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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.69 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 28-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.66100 

Migração e refúgio: desafios educativos entre desigualdades e diferenças

JOVENS EM CONTEXTO DE REFÚGIO: narrativas que revelam modos de vida e o lugar da escola

YOUNG PEOPLE IN A REFUGE CONTEXT: narratives that reveal ways of life and the place of the school

JÓVENES EN CONTEXTO DE REFUGIO: narrativas que revelan modos de vida y el lugar de la escuela

Paulo Cesar Rodrigues Carrano1 
http://orcid.org/0000-0003-3312-1362; lattes: 9106017105325057

Viviane Penso Magalhães2 
http://orcid.org/0000-0001-8142-9252; lattes: 2670751736945291

1Universidade Federal Fluminense

2Universidade Federal Fluminense


Resumo

O artigo aborda relações de jovens em contexto de refúgio com suas escolas e outros lugares da cidade. Migrantes, refugiados, solicitantes de refúgio e filhos de africanos, esses são estudantes e moradores do bairro de Gramacho, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Os jovens e as jovens participantes da pesquisa compartilham representações sobre cotidianos, hábitos, costumes, entretenimentos e a socialização familiar. As experiências reveladas ocorrem no espaço-tempo antropológico que denominamos contexto de refúgio. As narrativas desses jovens revelam sonhos, expectativas, frustrações e alegrias atravessados pelos vínculos estabelecidos com a instituição escolar. A metodologia da pesquisa propôs que os jovens elaborassem suas narrativas através da produção de fotografias. Para isso, uma máquina fotográfica foi cedida para que estes produzissem imagens de seus cotidianos. Após recebidas e categorizadas, as fotografias proporcionaram momentos dialógicos que fortaleceram vínculos entre os jovens e a pesquisa. Narrar o fotografado estimulou a reflexividade dos jovens sobre aquilo que decidiram selecionar para contar suas próprias histórias. Os encontros, as fotografias e as narrativas revelaram representações elaboradas a partir da ideia de oportunidade de integração que a escola enuncia para os jovens. Observamos, ainda, que para os jovens africanos e seus familiares a possibilidade de completar o ciclo de formação educacional é um fator relevante no ato de migrar.

Palavras-chave: jovens; refúgio; migração; escola; fotografia.

Abstract

The article addresses the relationships of young people in a refugee context with their schools and other places in the city. Migrants, refugees, asylum seekers and children of Africans, these are students and residents of the Gramacho neighborhood, in Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Young people participating in the research share representations about daily life, habits, customs, entertainment and family socialization. The revealed experiences occur in the anthropological space-time that we call “refuge context”. The narratives of these young people reveal dreams, expectations, frustrations and joys crossed by the bonds established with the school institution. The research methodology proposed that young people elaborate their narratives through the production of photographs. For this, a camera was provided for them to produce images of their daily lives. After being received and categorized, the photographs provided dialogic moments that strengthened bonds between the young people and the research. Narrating what was photographed stimulated the young people's reflection on what they decided to select to tell their own stories. The meetings, photographs and narratives revealed representations created from the idea of an opportunity for integration that the school enunciates for young people. We also observed that for young Africans and their families, the possibility of completing the educational training cycle is a relevant factor in the act of migrating.

Keywords: youth; refuge; migration; school; photography.

Resumen

El artículo aborda las relaciones de los jóvenes en contexto de refugio con sus escuelas y otros lugares de la ciudad. Migrantes, refugiados, solicitantes de asilo e hijos de africanos, son estudiantes y vecinos del barrio Gramacho, en Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Los jóvenes participantes de la investigación comparten representaciones sobre la vida cotidiana, hábitos, costumbres, entretenimiento y socialización familiar. Las experiencias reveladas ocurren en el espacio-tiempo antropológico que llamamos “el contexto del refugio”. Las narrativas de estos jóvenes revelan sueños, expectativas, frustraciones y alegrías atravesadas por los vínculos establecidos con la institución escolar. La metodología de investigación propuso que los jóvenes elaboren sus narrativas a través de la producción de fotografías. Para ello, se les proporcionó una cámara para producir imágenes de su vida cotidiana. Después de ser recibidas y categorizadas, las fotografías proporcionaron momentos dialógicos que estrecharon vínculos entre los jóvenes y la investigación. Narrar lo fotografiado estimuló la reflexión de los jóvenes sobre lo que decidieron seleccionar para contar sus propias historias. Los encuentros, fotografías y relatos revelaron representaciones creadas a partir de la idea de oportunidad de integración que la escuela enuncia para los jóvenes. También observamos que para los jóvenes africanos y sus familias, la posibilidad de completar el ciclo formativo educativo es un factor relevante en el acto de migrar.

Palabras clave juventud; refugio; migración; escuela; fotografía.

A ESCOLA: PRIMEIRO LOCUS DA PESQUISA

Os jovens colaboradores da pesquisa fazem parte de uma comunidade africana residente em Gramacho, município de Duque de Caxias, região periférica do Rio de Janeiro. Esse território recebeu seus primeiros migrantes e refugiados na década de 1990, atraídos pelo baixo valor de aluguel e a proximidade da linha férrea. Ao longo dos anos, outros conterrâneos, familiares e amigos, chegaram e consolidaram uma história e relação com o local.

