CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Desde o crescimento econômico brasileiro a partir da década de 1980, o cenário migratório do país vem se invertendo, passando a receber mais do que enviar imigrantes a outros países (PATARRA, 2012). De acordo com o balanço estatístico da década (2011-2021) elaborado pelo ObMigra (CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA, 2021), até o ano de 2010 estimavam-se 1,3 milhões de imigrantes residindo no país, a maioria precedente do Norte Global, como portugueses e japoneses. A alteração no cenário migratório pelo aumento e alteração no perfil dos imigrantes recebidos se iniciou com a crise econômica mundial em 2008 e com a catástrofe em solo haitiano, em 2010, tornando o Brasil rota e destino migratório e a nacionalidade haitiana mais recebida na primeira metade da década1. Já na segunda metade, a nacionalidade venezuelana passou a predominar e o Brasil passou a experienciar a feminização das migrações protagonizadas por essas duas nacionalidades. Porém, mesmo com considerável inserção laboral, esta tem se dado em condições de exploração (CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA, 2021).
Mais especificamente no que tange à educação, dados do Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira apontam para o aumento de cerca de 195% do ano de 2010 para 2020, sobretudo na Educação Básica (CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA, 2021). Porém, as políticas públicas voltadas a esses sujeitos ainda são incipientes (OLIVEIRA, 2020), concentrando-se em iniciativas regionais por parte de municípios e estados em parcerias com pastorais e outras entidades religiosas e do terceiro setor, e por instituições de ensino superior e tecnológico, muitas vezes em caráter extensionista e ou destinado somente aos cursos de graduação e pós-graduação.
A ausência de uma tradição histórica de receptividade aos migrantes iniciou-se com o primeiro grande fluxo migratório de africanos trazidos pelos colonizadores em caráter forçado2. Mesmo as políticas favoráveis à recepção de imigrantes se davam em caráter utilitarista, favorecendo a recepção de colonos europeus de determinadas nacionalidades conforme ideais eugenistas de branqueamento e restringindo a entrada dos considerados "indesejáveis" pelo Estado Novo (KOIFMAN, 2012), mesmo sob risco de vida, como o caso dos que atualmente consideramos refugiados. Assim, a migração só era bem-vinda quando conveniente ao desenvolvimento econômico brasileiro (KOIFMAN, 2012), de modo que mesmo no período de redemocratização alimentada por propagandas políticas e reproduções midiáticas estereotipadas por uma imprensa controlada pelos governos ditatoriais (CARNEIRO, 2016).
Enquanto o Estatuto do Refugiado era aprovado na Convenção de Genebra em 1951, o Brasil, sob a Ditadura Militar, fechava as fronteiras para a recepção de imigrantes que limitava os direitos de associação e de labor remunerado. Por cerca de 40 anos vigorou o Estatuto de Estrangeiro orientado por uma política de austeridade da segurança nacional até os direitos à igualdade dos imigrantes serem assumidos pela Constituição Federal do Brasil de 1988. Somente em 1997 o Estatuto do Refugiado foi implementado no Brasil junto da criação do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) e apenas no ano de 2017 foi aprovada a Lei de Migração que reafirma os direitos constitucionalmente previstos aos sujeitos migrantes, em consonância aos Direitos Humanos, embora tenha sofrido vetos, sobretudo no que tange à livre circulação dos indígenas que vivem em regiões fronteiriças.
Atualmente, os maiores contingentes migratórios com destino ao Brasil se concentram no Sul Global, destacando-se venezuelanos, haitianos, bolivianos e colombianos admitidos com status de imigrantes e de refugiados (CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA 2021). Se até os colonos de origem europeia sofriam com medidas restritivas de direitos no Estado Novo além de perseguições com o avanço da II Guerra Mundial (KOIFMAN, 2012), o contexto atual de intensificação da recepção de fluxos de refugiados e das migrações Sul-Sul, cujos sujeitos são majoritariamente racializados, demanda uma atenção maior por parte do Estado dado o persistente racismo brasileiro. É importante salientar que apesar de o migrante se diferenciar do refugiado pela voluntariedade no deslocamento, enquanto o instituto do refúgio reconhece todo aquele que deixa seu país por grave e generalizada violação de direitos humanos, é certo que a decisão de migrar envolve razões fortes e rupturas de laços culturais e afetivos que colocam esses sujeitos em condição de vulnerabilidade.
