleses contaram com uma crescente exponencial no percentual de migrantes entre os anos de 2018 e 2021. Mesmo com uma queda nas matrículas do polo Ingleses em 2021, devido à redução de turmas, em termos proporcionais os migrantes ainda permaneceram como maioria, conforme consta nos gráficos comparativos:
Este cenário, além de seguir as tendências da EJA em âmbito municipal, também é reflexo da própria composição populacional dos bairros da região norte-nordeste. O Rio Vermelho, por exemplo, se configurou como um dos principais destinos dos migrantes no âmbito da cidade, devido às características de sua formação socioespacial.
A abertura de novas vias de comunicação ligando o distrito a outras áreas da cidade, a diminuição do tempo de deslocamento entre o local de trabalho e de moradia, aliados à propaganda voltada para a atração de turistas, em particular as articuladas ao turismo ecológico e a atração de migrantes de alta renda. Fundadas no marketing da qualidade de vida, acelerou a exploração imobiliária na localidade, com a abertura de diversos loteamentos residenciais, acelerando o adensamento populacional, criando novas necessidades para atender esta população que passou a residir nestas áreas. (DA ROSA, 2004, p. 54).
A origem destes fatores está presente no período que compreende a década de 1990, quando ocorre uma explosão populacional em Florianópolis (POZZO, 2012, p. 152-153) ocasionada pelo aumento exponencial da migração, em decorrência de um projeto político sustentado por setores do poder público, do capital imobiliário e por parcela considerável da imprensa hegemônica. Neste contexto de crescimento demográfico, a região norte-nordeste, em particular o bairro do Rio Vermelho, foi um dos principais destinos para migrantes, especialmente após 1985 com a pavimentação da via de acesso principal, sendo que entre 1991 e 2004, a população da região passou de 1.864 para 10.000 habitantes, um estrondoso crescimento de 436,48% em apenas 13 anos (DA ROSA, 2004, p. 33). O bairro dos Ingleses também apresenta altos índices de crescimento populacional, principalmente entre as décadas de 1990 e 2010, saltando de 16.439 habitantes nos anos 90 para cerca de 35.000 habitantes em 2012 (SADOWSKI, 2017, p. 97-98), o que representa um crescimento de quase 100% da população. De uma região com características rurais, Rio Vermelho e Ingleses rapidamente transformaram-se em bairros urbanizados, com maior presença de atividades econômicas, ligadas ao comércio e ao setor de serviços, justamente as áreas de trabalho que contam com maior presença dos estudantes migrantes que frequentam a EJA, de acordo com as informações adquiridas nos grupos focais.
AS (IM)POSSIBILIDADES DE CONCILIAÇÃO DO TRABALHO E DO ESTUDO
Com a finalidade de compreender as possibilidades de escolarização dos jovens e adultos migrantes, analisamos como estes conseguem conciliar (ou não) a jornada de trabalho com o tempo necessário aos estudos na EJA de Florianópolis.
Conforme os grupos focais e as entrevistas realizadas, percebemos que o tempo para o estudo na EJA é encaixado de acordo com as demandas de trabalho. Como colocado pelos estudantes, quase todos trabalham mais de oito horas, têm mais de um vínculo de trabalho, poucas folgas e sentem-se cansados. O pouco tempo livre é dedicado à EJA e ao descanso para repor as energias para mais um dia de trabalho, como demonstra Luíza (39 anos):
Quando eu tô em casa, o único dia que eu fico em casa é segunda-feira que é minha folga, o resto tudo eu trabalho, então quando eu tô em casa eu tiro o dia pra descansar, relaxar, ler um livro e só. Eu sou uma pessoa que não é muito de sair, porque se eu for numa praia eu vou estar cansada para o outro dia ter que trabalhar, então eu gosto de ir na praia quando eu tenho dois dias de folga. Quando eu pego só um dia de folga então eu prefiro ficar em casa, assistir Ana Maria Braga, ver as coisas que estão passando, alguma coisa de novidade, sabe?
Às vezes eu saio pra dar uma volta, passear com marido, ou com minha filha, porque ela também trabalha, então a gente não se vê muito. Eu me sinto muito cansada pra no outro dia ter que trabalhar cedo, então prefiro no meu dia de folga ficar descansando.
