INTRODUÇÃO: INFÂNCIAS, ESCOLA E O DIREITO À CIDADE EM PERIFERIAS URBANAS
De acordo com dados do IBGE (2010), viver nas cidades hoje é a realidade de mais de 90% de todos os brasileiros e brasileiras. Segundo os números oficiais dos últimos censos demográficos nas grandes cidades brasileiras denominadas de megalópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras, (sobre)vivem milhões de pessoas, o que torna essas cidades verdadeiros formigueiros humanos.
O Estado do Rio de Janeiro vem registrando a maior taxa de urbanização do Brasil, com 91% de sua população vivendo em cidades (IBGE, 2010). Essa grande concentração demográfica, ocorrida especialmente nos últimos 30 anos, relaciona-se com os complexos processos de transformação territorial advindos do nosso modelo de desenvolvimento capitalista concentrador, de sua ação perversa nas áreas rurais.
O processo acelerado de urbanização brasileira atingiu, nas últimas duas décadas do século XXI, índices de insuportabilidade da vida nas grandes cidades, o que agravou a desigualdade urbanística como expressão da apropriação desigual do espaço territorial, produzindo diversas formas de violências que atingem a todos, independentemente de seu contexto espacial. Por outro lado, com a propagação da pandemia do coronavírus, a partir de março de 2020, vimos agudizar nas metrópoles brasileiras um modelo de urbanidade no qual a espoliação urbana (KOWARICK, 1979) apresenta a sua face mais terrível, sobretudo pelo crescimento da população em situação de rua, vivendo em condições sub-humanas, nos grandes centros urbanos do país.
Assim, a epidemia da Covid-19, além de ter acarretado mais de 650 mil óbitos (dados de fevereiro de 2022), contribuiu para o aumento da fome, do desemprego, crise hídrica, falta de moradia, violência urbana, deslocamentos territoriais forçados, dentre inúmeras questões. Esses e outros problemas, como a crise sanitária no país, foram evidências concretas da “insuportabilidade” da vida nas metrópoles e da necessidade premente de se discutir a questão urbana e o direito à cidade (LEFEBVRE, 1991).
Nessa perspectiva, a temática infância e cidade vem sendo estudada por nós em diálogo com a teoria dos campos de Bourdieu (2007), e nos convoca a pensar em intercessão com a Sociologia da infância e o campo da Educação Popular. Do ponto de vista da Sociologia da infância, os estudos de Christensen e O’Brien (2003) introduzem perspectivas inovadoras para se pensarem as relações das crianças na cidade, apontando três questões-chaves desta relação, a saber: a) incluir as crianças neste debate diz respeito ao entendimento da vida na cidade a partir do ponto de vista das crianças; b) elaborar conexões entre a casa, a vizinhança, a comunidade e a cidade, o que implica investigar e conhecer as interações contínuas da rede de relações, lugares e espaços praticados por crianças e adultos; c) promover o engajamento e a participação de crianças em processos de discussão e mudanças da/na cidade compreende saber como as crianças veem a cidade, intencionando que ela possa ser transformada a partir de suas demandas e de um projeto de cidade que possa ser mais includente para os/as diferentes grupos geracionais, tais como mulheres e pessoas idosas.
Neste sentido, reiteramos que o presente artigo se apresenta como consequência de estudos no campo das políticas públicas de Educação Infantil, no qual vimos desenvolvendo pesquisas de forma colaborativa com estudantes de um Programa de Pós-Graduação em Educação, estudantes de Iniciação Científica de diferentes Licenciaturas e professoras de Unidades Públicas de Educação Infantil (UMEI’s) de municípios do Leste Fluminense.
As referidas pesquisas buscam, de modo mais amplo, contribuir para processos formativos de estudantes de diferentes licenciaturas e professoras da pequena infância, com fundamento em duas questões políticas e epistêmicas centrais: o direito da criança à cidade como uma questão central a ser discutida e (re)conhecida nas instituições de Educação Infantil e o desafio ético, epistêmico e metodológico de realizar pesquisas com crianças (ALDERSON, 2005; BARBOSA, 2014; PEREIRA; MACEDO, 2012; KRAMER, 2002, dentre outros).