Partindo da educação democrática como pressuposto de um Estado Democrático (FERNANDES, 1989) e em concordância com Bartlett, Rodríguez e Oliveira (2015), que afirmam que a cidadania envolve o direito do sujeito imigrante a manter filiação à sua língua, cultura e grupo de origem, não devendo tê-los desvalorizados em virtude de seu acolhimento no país que o recebe, esse estudo busca analisar a possibilidade de uma educação intercultural por meio da proposta do Português como Língua de Acolhimento (PLAc). Para tanto, buscamos revisitar conceitos necessários à compreensão da interculturalidade e refletir acerca dos processos hegemônicos oriundos da condição colonial e da expansão educacional como projeto nacionalista brasileiro.
INTERCULTURALIDADE: REVISITANDO CONCEITOS
O conceito de interculturalidade é construído a partir do alinhamento conceitual de visões e ações direcionadas à reconstrução do pensamento hegemonicamente constituído, e não somente para a constatação de relações socialmente estabelecidas pelo convívio social de diferentes culturas como é definido em uma das configurações possíveis do termo descritas por Ansión (2007). Isso porque, tendo-se em vista a inexistência de cultura como noção estática e fixa e as pressões e violências impetradas nos jogos de poder, as formas de organização e produção dos grupos excluídos e explorados historicamente são conformados aos modelos sociais eurocêntricos dominantes, sobretudo pelo avanço do capitalismo pela massificação e industrialização da cultura. Mesmo as formas de resistência cultural se colocam como novos arranjos que priorizam características e costumes sob o medo da perda identitária diante dos processos de invalidação e assimilação à ordem “moderno-colonial” (WALSH, 2005, p. 16).
A interculturalidade crítica pode se constituir em “uma estratégia ética, política e epistêmica” (CANDAU; RUSSO, 2010, p. 166) que visa à construção de relações horizontalizadas por meio da interação entre culturas sem a sobreposição de uma sobre a outra, não se restringindo a uma proposta metodológica definida ou a conteúdos deslocados de sua prática, assim sendo concebida como:
proyecto político, social, ético y también epistémico - de saberes y conocimientos -, proyecto que afianza para la transformación de las estructuras, condiciones y dispositivos de poder que mantienen la desigualdad, racialización, subalternización e inferiorización de seres, saberes y modos, lógicas y racionalidades de vida. (WALSH, 2012, p. 66).
Pelo multiculturalismo, a tolerância e até a incorporação de práticas das culturas dominadas dentro dos limites de um estado democrático, cuja racionalidade epistêmica é definida por padrões eurocêntricos, molda e distorce as interações culturais, uma vez que sua composição se dá de forma assimétrica. As “locuciones epistêmicas subalternas” (WALSH, 2005, p. 16) têm suas racionalidades descartadas ou subsumidas pelas sociedades multiculturais, repercutindo na crítica de Bhabha (2005) às noções de diversidade e diferenças culturais, limitando a diversidade a noções totalizadoras e estáticas de cultura que evocam o imaginário mítico de uma identidade coletiva única, enquanto as diferenças culturais são percebidas a partir de “[...] um processo de significação através do qual afirmações da cultura e sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade.” (BHABHA, 2005, p. 63).
