INTRODUÇÃO
Bernardete Angelina Gatti, no livro A construção da Pesquisa em Educação no Brasil (2007), afirma que um dos pontos fundamentais na colocação de problemas para a pesquisa educacional, é a capacidade de antecipar, hoje, temas que estão descortinando, mas que ainda não foram totalmente visibilizados. Acreditamos que a presença de crianças migrantes e refugiadas nas escolas brasileiras é um desses temas que, apesar de recente no país, é cada vez mais relevante, dada a atualidade do assunto, trazendo consigo transformações no processo de ensino-aprendizagem, formação de professores e, especificamente em nosso caso, transformação nas políticas educacionais.
Autores que investigam o tema das políticas educacionais para migrantes e refugiados evidenciam que: o Brasil ainda não tem robustez quando se trata de ações políticas para a garantia do direito à educação (FLORÊNCIA, 2021; OLIVEIRA, 2020); e a necessidade de haver avanço nas políticas educacionais, considerando não somente a matrícula, mas também o processo de acolhimento (AZEVEDO; BARRETO, 2020). Nosso trabalho pretende então acrescentar dois pontos ao debate: analisar uma medida legal que, apesar de ter sido mencionada por outros autores como Florência (2021), ainda não foi aprofundada, e evidenciar o direito à educação para além da matrícula, conforme mencionado por Azevedo e Barreto (2020).
A partir disso, este trabalho se pauta na investigação da Resolução nº 1, de 13 de novembro de 2020, emitida pelo Conselho Nacional de Educação, por meio da Câmara de Educação Básica - CNE/CEB. A resolução destaca-se por ser a primeira medida legal, em âmbito federal, que trata do direito de matrícula de crianças e adolescentes migrantes1, refugiados2, apátridas3 e solicitantes de refúgio4 no sistema público de ensino brasileiro.
Dessa forma, o artigo tem por objetivo compreender como a resolução apresenta o direito à educação da criança migrante e refugiada, observando o contexto das escolas públicas locais.
Assim, o estudo se torna relevante, primeiro, por explicitar o conteúdo da resolução, com uma análise crítica que auxilie professores a interpretar e a refletir o texto à luz da realidade local de suas instituições; segundo, por apresentar uma compreensão que busque ultrapassar o conhecimento imediato, ao passo que esteja em diálogo com a concretude da escola pública.
Tendo em vista as justificativas, o método que embasa o estudo é o dialético, a partir da teoria histórico-crítica, pelas contribuições de Maria Helena Souza Patto e Florestan Fernandes. As demais partes deste artigo estão divididas da seguinte forma: em primeiro lugar, iremos expor a metodologia da pesquisa; depois, faremos a explicitação do referencial teórico que fundamentou a investigação para, em seguida, apresentarmos os resultados e a discussão da análise documental; por fim, apresentaremos as considerações finais do artigo, em que buscamos elucidar a essência da resolução em diálogo com o contexto educacional.
METODOLOGIA
A investigação se pauta na pesquisa documental, compreendida como um processo que se utiliza de técnicas para apreender, compreender e analisar documentos como textos escritos, documentos iconográficos, cinematográficos, dentre outros. Os documentos podem ser públicos ou privados. Nos primeiros, são exemplos os arquivos governamentais, revistas, jornais, periódicos, circulares e boletins. No caso dos arquivos privados, são aqueles não pertencentes ao domínio público: documentos de organizações políticas, sindicatos, comunidades religiosas e empresas. Podemos ainda citar diários, cartas e documentos familiares (CELLARD, 2008; FÁVERO; CENTENARO, 2019).