Deste modo, no corpo do presente artigo, problematizamos um conjunto de questões epistêmicas, políticas e éticas derivadas de pesquisas com crianças da pequena infância, discutindo pontos que atravessam o direito à cidade de crianças que vivem e produzem suas educabilidades em periferias urbanas, territórios físico-geográfico-político de (re)invenção cotidiana das infâncias com as quais trabalhamos. Ainda que de modo introdutório - devido principalmente ao escopo do artigo - intencionamos um diálogo com as infâncias que nos cercam, nos comovem e nos demandam, sobretudo atenção, escuta sensível (BARBIER, 1985) e capacidade de compreensão, para a formulação de análises e intervenções que efetivamente possam escutá-las, além de pensar formas coletivas de lutar por uma cidade/escola que as acolha e as suas famílias.
Infâncias e deslocamentos territoriais forçados: O que muda quando as crianças mudam de endereço?
O bárbaro assassinato, execução e ou linchamento (MARTINS, 2022) do jovem refugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, na noite de 24 de janeiro deste ano, num quiosque denominado tragicamente de Tropicália, localizado na praia da Barra da Tijuca/RJ, vem inspirando inúmeras discussões contemporâneas sobre a presença cada vez mais frequente do brutalismo (CATINI, 2021) e da barbárie (ADORNO, 1995) na sociedade brasileira contemporânea. No caso do presente artigo, não temos a pretensão de elaborar mais uma análise e/ou interpretação do bárbaro, triste e ignóbil assassinato do jovem refugiado de apenas 24 anos. Trazemos tal assassinato terrível e revoltante para pensarmos e discutirmos a questão do direito à cidade, bem como da hospitalidade do/da estrangeiro/a como uma questão fundamental que deve e precisa ser tomada como “questões da escola”, isto é, questões que não podem ou não deveriam ser silenciadas pelos diferentes sujeitos escolares, em especial por professores/as e estudantes.
Nesta perspectiva, o artigo em tela procura trazer à discussão um tema ainda pouco estudado no campo educacional e mesmo nas ciências sociais brasileiras: a questão das crianças pequenas e suas famílias como migrantes em seu próprio território, tal como nos provoca a pensar Santos, em seu livro O espaço do cidadão (1996). Para Santos, “os pobres continuam migrantes dentro da cidade. A propriedade da casa ou do terreno é a propriedade de uma mercadoria dentro de uma sociedade mercantil”. (SANTOS, 1996, p. 75).
Assim, a migração forçada no território, seja por questões econômicas, desemprego, alterações nas dinâmicas familiares, seja pela violência urbana, em especial os conflitos no território, principalmente os causados por guerra de milícias, facções criminosas e confrontos com a polícia nas favelas e territórios, vem se tornando um problema recorrente. Esta questão afeta crianças pequenas e suas famílias na cidade de São Gonçalo, sobretudo nos bairros do Jardim Catarina, Salgueiro e Itaoca, que são densamente povoados e sofrem cotidianamente com os conflitos entre traficantes, milicianos e uma polícia (ainda) muito pouco preparada para agir sem violência nas situações de confronto.
Nesse sentido, torna-se importante lembrar, para fins de problematização da questão de os pobres serem migrantes na própria cidade, que o jovem refugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagamba, embora trabalhasse havia quase dois anos no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, morava desde os 14 anos, com parte de sua família, na favela de Cinco Bocas, na região de Brás de Pina, zona norte do Rio de Janeiro. Uma favela na qual, em agosto de 2020, cerca de 20 pessoas de uma mesma família foram expulsas por um grupo de traficantes, que tomaram a favela de Cinco Bocas, objetivando o controle do tráfico de drogas. Segundo fontes jornalísticas consultadas no período, o grupo de traficantes que tomou a favela passou a expulsar antigos moradores de suas casas para revendê-las a outros compradores externos à favela Cinco Bocas. Segundo os moradores expulsos de suas casas, a quadrilha monitora cada passo dos moradores, através de drones e câmaras de filmagens instaladas em locais estratégicos da favela1.