Com a reincidência dos fluxos migratórios - entre África e Brasil -, entre os anos de 2014 e 2016, o aumento do número de jovens congoleses e angolanos, refugiados e migrantes, chamou a atenção das instituições locais. De acordo com a planilha elaborada pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) a partir dos dados da Polícia Federal, entre os anos de 2014 a 2020, 328 jovens na idade de 15 a 29 anos, deram entrada na solicitação de refúgio pelo Rio de Janeiro. Desses, 91 são registrados como residentes no estado do Rio de Janeiro. Os dados mostram também que o município com o maior número refugiados é o Rio de Janeiro, com 623, o segundo é Duque de Caxias com 143, e o terceiro São João de Meriti com 17. Esses números apresentam a significativa presença dos jovens refugiados no estado do Rio de Janeiro e especificamente no município de Duque de Caxias, onde desenvolvemos a pesquisa.

O interesse de pesquisadores por esse território e pelos imigrantes que ali residem, não é recente. Pesquisas no campo de estudo das migrações revelaram informações sobre os grupos étnicos, suas trajetórias de vidas, deslocamentos e razões das fugas. Neste sentido vários autores se debruçaram sobre o tema da migração no Rio de Janeiro: Hélion Povoa Neto (2005, 2007, 2010); Giralda Seyferth (2007); Luciano Ximenes Aragão (2015); Miriam de Oliveira Santos (2016) entre outros. Regina Petrus Tannuri, em estudos sobre migração africana em Duque de Caxias (2001) relaciona tais movimentos (de migração) à guerra civil, às últimas eleições de Angola e outros fatores que contribuíram para o aumento do fluxo migratório para o Brasil. Segundo a autora, a primeira grande concentração de angolanos nos anos 1990 deu-se no Complexo da Maré (conjunto de favelas no Rio de Janeiro). Com o tempo, angolanos que ali se instalaram, passaram a se transferir para outras áreas na periferia do Rio de Janeiro. Mais recentemente, em continuação à fase exploratória da pesquisa, Regina Petrus buscou compreender as dificuldades da sobrevivência e inserção do migrante na sociedade, considerando os congoleses que vieram para a periferia carioca (2010). Esses trabalhos constituíram uma consistente análise crítica e propositiva sobre a “interação local” desses povos e a dinâmica de funcionamento das redes sociais, ou seja, redes constituídas por familiares, amigos, conhecidos e outras pessoas que forneciam apoio aos que migravam, fundamentando, assim, a formação dos grupos de migrantes existentes em Gramacho - Duque de Caxias.

A escola da pesquisa é uma das três unidades que atendem os jovens, na etapa de Ensino Fundamental e na modalidade Educação de Jovens e Adultos. Esses jovens ingressam na escola a partir de 2015, mas é em 2017 que o conhecimento e as experiências profissionais se transformam em dados empíricos para análise através do registro sistemático da Orientadora Pedagógica1 em seu caderno de campo e cujo um trecho apresentamos abaixo:

Sai para lá.... volta pra onde vocês vieram.

2017, quinta-feira à noite, 18h e 30min, toca o sinal para entrada do turno, jovens, adultos, senhores e senhoras entram pelo portão da escola, direto para o refeitório. É uma escola pública do município de Duque de Caxias com modalidade de Educação de Jovens e Adultos. O turno inicia com o jantar para que depois começassem as aulas. Todas as turmas em sala com seus devidos professores, tudo caminhando para mais um dia de aprendizado, até que o silêncio e a tranquilidade do turno escolar são rompidos por gritos e barulhos de cadeiras e mesas arrastando no chão. Em poucos minutos, entra na sala da Orientação Pedagógica uma inspetora nervosa solicitando minha presença no segundo andar do prédio. Pela feição da funcionária, o que parecia mais um dia calmo, teria sido interrompido por algum episódio conturbado, necessitando intervenção urgente. Subi! Larguei todos os documentos, a burocracia, e corri para atender a solicitação. Lá, percebi uma confusão instalada. Professor na porta da sala de aula, alunos de pé, cadeiras e mesas fora do lugar e, nitidamente, uma turma dividida em dois grupos, onde todos falavam ao mesmo tempo na tentativa de narrar o ocorrido. Alguns alunos de um lado da sala consolavam e conversavam com um casal, do outro, um grupo de alunos segurava um jovem que parecia bem descontrolado, visivelmente alterado, falando alto. Rapidamente, solicitei que os estudantes envolvidos me acompanhassem até o térreo. Entraram comigo na sala da Orientação Pedagógica três jovens negros: dois rapazes e uma moça. O primeiro jovem usava calça jeans, blusa do uniforme da escola e uma mochila. O outro rapaz vestia calça social com risca de giz e listras finas brancas, uma camisa de botão colorida com cores fortes, sapato fechado e uma pequena bíblia na mão. A jovem tinha tranças coloridas no cabelo e vestido estampado. Feição assustada, cabeça e olhos baixos, aparentando timidez. Estavam presentes também a dirigente de turno e a inspetora do segundo andar. Uma delas relatava o acontecimento com o tom de voz acelerado e trêmulo. Dizia que a situação era previsível, pois, desde que os jovens irmãos começaram a frequentar a turma, existia um comportamento repulsivo em relação a eles. As funcionárias explicavam que o jovem de uniforme, aluno da Etapa V da EJA (equivalente ao nono ano do ensino fundamental II da Educação básica) era aluno antigo na escola, e que o casal de irmãos congoleses havia chegado recentemente. Uma das funcionárias dizia que, ao chegar no local, viu o aluno brasileiro, exaltado, contido pelos braços por outros colegas, gritando em direção a aluna: “Sai para lá macaca fedorenta, volta pra onde vocês vieram”. Assim, percebi que se tratava de alunos estrangeiros. Agradeci às profissionais. Após a saída delas da sala, iniciei a conversa com os estudantes. O aluno uniformizado expôs sobre o esbarrão corporal sofrido por ele e dado pelo aluno africano, disse ter sido proposital e por isso revidou: “não levo desaforo para casa”! Muito irritado e com a voz elevada, descreveu a situação em detalhes. Do outro lado da sala, os irmãos não respondiam, não se mexiam, pareciam nem respirar. Em determinado momento, uma reação tomada por eles surpreende a todos nós. Eles se olham e começam conversar em língua desconhecida. Decerto, utilizavam uma língua africana, pois sabiam que não a entenderíamos. Ficamos espantados, mas, observamos em silêncio. Retomada a situação, perguntei se os jovens gostariam de apresentar suas versões sobre o fato, em nossa língua, de forma que entendêssemos. Balançando a cabeça, a moça acenou negativamente e o irmão complementou apenas dizendo que o contato físico não havia sido proposital e pediu desculpas. Registrei, adverti os alunos, finalizei a ocorrência, mas o episódio não saiu dos meus pensamentos. (Caderno de Campo. MAGALHÃES, 2017)