A técnica utilizada para análise documental se pauta na abordagem proposta por Cellard (2008), desenvolvida com foco em documentos históricos, mas também aplicada em documentos contemporâneos. A abordagem se divide em duas etapas: a primeira é a operação preliminar, com o exame e a crítica do documento; a segunda etapa é a análise aprofundada, em que se unificam as informações obtidas. A operação preliminar se ramifica ainda em cinco dimensões: contexto de criação do documento; autor ou autores; autenticidade e confiabilidade do texto; natureza do texto; conceitos-chave e lógica interna do texto. Apresentamos na tabela 1 a definição de cada etapa e as respectivas dimensões:
Contexto: Apresentar o contexto no qual o documento foi produzido, além de especificar para qual grupo ele é destinado. Pode envolver o conhecimento da conjuntura política, econômica, social e cultural, que resultou na produção do documento. |
Autor ou autores: Identificação da pessoa, grupo ou instituição que produziu o documento. Deve-se buscar entender as razões e a tomada de posição do autor. |
Autenticidade e confiabilidade do texto: Deve-se assegurar a qualidade da informação e verificar a procedência do documento. |
Natureza do texto: Explicitar a natureza do autor e seu suporte. Um documento pode ter natureza teológica, médica ou jurídica e, para cada natureza, será demandada uma estrutura diferente de apresentação do conteúdo. |
Conceitos-chave e lógica interna do texto: Refere-se à compreensão dos termos empregados no texto, e a delimitação do sentido das palavras, por exemplo, a utilização de “jargão” profissional. Dá-se atenção também à lógica interna do texto: o esquema ou o plano de exposição do conteúdo. |
Análise aprofundada: Envolve a reunião das cinco dimensões da análise preliminar para a elaboração da interpretação. A leitura repetida do documento assume importância nesse processo, a fim de tomar consciência das similitudes, relações e diferenças do conteúdo analisado. |
Fonte: elaborado pelos autores a partir de Cellard (2008).
REFERENCIAL TEÓRICO
A teoria histórico-crítica nos auxilia a interpretar a resolução como um produto históricosocial. A escola e as dimensões que a circunda, como as políticas educacionais, são entendidas no interior da sociedade capitalista, em que documentos oficiais podem reproduzir ideais consonantes com a manutenção do sistema social vigente (PATTO, 2000). Para fundamentar essa perspectiva teórica, pautamo-nos nos trabalhos de Maria Helena Souza Patto e Florestan Fernandes.
A pesquisadora Maria Helena Souza Patto, apesar de se situar na psicologia, tem estreito diálogo com o campo da educação. Dentre seus objetos de estudo, destaca-se a investigação sobre fracasso escolar com o livro A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia (PATTO, 2010), em que analisa a reprovação escolar de crianças de famílias nordestinas que migraram para São Paulo na década de 80. A partir da historicidade e da pesquisa empírica, ela expõe como as desigualdades sociais se desdobram em diferenças culturais, biológicas e raciais que tornam, em análise aparente, a explicação para o fracasso escolar e a responsabilização das crianças, dos familiares e dos professores, enquanto o Estado e demais atores envolvidos na educação formal ficam ausentes de crítica.
Quanto ao sociólogo Florestan Fernandes, em sua carreira como docente, pesquisador e deputado federal - anos 1987-1991 e 1991-1995 - as preocupações educacionais sempre estiveram presentes (LEHER, 2006). Apesar de não ter sido pedagogo, Florestan era ativo nas lutas pedagógicas e na análise dos dilemas educacionais brasileiros, dos mais específicos, como as greves de professores paulistas; aos mais complexos e gerais, como a aprovação do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (FERNANDES, 2020). Sua atuação foi marcada pela defesa da escola pública, gratuita e de qualidade, e pela democratização do ensino, condição a qual considerava indispensável para a democratização da sociedade (LEHER, 2006).
Concepção da teoria histórico-crítica
A teoria histórico-crítica fundamenta-se na tese de que o conhecimento não é neutro e, por não haver neutralidade, pode gerar consequências que favoreçam determinada concepção de sociedade e de ser humano. Um conhecimento que coisifica as pessoas ao se ater na aparência da realidade social. Em contraposição, a mesma teoria busca um conhecimento que desvela a essência das condições sociais dadas (PATTO, 2000). Uma política pública, por exemplo, possui intenções que, em uma primeira percepção, podem ocultar interesses distintos da comunidade à qual a política é direcionada (FERNANDES, 1966). No caso da resolução que investigamos, não deve ser apenas lida, mas analisada criticamente e interrogada mediante às consequências materiais que dela podem resultar, sejam de avanço sejam de retrocesso.
