INTRODUÇÃO
Tanto historicamente, quanto na contemporaneidade, as mulheres negras, de ascendência africana, inserem-se nos mais variados contextos em âmbito local, estadual, nacional e mundial. Essas mulheres têm contribuído para a construção e a transformação da sociedade, como um todo, desde o período da escravidão, e, em Mato Grosso, não tem sido diferente. A participação delas faz presença em diversos campos que envolvem o tratamento primário da saúde das pessoas de suas comunidades, por meio de chás, garrafadas, rezas, benzimentos, simpatias, parturiências; no campo espiritual dos terreiros de umbanda e candomblé; no campo das produções de artesanatos, doces, bolos; no campo econômico com o trabalho na roça, com a venda de suas produções artesanais ou verduras cultivadas nos quintais; no trabalho remunerado que prestam como servidoras públicas, principalmente, como professoras e técnicas educacionais; no campo político, pois são as principais mobilizadoras de sua comunidade em torno de reivindicações por bens e melhorias.
Quase sempre são maioria do corpo político de suas Associações Quilombolas, com representatividade local, estadual, nacional e internacional. Além de serem majoritárias na composição do quadro funcional da escola. Cabe ressaltar que a escola, no mais das vezes, é a única instituição formal do Estado presente na comunidade. Ou seja, é o único espaço de emprego formal, com remuneração fixa, o que as tornam arrimo econômico das suas famílias. São as professoras também as principais lideranças dos movimentos sociais organizados quilombolas, tais como representantes regionais do Conselho Nacional, representantes dos Conselhos Estaduais e Locais Quilombolas.
No entanto, apesar da importância da representatividade política, social, econômica, cultural delas, de suas contribuições históricas, para as suas comunidades e para a sociedade, em geral, as mulheres negras quilombolas enfrentam vários desafios emanados ainda em razão da cor de sua pele e do legado, advindo da arbitrariedade colonial classista, racista e patriarcal. Esse conjunto de construção omitiu/omite a força de suas ações e a importância de seus saberes-fazeres, seja nos livros de história, nos currículos escolares ativos, seja em outros referenciais; além de que artificiosamente se esforçam para mantê-las em situação de desigualdade e exclusão. Tais fatos impactam muito fortemente na história de vida delas. É preciso reunir forças quase sobrenaturais para alçarem voos até o céu do reconhecimento pessoal, político e profissional.
Diante disso, elaboramos algumas questões orientativas para este texto: Quais as raízes da invisibilidade das mulheres negras quilombolas? Como as mulheres negras quilombolas têm reagido ao racismo, patriarcalismo e exclusões que permeiam suas existências e as existências da sua comunidade? Como se dá o impacto da colonialidade do poder, do saber, do ser e de gênero, na vida das mulheres negras, rurais e quilombolas? Quais estratégias as três professoras, ouvidas nesta pesquisa, utilizaram ou utilizam para driblar os seus efeitos?
Nesse contexto, este artigo busca contribuir para desocultar o protagonismo de três mulheres negras quilombolas do Território Quilombola Vão Grande, do município de Barra do Bugres, interior do Estado de Mato Grosso. Essas mulheres foram escolhidas, em razão das experiências de vida delas, serem representativas de muitas outras. Elas fazem parte da escola que também é parceira do Grupo de Pesquisa em Educação Quilombola, da Universidade Federal de Mato Grosso (Gepeq/UFMT).
Em suma, o objetivo principal deste artigo é dar relevância às histórias de vida, aos saberes-fazeres, aos embates e superações vivenciados por essas três mulheres negras, rurais e quilombolas, professoras e militantes integrantes do corpo educador da Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento, situada no território quilombola Vão Grande/MT. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, cujo principal instrumento para geração de dados foram as entrevistas realizadas no dia 14 de abril de 2022 e a observação in loco, durante os anos de 2014 a 2022, para fins de elaboração de dissertação de mestrado, e posteriormente, de tese de doutorado, na Escola José Mariano Bento, localizada na Comunidade Baixio.
O texto está organizado em cinco partes. Na primeira, esta introdução, apresentamos a problematização que mobiliza a escrita do artigo, as perguntas de pesquisa, os objetivos, o recorte pesquisado e o método utilizado na obtenção dos dados. Na segunda parte, delineamos as principais construções teóricas decoloniais que abarcam conceitos gerais e específicos sobre a colonialidade de gênero, e as lutas feministas negras; na terceira, descrevemos brevemente a história dos quilombos brasileiros, o conceito de quilombo e descrição da comunidade que acolhe as entrevistadas; na quarta parte, trazemos as vozes das entrevistadas narrando suas biografias, bem como as análises, e, na quinta e última parte, apresentamos as considerações do que foi tratado no texto como um todo.