Conforme aponta Antunes (2018), e de acordo com nossos entrevistados, já não há limite estabelecido para a jornada de trabalho de uma grande parcela da população, tanto os que estão na informalidade, quanto para os trabalhadores em que o trabalho se confunde com o não-trabalho, conforme evidenciado nos próximos parágrafos. Por isso, o trabalhador deve ser flexível e estar preparado para adequar-se às mais diversas atividades e em diferentes locais. Neste sentido, sabendo que o trabalho para o capital aliena e que todo tempo livre é preenchido pelo trabalho, resulta em uma vida/existência alienada e subordinada às intempéries do capital, mesmo que inconscientemente. Desta forma, verificamos como o trabalho e o tempo de trabalho são reorganizados de acordo com as necessidades contemporâneas do capital.
Nessa disputa, entre trabalho e capital, anuncia-se a tendência do tempo de trabalho adentrando ao tempo de “não trabalho”:
Uma invasão que ocorre não apenas pela demanda para a realização de trabalho nos momentos de "não trabalho", de forma explícita ou implícita, mas também pela crescente flexibilização do tempo laboral, determinada pelas necessidades do capital, desorganizando o planejamento da vida dos trabalhadores e seus familiares (CARDOSO, 2013, p. 354).
O caso do entrevistado José (62 anos) é emblemático, pois demonstra que o tempo de “não trabalho” é, na realidade, o tempo de aguardar o momento do trabalho. Quando indagado sobre o que fazia quando não estava trabalhando, responde:
Então, é que a vida de um profissional liberal é um pouco diferente. Porque a gente trabalha quando tem, né? Quando alguém me solicitava, para um trabalho de sonorização, como eu fazia: Primeiro passo, a gente vai buscar o texto, o conteúdo do que vamos anunciar e o segundo passo é na gravadora. Gravar o texto e depois trazer para a pessoa conferir se ficou correto, para depois fazer a divulgação. Isso é um trabalho que se faz por hora. A gente é cobrado por hora e a gente fecha um pacote. Dez horas, quinze horas, vinte horas. É o proprietário que decide qual é o horário que ele quer que a pessoa contratada trabalhe. Ele decide o que quer que faça das dez ao meio-dia, do meio-dia às duas, das duas às quatro, das quatro às seis. Então, é um trabalho assim bastante remoto, porque a gente primeiro trabalha quando tem. O dia que não tem, a gente fica em casa, esperando um telefonema. Divulgando através de um cartão, saindo para divulgar nas ruas, dentro das empresas, nos comércios. Quem chamar a gente oferece o serviço, né?
A fala de José acerca da rotina do seu último trabalho é bastante dramática. Por ser um “profissional liberal”, como ele mesmo se intitulou, vive a contradição entre ser, na aparência, seu próprio chefe e, em essência, subordinado a diferentes patrões. Nomear o comprador de sua força de trabalho como proprietário é emblemático e denota que esse sujeito tem consciência de sua condição real enquanto trabalhador. A fala expressa, de forma direta, que ao vender sua força de trabalho, é vendido também o direito à decisão de sua própria rotina, do seu próprio tempo. Assim como os trabalhadores uberizados (FONTES, 2018), José, um “profissional liberal”, vive:
(...) A profunda contradição entre o que é apresentado socialmente como “liberdade” do ser social, (...) em contraste com sua sujeição cotidiana aos empregadores. (...) A existência real estaria fora do emprego, mas este ocupa quase todo o tempo, introduzindo uma profunda e dolorosa fissura entre o tempo de trabalho e a vida (FONTES, 2018, p. 49).
Na atualidade da contradição histórica entre capital-trabalho, Antunes (2018, p. 83) afirma que os migrantes são a “ponta mais visível do iceberg no que concerne à precarização das condições de trabalho”. Por isso, compreender a situação de vida e trabalho desses sujeitos é importante para entender as formas de extração de mais valor no capitalismo contemporâneo. Além disso, a condição de migrante impõe aos trabalhadores uma relação diferenciada em relação aos trabalhadores locais, pois carregam o estigma social de ser migrante, o de fora, o diferente.
O migrar da classe trabalhadora já indica a precariedade da vida e/ou a necessidade de melhorar as condições da reprodução social. Muitas vezes não há a possibilidade de escolha com o que trabalhar ou onde gostariam de morar, sequer a alternativa de permanecer no local de origem. A migração torna-se condição necessária para a sobrevivência. A ausência da possibilidade de escolha cria uma diversidade e rotatividade nos trabalhos, ainda que todos possam ser classificados como trabalho simples. A entrada no mercado de trabalho é precoce, mesmo para os entrevistados mais novos.