A escola fica localizada próxima à estação de trem, do comércio local e das ruas onde residem famílias africanas. Segundo relato de moradores antigos, a Rua do Peixe foi o primeiro espaço geográfico do bairro a ser habitado por migrantes e refugiados africanos. Com a chegada de outros familiares, a demanda por acomodações na região aumentou e a concentração no espaço acabou virando uma característica local. A proximidade das moradias é um facilitador no acolhimento e na adaptação dos novos africanos ao território. Com o aumento do grupo, a demanda por vagas em escolas públicas locais, para crianças e jovens migrantes, passou a ser uma realidade do município.

O episódio acima descrito aponta que a atuação profissional da Orientadora Pedagógica despertou o seu interesse por iniciar pesquisa na área da juventude com o foco em migração e refúgio. Esse interesse trouxe a necessidade de mapear e buscar outros jovens dispostos a participarem da pesquisa. Estes a fizeram compreender que, além dos jovens refugiados vindos da África, outros jovens também vivenciavam a cultura africana e compartilhavam as tensões do refúgio e as dificuldades existentes em “ser estrangeiro no Brasil”. Entretanto, esses jovens não eram oriundos da África, mas, sim, brasileiros: filhos de africanos, que mesmo não tendo a nacionalidade africana são tratados e identificados genericamente no bairro e na escola como “africanos” ou “angolanos’’.

Em uma entrevista online com Cabinda2, a estudante dizia: “sou quase uma africana”. Segundo ela, ainda que dissesse ser brasileira, filha de angolana e congolês, nascida no Brasil, seus colegas de classe a tratavam como “angolana”, um termo utilizado pelos brasileiros, em especial, da comunidade de Gramacho para todos os africanos e parentes, independente da naturalidade, nacionalidade ou descendência. Ela explicava que, no início, o adjetivo a irritava, mas com o tempo foi se acostumando. Sua mãe a aconselha desconsiderar, pois “no fundo” ela também era africana. Assim, a noção de que todos estes jovens vivenciam o contexto de refúgio foi se consolidando, devido aos compartilhamentos de experiências, da presença da cultura africana em seus cotidianos e modos de vida (GUERRA,1993) e também pelas representações de terceiros que os enxergam como "africanos", ainda que brasileiros e brasileiras sejam.

O fato relatado também nos ajuda a pensar sobre a questão de ser um jovem africano no Brasil. Tratar a situação relatada inicialmente como um simples conflito juvenil seria um equívoco.

Pois, ignorar a presença da atitude preconceituosa e racista direcionada ao casal de irmãos da República Democrática do Congo não ajuda na construção do debate fundamental e urgente sobre a presença de jovens refugiados e imigrantes africanos no Brasil. Principalmente naquilo que diz respeito às relações que esses estabelecem na escola e os desafios postos para a escolarização que consideram a diferença como princípio organizador do projeto político pedagógico da instituição escolar.

Algumas indagações orientaram nossa busca por compreender como esses jovens inseridos em contextos de refúgio se relacionam com a instituição escolar, sendo elas: como sentem e representam situações de preconceito e estigma, tais como a relatada? Que expectativas nutrem em relação à escola? E como se relacionam com os espaços e tempos escolares cotidianos? A compreensão sobre redes de relacionamentos e experiências para além da escola constitui-se também como elemento importante de análise da vida desses estudantes.

DESDOBRAMENTOS METODOLÓGICOS A PARTIR DA ESCOLA

O primeiro instrumento metodológico utilizado na pesquisa foi o caderno de campo. Surgiu como alternativa ao arquivo de acontecimentos e memórias vindos dos espaços físicos, geográficos, epistemológicos e do campo das ideias. Com ele, foi possível acompanhar todo processo de evolução e construção da pesquisa. De acordo com Beaud e Weber (2014), o caderno “permite um primeiro trabalho de desvendar o campo”. As visitas em instituições e locais voltados a este público e entrevistas com familiares e pessoas envolvidas com a comunidade de refugiados em Gramacho foram registradas de forma cronológica para que nenhuma informação fosse perdida ao longo do reconhecimento do campo.

A escola foi o primeiro espaço e o mais acessível aos encontros com os jovens tendo um papel importantíssimo na elaboração e nos desdobramentos metodológicos. O convívio na escola possibilitou o entendimento de dois aspectos cruciais para as escolhas metodológicas: (i) que eles e elas não se sentiam à vontade em falar sobre os motivos que os levaram a migrar e/ou solicitar refúgio, assim como seus sentimentos e angústias. Foi necessário estabelecer uma relação de confiança e intimidade. (ii) O espaço escolar não esgotava todas as possibilidades de observância das relações, foi preciso buscar outros espaços de experiências e interação desses jovens. Os desafios exigiram um olhar sensível à vida dos jovens para além da escola e, também, sensibilidade em nossas escolhas metodológicas.