A DECOLONIALIDADE EM DIREÇÃO AO FEMINISMO NEGRO
Não há como abordarmos a trajetória de vida de mulheres negras, rurais e quilombolas sem mencionarmos o processo de colonização/escravidão como a mais dura e cruel experiência vivida pelos povos colonizados, seja no Brasil, seja em outras partes do mundo, onde ocorreu. Isto porque a raça/cor foi o principal pilar de sustentação dessa política. Mbembe (2011) descreve bem esse processo, do ponto de vista africano, povos violentados na origem. No dizer do autor, primeiro o colono inventou o colonizado; e, segundo, investiu na desconstrução da essencialidade humana dele, transformando-o em uma coisa, no limite, um ser menor em perpétuo devir. “Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele ou de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americano fizeram do negro e da raça duas versões de uma única figura” (MBEMBE, 2011, p.188).
Nas colônias, de modo geral, e, no Brasil, de modo particular, os efeitos dos processos vividos em países africanos foram para cá estendidos, por meio da escravização e continuam sendo sentidos e vividos contemporaneamente pela continuidade de formas de dominação, mesmo após o fim das administrações coloniais. Isso demonstra que as estruturas de poder e subordinação da colonização passaram a ser reproduzidas pelos mecanismos do sistema-mundo capitalista colonial-moderno. A esse processo Quijano (2005) chamou de colonialidade, compreendido como algo que transcende as particularidades do colonialismo histórico e que não desaparece com a independência ou descolonização. Para autores decoloniais, tal como Quijano (2010), a colonialidade pode ser compreendida por três dimensões interdependentes: a colonialidade do poder, do ser e do saber.
Quijano (2005) define colonialidade do poder como um modelo de poder capitalista, que se sustenta na imposição de uma classificação racial/étnica do mundo; no controle do trabalho e de seus produtos; no controle do sexo e de seus produtos e na imposição do conhecimento eurocentrado, em relação ao ocidente e suas colônias (QUIJANO, 2010). Já colonialidade do ser: “[...] emerge quando o poder e pensamento, as subjetividades, se tornam mecanismos de exclusão, ou alienação” (MALDONADO-TORRES, 2010, p. 416). Enquanto a colonialidade do saber, diz respeito ao legado epistemológico do eurocentrismo que é imposto como universal, e ao mesmo tempo, suprime, nega ou inferioriza os saberes e fazeres de outros povos, o “[...] que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias” (PORTO-GONÇALVES, 2005, p.34).
Lugones (2014) parte do conceito de colonialidade do poder de Quijano (2010), ao mesmo tempo em que lhe tece críticas considerando que esse autor não percebe que as mulheres colonizadas, não-brancas, viveram particularidades das violências coloniais, portanto a epistemologia decolonial precisa considerá-las. A partir de então, elabora o conceito de colonialidade de gênero que consiste em compreender a interseccionalidade entre raça, gênero e colonialidade, imprescindíveis para compreender o entrelaçamento de condições que as fizeram/fazem sofrer outras formas de violência, opressão e dominação, desde a escravização colonial até os dias atuais. Conforme a autora, falar de colonialidade de gênero é decretar uma crítica à opressão de gênero racializada, patriarcal, colonial, capitalista e heterossexualizada, visando uma transformação vivida do social. Nas palavras da autora (2014, p. 9):
Somente ao perceber gênero e raça como tramados ou fundidos indissoluvelmente, podemos realmente ver as mulheres de cor. Isso significa que o termo mulher, em si, sem especificação dessa fusão, não tem sentido ou tem um sentido racista, já que a lógica categorial historicamente seleciona somente o grupo dominante – as mulheres burguesas brancas heterossexuais – e, portanto, esconde a brutalização, o abuso, a desumanização que a colonialidade de gênero implica.
A colonialidade de gênero privilegiaria e universalizaria práticas orientadas para a invisibilidade da mulher negra, por meio do machismo, do patriarcalismo e dos racismos estruturais, que se expressam nos mais variados contextos sociais, tais como, o impedimento da participação dela em esferas públicas privilegiadas: educação escolar, trabalho de maior status social e renda, espaço de poder político, e liderança, entre outros. O que leva a necessidade de se reorientar e potencializar os debates sobre o feminismo negro, de modo holístico.
É importante mencionarmos que foi sobre o pilar da resistência que as mulheres negras, brasileiras, foram forjadas, desde os primeiros momentos históricos em que aportaram à estas terras, depois de sequestradas no continente Africano, no século XVI. Embora quase nenhum estudo sobre escravidão deu visibilidade aos feitos delas, encontramos apenas fragmentos de escritos da história crítica, os quais dão conta de que não houve passividade ou entrega resignada por parte de mulheres, nem aos abusos sexuais, nem ao trabalho forçado, e nem a quaisquer outras violências. A existência de lideranças femininas na organização e gestão de quilombos, muito frequentes, nos séculos XVII, XVIII e XIX, reforçam tais afirmações. Sejam exemplos Dandara (companheira de Zumbi) e Aqualtune liderança que precedeu Zumbi, no Quilombo de Palmares, desde o século XVII; Tereza de Benguela, liderança do Quilombo do Quariterê/MT, no Século XVIII; além das que estiveram à frente de movimentos abolicionistas, a exemplo de Luiza Mahin que liderou a revolta dos Malês/Bahia, na primeira metade do século XIX, além de muitas outras, que ainda continuam ocultadas pela colonialidade do saber.