Na mesma direção, em grande parte das favelas cariocas, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP, 2021) somente nos dois últimos anos, estima-se que a guerra entre quadrilhas rivais pelo controle do tráfico de drogas vem obrigando um enorme contingente de pessoas a “deslocamentos territoriais forçados”. Outrossim, quando problematizamos a experiência de ser migrante na própria cidade, referimo-nos a um fenômeno bastante frequente na vida dos grupos sociais denominados populares, principalmente moradores de favelas, de assentamentos urbanos, de imóveis coletivos, tais como integrantes do Movimento Nacional de Trabalhadores Sem Teto (MNTST).
Assim, o crescimento dos deslocamentos territoriais forçados, ainda pouco estudado, e a sua relação com processos de educação/escolarização de crianças e jovens na cidade têm sido percebidos em nosso grupo de pesquisa, com estranhamento e compromisso investigativo. Isso ocorre diante de questões como o direito à cidade e suas relações com o acesso e a permanência desses sujeitos na escola, que nos parecem fundamentais para se pensar o papel emancipatório da escola pública, o direito a entrar e permanecer nela e o acesso à educação como prática de liberdade e formação humana (FREIRE, 1979).
Nessa perspectiva, a dimensão política e epistêmica de investigar o lugar, tomando-o como densidade analítica e compreensiva de processos formativos de crianças pequenas, tem nos levado ao diálogo com Santos (1994), que, em sua formulação teórica a respeito de uma epistemologia existencial, nos instiga a realizar o exercício de estudar o que cada lugar tem de singular, de específico, de diferente e original. Por conseguinte, para compreendermos de que modo as pessoas agem e produzem modos de vida, relações e práticas sociais, dentre elas o direito à educação na cidade.
Com relação aos processos de educação de crianças pequenas, tomar o lugar com parte do real implica compreender que o espaço social se retraduz no espaço físico, e a relação entre a distribuição de bens e serviços no espaço físico, territorial, define o valor do espaço social reificado. Ao recorrermos a esta formulação de Santos (1994), podemos inferir, pela análise do autor, o alcance das políticas de democratização do direito à educação, que, a despeito de consideráveis avanços nas últimas duas décadas no Brasil, têm sido atravessadas por grandes retrocessos, no sentido de sua universalização qualitativa e quantitativa, nos municípios do Leste Fluminense, em especial no período da pandemia da Covid-19 (2020-2021).
Vale afirmar que o avanço na oferta quantitativa da Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica em São Gonçalo, por exemplo, não foi capaz de superar a dualidade quantidadequalidade como uma das expressões da inclusão precária de crianças de 0 a 5 anos, das classes populares, nos equipamentos educacionais, creches e pré-escolas disponíveis.
Para Rogério Haesbaert (2017), o termo território é produzido com uma dupla conotação e, etimologicamente, há uma proximidade tanto do vocábulo latino terra-territorium quanto de térreoterritor (terror-aterrorizar), ou seja, o termo está diretamente relacionado com a questão da dominação e do poder (jurídico-político), somada à inspiração daqueles/daquelas que, na vida cotidiana, estão prestes a perdê-lo e/ou são impedidos de acessá-los. Mas, “para aqueles que têm o privilégio de plenamente usufruí-lo, o território pode inspirar a identificação (positiva) e afetiva apropriação”.(HAESBAERT, 2017, p.20).
Dando continuidade ao diálogo com Haesbaert (2017), podemos conceituar território como um espaço por onde se engendram ações e diferentes relações e força que o dinamizam, friccionam e que o produzem. A partir de uma “perspectiva integradora”, Haesbaert (2020) agrupa as diferentes concepções de território em quatro dimensões básicas: política, econômica, cultural e natural. Isto posto, a territorialidade pode ser compreendida como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, controlar e produzir modos de uso em um determinado lugar, identificando-se com o território (HAESBAERT, 2007). A esta interação entre o território simbólico e o funcional Milton Santos (2000) denominou de território usado, sendo este resultante de um processo de base material e social de novas ações humanas.