Estamos com Sposito (2003, p. 212) quando esta chama atenção para que a análise dos fenômenos que ocorrem na escola não fique restrita a ela. É preciso ultrapassar os muros escolares, pois:

[...] as mutações sociais observadas nas últimas décadas exigem daqueles que se debruçam sobre os fenômenos da socialização contemporânea e da reprodução social um olhar ampliado para outros agenciamentos presentes na formação e no desenvolvimento das novas gerações.

Reitera-se, dessa forma, a perspectiva sociológica de sair dos limites físicos da escola para melhor compreendê-la à luz de processos sociais dinâmicos e a partir dos sujeitos que constituem a instituição. A partir deste princípio, pensamos na utilização reflexiva da fotografia para o aprofundamento do diálogo com os sujeitos da pesquisa.

O convite para que os jovens fotografassem e narrassem suas próprias vidas e cotidianos conferiu maior complexidade aos relatos sobre suas relações com as agências socializadoras, em especial, suas famílias. Isso possibilitou a compreensão sobre suas experiências e interações em múltiplos espaços. Buscamos distinguir a categoria analítica - escola - de sua unidade empírica - escola - objeto de investigação. Ou seja, tal como observou Sposito (2003), a relevância analítica da instituição escolar não implica necessariamente o seu estudo empírico, sendo esse o primeiro aspecto da via não escolar no estudo sociológico da escola.

A atividade com a fotografia reflexiva consistiu no empréstimo de uma câmera fotográfica aos jovens em contexto de refúgio para que produzissem imagens de seus cotidianos, por pelo menos quinze dias. No retorno, as imagens eram organizadas, projetadas no computador, para que individualmente pudéssemos conversar sobre o que foi fotografado. As fotografias nortearam o diálogo e possibilitaram a reflexão do que foi visto, dito e não dito.

A atividade de investigação cooperativa do cotidiano baseou-se em referências teóricometodológicas que utilizam a imagem fotográfica na investigação social. O denominado Photo Eliciting Interviewing (PEI), por exemplo, é uma metodologia que lança mão de fotografias nas entrevistas para favorecer a coleta de informações. A técnica tem sido utilizada pelo antropólogo John Collier Jr., precursor nas pesquisas com fotografias e, também, por Douglas Harper e Marisol Clark-Ibáñez.

O questionamento proposto por Collier Jr., sobre a fotografia, suas propriedades e métodos para contribuir com as pesquisas do campo das Ciências Sociais, orienta debates neste tema. Quando usou a fotografia pela primeira vez em meados dos anos 1950, examinando a saúde mental na mudança das comunidades em Províncias Marítimas do Canadá, Collier Jr. propôs entrevistas com fotos para a solução prática de problemas (HARPER, 2002). A partir daí o método se disseminou e, em fins dos anos 1960, Collier Jr. apresentou o PEI como um método válido e útil para a coleta de dados, utilizando a fotografia como instrumento da entrevista.

Para Marisol Clark-Ibáñez (2004), nos PEIs, os pesquisadores introduzem as fotografias no contexto da entrevista. Elas podem ter sido produzidas pelo próprio entrevistado ou pelo pesquisador. Costuma-se utilizá-las como ferramenta para expandir questões, extraindo dos participantes informações de suas vidas. O propósito é o que sugere o próprio termo “elicitar”, ou seja, “extrair”, “lançar para fora”. Provoca-se, assim, por intermédio de uma metodologia qualitativa, a revelação de informações necessárias à pesquisa referidas às experiências de vida de uma comunidade, além do exercício de autorreflexão. A fotografia é uma forma crucial de reunir dados e desenvolver o olhar sociológico (BOURDIEU, 2004).

RETRATANDO

Fugidos de guerras, perseguições políticas, religiosas e agravamento das questões econômicas, os jovens da pesquisa e seus parentes, além de virem em busca de paz e melhores condições de vida, trazem no imaginário a representação de uma escola que contribuirá na conquista da desejada vida “nova e melhor”. Isso porque, segundo eles e elas, além dos fatores que impulsionam a saída do país de origem, a educação oferecida em Angola e na República Democrática do Congo ainda está muito longe de ser universal e democrática, poucos têm acesso. A segregação econômica define os que têm acesso à educação impossibilitando à maioria uma vida escolar completa.

Por mais que a escola representasse um lugar de esperança para estes estudantes, falar sobre as questões que envolvem perdas, distanciamento, incertezas e angústia, não foi uma tarefa fácil. Foram necessários muitos dias para que, por meio das fotografias, pudessem revelar o que realmente estavam sentindo. O corpo, inicialmente inibido, tenso, com poucos movimentos, mostrava o desconforto quando o assunto era direcionado às questões íntimas e particulares do deslocamento. Já para os jovens brasileiros, filhos de africanos, contar a história dos seus pais era uma tarefa mais leve, menos incômoda. Mesmo não tendo nascido na África, mas vivendo intensamente a cultura africana, o que os importunavam eram as implicâncias e constrangimentos em relação à sua descendência e origem de seus familiares, colocando em dúvida e ironizando a nacionalidade brasileira.