Desse modo, muito antes das mulheres brancas e urbanas iniciarem suas mobilizações nas cidades, também justas, as mulheres negras já estavam em ação, tanto no mundo rural quanto no urbano. Porém, seus feitos foram invisibilizados, tanto pelo movimento feminista das mulheres brancas, quanto pelos registros históricos. Desse modo, somente no século XIX, no contexto da Revolução Francesa, as primeiras mobilizações feministas brancas foram articuladas de forma mais sistemática, contra a ordem conservadora que as excluíam do mundo público, portanto, dos direitos como cidadãs (PINTO, 2003).
No entanto, no Brasil, essa luta ainda estava sendo mobilizada por mulheres brancas para atender ao grupo feminino branco, que, à época, tinha, na figura da ativista Bertha Lutz (1894–1976), a mais importante liderança. O movimento tinha como objetivo principal de luta, reivindicar a “[...] incorporação da mulher como sujeito portador de direitos políticos” (PINTO, 2003, p. 14). Nessas manifestações, a mulher negra não encontrou espaço e voz para se fazer representar, embora existam registros do esforço de Bertha Lutz de inserir a questão racial nos debates, conforme matéria publicada em 14 de dezembro de 1918, no Rio de Janeiro, assinada pela ativista, na Revista da Semana, abaixo transcrita:
As mulheres morenas: ‘As mulheres russas, finlandesas, dinamarquesas e inglesas – quer dizer, uns 120 milhões na velha Europa, já partilham ou brevemente partilharão do governo, não só construindo com o voto como podendo ser elas próprias eleitas para o exercício do Poder Legislativo. [...] Só as mulheres morenas continuam, não direi cativas, mas subalternas. [...] Todos os dias se lêem nos jornais e nas revistas do Rio apreciações deprimentes sobre a mulher. Não há, talvez, cidade no mundo onde menos se respeite a mulher. Existem até seções de jornais que se dedicam a corrompê-la ou a injuriá-la.’
Mesmo assim, as mulheres mencionadas são as morenas, as negras retintas, provavelmente não foram ouvidas e nem puderam dizer suas reivindicações e lutar nesse coletivo pelos seus direitos, embora se saiba de suas ações, nos quilombos, nos terreiros de candomblé, nas quitandas, entre outras. Entretanto, essas ações estão registradas apenas tangencialmente em algumas literaturas. Nesse sentido, Sueli Carneiro (2004) já sinalizava que as experiências vivenciadas pelas mulheres negras se mostravam/mostram distintas ao que se (re)produziu no discurso clássico sobre colonização e, até mesmo, sobre a opressão contra a mulher, de forma que as reivindicações feitas pelas mulheres brancas (que também foram/são oprimidas) não podem servir para refletir sobre as questões das mulheres negras e, no presente caso, nem quilombolas. Esse entendimento encontra respaldo também em Gonzalez (1984), a qual destaca que as mulheres negras escravizadas eram colocadas nas casas grandes, visando amenizar e facilitar a vida das mulheres brancas, de modo que foi dessa relação colonial que se fixaram os modos de (não) ver e (des)tratar as mulheres negras até os presentes dias.
Angela Davis (2013) destaca que, desde o período da escravidão, a forma como a mulher negra foi (des)tratada levou ao apagamento da sua existência, mantendo-a tão somente como uma figura subalterna. Para Spivak (2014, p. 82), essa subalternidade da mulher negra traduz “[..]uma recusa ideológica coletiva”, de forma que a sua imagem, a partir desse contexto de subalternidade, foi forjada e usada como objeto para balizar os discursos teóricos coloniais. No entanto, a partir das discussões decoloniais, é que, segundo essa mesma autora, a mulher negra inicia conquistar a audição, e fazer conhecido, mesmo que em fragmentos, seu poder de fala, rompendo pelo menos, em termos, com a violência epistêmica, e aparece no cenário literário, antropológico, sociológico, histórico e educacional, demonstrando seus protagonismos e heroísmo, suas histórias sufocadas, mas também denunciando os colonialismos vigentes.
Observamos que a desocultação da mulher negra, ou da mulher negra e quilombola, no cenário das pesquisas e escrituras acadêmicas, está muito relacionado aos investimentos intelectuais de outras mulheres negras, que com elas solidarizam e compartilham uma história comum, sejam exemplos: bell hooks, Carole Boyce Davies, Djamila Ribeiro, Françoise Vergès, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, Matilde Ribeiro, Sueli Carneiro e Patrícia Hill Collins, e as autoras que aqui escrevem, entre outras.
Grandiosa foi a contribuição de Lélia Gonzalez, por exemplo, pesquisadora negra, militante que potencializou, no meio acadêmico e científico, as problematizações questionadoras das hierarquias de gênero estruturantes e excludentes. Despertou para a importância de descortinar as desigualdades de modo que ultrapassem as barreiras que mantém as mulheres negras e quilombolas invisíveis, inferiorizadas em relação a homens e mulheres brancos, pois muitas são as forças que parecem querer mantê-las em um lugar de subalternidade, apontou Gonzalez (1984, p. 11):
Acontece que a mucama permitida, a empregada doméstica, só faz cutucar a culpabilidade branca porque ela continua sendo a mucama com todas as letras. Por isso ela é violentada e concretamente reprimida. Os exemplos não faltam nesse sentido; se a gente articular divisão racial e sexual de trabalho fica até simples. Por que será que ela só desempenha atividades que não implicam em lidar com o público? Ou seja, em atividades onde não pode ser vista? Por que os anúncios de emprego falam tanto em boa aparência? Por que será que, nas casas das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente copeira? Por que é natural que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais, etc. e tal?