E é justamente no território usado (SANTOS, 2000) que inúmeras crianças pobres e suas famílias se tornam “migrantes na própria cidade”, deslocando-se cada vez mais para territórios socialmente vulneráveis, longes da escola, da creche e dos poucos componentes territoriais (postos de saúde, praças, saneamento básico, coleta de lixo, dentre outros) que lhes garantiriam, minimamente, condições de vida e uma certa condição de urbanidade.
Em um estudo de doutoramento (TAVARES, 2003) realizado em São Gonçalo, no bairro Jardim Catarina, considerado a maior favela horizontal da América Latina, foi possível acompanhar a situação de “migração interna” (no bairro) da família Barbosa, composta por cinco filhos, sendo quatro meninas e um menino, na faixa etária de 6 a 12 anos, os quais viviam somente com a mãe, uma mulher negra, chefe de família, cerca de 32 anos, na época desempregada e com muitos problemas para manter as/o filhas e filho sob a sua custódia.
Somente no período de 2000 a 2002, essa família mudou-se de residência aproximadamente quatro vezes e, embora se deslocasse para o próprio Jardim Catarina, migrava para cada vez mais longe da escola municipal onde as crianças estudavam e eram acolhidas com bastante cuidado, com certa distinção afetiva e pedagógica, por conta da situação de vulnerabilidade social extrema a que eram expostas. A cada mudança, premida pela falta de condições econômicas e por não ter renda mensal fixa diante do desemprego da mãe, a família Barbosa era apartada do “direito à moradia” (SANTOS, 1996).
Nesta conjuntura, a família via-se obrigada a mudar constantemente de residência, devido ao não pagamento do aluguel, o que vulnerabilizava a sua condição de vida, à medida que os vizinhos constituem nos territórios populares um apoio social (VALLA, 1998) indispensável às táticas de sobrevivência das classes populares pauperizadas. Como estava sempre “fazendo as malas”, os Barbosa tinham dificuldades para estabelecer vínculos com a vizinhança, o que impedia a sua “gramática do correr atrás”. Desfazendo-se de sua rede de relações, tornavam-se, portanto, migrantes dentro do próprio bairro, o que dificultava a frequência à escola, tanto pela distância quando pelas novas dificuldades que surgiam em vista da falta de referências que essa migração interna, isto é, o deslocamento forçado no território produzia.
Por exemplo, podemos referenciar a questão da distância da escola e a ausência de transporte público gratuito para os/as estudantes num bairro como o Jardim Catarina, de grande extensão territorial e dificuldade de mobilidade para crianças pequenas, por conta da distância entre suas casas e os demais problemas causados pela crescente violência urbana no bairro. Para as cinco crianças da família Barbosa, embora todas estudassem, naquela época no turno da tarde, e pudessem se deslocar juntas para a escola na rua Sete, o fato de estarem morando na rua Trinta, e três meses depois na rua Trinta e sete, aumentava em mais de 40 minutos o percurso a pé de ida à escola pública Nicanor Ferreira Nunes. Essa condição trazia cansaço e exaustão às crianças Barbosa, principalmente às duas menores, o menino de 6 e a menina de 7 anos.
Ainda para Santos (1996), cresce cada vez mais parcelas da população que não dispõe de condições materiais e financeiras para permanecer nas casas em que mora, isto é, para permanecer no território inicial de moradia. E a cada migração no próprio bairro, pela sua condição de vulnerabilidade e pobreza, as pessoas vão rompendo seus laços de apoio social com a vizinhança, e inúmeras vezes tornando-se parte de uma humanidade excedente (DAVIS, 2013), que resulta de uma classe trabalhadora espoliada, inserida num mercado de trabalho informal e cada vez mais precarizado.
Assim, atuam em trabalhos considerados bicos, que possibilitam unicamente a subsistência alimentar imediata, sobretudo de mulheres - a exemplo da mãe das crianças Barbosa, que, ao morar na parte mais miserável do Jardim Catarina, já não conseguia trabalho como os anteriores - lavagem de roupas, faxina em comércios ou em casa de profissionais da escola da rua Sete. A pobreza e a vulnerabilidade social extrema do novo território de moradia iam, aos poucos, minando as mínimas condições de dignidade de vida dos Barbosa, de modo que “a informalidade em que se encontra essa população garante o abuso extremado de mulheres e crianças ao serem convocadas para os cuidados e o trabalho que permitam a manutenção da vida (DAVIS, 2013, p.180).