Outra noção que os autores tratam é da democratização da escola. Apesar de haver uma política educacional que respalda a criança migrante, não quer dizer, necessariamente, que ela esteja incluída na educação escolarizada. A exclusão, mesmo dentro da escola, pode ocorrer por “‘práticas de exclusão brandas’ (porque contínuas, graduais, imperceptíveis), foi substituir a ‘eliminação brutal’, pela ‘eliminação sutil’’’ (PATTO, 2000, p. 190). O risco recai no fato de que a escola é
“democrática”, de que há oportunidades educacionais oferecidas igualmente para todos, mas que, se a criança não alcançar o aprendizado, trata-se de uma oportunidade que não foi aproveitada por ela e sua família, ou então por uma falha do professor. Análises simplistas que não desvelam a complexidade do assunto e expõem as contradições de uma ordem social que oferece tudo a todos, mas, para alguns, sob a forma de simulacro (PATTO, 2000).
Como pontua Fernandes (2020), mudanças técnicas superficiais não são suficientes para alterar a realidade educacional do país, uma vez que se desconsidera o contexto histórico, os problemas, os dilemas e as contradições pedagógicas em uma sociedade capitalista. Ainda mais quando são mudanças desencadeadas de cima para baixo, sem diálogo com outros atores envolvidos no debate. Daí nossa escolha pela metodologia empregada por Cellard (2008), que investiga não apenas o documento em si, mas o contexto de produção e as pessoas e grupos responsáveis pela criação do documento e dos conceitos-chave.
DESENVOLVIMENTO
Conselho Nacional de Educação e a Câmara de Educação Básica
O Conselho Nacional de Educação - CNE, instituído pela Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, é um órgão colegiado que integra o Ministério da Educação. Tem como finalidade colaborar na formulação da Política Nacional de Educação e exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educação. O conselho é composto pelas Câmaras de Educação Básica e Educação Superior. Cada câmara é formada por doze conselheiros, sendo membros natos em cada Câmara o Secretário de Educação Fundamental e o Secretário de Educação Superior do Ministério da Educação, ambos nomeados pelo Presidente da República (BRASIL, sem data).
Referente à Câmara de Educação Básica - CEB, suas atribuições se atêm em analisar e emitir pareceres acerca dos procedimentos e resultados de avaliação da educação infantil, do ensino fundamental, do ensino médio, da educação profissional e da educação especial. Cabe também à CEB deliberar sobre as diretrizes curriculares apresentadas pelo Ministério da Educação, bem como acompanhar a execução do Plano Nacional de Educação (BRASIL, sem data).
Contexto, autenticidade e natureza do texto
Para este trabalho, analisamos a Resolução nº 01, de 13 de novembro de 2020, emitida pelo CNE/CEB. É um texto escrito, de caráter público e âmbito federal, vinculado à política educacional. No caso desta última especificação, a resolução se configura como política educacional por abarcar em seu conteúdo a difusão de diretrizes políticas para a educação (FÁVERO; CENTENARO, 2019). A resolução está disponível no Diário Oficial da União do dia 16 de novembro de 2020, edição de nº 2018, seção 1, página 61 (BRASIL, 2020).
Quando lemos o documento, não podemos interpretá-lo como um fim em si mesmo, mas como resultado de um fio histórico. A CNE/CEB aponta esse caminho ao frisar, no próprio texto, a migração venezuelana como movimento que culminou na produção das diretrizes (BRASIL, 2020). A Venezuela atravessa um conflito civil motivado por crise política, econômica e humanitária, criando uma combinação de fatores que forçam os cidadãos a deixarem seus lares, incapazes ou sem desejo de voltar. De 2014 a 2018, estima-se que 2,3 milhões de venezuelanos deixaram o país e tal situação já é apontada como a maior crise migratória na história da América Latina, afetando diversos países, dentre os quais, o Brasil (BRONER, 2018).