O termo “diversidade” tem sido constantemente reproduzido nos documentos orientadores dos organismos multilaterais e das legislações produzidas a partir das reformas liberais da década de 1990 em que as culturas são comportadas como “objetos epistêmicos” (BHABHA, 2005) fixos aceitos ou tolerados pela cultura hegemônica em uma perspectiva monológica, ignorando-se a instância de locução dos sujeitos das culturas subalternizadas. Já as diferenças culturais se apresentam dialogicamente por se constituírem a partir dos significados estabelecidos na interação entre os sujeitos, revelando desigualdades impostas, inclusive pela redução a estereótipos decorrentes da propagação das reproduções estáticas e limitadas das identidades pelas lentes da mentalidade eurocêntrica. Mesmo a compreensão dos direitos humanos, pilar das democracias ocidentais, é fruto do contexto europeu que, vinculado aos ideais burgueses, teve forte resistência no reconhecimento da humanidade aos negros escravizados, reificados pelo tráfico de escravizados em navios financiados por essa mesma burguesia (JAMES, 2010). Por essa razão, a construção da interculturalidade não pode se desvincular da construção de políticas públicas que reconheçam os processos históricos geradores das desigualdades, da necessidade de reparação, e, sobretudo, da consideração dos próprios sujeitos e suas visões de mundo, resultando no “[...] desafio de respeitar as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule, mas que ative o potencial criativo e vital da conexão entre diferentes agentes e entre seus respectivos contextos.” (FLEURI, 2006, p. 497).
Nesse sentido, evidencia-se o pilar da interculturalidade no reconhecimento da sujeição do “outro” à ótica do poder dominante e na necessidade de promover-se sua verdadeira escuta e participação, efetivando-se uma participação social plena dos diversos segmentos sociais. Contudo, países colonizados como o Brasil demandam a contínua luta pela manutenção democrática por meio de suas instituições legais que, ao mesmo tempo, também têm suas estruturas alicerçadas no passado escravocrata, machista e xenofóbico mascarados por mitos como o da democracia racial e do Brasil como país hospitaleiro. Apesar de a interculturalidade requerer um projeto político que alcance todas as instâncias sociais, é certo que a educação representa papel de destaque enquanto espaço de convivência e construção de conhecimentos e, ainda, pela utilização da educação escola como aparelho de reprodução ideológica de manutenção do status quo que reproduz conhecimentos de uma ciência tradicionalmente branca, masculina e de caráter positivista cujas “contaminações valorativas” (GATTI, 2003) dos fenômenos têm sua presença negada, exercendo a legitimação de ideias preconceituosas com status de verdade inquestionável.
O DIREITO À EDUCAÇÃO: REFLEXÕES ENTRE COLONIZAÇÃO, HEGEMONIA E EMANCIPAÇÃO
O direito à educação para todos foi alavancado por políticas de massificação durante o processo de industrialização atreladas a interesses econômicos e desenvolvimentistas em detrimento da consideração da integralidade do desenvolvimento humano, manifestando, inclusive, interesses antagônicos à educação como processo de emancipação dos sujeitos. O interesse pela expansão da educação pública no Brasil surge na transição colonial do modelo agroexportador na tentativa de alcançar a corrida industrial por meio da capacitação das massas para o trabalho urbano. Sob a influência do histórico escravocrata, das ideias eugenistas derivadas da transposição equivocada das teorias darwinistas e da ascensão dos nacionalismos, a postura diante dos contingentes de imigrantes que fugiam da fome e das guerras mundiais foi orientada pelo medo e pela rejeição. A identidade nacional passou a ser buscada por meio da miscigênação com vistas ao branqueamento e à homogeneização das culturas pela assimilação ao modelo colonial eurocêntrico. É, portanto, necessário reconhecer que as bases da educação nacional pública, ou seja, do sistema educacional voltado ao povo, não foram construídas para, e muito menos, por esse povo.