A importância dos estudos que levam em consideração a colonialidade de gênero é revigorada pela opção decolonial por possibilitar uma crítica radical à estética moderna e pósmoderna e contribui para tornar visíveis as subjetividades decorrentes das práticas coloniais, patriarcais e racistas enraizadas na sociedade até os dias atuais. Necessário se faz encontrarmos meios de ressignificar a história da mulher negra, por meios de práticas que registrem, ampliem e potencializem suas raízes culturais, identificando suas tradições, seus saberes e seus fazeres, suas lutas e seus protagonismos como um meio de valorar e ressignificar a sua história e evidenciar os valores e as vozes delas como corpo político e histórico.
É relevante, também, a construção de Lugones (2008) ao considerar, em seus estudos, a condição da mulher não-branca, pelo prisma da interseccionalidade, ao compreender que existe íntima conexão entre gênero, raça, classe social e colonialismo, e adverte que, se os estudos não levarem em conta esse conjunto de sobredeterminação, não se terá acesso às reais violências sofridas por essas mulheres, pois colonialidade de gênero é não somente “[..]hierárquica, mas, racialmente diferenciado, e a diferenciação racial nega humanidade e, portanto, gênero às colonizadas” (LUGONES, 2014, p. 942). Desse modo, a construção social da identidade da mulher negra é sobreposta pelos elementos dessas múltiplas colonialidades.
Neste artigo, buscamos ouvir as vozes de mulheres negras, rurais e quilombolas, as quais carregam o peso dessa soma, aliada ainda às condições geográficas de habitação e atuação, a ruralidade, o que eleva mais ainda o rol de exclusões sofridas, por serem mulheres, negras, quilombolas e rurais. A relevância de suas biografias e audiência de suas vozes, promovem também a visibilidade das lutas travadas cotidianamente nas conquistas dos seus territórios, por uma educação que atenda aos sonhos e projetos das famílias, pelo acesso aos bens, direitos e melhorias para suas comunidades, enfim pelo benviver.
COMUNIDADE NEGRA RURAL QUILOMBOLA VÃO GRANDE: CONTEXTO DE EXPERIÊNCIAS DAS MULHERES
Os quilombos foram, incontestavelmente, a unidade básica de resistência da população escravizada, no Brasil. As pesquisas do historiador Clóvis Moura o levaram a afirmar que “[..]onde quer que o trabalho escravo se estratificasse, ali estava o quilombo, o mocambo de negros fugidos, oferecendo resistência, lutando. Desgastando as forças produtivas” (MOURA, 1988, p.104). Não era uma manifestação tópica, mas generalizada em toda a geografia brasileira, onde havia escravidão, e mesmo após.
É importante lembrar que a abolição formal da escravatura, de 1888, não foi um evento favorável à população negra escravizada ou liberta, pelo contrário, jogaram todo o ônus nas costas deles/as. Os quilombos urbanos e rurais existentes continuaram sendo o lugar de abrigo e solidariedade, além de que tal evento propiciou a formação de novos quilombos, dessa vez, como espaço de fuga de outras exclusões, e como espaço de lutas por dignidade humana. Apesar disso, tais (re)existências foram apagadas da maior parte das literaturas e dos debates políticos, públicos e acadêmicos.
As lutas destes povos ganharam relevância pública somente no contexto da elaboração da Constituição Federativa do Brasil, de 1988. Quando os movimentos sociais que os representam, e dos quais são constitutivos, iniciaram a luta por fazer garantir, na legislação, o direito pelos territórios que haviam conquistados no período escravocrata, e após ele, seja por meio de compra, de troca, de doação, de ocupação de terra doados à santos ou seja por meio de ocupação de terras devolutas. Após acirrados debates foram aprovados dois artigos na Constituição Federal, que garantiram o direito ao território. Outros embates, no campo acadêmico iniciam, nos campos, Jurídico, Antropológico e Histórico, principalmente, com intuito de elaborar um conceito de quilombo que tornasse possível categorizá-lo e identificá-lo, como se apresentam, contemporaneamente para que o direito fosse aplicado, nos termos da Lei. A questão é que até esse período o conceito de quilombo, que estava em voga, referia-se a negros fugidos, habitando lugares distantes, com ou sem moradia construída, com ou sem objetos que indicassem produção da sobrevivência (pilão).