A partir do fluxo venezuelano, surgiu a “operação acolhida”, iniciada em 2018 pelo governo brasileiro, cujo objetivo é encaminhar refugiados venezuelanos para o território nacional. Dados do governo federal, referente a fevereiro de 2021, mostram que, desde o início da operação, 49.058 venezuelanos foram encaminhados para 665 municípios, abrangendo todos os estados (BRASIL, 2021). Assim, vários setores desses estados, dentre os quais, o setor educacional, passaram a ter uma demanda que, até então, vigorava apenas em alguns lugares do Brasil. A educação escolarizada para migrantes e refugiados deixa de ser uma pauta local ou regional e se torna nacional, devido sobretudo a uma pressão social: a migração venezuelana para estados e municípios brasileiros.
O relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, 2020), Venezuelanos no Brasil: integração no mercado de trabalho e acesso a redes de proteção social, mostra que, em 2019, 20.000 crianças e adolescentes venezuelanos estavam matriculados em escolas brasileiras. Mesmo com esse número, a taxa de matrícula era baixa. Havia ainda 46.500 venezuelanos em idade escolar (1-17 anos) que não frequentavam as escolas brasileiras. Com crianças de 06 a 14 anos, a taxa de não atendimento escolar foi de 58%; e entre crianças e adolescentes de 15 a 17 anos, a taxa foi estimada em 69%. Considerando apenas o ensino fundamental, em janeiro de 2020, 76,04% das crianças venezuelanas entre 4 a 5 anos não estavam na escola, aproximadamente 10.000 crianças; assim como 58,5% das crianças entre 6 a 10 anos, mais de 20 mil.
Apesar do destaque na migração venezuelana, o cenário é mais profundo. Essa migração no Brasil apenas despontou, de forma generalizada, uma realidade já existente: a presença de crianças migrantes nas escolas locais. Antes da migração venezuelana, houve, a partir de 2010, outros fluxos migratórios, como a migração haitiana e síria. Além disso, o número de refugiados no Brasil tende a crescer, ano após anos, como a própria migração venezuelana aponta.
Ademais, o desafio de concretizar o direito à educação não é direcionado apenas às crianças refugiadas, mas também às outras crianças que provém de fluxos migratórios internacionais, mas em características diferentes, como os migrantes indocumentados, que não conseguem realizar a matrícula escolar ou receber o diploma de conclusão dos estudos. Estima-se que em São Paulo, em 1990, aproximadamente 400 crianças e adolescentes bolivianos tenham deixado a escola no estado de São Paulo por não ter o Registro Nacional do Estrangeiro (RNE) (MAGALHÃES; SCHILLING, 2012).
Dessa forma, a resolução, apesar de se pautar no caso dos venezuelanos, não trata de um tema que começou com esse grupo, ao contrário, já era uma realidade com a presença de crianças de outras nacionalidades em escolas brasileiras. A diferença é que, agora, o tema se ampliou para outros estados e cidades que até então não lidavam com essa realidade. Assim, já não é mais possível manter o tema invisibilizado.