Cabinda, 16 anos, filha de congoleses, ao ser perguntada se percebia seus professores e amigos tratando-a de forma diferente por ser africana ou filha de africanos, responde que sim e exemplifica com a fala de uma professora:

“Gente, essa aqui é africana!” Aí todo mundo fala: “Não, mentira! Ela não é africana, não!” Aí, eles não acreditam que nós somos africanos, não. Mas quando o (Orientador Educacional) R. falou assim: “Essa aqui é africana!”, aí todo mundo começou a ver, todo mundo começou a me abraçar. (Informação verbal)3

Mesmo não sendo africana, a jovem diz que todos os amigos acham que ela é africana. E que depois que os profissionais da escola intervieram no comportamento hostil que os amigos tinham com ela, a situação melhorou. A escola desenvolveu trabalhos como a Feira de Africanidades e outros projetos integrados ao PPP - Projeto Político Pedagógico - da escola, no objetivo de inserir a temática da migração africana muito presente no bairro. Sobre bullying na escola, a jovem relatou:

Eles ficam xingando, ficam chamando de capeta, ficam chamando de feia, ficam chamando de macaco. Tudo isso! Aí ficam falando que você não tem mãe, não tem pai, xingando isso! Eles chamam de mendigos. (informação verbal)4

E sobre a relação das hostilidades com o fato de seus pais serem da África, ela diz:

Eles pensam que a gente não sabe. Eles pensam que a gente que é lá de Angola, não sobrevive. A gente trabalha, eles pensam que a gente não tem dinheiro para comprar comida, para sobreviver, para sustentar nossos filhos. Pensam que nós somos isso. (informação verbal)5

A mãe de Cabinda, que concordou em participar da pesquisa por meio de entrevista, expôs que, por muitas vezes, orientou que a filha relevasse o que era dito pelos colegas da escola. Mas, admitiu que a filha, inúmeras vezes, voltou para casa chateada. Alegou também que as reclamações só diminuíram quando a escola passou a fazer um trabalho voltado para a cultura africana.

Mohammed ElHajji6, diz que o problema do Brasil não é a xenofobia (o medo, a aversão ou a profunda antipatia em relação aos estrangeiros), até porque em geral somos um povo xenófilo (que gosta exageradamente do que é estrangeiro). De acordo com ele, existe sim uma seletividade, ou seja, em geral escolhemos com quem somos benevolentes. Depende do lugar de origem, da condição social, do gênero e da religião. Abominamos o negro, o pobre, o latino de fenótipo indígena.

FOTOGRAFAR PARA CONTAR: O QUE OS JOVENS REVELAM SOBRE A ESCOLA E OUTROS ESPAÇOS DE SOCIALIZAÇÃO?

Ao mesmo tempo em que algumas situações na escola são consideradas hostis, a escola também é idealizada pelos pais como uma instituição que vai garantir a integração dos filhos no novo território, minimizando o sentimento de desenraizamento identitário produzido pelo deslocamento. Neste sentido, a escola pode ser uma ancoragem territorializada como diz Elsa Ramos (2006). Segundo a autora, as ancoragens tanto podem impulsionar o indivíduo à mudança permitindo que experimentem alguma continuidade de si nos momentos de separação, sejam elas de ordem geográfica, afetiva ou temporal, como podem conter este impulso à mudança, restringindo sua mobilidade, sendo referências nas quais os indivíduos se encontram.

A ancoragem do indivíduo pode estar também nas referências que se encontram à disposição na sua vida presente (RAMOS, 2006, p. 26). Neste caso, a escola pode ser vista como referência no sentido que se torna um espaço de frequência contínua, possibilidade de construção de relações e que ainda atenue os efeitos da dupla ausência, ou a vida dupla, que Sayad (1998) atribui às pessoas diretamente afetadas pelo deslocamento. Imigrantes e refugiados estão fisicamente presentes em um lugar, mas mentalmente, no imaginário ou no sentimento, presos a suas origens.

A escola, que é a instituição por excelência dedicada aos estudantes, mesmo que ainda não esteja preparada e organizada para receber um estrangeiro, funciona como espaço onde os jovens em contexto de refúgio podem encontrar o padrão cultural vigente e a partir deste enfrentamento construir suas relações e modos de vida nas indefinições, no estado de provisoriedade (SAYAD, 1998).

A estudante Ambriz, refugiada angolana, ao apresentar uma foto que produziu no passeio da escola, tendo como fundo o maior cartão postal da cidade - Pão de Açúcar na zona Sul do Rio de Janeiro -, disse que sua mãe deveria estar muito feliz vendo aquela foto, pois havia vendido tudo para conseguir comprar sua passagem para que ela viesse para o Brasil morar com o pai e a madrasta. Segundo disse, a mãe queria muito que ela conseguisse completar os estudos. Imitando a mãe, declarou Ambriz: “Estais a sair, aproveite a chance e estude!”.

Na conversa com alguns responsáveis dos jovens estudantes menores de 18 anos, eles contaram que ao chegar ao Brasil, após passar pelas burocracias de entrada na Polícia Federal e se estabelecerem em suas moradias no território escolhido, seus maiores desejos eram a conquista de um emprego e vaga na escola para seus filhos: “Muito bom saber que nossos filhos têm escola assim que chegam aqui!” (Mãe de Cabinda, bairro de Gramacho).

A expectativa “nos estudos” dos filhos surge como um fator que também motiva a migração das mulheres com seus filhos para o Brasil. O valor e a importância que as famílias atribuem à educação, também são sentidos na fala, comportamento e dedicação dos estudantes.