Com a breve narrativa da migração da família Barbosa no próprio território, Jardim Catarina, em São Gonçalo, enfatizamos “o que muda quando as crianças mudam de endereço”, de modo que, no caso de crianças que vivem em famílias extremamente vulneráveis do ponto de vista econômico, a questão de fundo é o rompimento de laços sociais que as fragiliza mais em seus movimentos de produção da vida, sobretudo no que tange à sua sobrevivência material.
No caso da relação da família Barbosa e a escola da rua Sete, o que ocorreu, não obstante os esforços reiterados da equipe pedagógica, foi o abandono das crianças à instituição escolar e a rápida miserabilização dos membros da família. Por conseguinte, produziu-se a precarização e a dissolução dos laços familiares, bem como a responsabilização do Estado pela guarda e cuidado de quatro das cinco crianças desta família. A mais velha, com 14 anos, foi morar com a mãe e seu novo companheiro em uma casa na parte mais miserável do Jardim Catarina, chamada de Ipuca, território famoso na época pela forte presença de milícia e pela existência de um “cemitério clandestino”.
Nesse sentido, reiteramos que é impossível imaginar uma cidadania concreta que prescinda do componente territorial. Ainda com base em Milton Santos, consideramos que o valor das pessoas é fortemente influenciado pelo seu lugar no território. Isto é, “que a igualdade dos cidadãos supõe, para todos, uma acessibilidade semelhante aos bens e serviços, sem os quais a vida não será vivida com aquele mínimo de dignidade que se impõe” (SANTOS, 1996, p. 116). Ainda em diálogo com Santos: “num território onde a localização dos serviços essenciais é deixada à mercê da lei do mercado, tudo colabora para que as desigualdades sociais aumentem” (SANTOS, 1996, p. 116).
Para aprofundar essas e outras questões políticas epistêmicas da pesquisa sobre infância e cidade, vimos buscando um diálogo atento com os escritos da filósofa alemã Hannah Arendt, especialmente em face da sua convicção de pensar a criança como um recém-chegado. A referida autora escreveu, em 1961, um ensaio sobre “A crise na educação”, no qual, em nossa leitura crítica, fez uma análise contundente de como a crise no mundo acabara por afetar a educação, bem como a relação entre a infância e a escola da infância.
[...] a escola é antes a instituição que se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo, de forma a tomar possível a transição da família para o mundo. Não é a família, mas o Estado, quer dizer, o mundo público, que impõe a escolaridade. Desse modo, relativamente à criança, a escola representa de certa forma o mundo, ainda que o não seja verdadeiramente (ARENDT, 2014, p.238-239).
Conhecer e explorar os diversos territórios e signos da cidade e praticar formas e modos distintos de usufruir a cidade, de reconhecer-se nela, de realizar o (re)conhecimento dos espaços de produção da vida urbana, significa para as crianças pequenas impregnar-se da cultura em seu sentido mais amplo, compreendida como um bem comum, fruto do trabalho humano e da ação do tempo (ARENDT, 2014).
Do ponto de vista geracional, os adultos possuem o domínio do mundo por habitá-lo antes dos pequenos, dos recém-chegados que, ainda, não o possuem por desconhecê-lo. Cabe a eles, diferentes adultos, apresentá-los a esse mundo e, além disso, mostrar esse espaço-mundo como possibilidade de construção de si e do outro como comum, como diferente, mas com o estatuto político de igual. Esse talvez seja o sentido mais abrangente do papel da educação e responsabilidade de todos os adultos: darmos boas-vindas ao recém-chegados ao mundo no qual já vivemos.
A escola da pequena infância, que em nossa concepção poderia ser um espaço maior de experimentações - e que poderiam propiciar muitos sentidos às descobertas dos recém-chegados -, ainda carece de impulsionar as crianças à compreensão do sentido das tensões vividas nos espaços públicos, proporcionando-lhes possibilidades de novas discussões que incluam a questão da participação do coletivo infantil, entendendo a importância de se expandir a autonomia destinada às crianças na vida cotidiana.