Conceitos-chave e a lógica interna da resolução
A resolução é composta por sete artigos direcionados para o atendimento de demandas educacionais de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio. Os artigos se dividem em três eixos: direito à matrícula, compreendendo educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; procedimentos de avaliação para inserção na etapa escolar; e procedimentos de acolhimento. A Tabela 2 apresenta, de forma sintética, o teor dos eixos:
Eixo 1 - direito à matrícula |
Não consiste em obstáculos para a matrícula: a ausência de tradução juramentada de documentação comprobatória de escolaridade anterior; documentação pessoal do país de origem, de Registro Nacional Migratório (RNM) ou Documento Provisório de Registro Nacional Migratório (DP-RNM); situação migratória irregular ou expiração dos prazos de validade dos documentos apresentados. § 3º, incisos I e II do art. 1º. A matrícula em instituições de ensino de estudantes estrangeiros na condição de migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio deverá ser facilitada, considerando-se a situação de vulnerabilidade. § 4º do art. 1º. |
Eixo 2 - avaliação para inserção na etapa escolar Na ausência de documentação escolar, os estudantes terão direito a processo de avaliação/classificação, permitindo-se a matrícula em qualquer ano, série, etapa ou outra forma de organização da Educação Básica, conforme o seu desenvolvimento e faixa etária. § 5º do art. 1º. O processo de avaliação/classificação deverá ser feito na língua materna do estudante, cabendo aos sistemas de ensino garantir esse atendimento. § 6º do art. 1º. A matrícula na educação infantil e no primeiro ano do ensino fundamental obedecerá somente ao critério da idade da criança. Art. 2º. Para matrícula a partir do segundo ano do ensino fundamental e no ensino médio, os sistemas de ensino deverão aplicar procedimentos de avaliação para verificar o grau de desenvolvimento do estudante e sua inserção no nível e ano escolares adequados. Os sistemas de ensino deverão aplicar procedimentos de avaliação para verificar o grau de desenvolvimento do estudante e sua adequada inserção na etapa escolar. Arts. 3º e 4º. As avaliações de equivalência e classificação devem considerar a trajetória do estudante, sua língua e cultura, e favorecer o seu acolhimento. Art. 5º. |
Eixo 3 - Procedimentos de acolhimento As escolas devem organizar procedimentos para o acolhimento dos estudantes migrantes, com base nas seguintes diretrizes: I - não discriminação; II- prevenção ao bullying, racismo e xenofobia; III- não segregação entre alunos brasileiros e não-brasileiros, mediante a formação de classes comuns; IV- capacitação de professores e funcionários sobre práticas de inclusão de alunos não brasileiros; V- prática de atividades que valorizem a cultura dos alunos não-brasileiros; e VI- oferta de ensino de português como língua de acolhimento, visando a inserção social àqueles que detiverem pouco ou nenhum conhecimento da língua portuguesa. Art. 6º. |
Fonte: elaborado pelos autores a partir da Resolução nº 01/2020 (BRASIL, 2020).
A tabela mostra que, apesar de a resolução se pautar em três eixos, dois são preponderantes: avaliação para inserção na etapa escolar e procedimentos de acolhimento. Esses eixos coadunamse com o direito à educação, considerando que o direito não é efetivado apenas com a matrícula da criança na escola, mas com ações que promovem sua inclusão dentro do ambiente educacional.
Dessa forma, o direito à educação para a criança migrante está vinculado não somente à matrícula, mas também ao ensino que, por sua vez, envolve desde a inserção da criança na etapa escolar adequada - eixo 2, até ações de acolhimento que favoreçam a inclusão escolar - eixo 3.
Assim, é insuficiente que pais haitianos matriculem seu filho se não há procedimentos para averiguar em qual etapa escolar a criança será inserida, ou se, no cotidiano, a criança sofre xenofobia sem intervenção da escola para resolução do problema. Na sequência da análise, evidenciaremos cada eixo considerando o contexto escolar brasileiro.
Análise dos eixos
Conforme exposto na tabela 2, o primeiro eixo, referente ao direito à matrícula, define diretrizes importantes, como a dispensa de tradução juramentada de documentos, e matrícula para pessoas que estejam em situação de migração indocumentada ou com prazo de validade de documentos expirado. Ainda, ao ressaltar que na efetivação da matrícula as instituições considerarão a situação de vulnerabilidade das crianças, a resolução dialoga com outras medidas, como a Lei nº 9.474/1997, artigos nº 43 e nº 44, em que é afirmado que as instituições acadêmicas de todos os níveis deverão considerar a condição atípica e desfavorável vivenciada pelos refugiados, quando da necessidade de apresentação de documentos emitidos por seus países de origem, ou de processos de reconhecimento de certificados e de ingresso facilitado.