Após os contextos ditatoriais dos países colonizados, a nova ordem do dia na agenda internacional financiada pelos organismos multilaterais se voltou aos processos de uma democratização universalista tendo como um de seus motes a defesa da inclusão. No entanto, os mapeamentos, diretrizes e metas estabelecidos aos países tidos como subdesenvolvidos eram atrelados a políticas neoliberais vinculadas a interesses geopolíticos externos que evocavam a necessidade de agenciamento dos estados-nações conforme o modelo colonial europeu (GONZÁLEZ CASANOVA, 2006), desconsiderando as relações externas na produção dessas desigualdades e delineando soluções alheias aos processos de redemocratização internos.
Sin duda, la ola de re-formas educativas y constitucionales de los 90 - las que reconocen el carácter multiétnico y plurilingüístico de los países e introducen políticas específicas para los pueblos indígenas y afrodescendientes -, son parte de esta lógica multiculturalista y funcional; simplemente añaden la diferencia al sistema y modelo existentes. (WALSH, 2012, p. 67).
Walsh (2012) reforça que tais reformas não oferecem mudanças substanciais, mas reformulam - ou re-formam - o mesmo discurso. No sentido do fortalecimento de processos democráticos autênticos, as teorias decoloniais propõem a reconstrução de caminhos interrompidos pelo processo colonial cujos efeitos se estendem na composição das instituições de poder dos países latino-americanos, a fim de construir processos verdadeiramente democráticos na perspectiva da realidade sócio-histórica latino-americana, não significando, porém, a superação dos padrões hegemônicos produzidos na colonialidade, como esses pudessem ser desfeitos mas como
[...] síntese de uma ferramenta política, epistemológica e social de construção de instituições e relações sociais realmente pautadas pela superação das opressões e das estruturas que conformam uma geopolítica mundial extremamente desigual. (CASTILHO, 2013, p. 12-13).
Assim, o movimento pela inclusão no Brasil se deu por pressões externas, de modo que, além de não ter se dado de forma autêntica, se pauta em perspectivas alheias à configuração brasileira e promove a adesão de reformas neoliberais comprometidas com concepções que não atendem uma educação crítica e emancipatória dos seus sujeitos, mas, em sentido contrário, buscam a promoção do empreendedorismo (EVANGELISTA, 2014). Gatti (2003) já apontava que o campo acadêmico concorre, cada vez mais, com instituições relativamente autônomas como ONGs, institutos empresariais, associados ou não a órgãos oficiais, cujos interesses se vinculam às fontes financiadoras e com perfis mais pragmáticos direcionados a objetivos de curto prazo, apresentando fragmentariedade e distanciamento de problemas educacionais urgentes.
Por essa razão, a inclusão como imperativo de Estado têm sido objeto de estudo na perspectiva foucaultiana por autores como Lopes e Fabris (2013), alertando para a utilização da inclusão como estratégia para fazer operar o princípio da Educação Para Todos, em uma perspectiva de incluir para controlar mais do que para reparar as desigualdades sociais. “O aluno considerado ‘incluído’ passa a receber novos rótulos, nesse caso, rótulos que o obrigam a produzir, a ser útil e fazer a sua parte pelo crescimento da sociedade onde vive”. (RECH, 2013, p. 38). Nessa perspectiva, a inclusão como dispositivo econômico reencena a governamentalidade por meio da educação, trazendo uma nova roupagem de um projeto educacional vinculado aos interesses econômicos na produção de sujeitos empreendedores de si mesmos que assumam a responsabilidade estatal de sua própria inclusão.
Assim, a defesa da inclusão sem a promoção de propostas curriculares, formativas, metodológicas, com condições de acesso e permanência pensadas a partir dos sujeitos se coloca como uma promessa vazia que responsabiliza os sujeitos pelo seu próprio sucesso ou fracasso. Neste contexto, a problemática em torno dos imigrantes se complexifica ainda mais pela própria natureza interseccional da condição desses sujeitos que abrigam múltiplas identidades, pelos diferentes locais de origem, culturas, idades, etnias, gêneros e contextos migratórios e de refúgio, revelando a necessidade de um tratamento multisetorial, de modo que o sujeito imigrante provoca a sociedade receptora a revelar “seu caráter arbitrário, a desmascarar seus pressupostos [...] a revelar a verdade de sua instituição e a expor suas regras de funcionamento” (SAYAD, 1998, p. 274). Assume-se, assim, o estrangeiro como tropo do confronto da sociedade consigo mesma, no espaço em que define a quem ela pertence e quem é considerado o “outro” que, sobretudo por estar em deslocamento, tem sua identidade deslocada e transformada pelo espaço que passam a compor e também a transformar.