O fato é que os quilombos contemporâneos ocupam lugares tanto rurais, quanto urbanos, estão localizados em lugares de difícil acesso, mas também ocupam lugares fronteiriços entre campo e cidade, e nas regiões urbanas. Foram formados por diversas estratégias como já mencionamos. Desse modo, o conceito de quilombo passou por sucessivas ressemantizações, foi oficializado pela Associação Brasileira de Antropologia, conforme consta no Decreto 4887/2003, como sendo grupos étnicos-raciais, definidos “Segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Castilho (2008; 2011) afirma que os quilombos contemporâneos preservam o mesmo espírito de luta, pautado nos direitos jurídicos, políticos e se organizam em torno de pautas de uma identidade histórica comum, emergindo como resposta às situações de conflito e de confronto com grupos sociais, econômicos e agências governamentais; reivindicam bens, direitos, sobretudo legalização do território que ocupam e um lugar digno na sociedade que lhes fora negado ao longo da história. Assegurar esses direitos implica o reconhecimento da identidade, das diferenças raciais, históricas e culturais do grupo.
Esse esperançar também se presentifica por toda parte no território brasileiro que, segundo os dados da Fundação Cultural Palmares, conta com a existência de aproximadamente 3.495 Comunidades Quilombolas, das quais 2.839 estão certificadas pela Fundação, e as demais estão em processo de certificação, segundo os registros dessa Fundação. No entanto, um levantamento prévio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2019), para fins de recenseamento previsto para 2022, sobre os territórios Quilombolas estimou que, em 2019, existiam 5.972 localidades quilombolas no Brasil. Já o levantamento realizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) estima a existência de aproximadamente 6.500 comunidades. A inconsistências de tais quantitativos está relacionado ao fato de essas comunidades ainda não terem sido objeto de estatística específica pelo IBGE, impasse que pretende ser resolvido neste ano, 2022, com o primeiro recenseamento específico dessas comunidades.
O Estado de Mato Grosso, por sua vez, possui 141 municípios, organizados em 05 mesorregiões, quatro delas abrigam comunidades quilombolas: Nordeste, Sudeste, Centro Sul e Sudoeste. Desse modo, 12 municípios contam com a presença de comunidades quilombolas. De acordo com os dados da Fundação Cultural Palmares, há 78 comunidades quilombolas identificadas no Estado, das quais sete estão em processos de reconhecimento e 71 comunidades estão certificadas, aguardando a emissão do título definitivo de propriedade das terras.
As lutas e sonhos que alimentam e instigam o povo quilombola também se presentifica no Território Quilombola Vão Grande, lócus da pesquisa. As comunidades estão localizadas na área rural do município de Barra do Bugre, distante 75 quilômetros da sede do município e 240 quilômetros de Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso. É um complexo constituído por cinco Comunidades Quilombolas, quais sejam: Baixio, Morro Redondo, Camarinha, Vaca Morta e Retiro. Conforme dados estatísticos da Secretaria de Planejamento do Estado de Mato Grosso (Seplan/MT, 2020), a região conta com aproximadamente 200 famílias, descendentes dos primeiros habitantes da região.
A formação do Território Quilombola Vão Grande data de mais de dois séculos. Quando os primeiros moradores ocuparam a região, e seus descendentes desde então habitam o lugar. A memória coletiva da comunidade indica a presença do negro Silva Velho, como primeiro morador da região de Vão Grande, dele descendem os demais moradores (CARVALHO, CASTILHO, 2017).
O Território está localizado em uma área que se diferencia das adjacentes. É relativamente fisicamente isolado. As serras, os vãos, os rios, as grutas, os morros se juntam e se moldam orquestrando e moldando o ninho que abriga as famílias quilombolas vão-grandenses, que lhes daria/dão acolhimento e condições de viver e alimentar seus descendentes. As famílias protegem a ambiência e estabelecem com ela uma relação de cuidado, de respeito, de benviver, numa propositura desconhecida ao colonizador e à colonialidade-moderna.
A principal fonte de subsistência dos/as moradores\as vem da agricultura e da pequena pecuária para o autoconsumo, e o plantio da banana é o mais utilizado. A comercialização do excedente é realizada no município de Barra do Bugres, mas os produtores enfrentam muitos desafios para a comercialização devido, principalmente, às condições de trafegabilidade das estradas, as quais também impedem o acesso dos estudantes à escola, principalmente em tempos chuvosos (CARVALHO, 2016).
A escolarização sempre foi uma das principais bandeiras de luta dos/as moradores/as de Vão Grande, os quais, desde tempos remotos, lutam pelo acesso de suas crianças à leitura e à escrita. No entanto, a luta das mulheres quilombolas vai além dos muros da escola e alcançam todas as preocupações da Comunidade. Historicamente, lutam pelo título definitivo da Terra. Outra peleja de grande relevo dos/as moradores/as do Território é pelo impedimento da instalação de uma hidrelétrica nas águas do Rio Jauquara, que abastece as comunidades e tem valor imensurável para o povo Vão-grandense. Também é preciso falarmos da luta pela construção de uma ponte sobre esse Rio para que possibilite aos moradores o acesso à sede do município, haja vista que, desde que a ponte de madeira foi levada pelas águas, no ano de 2014, os moradores ficaram ilhados e dependem das baixas da água do Rio para poderem atravessá-lo. Sem mencionarmos as lutas diárias por saúde, educação escolar de qualidade, moradia, acesso à internet, saneamento básico, meios de transportes escolares adequados, dentre outras pautas. A participação das mulheres é decisiva nesses enfrentamentos.