Na prática, a primeira consequência que daqui decorre é a compreensão clara de que a função da escola é ensinar às crianças o que o mundo é e não iniciá-las na arte de viver. Uma vez que o mundo é velho, sempre mais velho do que nós, aprender implica, inevitavelmente, voltar-se para o passado, sem ter em conta quanto da nossa vida será consagrada ao presente (ARENDT, 2014, p. 246).
Nesse sentido, aprender o direito à cidade e tornar-se parte de um coletivo que o reivindica exige processos de compreensão de si e do outro, bem como da importância de se construir uma familiaridade com o território compartilhado. É necessário entender o contexto da produção histórica da cidade, a formação social do lugar, as lutas pelo espaço urbano, na medida em que aprender a ler a cidade como um livro de espaços implica todo um trabalho de olhar sobre o territóriomundo. E um trabalho para educar o olhar seria tomar a cidade com os recém-chegados como um lugar de leituras e experimentações éticas, políticas e estéticas, como um território de aprendizagens.
Pressupostos éticos, epistêmicos e políticos de pesquisa com crianças: considerações sobre um olhar etnográfico sobre infância e a cidade
Fundamentadas em um longo percurso de trabalho, vimos defendendo que a opção pela pesquisa qualitativa de natureza etnográfica possibilita que pesquisadores e sujeitos da pesquisa possam viver a experiência da pesquisa como uma prática social de conhecimento. Nesta prática, o longo e minucioso trabalho de campo, a produção do que chamamos empiria, longe de ser apenas um espaço de coletas de dados e construção de conhecimentos, nos possibilita um movimento de ação-reflexão-ação coletiva sobre o conhecimento, buscando corroborar o papel de pesquisa como produção intencional de conhecimento, numa perspectiva emancipatória.
Como anunciamos nas palavras iniciais deste artigo, o desafio de buscar pesquisar com crianças, enxergando-as como sujeitos de direitos e coparticipantes do processo de pesquisa, com protagonismo e participação ativa no desenvolvimento da investigação, nos exige pensar e problematizar o caráter ético da pesquisa, a concepção de ciência e a concepção de conhecimento que fundamenta o desenho teórico-conceitual da investigação proposta e a realizada (KRAMER, 2002).
Nesse sentido, o diálogo com autores/as do campo da Antropologia (CANEVACCI, 1993; GRAUE; WALSH, 2003; GEERTZ, 1978; PEIRANO, 1995) e dos Estudos Sociais da Infância (BARBOSA, 2014; FARIA; FINCO, 2011; MARCHI, 2007; SARMENTO; GOUVEA, 2008) tem sido fundamental para a estruturação de nosso movimento investigativo com as crianças e demais profissionais em creches e escolas de Educação Infantil de São Gonçalo.
Do ponto de vista epistêmico e metodológico, realizar uma pesquisa de inspiração etnográfica nos exige um trabalho de descrição minuciosa, atenta, que nos solicita, como pesquisadoras, prestar muita atenção nas coisas fora de nós mesmas, e a nos entregarmos de modo mais cuidadoso possível para descrever, registrar e reconhecer o que é novo e original nelas. Assim, expressões como “o olhar etnográfico” ou a “etnografia como um relato de experiência” não são autoevidentes, carecendo de um trabalho meticuloso e treinamento do olhar, da escrita e de estudo teórico-conceitual (PEIRANO, 1995).
Segundo Peirano (1995), a etnografia faz parte de uma tradição extensa no campo das ciências antropológicas, já pensada e praticada por muitos e distintos autores e linhas teóricas.
Podemos dizer, ainda em diálogo com a antropóloga (1995), que, de modo geral, o fazer etnográfico expressa o caráter temporal das explicações, precisamente por ser um trabalho artesanal, microscópio e bastante detalhado.
O fazer etnográfico implica, muitas vezes, fazer a tradução do olhado, do visto, do achado (PEIRANO, 1995), produzindo representações concretas e seguidamente produtoras de marcos autoritários para identidades e alteridades distintas, correndo-se o risco de fixá-las e aprisioná-las em identidades fechadas ou tipologias que podem, inúmeras vezes, produzir preconceitos e generalizações apressadas.