LÍNGUA DE ACOLHIMENTO - PLAc COMO POSSIBILIDADE INTERCULTURAL
A comunicação é o que afirma o indivíduo enquanto sujeito ativo na interação com a sociedade, expressando seus valores, visões de mundo e demandas, sendo, portanto, fundamental para a inserção social e busca pela efetivação de direitos, tanto pelo acesso ao mundo do trabalho como pelo conhecimento e busca pela efetivação de seus direitos. Assim, no que tange à inclusão de imigrantes, e sobretudo de refugiados, a oferta do ensino de língua portuguesa deve ser foco central do país receptor. No entanto, pelo legado histórico de precarização da educação pública e de exclusão do “outro”, simbolizado pelo próprio conceito de estrangeiro cujo acolhimento sempre foi relegado ao terceiro setor, por meio de ONGs e instituições de caridade com caráter missionário, o Estado continua se eximindo da responsabilidade no atendimento da educação desses sujeitos, enquanto os docentes acabam assumindo papel missionário, como responsáveis pela politização e busca da efetivação dos direitos dos imigrantes ante a inércia estatal (MIRANDA; LOPES, 2019).
O caminho intercultural permite o encontro das identidades em itinerância ao mesmo tempo que promove a itinerância dos sujeitos que, ao interagirem, deslocam suas visões de mundo. Pensar na educação de imigrantes envolve, particularmente, a necessidade de contemplar outras culturas e formas de expressão mas também a condição de deslocamento que se perpetua até o momento do efetivo exercício da cidadania. Noções básicas de funcionamento e relações do cotidiano se colocam lado a lado na necessidade de instrumentalização de direitos básicos para o acesso a direitos fundamentais. Nessa perspectiva, tem se fortalecido o conceito de Língua de Acolhimento, no Brasil chamada de PLAc, como proposta de ensino da língua portuguesa para o acesso à cidadania de imigrantes de contexto de crise que busca romper com o lugar passivo em que se coloca o sujeito na condição de “falta” (LOPEZ, 2016) para convergir com a perspectiva intercultural:
Em um contínuo movimento reflexivo, sensível a semelhanças e diferenças em relação a outros contextos de ensino de PLA, é preciso que, a todo momento, professores e pesquisadores se interroguem sobre as práticas identitárias desses sujeitos migrantes, as relações que estabelecem com os diferentes territórios e línguas que (os) constituem e os modos como se pode dar o ensino de português para esse público. (LOPEZ; DINIZ, 2018).
Ao encontro da proposta intercultural, Miranda e Lopes (2019) salientam o caráter crítico e intervencionista do PLAc, que, embora derive da concepção de Língua de Acolhimento importada de Portugal, cuja política linguística se caracteriza como assimilatória ao condicionar o acesso a direitos pelos imigrantes à aprendizagem da língua portuguesa, busca promover processos mais horizontalizados que dialoguem com as necessidades e interesses dos sujeitos.
A língua de acolhimento envolve aspectos emocionais e subjetivos, e, portanto, reflete as tensões do processo de deslocamento e inserção dos sujeitos em uma sociedade diferente, sobretudo pela xenofobia e racismo, destacando o papel do professor mediador no sentido da instrumentalização da língua como um mecanismo de defesa de direitos (BARBOSA; SÃO BERNARDO, 2016). Diante disso, é necessário que os professores se apropriem das políticas linguísticas, entendendo-se a língua constituinte e constituída em um “corpo simbólico-político” (ORLANDI, 2007, p. 8) manifesto em práticas sociais cotidianas para que se percebam como agentes das políticas implementadas e não meramente busquem adaptações de aspectos teóricometodológicos definidos verticalmente (MIRANDA; LOPES, 2019) que ignoram o universo cultural dos sujeitos migrantes na sala de aula, tratando-os na perspectiva de “falta” (LOPEZ, 2016), como costumam se apresentar abordagens tradicionais do português como língua estrangeira.