Todos os jovens que passaram pela pesquisa, participando da atividade de fotografia, conversas e entrevistas concedidas no formato on-line ou presencial, apresentaram bom rendimento na escola. Somente o estudante Ebo, refugiado congolês adulto, protagonista do incidente conflitivo com o colega brasileiro, narrado inicialmente, não teve um bom rendimento. Não era assíduo, pois seu trabalho de barbeiro na comunidade do bairro atravessava frequentemente o horário da noite, turno da Educação de Jovens e Adultos. Durante a pesquisa, ele evadiu da escola.

O substantivo “estudos” é frequentemente utilizado como sinônimo de escola. É importante anotar, então, como a instituição escolar se apresenta tanto como um suporte no presente como uma perspectiva de futuro na vida desses jovens em contexto de refúgio. Por mais que, em algumas narrativas, a escola também seja adjetivada de forma negativa como sendo “chata”, “cansativa”, “que não entende a gente” e “dura”, não era incomum que esta fosse apresentada também como necessária ou reconhecida como decisiva para o processo de integração no novo território.

Figura 1 Fotografia Colegas de classe7 

Fonte: Fotografias de Tomboco (Refugiado angolano, 17 anos), 2019

Figura 2 Fotografia O Rio é lindo, até o céu é mais azul! 

Tomboco é um refugiado angolano que sonhava em ser jogador de futebol. Torcia pelo time do Flamengo, no Brasil, tendo como time de coração o espanhol Real Madrid. Na África, acompanhava todos os jogos de futebol do Brasil e sonhava em assistir um jogo brasileiro. Tomboco produziu poucas imagens para a pesquisa, pois dizia não ter nada de importante para retratar. Estava no Brasil há dois anos e meio, quando iniciamos a pesquisa. Ele não saia muito, por isso, a opção era fotografar amigos da escola. Sua única atividade, além da escola, era jogar bola na pracinha do bairro Gramacho até às 18h. A rigorosidade do horário para o retorno era devido a seus pais considerarem a noite do bairro perigosa.

Sobre o time preferido na África, Tomboco dizia que o futebol lá era muito ruim. O basquete, (outro esporte favorito) também seria ruim, e continuava com sua opinião: “Nada lá é bom, por isso estamos aqui" (riso contido).

Contou sobre a corrupção que percebia nos governantes: “eles só roubam”. Mencionou que os parentes que ficaram em Luanda enviaram mensagens dizendo que a vida lá só piorava. Sobre voltar para África, revelou que só voltaria se tivesse “um chamado da família”: “Aqui, tem pouca gente conhecida (amigos), não domino muito os lugares. Mas tá bom... fiz amigos na escola”.

Figura 3 Fotografia Casa da minha família, pequena, mas linda, né? 

Figura 4 Fotografia Não posso perder esta foto 

Fonte: Fotografias de Ambriz (refugiada angolana, 17 anos), 2019.

Figura 5 Fotografia Casamento 

Figura 6 Fotografia Visita ao Pão de Açúcar 

Ambriz, irmã de Tomboco, era refugiada de Angola. Os dois vieram juntos encontrar o pai que já se encontrava no Brasil e vivendo com a madrasta e os outros “meio irmãos”, termo usado para caracterizar os filhos do pai com sua companheira. Diferente do irmão, Ambriz produziu muitas fotos para pesquisa8. Fotografou a casa, diferentes cômodos, os irmãos, as brincadeiras, suas horas de beleza (quando se arrumava para sair), o curso de informática (realizado por intermédio de bolsa de estudos cedida por uma ONG), passeios da escola, eventos familiares e religiosos.

Ambriz colaborou para a pesquisa por três anos e meio. Foi revelador acompanhar sua vida escolar nos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, seu processo de regularização dos documentos, suas crises familiares em busca de autonomia, o início do namoro, os conflitos com a família, a gravidez, o casamento, a saída da casa dos pais, o nascimento do seu filho e, por fim, a partida com a família para os Estados Unidos da América (EUA). Sonho que realizou com sua inserção no mercado de trabalho e, segundo ela, muita força de vontade.

Acompanhando fotos, conversas, visitas, trocas de mensagens escritas e por áudios, essa jovem contribuiu muito para pesquisa. Hoje, em um campo de refugiados nos EUA, acompanhada por uma assistente social, ao lado do filho e marido, envia uma gravação em vídeo, feita por aparelho de celular, com o rosto em primeiro plano, com a seguinte mensagem: “Podes usar na sua pesquisa, vou gostar!”

Olá, pessoal, eu sou Ambriz (informa o nome completo), tenho 22 anos de idade, sou angolana, eu cheguei no Brasil em 2017, tipo, foi muito bom para mim, também foi muito triste, porque tive que deixar os meus familiares em Angola, tipo, foi isso. No princípio foi muito difícil de adaptar por [...], tipo [...] a gente entende, né? o português, mas é muito difícil eles entenderem o que a gente tá falando. Tipo: Ah, vai para lá, tipo, ficam assim... É muita coisa... Mas aí eu fui estudar lá, fui aprendendo, fui estudando e conhecendo várias, várias, várias gentes, foi naquela escola onde eu conheci a pesquisadora, gente falar da pesquisadora é falar de tudo, ela fez um papel muito importante na minha vida... Ela viu como é que eu era como, como eu cheguei, meu português mal falado, pois é, eu agradeço muito a Deus por ter conhecido ela. Aprendi bastante com ela, com a escola, vários passeios juntos. Eles organizaram vários passeios. Teve locais que eu conheci. Foi através do passeio na escola. E onde eu tava a gente não saía só ficava em casa, era muito difícil você conhecer o Brasil inteiro, aí graças ao passeio da escola fui aprendendo, conhecendo. Falar do Brasil é falar de tudo, tipo, eu cresci em Brasil, aí eu conheci meu namorado, meu esposo (risos). Hoje eu tenho um filho lindo, lindo, lindo, falar do meu filho é falar de tudo. Um filho lindo, esperto. Graças ao Brasil, minha rotina foi muito boa, muito boa mesmo. É... é isso, Deus me ajudou. Então eu consegui um emprego lindo, maravilhoso, graças ao Brasil, atendente em uma loja de cabelos e eu aprendi bastante, conheci vários, vários, vários lugares, conheci várias gentes, entendeu? Fiz amizades novas, aí foi muito lugar, tipo, aprendi bastante em Brasil mesmo, hoje se eu sou o que sou, graças ao Brasil, tô repetindo de novo e eu fui guardando dinheiro, batalhando, batalhando, batalhando, batalhando e graças a Deus hoje eu estou aqui, no Estados Unidos, não foi fácil, mas o Brasil.... o Brasil.... sei lá, é um tudo. O Brasil é um tudo! (informação verbal)9