AS EXPERIÊNCIAS DE TRÊS MULHERES DO TERRITÓRIO QUILOMBOLA VÃO GRANDE/BARRA DO BUGRES (MT)
A escolha pelo local de pesquisa se deu devido a nossa inserção nessa comunidade para fins de pesquisa, por meio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Quilombola/UFMT para fins de estudo em nível de mestrado e doutorado. Nesse recorte, selecionamos a história de vida de três (03) professoras, por serem representativas da resistência das inúmeras mulheres quilombolas, tanto de Mato Grosso, quanto do Brasil. Acreditamos também que as estratégias de superação, que articulam para alcançarem espaços de atuação política, social e pedagógica, podem inspirar outras muitas mulheres. Ademais é um meio de dar audiência às vozes dessas mulheres, que, mesmo em contextos agonísticos, conseguiram/conseguem superar as barreiras raciais históricas impostas pela colonialidade do poder, do saber, do ser e de gênero.
A primeira mulher se chama Neide Domingas Bento, cursou Pedagogia, especializou-se em Educação Inclusiva, ambas em instituições privadas. Participa da Associação dos moradores da Comunidade Quilombola Baixio, uma das cinco comunidades do Território. Participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Quilombola/GEPEQ-UFMT. É membra do Núcleo de Educação e Diversidade-NEED/UNEMAT; também é membra do Coletivo da Terra, um movimento social que reúne educandos/as e educadores/as de escolas do campo, indígenas e quilombolas, para fins de estudos e lutas sociais. Neide tem 46 anos, declara-se mulher negra e quilombola, nascida e criada no Território Quilombola Vão Grande. É professora na escola da Comunidade. É casada, tem dois filhos e duas netas.
A segunda mulher é Maria Lourenço Davina da Costa; cursou Pedagogia, especializou-se em Psicopedagogia Clínica e Institucional, ambas em instituições privadas. Participa do Comitê Popular do Rio Jauquara, uma iniciativa que busca defender o Rio da instalação de uma usina hidrelétrica. Ela participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Quilombola/GEPEQ-UFMT. É Membra do Núcleo de Educação e Diversidade-NEED/UNEMAT; também é membra do Coletivo da Terra. A professora tem 44 anos de idade. Ela afirma que é negra e quilombola, e é nascida e criada em Vão Grande. É mãe de três filhos, separada.
A terceira mulher é Maria Helena Tavares Dias; cursou graduação em Pedagogia; fez Mestrado em Educação, pela Universidade Federal de Mato Grosso; é Militante, professora, palestrante e pesquisadora. Ela também é Membra provisória da Coordenação Executiva das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso. É Coordenadora Estadual das Comunidades Negras Rurais Quilombolas/CONAQ. Participa como suplente no Conselho das Ações Afirmativas da UFMT e atua na Associação de Moradores da Comunidade Quilombola Camarinha, uma das cinco comunidades que integra o Território Quilombola Vão Grande. Participa do Comitê Popular do Rio Jauquara e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Quilombola/GEPEQ-UFMT. É Membra do Núcleo de Educação e Diversidade-NEED/UNEMAT; membra do Coletivo da Terra. Atua como pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação/Nepre-UFMT. A professora tem 50 anos de idade, e se considera mulher negra e quilombola. É viúva, tem duas filhas e seis netos.
Como podemos perceber em suas biografias, as três mulheres têm inserções em diversos campos de militâncias sociais, educacionais, políticas e acadêmicas, na busca de fazer valer seus direitos, e dos coletivos dos quais fazem parte. A pauta comum que compartilham é a luta antirracista. São muitos os enfrentamentos vividos por elas, como poderemos conferir em suas narrativas.