A admissão de uma educação transcultural, universalista, seja pela interpretação do compartilhamento de traços universais originais das diferentes culturas ou pela definição de princípios universais coletivamente assumidos não resulta em uma única definição mas em múltiplas concepções alcançadas pelas problematizações (FLEURI, 2003), só podendo se dar no confronto entre os sujeitos por meio do diálogo, e da construção coletiva e não pela imposição como algo pronto, se reencontrando com a defesa de Walsh (2012) da interculturalidade como um projeto multifacetado e em construção, uma educação para a alteridade:
[...] o trabalho intercultural pretende contribuir para superar tanto a atitude de medo quanto a de indiferente tolerância ante o “outro”, construindo uma disponibilidade para a leitura positiva da pluralidade social e cultural. Trata-se, na realidade, de um novo ponto de vista baseado no respeito à diferença, que se concretiza no reconhecimento da paridade de direitos. (FLEURI, 2003, p. 17).
A autonomia dada aos sujeitos na construção de um projeto intercultural não significa o abandono estatal, ao contrário, a autonomia pressupõe a possibilidade de escolha, o que é limitado ante uma situação de abandono. Por essa razão, é necessário o fornecimento de condições materiais e simbólicas, espaços e tempos fornecidos pelo poder público que favoreçam o encontro entre os sujeitos mediados por professores capacitados e valorizados na especificidade de seu trabalho. É no paradoxo da ausência estatal como mobilizadora da busca por efetivação de demandas colocadas pela sociedade civil que a constituição formativa de PLAc insere o docente, que majoritariamente atua de forma voluntária ou complementar, sem formação específica, como um missionário (MIRANDA; LOPES, 2019) e cujos efeitos são localizados na desvalorização docente e precarização do processo educativo de sujeitos que já encontram-se em vulnerabilidade, mantendo-os nas fronteiras da cidadania.
Nesse sentido, Miranda e Lopes (2019) afirmam que o docente não pode ser reduzido à condição de missionário mesmo porque isoladamente não teria condições para o empoderamento dos sujeitos, mas propõem uma frutífera reflexão aproximando a atuação docente de PLAc ao ativismo freireano, enfatizando o papel mobilizador das problematizações acerca das desigualdades e da participação político-social dos sujeitos. Em concordância com as autoras, o comprometimento freireano com a justiça social aponta para a organização dos sujeitos enquanto coletividade. Nesse sentido, na interação consigo mesmo na condição de sujeito envolvido no processo educativo, com o “outro” e na leitura de mundo que fazem juntos, “o homem é consciente e, na medida em que conhece, tende a se comprometer com a própria realidade.” (FREIRE, 1979, p. 21). Portanto, ao compor-se enquanto sujeito ativo do processo educativo em uma relação horizontalizada, o docente assume sua posição não redentora, mas mediadora da emancipação dos sujeitos que também tomam consciência ao se relacionarem coletivamente.
Por isso, na perspectiva de PLAc, “a proficiência na língua-alvo ultrapassa a motivação turística ou acadêmica, interliga-se à realidade socioeconômica e político-cultural em que se encontra.” (GROSSO, 2010, p. 71), enfatizando a competência sociolinguística como “base de debate e de diálogo para uma cidadania plena e consciente” (GROSSO, 2010, p. 71). Ball, Maguire e Braun (2016) reforçam que se por um lado o docente é objeto e sujeito das políticas, ele também é sujeito e ator das políticas, podendo traduzi-las conforme seu contexto de atuação, ou mesmo, negá-la. Uma vez que a perspectiva intercultural crítica busca as raízes das assimetrias vividas pelos sujeitos, as próprias políticas direcionadas aos sujeitos imigrantes e refugiados podem se tornar objeto de problematização.