Em seu turno, o segundo eixo apresenta orientações de avaliação para definir em qual etapa escolar a criança será inserida, o que varia de acordo com a situação do aluno. Se na educação infantil ou no primeiro ano do ensino fundamental, o critério será a idade. A partir do segundo ano do ensino fundamental até o ensino médio, as instituições farão procedimentos de avaliação para verificar o grau de desenvolvimento do aluno e, a partir disso, inseri-lo na etapa escolar mais adequada (BRASIL, 2020).
Apesar de trazer essa diretriz, a resolução não exemplifica como a avaliação será feita. O único critério é que o procedimento seja realizado considerando a língua e a cultura da criança; nos demais apontamentos, o que se percebe é uma imputação de responsabilidade às instituições escolares. É possível, inclusive, destacar nas diretrizes do eixo 2 verbos direcionados à escola que apresentam a ideia de responsabilização:
O processo de avaliação/classificação deverá ser feito na língua materna do estudante, cabendo aos sistemas de ensino garantir esse atendimento [...] As avaliações de equivalência e classificação devem considerar a trajetória do estudante, sua língua e cultura, e favorecer o seu acolhimento [...] Os sistemas de ensino deverão aplicar procedimentos de avaliação para verificar o grau de desenvolvimento do estudante e sua adequada inserção na etapa escolar (BRASIL, 2020. grifo nosso).
Assim, um dos entraves que percebemos, é conceber o professor apenas como executor, deixando de contextualizar outras variáveis. A resolução traz uma escola idealizada, não considera a alta carga de trabalho docente, inclui mais uma dentre outras demandas presentes no cotidiano escolar, sem explicitar o suporte necessário. Soma-se a isso a precariedade das instituições quanto à infraestrutura e à ausência de profissionais específicos para o atendimento aos alunos. A contradição é que se passa a considerar a medida legal como representação da prática educativa, quando é o contrário, a medida legal deve refletir a realidade da escola, pois o elemento central da educação está dentro da sala de aula. Quando isso é ignorado, surgem medidas de cima para baixo, desconectadas do ambiente educacional (FLORESTAN, 2020).
No terceiro eixo são apresentados procedimentos para o acolhimento dos alunos migrantes. Mais uma vez, observa-se a imputação de responsabilidade à escola, inclusive para procedimentos que necessitam de formação específica e auxílio de outros profissionais. No artigo nº 6 (BRASIL, 2020), conforme apresentado na Tabela 2, dentre outras orientações, é afirmado que a escola deve organizar os procedimentos de acolhimento dos estudantes migrantes, com base na não segregação entre alunos brasileiros e não-brasileiros, por meio da formação de classes comuns. De antemão, estamos de acordo, não deve haver segregação entre alunos brasileiros e não-brasileiros, entretanto, o que pode se encontrar são profissionais que não recebem orientação para atuar nesse contexto de trabalho e que passam a lidar com novos desafios.
Trabalhos empíricos realizados entre 2020 e 2021 apontam a problemática. O estudo realizado por Azevedo e Amaral (2021), com três pedagogas, mostra que as professoras receberam crianças migrantes e/ou refugiadas em uma sala de 20 a 30 alunos e, sozinhas, ensinavam em quatro situações distintas: alunos que aprendem o conteúdo curricular do referido ano escolar; alunos com deficiência; alunos com dificuldade de aprendizagem; e alunos oriundos de fluxos migratórios internacionais. Ou seja, em uma sala de aula, a professora trabalhava com quatro grupos diferentes de crianças.
Outros problemas oriundos dessa realidade são as situações em que professores não são orientados sobre como trabalhar a inclusão das crianças migrantes na sala de aula, deixando de observar particularidades próprias do contexto, como as diferenças culturais. A ausência de intervenção acaba por gerar casos de racismo, bulliyng, xenofobia, discriminação e invisibilidade da criança nas práticas pedagógicas (RUSSO; MENDES; BORRI-ANADON, 2020; ASSUMPÇÃO; COELHO, 2020; ALEXANDRE; VIEIRA, 2021; PEROZA; SANTOS, 2021).