Iniciamos a entrevista com perguntas relacionadas ao percurso escolar, as respostas descortinam as tantas agruras vivenciadas, nesse processo. A pobreza, a ausência de escola no quilombo, ou próximo à residência, são situações que dificultam o acesso, ou acesso na idade certa e permanência das estudantes quilombolas na escola. A mochila improvisada com uma sacola de arroz ou açúcar é simbólico das muitas carências vividas por muitas negras e negros quilombolas, na trajetória escolar:
[...] eu já tinha uns 12 anos de idade quando eu comecei a escola pela primeira vez. Eu nunca tinha frequentado a escola. Nunca tinha tido contato com a escola. Foi quando veio uma professora para dar aula. Eu não sabia ler, nem escrever. A escola era do outro lado do Rio Jauquara, a gente tinha que atravessar o Rio a nado. Eu lembro que a prefeitura deu um caderno pequeno e a gente colocava na sacola de açúcar ou na sacola de arroz, era a nossa mochila naquele tempo, (Neide Bento, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Estudei o primeiro e o segundo ano [...] então parei de estudar, não me lembro muito bem quanto tempo eu fiquei sem estudar, (Maria Lourença, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Esgotadas as possibilidades de estudos na Comunidade, uma vez que naquele tempo a escola oferecia aulas somente até à quarta série, algumas famílias enviavam seus/suas filhos/as para os centros urbanos, com a expectativa de que continuassem estudando. No entanto, no mais das vezes, esse sonho dificilmente se realizava, as famílias que as recebiam, submetiam-nas ao trabalho forçado, muitas vezes inadequado à idade e estrutura física da criança (CASTILHO, 2011). Desse modo, o que as aguardavam/aguardam na cidade é apenas solidão, sofrimento e violências, não raro são estupradas pelos membros dessa família, felizmente esse último não foi o caso das professoras. Vejamos o que elas dizem:
Foi quando surgiu a possibilidade de eu ir trabalhar de babá em Cuiabá, eu tinha uns 14 anos, trabalhei um tempo de babá e depois arrumei emprego de doméstica, fui trabalhando, trabalhando e nesse vai e vem de trabalhos eu sempre tive vontade de estudar, de continuar estudando. Mas não conseguia. Nunca deu certo. Eu nunca conseguia, parecia que esse dia nunca ia chegar. A gente sai da comunidade para trabalhar e estudar, mas quando chega lá fora é só trabalhar mesmo, (Neide Bento, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Neste período de tempo fui embora para Cuiabá, trabalhei com minha tia, trabalhei como empregada doméstica, larguei a família aqui na comunidade e fui para lá. Por lá, me envolvi com o pai dos meus filhos, casei. Mas ele não me deixava estudar, (Maria Lourença, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Após concluírem o Ensino Médio, elas enfrentavam um obstáculo ainda maior: ingressarem na faculdade. São raros os casos de mulheres que conseguiram acessar o ensino superior, no Território, de modo que, para elas, representa uma grande conquista, porque muitas barreiras tiveram que ser superadas, conforme elas mesmas falam:
Eu já trabalhava na escola mexia com as crianças. Eu pensava que é bom ter pessoas daqui mesmo como professora. Foi nesse momento que eu coloquei na cabeça que eu ia terminar, que eu ia fazer uma faculdade, porque era meu sonho fazer uma faculdade e ajudar os outros da comunidade para não passarem tudo que eu passei, (Maria Lourença, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Para nós, o acesso ao Núcleo [faculdade] era um desafio, porque nenhuma de nós três tínhamos transporte nessa época. Então nós dependíamos de carona, dependíamos da ajuda de alguém para sair da comunidade e chegar no Polo. No dia de estar no Polo, em Barra do Bugres, nós tínhamos que ir de qualquer jeito, porque não podíamos ficar atrasadas, senão a gente podia não concluir a graduação. Na época as minhas meninas, minhas filhas, eram bem pequenas ainda, uma com 6 e a outra com 7 anos. Eu tinha que ir e deixar elas, era uma grande preocupação, a gente está no espaço do Campo, aqui é tranquilo, mas tem animais peçonhentos, tem outros animais também que poderiam atacar, a gente não sabe quem pode passar na estrada. Deixar elas era uma dificuldade bem grande para mim, porque eu não conseguia me concentrar nos estudos pensando nas minhas filhas que ficaram em casa. Tinha que deixar porque a gente ia de carona, não tinha como levar. A rotina do estudo a distância também era nova.
No Ensino Médio era bem diferente da graduação. Sem contar que além de estudar a gente trabalhava fora, não podíamos nos dedicar só ao estudo (Maria Helena, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Ao acessarem a universidade, novos desafios se apresentaram: permanecer no curso. O alto custo para cursar a faculdade, na maioria dos casos, privada, e ainda arcarem com as despesas com o deslocamento, a alimentação, a internet, vestimentas e calçados etc. as obrigam a sacrificarem os poucos recursos familiares:
O novo dono me chamou lá e me disse que não podia me dar a bolsa, que ele não podia fazer caridade, que se fizesse pra mim tinha que fazer para os outros. Então eu falei assim para o novo dono: eu sei que o senhor não sabe nada da minha vida, que o senhor não me conhece. Mas eu sei que eu tenho direito de fazer o FIES porque eu sou baixa renda, então eu quero fazer o FIES. Ele ficou pensando e disse que ia se informar. Passou uns dias ele me chamou e disse que tinha feito as consultas e ele não podia dar a bolsa integral, mas que daria 50% da bolsa. Os outros cinquenta por cento ainda ficavam 200 reais, e eu não tinha como pagar os duzentos reais. Eu não tinha mesmo onde tirar, e eu não podia parar de estudar. Então eu fui lá de novo. E eu disse: eu não tenho como pagar os duzentos reais, então eu quero financiar aqui pela faculdade, se vocês não podem fazer o FIES, então faça um financiamento comigo e quando eu terminar a faculdade eu começo a trabalhar de professora e eu pago, (Neide Bento, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Nós tínhamos muitas dificuldades, tínhamos mais gastos, com a distância, com o almoço, a gente retornava mais tarde para casa, nossa luta era bem maior em relação às outras acadêmicas, a gente sempre estava em desvantagem, mas isso nunca nos desanimou, muito pelo contrário, hoje a gente percebe que toda essa essa dificuldade serviu para nos fortalecer, porque foi através dessa formação, dessa formação intelectual e humana que hoje eu já tomei gosto pela leitura, (Maria Helena).