Desse modo, pensar a etnografia como relato de uma experiência traz à tona questões vinculadas à subjetividade do(a) pesquisador(a) e, consequentemente, ao caráter do conhecimento que pode resultar deste processo. A pesquisa pensada como experiência e como um gesto pedagógico (MASSACHELEIN, 2014) nos possibilita assumir o lugar instável e implicado da subjetividade do sujeito que pesquisa e que, portanto, sabe que o texto etnográfico é um experimento incompleto, reiteradamente rasurado pela falta de experiência de quem o produz.
Do ponto de vista mais específico da etnografia com crianças, vimos nos inspirando nos estudos de Barbosa (2014). Para essa autora, três são os principais aspectos constitutivos da pesquisa de cunho etnográfico com crianças e que, de maneira mais ampla, muitas vezes dificultam e nos exigem coerência epistêmica, ética e política no trabalho investigativo, prioritariamente em seu desenho e intencionalidades.
O primeiro aspecto vincula-se à concepção de ciência inerente ao projeto e a ações da pesquisa de forma mais ampla, especialmente por ser a pesquisa etnográfica uma tipologia de pesquisa aberta e de escopo interativo, bastante flexível em seus procedimentos metodológicos e ferramentas de produção de conhecimento. O segundo aspecto é que a pesquisa com crianças exige a adoção de um paradigma de conhecimento que as reconheça como sujeito de direitos, como produtoras de cultura e com protagonismo social. O terceiro aspecto, que deriva do anterior, é a possibilidade e a capacidade de as crianças serem partícipes da pesquisa, tendo direito à publicização de suas imagens, identidades, nomes, bem como a explicitação de suas contribuições intelectuais nos materiais produzidos na pesquisa (BARBOSA, 2014).
Ainda para Barbosa (idem, p. 240), é fundamental a elaboração de “um mapa das tensões éticas” que possa contribuir para “a discussão e tornar possível a formulação de diretrizes para a pesquisa com crianças que tenham um caráter ético, mas que não impeçam a existência da pesquisa etnográfica, ou participativa da criança”.
Embora tenhamos clareza da complexidade das questões éticas da pesquisa com crianças, bem como dos inúmeros dispositivos necessários à (auto) reflexividade nesta questão, é necessário frisar que, muitas vezes, além dessas intenções, um dos principais objetivos de uma pesquisa é o relacional, isto é, a criação de vínculos afetivos com determinado espaço e com pessoas que produzem/trabalham nesse espaço.
O que muda quando as crianças se tornam migrantes em seu próprio território: considerações finais, porém provisórias
Como já afirmado neste artigo, vimos trabalhando com uma metodologia polifônica que se fundamenta, principalmente, nos Estudos Sociais da Infância, buscando realizar pesquisas de inspiração etnográfica e colaborativa que tematizam a tríade infância, o direito à cidade e a escola da infância. Reiteramos que, do ponto de vista político e epistêmico, três horizontes de questões embasam os nossos itinerários de pesquisa.
A questão empírica: os componentes territoriais que constrangem ou possibilitam os processos de educabilidade das crianças das periferias urbanas gonçalenses. Os últimos dados do IBGE (2010) e da Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo (2018) parecem reiterar os dados empíricos coletados junto aos moradores entrevistados: vale dizer, não está ocorrendo a ampliação de vagas nas redes públicas de Educação Infantil, isto é, nas creches e pré-escolas municipais. A maioria dos moradores dos bairros periféricos só consegue vagas nas creches conveniadas, que funcionam precariamente, à margem das políticas públicas municipais.
A outra questão implicaria a temática dos direitos. Do ponto de vista do direito à cidade, das políticas urbanas e da urbanidade, ampliam-se a pobreza, o desemprego e a precariedade urbana, os quais reverberam o aumento da violência urbana. Morre-se e mata-se muito na cidade São Gonçalo, principalmente nos bairros e loteamentos irregulares, nas áreas pobres e periféricas da cidade.