Numa perspectiva intercultural, espera-se que as práticas pedagógicas articulem as dimensões cognitiva, procedimental e atitudinal, como ensina Walsh (2001) que as traduz como as noções do eu, do estranho e do social, ou seja, na localização do sujeito, do que se percebe como o “outro” e como se relacionam na sociedade. Por essa razão, como assinala Fleuri (2001), na interação respeitosa entre os sujeitos, os conflitos emergentes não devem ser evitados ou ignorados, mas acolhidos solidariamente e problematizados criticamente, potencializando a criatividade no sentido da superação da injustiça social.
No mesmo sentido, Candau (2008) defende que a educação em Direitos Humanos não deva ser reduzida a um conteúdo, mas tratada de forma transdisciplinar, como um processo sistemático, interdisciplinar e multidimensional orientado pela consciência da dignidade humana no sentido da formação de sujeitos de direitos e da promoção de uma cidadania ativa e participativa capaz de se expressar nos meios sociais, éticos e políticos no sentido da defesa e da reparação desses direitos. Para tanto, é necessária uma abordagem problematizadora da realidade vivida dos sujeitos que considere conhecimentos, atitudes, sentimentos e práticas sociais (CANDAU, 2008). Assim sendo, a metodologia não deve se destacar ou divergir da proposta educativa, mas se revelar coerente a ela, por meio de seus sujeitos e de suas interações.
É possível inferir que, mais importante que dispor de metodologias determinadas, é necessário pensar em dinâmicas que façam sentido aos sujeitos do processo educativo, que se conectem a seus repertórios e afetos, como pôde ser percebido no projeto de extensão “Inclusão Pelo Português: Curso de língua portuguesa para os imigrantes haitianos na perspectiva da interculturalidade” que tinha por objetivo promover o aprendizado da língua portuguesa em uma perspectiva intercultural (MIRANDA, 2017)3, demarcando o espaço institucional como lugar de trocas entre as culturas brasileira e haitiana. No mencionado projeto, as professoras de língua portuguesa trabalhavam por meio da abordagem comunicativa questões linguísticas a partir de situações cotidianas de uso da língua e das demandas trazidas pelos educandos, porém, de início, as metodologias utilizadas a partir de propostas lúdicas e com atividades envolvendo a reprodução de músicas e filmes nacionais, se por um lado atraíam os educandos por apresentarem elementos da cultura brasileira, por outro, causava estranhamento e desconfiança de que seriam meios legítimos de aprendizagem, apontando para as diferenças culturais nos métodos de ensino experienciados ao longo de suas vidas em que eram priorizadas o ensino da gramática de forma desarticulada da compreensão global dos textos trabalhados (MIRANDA, 2017).
Situações como essas são potentes para a reformulação das propostas de forma a contemplar as demandas e visões de mundo do sujeito, mas, mais ainda, para evidenciar as diferenças culturais e lidar com os conflitos de forma construtiva, não no sentido da comparação e, sim, no da descortinação de diferentes formas de saber, pensar e fazer. No mesmo sentido, a interculturalidade crítica busca evidenciar as diferenças percebidas pelos sujeitos ao interagirem ao invés de se propor a uma conciliação ou mesmo invisibilização dos sentimentos e pensamentos como na perspectiva assimilacionista reproduzida pelo ensino da língua portuguesa como língua estrangeira. Em uma perspectiva intercultural, deve-se ter como objetivo conhecer o “outro” e suas percepções, “dizer a sua palavra”, como orientava Freire (1989), e, mais ainda, ouvir suas vozes, como complementa Hooks (2020), favorecendo o trabalho com histórias de vida, com a expressão dos sujeitos e temáticas que ao envolver suas culturas, promova os sujeitos como autores de seus processos educativos e o acesso a uma nova língua como veículo de expressão e de acesso ao conhecimento de seus direitos, à participação política, ao exercício da cidadania plena.