Para o processo de acolhimento, além do esforço e dedicação do professor, é necessária a aplicação de mudanças estruturais, e esse é o ponto de discrepância entre o texto e a realidade concreta. Imagina-se uma situação ideal, que será resolvida pelo esforço da escola e do professor sem o envolvimento de outros setores, como o Estado, em âmbito federal, estadual e municipal (PATTO, 2010). A fala de uma professora, reproduzida no estudo de Azevedo e Amaral (2021, p. 770-771), é clara quanto a isso:
Dentro das escolas a gente quase não tem incentivo por parte do poder público com relação ao imigrante. Fala-se que ele tem o direito de ingressar numa escola pública da mesma forma que tem o brasileiro ou qualquer outra criança, ok, tem esse direito, e aí? O que está sendo feito para que esse direito seja garantido? O que está sendo feito para que a criança se desenvolva? Para que ela consiga o êxito dentro do processo educativo? Qual é o respaldo que o governo oferece? Qual é o incentivo que é dado para as escolas? E para os professores? Qual a formação? Então assim, nós que recebemos alunos imigrantes, o que a gente tem em mãos é apenas o compromisso, a vontade de fazer com que seu aluno aprenda. É aquela questão de ter iniciativa, de correr atrás, não ficar parado, porque é isso que a gente faz, nós vamos atrás, porque a gente não tem nenhum respaldo. Tem no papel ali a garantia do acesso à escola para essa criança, entretanto, no fundo, o governo não está dando garantia, porque o aluno, ele precisa se desenvolver na sua totalidade, ele precisa ser inserido, ele precisa ter condições para se desenvolver, e o Estado, me refiro aos órgãos maiores mesmo, deveria dar essa possibilidade, essa garantia de desenvolvimento para a criança [...] A gente precisa lutar mais por políticas públicas para essas crianças imigrantes, porque o Brasil está cada vez mais recebendo.
Outro ponto mencionado no artigo nº 6 se refere ao ensino de Português como Língua de Acolhimento - PLAc: “oferta de ensino de português como língua de acolhimento, visando a inserção social àqueles que detiverem pouco ou nenhum conhecimento da língua portuguesa" (BRASIL, 2020). Apesar de mencionar a inserção do PLAc no ensino, a resolução, mais uma vez, faz menção apenas à escola pública, desconsiderando outras particularidades, como a necessidade da formação de professores nessa área, um campo que se alinha ao trabalho das universidades e dos cursos de licenciatura.
Além disso, a área do PLAc no Brasil é recente. A presença do campo no país é de aproximadamente dez anos (SILVA; COSTA, 2020). Assim, apesar de haver a presença de crianças migrantes e refugiadas nas escolas, e dessa ser uma demanda dos professores, não quer dizer, necessariamente, que o assunto seja tratado na formação de professores. Ou seja, se por um lado há uma diretriz que determina que o professor ensine português como língua de acolhimento, do outro lado, a depender da localidade do docente, pode não haver uma capacitação sobre o tema pela ausência de profissionais dedicados ao assunto.
Diante do apresentado, retornamos a Fernandes (2020), que enfatiza a necessidade de qualificar as mudanças. Uma mudança política pode ser para melhor - mudança social progressiva, ou para pior - mudança social regressiva, que não altera a situação de desigualdade, isto é, a existência de uma mudança não quer dizer que ela irá sempre em direção progressiva. Nesse sentido, a resolução apresenta uma mudança ao regulamentar as diretrizes para matrícula de crianças migrantes e refugiadas. Ainda assim, o documento se pauta na dualidade, uma vez que cabe aos professores a execução dessas diretrizes, mesmo sem o respaldo necessário, como a formação para o ensino de PLAc, quando o campo de estudos sobre o tema ainda é recente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos eixos analisados, compreende-se que a resolução apresenta o direito à educação na relação entre matrícula e ensino, de forma que um é indissociável do outro. Entretanto, apesar de considerar o direito à educação para além da matrícula, ao detalhar nos eixos dois e três as particularidades do trabalho docente com os alunos, percebe-se que a resolução imputa uma responsabilização à escola local, sem explicitar de forma clara a devida orientação, formação e suporte institucional aos professores.