Não há como deixar de relacionar essas questões aos processos de educabilidade das crianças pequenas das creches e escolas de Educação Infantil. São justamente elas, as crianças pequenas, que mais sofrem com a escalada da violência urbana em suas ruas e bairros, pois são alvos fáceis das “balas perdidas”, tanto dos traficantes quanto da própria polícia, pouco preparada para intervenção nessas áreas de conflitos. Esta escalada da violência dificulta, ou melhor, impede o direito à cidade, pois as crianças e suas famílias são impedidas de se deslocarem de suas casas (em direção à creche ou ao trabalho) ou mesmo terem que se deslocar para outros territórios, principalmente após o “toque de recolher” dado pelos traficantes em confrontos sucessivos com a polícia local (Observatório da Segurança RJ, 2019).
A outra questão investigativa diz respeito à questão política ao entender que, na contemporaneidade, vivemos um tempo político e institucional profundamente paradoxal, no qual a celebração formal dos procedimentos e virtudes democráticas, bem como a ampliação institucional dos espaços de participação e de fortalecimento da sociedade civil entram em choque com o crescente recrudescimento de uma zona de indiferenciação entre o que é considerado legal e o ilegal, o direito e o ilícito, entre o público e o privado, a norma e a exceção, produzindo uma inquietante linha de sombra na vida urbana e suas formas políticas.
Do ponto de vista investigativo, entendemos ser cada vez mais necessário aprofundar a concepção da pesquisa como uma experiência prático-política de conhecimento. Trata-se de focar e deslocar-se do campo do já sabido para a formulação de novas questões e novos problemas, num esforço de complexificar o olhar para o terreno movediço no qual a realidade-território se move/produz.
Em nossos estudos, vimos aprofundando a concepção de que a cidade, mais do que um conceito, é um campo de práticas. Não se trata de inventar novas teorias e muito menos de domesticar a(s) realidade(s) estudada(s) em alguma matriz explicativa geral. Ao pensar a cidade como um campo de práticas, sobretudo de práticas infantis de conhecimento, representação e apropriação do espaço urbano, buscamos elaborar roteiros de investigação mais flexíveis, mais abertos, que, ao produzirem linhas de força e novas questões, nos instiguem a pensar de forma plural e inventiva a questão urbana, sobretudo em diálogo com os diferentes profissionais que trabalham nas escolas da pequena infância.
Em nossas “alfabetizações cotidianas”, vimos aprendendo que a temática dos direitos, dentre os quais o direito à cidade, isto é, de a criança conhecer seu território e dele usufruir, é uma questão estrutural, de longa duração, que não pode ser invisibilizada na/pela escola da infância. E que inúmeras vezes a cidade pode ser contra a escola, como nos provocam a pensar Ribeiro e Katztman (2008).
E, por outro lado, a crescente migração de crianças e suas famílias nos territórios da cidade, como exemplificado neste artigo pelos constantes deslocamentos da família Barbosa, demonstra os impactos da concentração da pobreza econômica e territorial sobre percursos escolares individuais e familiares. Podemos afirmar, no caso deste estudo, que na cidade estudada, quanto mais distante da escola, mais difícil se torna para crianças das classes populares e suas famílias manterem um vínculo mais orgânico e sistemático com a escola, principalmente no que tange à frequência, à pontualidade e à manutenção de vínculos afetivos entre criança-profissionais da escola e família-profissionais da escola. A desigualdade social, acrescida da desigualdade territorial, expulsa progressivamente a criança pequena da escola, o que corrobora os estudos de Pereira (2016) sobre a conexão entre a vulnerabilidade social nos territórios das grandes cidades e a produção da desigualdade escolar.
Assim, a cidadania infantil e o próprio direito à cidade não podem ser tomados e investigados como um dado natural, mas como uma aprendizagem fundamentalmente políticosocial, podendo se tornar, nas instituições escolares, um estado de espírito, enraizado na cultura.
Desse modo, o que a experiência de pesquisa possibilita afirmar é a complexidade da escola da pequena infância para a educabilidade e a formação de uma “cultura de direitos” (ARENDT, 2014), na qual adultos e crianças possam se reconhecer como sujeitos e co-construtores ativos de seus destinos no mundo, sobretudo nos territórios da cidade.