Entendendo-se os princípios da solidariedade em uma construção conjunta de conhecimentos por todos os participantes do processo educativo, as problematizações levantadas podem conduzir aos caminhos já estabelecidos democraticamente para o acesso a direitos, mas mais ainda, para a criação de novos caminhos democráticos que considere visões de mundo alhures no sentido de uma mestiçagem que não apague a diferença, mas as desigualdades produzidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da história brasileira, percebemos constantes posicionamentos omissos e ativos do Estado na construção de políticas segregacionistas, racistas, elitistas e xenofóbicas cujas concessões ao “outro” se revelaram voltadas ao interesse econômico, reduzindo os imigrantes a um capital humano, em evidente contradição ao reconhecimento de sujeitos de direitos. A definição dos princípios de igualdade e dignidade aderidos pela Constituição Federal tendem a demorar a se efetivar em leis que busquem sua materialização. No mesmo sentido, a mentalidade construída sob alicerces colonialistas foi mantida na estrutura social e institucional brasileira, podendo-se reconhecer atualmente que a abolição da escravatura só se deu formalmente, sem que houvessem políticas públicas para sua efetiva inclusão.
O processo de implementação de políticas públicas por meio da pressão de organismos internacionais promoveu um processo artificial e deslocado da realidade brasileira que não viabilizou, de fato, a construção de um projeto autêntico a partir das narrativas e demandas colocadas pela própria população. Tendo a formação das identidades brasileiras sofrido processos de hegemonização e demonização, a percepção do “outro”, pela sociedade e pelas instituições, ainda está carregada de preconceitos e desvalorizações, percebendo os sujeitos migrantes como uma ameaça estrangeira. Em resposta crítica às perspectivas multiculturais que subsumem as culturas minoritarizadas à ordem hegemônica, a interculturalidade se coloca como proposta e projeto de construção de uma sociedade mais justa e democrática, por meio da interação horizontalizada de seus sujeitos.
Porém, a redução da condição do docentes de PLAc ao caráter missionário ou promotor da justiça social (MIRANDA; LOPES, 2019) encontra-se com a preocupação colocada por autores como Rech (2013), sobre a promoção da inclusão como instrumento de governamentalidade que busca transformar os sujeitos envolvidos no processo educativo em empreendedores de si mesmos, responsáveis pelos seus sucessos e fracassos, sobrecarregando e produzindo novas imposições ao trabalho docente sob a justificativa do dever de atualização contínua e subvertendo o conceito de comprometimento freireano.
A precarização e terceirização do dever estatal na efetivação de direitos de imigrantes e refugiados promove a responsabilização dos próprios sujeitos envolvidos pela sua inclusão, ofertando, de forma truculenta, uma promessa que subverte os direitos a um dever do sujeito. Por essa razão, é necessário que o Estado reconheça seu dever no tocante à formulação de políticas públicas, sobretudo no que tange à formulação curricular, propostas metodológicas e formação docente e oferta de cursos de forma ampla e conjugada à promoção da cidadania, como se propõe o PLAc.
De outro lado, por sua busca pela efetivação da cidadania, o fazer docente na proposta de PLAc pode se alinhar à potencialidade criativa e problematizadora das trocas interculturais para desenvolver processos e experiências significativos a partir das problemáticas vividas no país receptor sem promover o apagamento do “outro”, ao mesmo tempo que pode agregá-lo à proposta decolonial. Nessa perspectiva, a sala de aula pode se tornar espaço privilegiado de construção democrática por meio do levantamento de demandas e de construção coletiva de caminhos autênticos, fortalecidos na solidariedade e no comprometimento entre os sujeitos com vistas aos seus processos de emancipação e a uma sociedade mais democrática e justa. .