Ademais, fica ausente do documento outros entes políticos necessários na concretização do direito à educação, como estados e municípios. O risco recai no fato da resolução não chegar nas escolas estaduais e municipais e, mesmo que haja acesso, pode não serem concebidas aos profissionais as condições para a implementação das diretrizes. Ao apresentar a análise dos eixos, evidenciamos com estudos empíricos de 2020-2021, essa realidade em que, apesar de já existir a resolução, no cotidiano escolar os professores se deparam com um contexto em que o documento não gera os resultados planejados.
Além dos estados e municípios, as universidades estão ausentes nas diretrizes, sendo que, por ofertar os cursos de formação de professores, essas instituições podem colaborar com ações de pesquisa, ensino, extensão e estágios direcionados. Isso é importante, pois por estarmos falando de um campo em desenvolvimento, apesar do professor ter cinco, dez ou quinze anos de experiência de sala de aula, dada à situação específica com crianças migrantes, ter acesso a uma formação direcionada para o tema se torna primordial.
Assim, ao focar apenas no sistema de ensino local, a inferência que fazemos é a redução do direito à educação apenas à instância escolar, o que impacta diretamente na inclusão da criança. Pode ocorrer casos, por exemplo, em que venha a se afirmar que, se a criança não aprender, é porque ela não soube aproveitar a oportunidade que lhe foi dada ou, se ela não alcançou a aprendizagem, foi devido à incompetência do professor. A crítica é feita localmente, ignorando questões mais amplas (PATTO, 2010).
Por isso, o documento levanta um ponto fundamental: a inclusão da criança migrante na escola envolve demandas estruturais (FLORESTAN, 2020). Pode-se citar o direito da criança à matrícula, mas é necessário promover formação para que a equipe administrativa da escola saiba receber essas pessoas e avaliar a documentação escolar do futuro aluno. Ou então, enfatiza-se a necessidade de trabalhar o português como língua de acolhimento, mas, em contraste, há um professor que, apesar de sua experiência em sala de aula, terá o primeiro contato com esse grupo de alunos e não receberá orientação sobre como trabalhar o PLAc.
Diante do apresentado, acreditamos que a área de educação e migração necessita de tempo para amadurecer. O tema migratório vinculado à escola pública começou a ganhar atenção apenas nos últimos 10 anos, e a produção acadêmica sobre o assunto ainda tem muito a desenvolver. O que se demanda então é tempo, para que a área possa avançar, tanto no meio acadêmico, com mais espaço nas universidades e nos periódicos científicos, como no meio profissional, com pessoas capacitadas a trabalhar nas escolas. Nesse sentido, a Resolução nº 01/2020 acrescenta um degrau no aprofundamento do tema migratório em âmbito escolar.
Enfim, percebe-se que os efeitos da resolução poderão ser mais bem avaliados a longo prazo, o que demandará novas análises. Sua institucionalização representa um avanço político, mas o que informará sua efetividade será o acompanhamento da resolução nos próximos anos, pois o instrumento pode gerar uma "mudança sem mudança", em que as condições reais de exclusão permanecem intocadas (PATTO, 2000), daí a necessidade de qualificar a mudança (FERNANDES, 2020). Dessa forma, quanto à efetividade da resolução, não há resposta no momento, por se tratar de uma questão a ser observada a longo prazo, com novos estudos empíricos. Nosso papel neste texto foi trazer um problema fundamentado teoricamente, com o intuito de compreender o que está colocado nas diretrizes, e trazer aproximações que possam contribuir para futuras discussões em torno da resolução e da possibilidade do documento orientar mudanças positivas nas escolas.