Assim como Ambriz e Tomboco, outros jovens refugiados e brasileiros em contexto de refúgio que participaram da pesquisa também expressaram vontade de viajar e morar nos Estados Unidos. A jovem Soio, 24 anos, filha de congoleses, nascida no Brasil, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, desde pequena sonhava em ser médica para morar nos EUA. Mas, sua vida foi muito difícil, segundo ela: “a gente pensa em ser uma coisa, daqui a pouco, vai lá na frente acontecem outras coisas. Mas temos que estar feliz (sic) porque estamos vivos, né?” Se referia ao fato de não ter conseguido dar continuidade aos estudos. Sem terminar o ensino médio, arrumou emprego de diarista e teve um filho. A situação piorou:

E o bolsa família que a gente recebe é 100 ou 150 reais, ainda bem que temos parentes fora, que ajuda. O Brasil já foi um país que você poderia chegar aqui e poder ajudar quem estava lá fora. (informação verbal)10

Sobre o que lhe atraía nos EUA, ela responde e idealiza: “eu gosto de tudo que tem lá, o estilo de música, os filmes, lá dá para viver e o governo ajuda".

Nesta narrativa de Soio, como em tantas outras, a escola aparece ligada aos desejos de realizações profissionais, financeiras e pessoais. Em contrapartida, jovens que estão fora da escola falam de suas dificuldades na vida atribuindo-as ao ciclo incompleto da formação.

Outro aspecto observado na pesquisa está relacionado com a circulação limitada pela cidade e o pouco contato com aparelhos públicos culturais, de diversão e entretenimento. No grupo pesquisado, o movimento pelo bairro e consequentemente pelo município era restrito a festas de ONGs, eventos, encontros na igreja católica onde recebiam cestas básicas e outros tipos de auxílio e ainda reuniões familiares com a participação majoritária de membros da comunidade africana.

As fotografias escolhidas para retratar a socialização e interação dos jovens com outros espaços além do escolar dão notícias sobre suas rotinas. Na fotografia da Figura 7: Foi na festa da ONG, muito bom!, a jovem Cabinda registrou evento comemorativo em 2019, quando uma ONG organizou festa do dia das crianças e convidou crianças da comunidade africana de Gramacho. As meninas disseram ter tido um dia especial. Brincaram, correram, dançaram e se divertiram muito. A fotografia da Figura 8: Entrega de cesta básica mostra a atividade com as crianças e adolescentes que integram o Encontro com Amigos Refugiados/Migrantes, organizado mensalmente pela ASPAS11, com o foco principal no mapeamento das famílias e entrega de cesta básica. Os voluntários ficam com o grupo de crianças promovendo atividades lúdicas. As crianças se conhecem e estudam juntas na mesma escola, conversam sobre os professores, comportamento dos outros alunos em relação a elas e sobre como se sentem acolhidas ou não pela escola.

Fonte: Fotografia de Jamba (filha de congolês, 15 anos), 2019.

Figura 7 Fotografia Foi na festa da ONG, muito bom! 

Fonte: Fotografia de Kwilu (filha de angolana,15 anos), 2019

Figura 8 Fotografia Entrega de cesta básica 

A fotografia da Figura 9: Sim, comemos comida africana! descreve uma rotina familiar. A jovem Jamba explica que, em casa, os pais e os filhos africanos falavam Lingala (língua Bantu falada no centro-sudoeste do continente africano, abrangendo Angola, República Democrática do Congo e República Popular do Congo), mas os menores que eram brasileiros não precisavam falar, mas ainda assim entendiam tudo. Nas festas e cultos religiosos realizados, também em casa, falavam a referida língua africana. Da mesma forma, o preparo de comidas típicas africanas integra as práticas de afirmação da identidade cultural. As fotografias das Figuras 10, 11 e 12 confirmam nossa percepção de que o grupo de imigrantes e refugiados, em seus momentos de socialização mais restrita, íntimos e familiares, estabelecem muito pouca interação com brasileiros. As fotografias produzidas pelos jovens sobre seus momentos de lazer e entretenimento são, em grande maioria, festas familiares e na Igreja Evangélica Assembleia de Deus Betesda Internacional, localizada no bairro de Brás de Pina, zona Norte do Rio de Janeiro, e cuja comunidade religiosa é constituída de africanos e seus descendentes.

Fonte: Fotografias de Jamba (filha de congolês, 15 anos), 2019.

Figura 9 Fotografia Sim, comemos comida do Congo africana! 

Figura 10 Fotografia São vídeos de comédia 

Fonte: Fotografias do próprio autor, 2020.