Robson (15 anos - trabalha desde os 14): Eu trabalho ultimamente em uma mecânica, só que antes eu trabalhava com uma coisa de imóveis e tive dois empregos, eu saí de um pra entrar no outro.
Pesquisadora: Com quantos anos você começou a trabalhar?
Mauricio (22 anos): Comecei com 12 anos.
Desde cedo, cumprem longas jornadas, como conta Luíza sobre o primeiro emprego, aos 12 anos:
Luíza (39 anos): Eu trabalhava o dia inteiro. Não tinha carteira assinada. Trabalhava até às cinco e meia, seis horas e aos domingos. Quando fiz quinze, dezesseis anos, fui trabalhar em um restaurante. Trabalhava das sete da manhã às sete da noite.
Os que não trabalham precisam trabalhar e afirmam que está difícil conseguir ocupação. Dos que trabalham, a maioria não tem carteira assinada e as jornadas longas são uma constante para os trabalhadores migrantes, independente da função exercida. Questionados sobre a duração da jornada, respondem:
Luíza (39 anos): Quando eu não venho para escola faço 12.
Renan (17 anos): Trabalho das 7 da manhã às 17:20, sem carteira assinada. Maurício (22 anos): Aqui o povo trabalha de dia e de noite, a maioria. Acho que todo mundo aqui concorda (turma assente). Tem que ser pra poder se manter aqui, porque o custo de vida aqui é um pouco alto.
José (62 anos): Eu saio de casa todos os dias às nove horas da manhã e só volto às nove da noite.
Na entrevista individual com Luíza, percebemos que a jornada se estende para além das 12 horas. Calculando o tempo dedicado ao trabalho, Luíza acordava às 6 horas da manhã para conseguir dar conta de tudo. Quando não estava na escola, afirma que “ficava das sete da manhã até nove da noite trabalhando”. Para a entrevistada, o motivo de tantas horas no trabalho também estava relacionado ao fato de não ter nada melhor para fazer, caso estivesse em casa, o que revela que a pobreza não é apenas material, mas também relativa aos aspectos culturais, educacionais, artísticos e à cultura corporal.
Às atividades que estão envolvidas no processo de conservar a vida chamamos de trabalho de reprodução social. Porém, a reprodução social também é uma lente, uma das múltiplas variantes que moldam a trajetória do trabalhador migrante. Por essa lente, entendemos que a fonte de riqueza em nossa sociedade é “tanto a vida humana quanto o trabalho humano” (BATTACHARYA, 2020, s/p). No contexto de pandemia de Covid-19 é possível perceber com mais facilidade quais são os trabalhos essenciais e perceber que eles estão associados aos trabalhos de reprodução social, como cuidados com saúde, ensino, limpeza e alimentação.
As pesquisas no campo de estudos da migração, assim como o presente artigo, têm demonstrado que a população migrante está associada frequentemente às ocupações de reprodução social. Uma grande parcela das atividades é desenvolvida por mulheres.
Como o capitalismo é um sistema de produzir coisas, não um sistema de produzir vida, essas atividades e esses trabalhadores são severamente subvalorizados. As trabalhadoras de reprodução social são as mais mal remuneradas, são as primeiras a ser dispensadas, enfrentam constante assédio sexual e, muitas vezes, violência direta. (BHATTACHARYA, 2020, p. s/p).
Além do trabalho remunerado neste tipo de função, ressaltamos também as atividades de reprodução sem vínculo empregatício. Tanto atividades de reprodução individual, como higiene e atividades de subsistência familiar, como lavar e cozinhar, cuidar dos filhos, são parte da jornada de trabalho não remunerada e são, novamente, desenvolvidas por mulheres. A entrevistada Luíza alega que mesmo indo dormir tarde (cerca de uma hora da manhã) e acordando às 6 horas, tem que “deixar tudo pronto, alertar minha filha para ela ir para escola, ela faz um curso, vai depois para o trabalho, mais tudo eu que tenho que correr atrás. E ainda tenho que entregar as pesquisas (da EJA)”.
O tempo dedicado à reprodução social também se torna tempo dedicado ao trabalho, já que é essencial para a funcionalidade produtiva do trabalhador. Neste cenário, o migrante é expressão de uma realidade de exploração e precariedade, em que cada vez mais todo tempo é tempo de trabalho, diminuindo ou até mesmo eliminando o tempo de não trabalho. Na atualidade, com as novas tecnologias, é possível levar o trabalho para casa, realidade essa ainda mais escancarada no contexto da pandemia da Covid-19, onde o muro entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho está totalmente desmoronado.
Dessa forma, o tempo para o estudo, seja para ir à aula ou realizar atividades escolares, concorre com o tempo do trabalho. Como aponta Frochetengarten (2009, p. 98), “quem migrou foi em busca de trabalho, não de estudo”, isso subordina a escola à esfera produtiva. Essa realidade limita o processo formativo do migrante. Ou seja, o trabalho ao mesmo tempo em que se configura como necessidade para o estudante, está em constante disputa com os estudos. Considerando a longa e dupla jornada de trabalho, os trabalhos informais e flexibilizados, o pouco tempo restante é dividido com as demandas da reprodução social e com a escola, a qual também é flexibilizada. A escolha pelo estudo implica em abrir espaço no pouco tempo liberado do trabalho, o que significa sacrificar sono, amizades, companhia da família, autocuidado, etc.
Isto posto, quando visamos responder à pergunta - Quais as (im)possibilidades de conciliação de trabalho e estudo? - percebemos que para estar inserido na EJA, o sujeito precisa deixar de lado elementos como o descanso e o lazer. A escola atua como instituição mediadora entre o estudante e o mercado de trabalho, visto que o diploma é visto pelos estudantes entrevistados como forma de buscar um trabalho melhor - ou algum trabalho, no caso dos que não estavam trabalhando. Em síntese, a escola é tida como um meio de acesso ao mercado de trabalho e o diploma como uma qualidade na concorrência por uma vaga.
Além disso, pelos dados obtidos, observamos que os salários são, em sua maioria, baixos, o que impulsiona os migrantes a complementar sua renda com os chamados bicos, constatado pela fala de Maurício (22 anos), quando afirma que quase todos os estudantes que participavam do grupo focal possuíam mais de um vínculo empregatício e com o coro de concordância dos presentes. Uma das contradições indissolúveis do capital é a diminuta ou inexistente divisão do que é trabalho e do que não é. O ciclo de produção e reprodução, seja a reprodução da classe trabalhadora, quanto do capital, é uma engrenagem que tem como único motor a produção de mais valor e, portanto, a desvalorização da vida.
Por fim, observamos que é comum entre os entrevistados a necessidade da rigorosa disciplina e organização do seu trabalho e rotina, associada com os horários alternativos da EJA, para possibilitar o retorno à escola. Para a classe trabalhadora, agravando-se nas frações mais vulneráveis da classe, o trabalho é a atividade que permite sua existência enquanto estudante, ao mesmo tempo que o afasta da escola. Em outras palavras, o trabalho permite a reprodução da vida, mas restringe a possibilidade da dedicação aos estudos. Para retornar à escola é necessário que as condições básicas de existência estejam satisfeitas, por isso, é o trabalho que aproxima e afasta o migrante trabalhador da escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises apresentadas neste artigo revelam as grandes dificuldades para a escolarização dos trabalhadores, em particular, os migrantes. Estes são expulsos do trabalho, do local de origem e também da escola. No novo (se sempre provisório) local de vida, buscam retomar o processo de escolarização, na modalidade Educação de Jovens e Adultos. Observamos esta situação por meio dos dados de origem dos matriculados na EJA de Florianópolis/SC, onde a maioria não nasceu no município.
Considerando a migração como processo social em que os sujeitos estão implicados - os que partem, os que ficam, os que chegam ao destino - compreendem-se diversos aspectos que estão envolvidos neste processo. A partida de um lugar exige o exame dos determinantes da migração associados com o processo de expropriação e expulsão. A chegada exige o estudo sobre as condições de produção e reprodução da vida.
O migrante, ao chegar em Florianópolis, precisa buscar trabalho e local de moradia, em segundo plano está a escola, mas não menos importante. A partir daí, impõe-se o grande desafio de encontrar tempo para estudar. Com trabalhos precários, incertos e irregulares, baixos salários, longas jornadas de trabalho, associadas às atividades de reprodução social dos trabalhadores, a EJA se constitui numa possibilidade de dar sequência ao percurso escolar, visto sua oferta em período noturno, sua estrutura flexível e a possibilidade de cursar o ensino fundamental em menos tempo que o regular. Ainda assim, a busca pelo estudo implica sacrificar horas de sono e descanso, convívio com a família e amigos, entre outros aspectos que constituem a vida para além do tempo de trabalho.