Figura 11 Fotografia da Igreja Evangélica 

Figura 12 Fotografia Chá de bebê de Assembleia de Deus Betesda Internacional Ambriz 

CONCLUSÃO

A pesquisa ampliou nossa compreensão sobre os modos de vida e o lugar que a escola ocupa na vida desses jovens de origem africana. São moças e rapazes, entre 15 e 19 anos, migrantes, refugiados, solicitantes de refúgio, filhos de africanos, estudantes e moradores do bairro de Gramacho, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Jovens que, ao compartilharem suas experiências e representações cotidianas, a partir de hábitos, costumes, entretenimentos e espaços de socialização, revelaram a existência de um espaço-tempo antropológico que denominamos contexto de refúgio.

A categoria contexto de refúgio surge no momento em que observamos a existência de jovens que mesmo com nacionalidades diferentes, brasileira e africanas (angolana ou congolesa), participam da mesma comunidade cultural africana em Gramacho, Duque de Caxias. Refugiados e migrantes que chegam ao Brasil vivenciam situações cotidianas similares aos seus familiares brasileiros e compartilham os mesmos códigos culturais nos ambientes e espaços que vivem cotidianamente e frequentam. E, muitas vezes, no espaço escolar são considerados, e não raras vezes de forma preconceituosa, como sendo todos africanos. Essa situação de homogeneização das diferenças, evidente no ambiente escolar, é desencadeadora de atitudes preconceituosas, racismo e xenofobia e outras formas de constrangimentos. Compreendemos que a escola pode ser elemento decisivo para a integração dos jovens na comunidade e nos outros espaços de socialização. É preciso, contudo, que a escola incorpore em seu Projeto Político Pedagógico e práticas cotidianas o olhar atento para esses sujeitos que chegam à instituição com suas marcas de origem e culturas próprias. O que observamos é que esses jovens enxergam na escola uma ancoragem para seus sonhos e propósitos de integração à cidadania nacional.

A presença desses jovens oriundos de contextos de refúgio desafia que o cotidiano escolar institua prática multicultural (CARRANO, 2008) que enxergue e coloque em diálogo as diferenças existentes entre seus estudantes. O reconhecimento das especificidades e demandas por suporte do universo migracional juvenil pode abrir para a escola campo significativo de enfrentamento das injustiças sociais e ausência de oportunidades que recaem sobre famílias de migrantes ou refugiados que, na comunidade investigada, representam universo populacional expressivo.

Para compreender o lugar que a escola ocupa na vida desses jovens e seus modos de vida, utilizamos a fotografia reflexiva como mediação. O recurso metodológico possibilitou escuta que revelou sonhos, expectativas, frustrações e experiências que perpassam vínculos estabelecidos com a instituição escolar. O uso da fotografia como dispositivo reflexivo aproxima o pesquisador dos sujeitos da pesquisa. Isso tornou-se evidente, em especial, naqueles momentos em que o exercício fotográfico e sua narração deixou mais leve o ato de relatar momentos considerados difíceis e traumáticos.

Há dupla face no contexto de migração ou refúgio. Os jovens buscam a integração, por isso apostam tanto na escolarização, e, ao mesmo tempo, cultivam a língua originária e a cultura de seus familiares para o fortalecimento dos vínculos com suas origens africanas. Percebemos no grupo de jovens integrantes da pesquisa o interesse em manter suas origens, suas lembranças, principalmente o uso da língua originária, que os conectam e ligam com o que ficou para trás na travessia e no deslocamento. Mesmo que isso os façam viver um sentimento de provisoriedade, a inconstância do lugar, a sensação do não pertencimento e o ímpeto de continuar migrando para encontrar o que procuram.

1A Orientadora Pedagógica em questão é Viviane Penso Magalhães, coautora deste artigo, e que desenvolve tese de doutorado sobre os temas de refúgio e migração africana no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

2Seguindo a sugestão de uma jovem participante, os nomes dos jovens colaboradores da pesquisa foram trocados por nomes de províncias, capitais ou municípios da República Democrática do Congo e Angola. A metodologia utilizada foi: encontrar um local com a mesma inicial do nome dos jovens em destaque.

3CABINDA. Entrevista 1. [out.2018]. Entrevistadora: Viviane Penso Magalhães. Duque de Caxias, 2017. Caderno de Campo.

4Idem nota 3.

5Idem nota 3.

6Fala do prof. Mohammed ElHajji no Seminário de Pesquisa Diaspotics: Migrações Transnacionais e Comunicação Intercultural, em 30 de março de 2021, Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ (PPGCOM/UFRJ).

7 Todos os títulos das figuras/imagens foram criados pelos autores e autoras das fotografias.

8Os jovens colaboradores da pesquisa foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa, suas implicações éticas, e autorizaram a publicização de suas fotografias. Da mesma forma, os responsáveis dos adolescentes menores de 18 anos também consentiram na participação e publicação das imagens.

9AMBRIZ. Entrevista 2. [fev.2021]. Entrevistadora: Viviane Penso Magalhães. Duque de Caxias, 2017. 1 arquivo mp3 (04 min.) A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Caderno de Campo.

10SOIO. Entrevista 3. [jul.2021]. Entrevistadora: Viviane Penso Magalhães. Duque de Caxias, 2017. 1 arquivo mp3 (37 min.) A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Caderno de Campo.

11ASPAS - Ação Social Papa Paulo VI, organismo diocesano de ação social da Diocese de Duque de Caxias, que exerce um protagonismo na vida dos imigrantes africanos que vivem em Duque de Caxias.

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Recebido: 1 de Março de 2022; Aceito: 1 de Abril de 2022

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