Quando eu iniciei minha faculdade em 2016, minha trajetória foi muito difícil. No começo tinha o ônibus que trazia e levava os professores, isso me ajudava, eu ia para a cidade com eles, no ônibus, para fazer as provas, assistir as aulas, e depois voltava com eles, no dia seguinte pela manhã, bem de madrugada. Era difícil, mas era bom pois eu ia e vinha com eles, depois ficou muito pior, pois tiraram o ônibus que transportava os professores e eles tinham que ficar a semana toda aqui e eu não tinha mais como ir fazer faculdade[...] A luta da internet aqui na comunidade tendo que deslocar até três vezes na semana para Barra para fazer prova online, isso foi o maior desafio para mim ter que ir até três vezes na semana para não perder prova online muitas coisas para a gente fazer. Aqui não tinha internet, agora melhorou depois que eu coloquei a internet aqui em casa. Também a chuva, ir e vir na chuva, de moto. Hoje eu penso como que eu consegui, mas pela misericórdia de Deus eu estou aqui. (Maria Lourença, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
A luta pelos direitos individuais se mistura e se soma à luta pelos direitos coletivos. A professora Maria Helena é uma das lideranças da Comunidade que atua na luta pelos direitos do Território. Ela fala sobre a luta pela implantação da escola quilombola, para que atendesse às especificidades dos estudantes das comunidades:
Quando descobrimos que a nossa escola poderia ser uma escola quilombola e assim nossos alunos do Ensino Médio não iriam mais sair da comunidade, fomos logo atrás. Eu, Lucimara e Dinalva reunimos as comunidades e os presidentes das Associações, explicamos que teria mais merenda, mais vagas, mais recursos, mais formações para os professores ficarem mais preparados, tudo isso na escola, na nossa escola! [...] Todas as vezes que a gente ia na secretaria, como professora, a gente sempre falava, tentava explicar para eles, que a realidade aqui era diferente. Eles diziam diferente porque? e a gente falava: é diferente porque nós não temos acesso aos mesmos direitos, nossos alunos não são incluídos, igual os outros são. Então nós queremos que vocês façam alguma coisa, que vocês pensem para uma realidade que não é essa realidade da cidade mas a realidade do campo, onde falta Estrada, o ônibus quebra o tempo todo; a distância da escola, pensem que eles precisam se alimentar, principalmente na escola, porque às vezes em casa não tem suficiente, pensem o contexto que eles vivem. (Maria Helena Dias, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
As lutas femininas vão para além da escola e alcançam todos os aspectos da Comunidade, como é o caso da luta pelo impedimento da construção de uma hidrelétrica nas águas do Rio Jauquara, situação que mobilizou as Comunidades de Vão Grande e a escola. As professoras participam do Comitê Popular do Rio Jauquara que tem desenvolvido várias frentes de luta, inclusive elegendo um dia para o Rio, quando são realizadas apresentações dos trabalhos desenvolvidos na escola, celebrações religiosas que contam com ladainhas, procissões, e apresentações culturais como danças e cantos de Siriri e Cururu. As professoras foram enfáticas ao falar sobre isso:
O Rio Jauquara é também a nossa vida, nós precisamos dele e ele sempre cuidou de nós, nós também temos que cuidar dele. Por isso estamos fazendo de tudo para impedir essa PCH aqui. (Neide Bento, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Este Rio é um símbolo para todos nós, o Rio é nossa fonte de vida ele está relacionado a tudo, a agricultura, as festas de Santo que é nossa cultura, ao nosso modo de viver, por isso estamos lutando, eles tinham que ter consultado a Comunidade para fazer a PCH mas não consultaram a gente, não. Vamos construir um protocolo de consulta prévia a OIT, ele está em construção, (Maria Helena Dias, entrevista concedida no dia 14 de abril de 2022).
Assim, verifica-se que a escolarização foi a principal estratégia de superação para essas mulheres alcançarem um lugar de reconhecimento, perante a sociedade que, por vezes, as colocam em situações de ter que incorporarem os discursos hegemônicos como único meio para sua emancipação, mas que, ao perceberem o seu poderio e força, podem driblar as diversas imposições colonialista/racista e criar práticas feministas que garantam não só o seu crescimento pessoal, mas conquistas coletivas, e visibilidade da sua categoria diante da sua comunidade e quiçá da sociedade.
As experiências narradas pelas professoras reafirmam os profundos desafios que as mulheres negras, rurais, pobres, quilombolas, enfrentam para garantirem a si próprias o direito de escolarizarem-se, profissionalizarem-se e romperem com o ciclo de desvantagem social que vem sendo reproduzido em suas histórias familiares, há séculos. Percebemos que os desafios são pluridimensionais, dado que o racismo é estrutural, permeia todas as dimensões da esfera pública e privada, por meio da operacionalização das colonialidades também múltiplas. A do poder regulamenta e controla o acesso aos bens materiais, limita quem tem acesso aos direitos políticos, econômicos, quem deve ocupar qual lugar na estrutura de classe, nos postos de emprego etc. A colonialidade do saber limita o acesso à educação formal, ou à escolarização de qualidade, e o que deve ser ensinado/aprendido; que saberes são importantes e quais são desimportantes. A colonialidade do ser orienta quem merece ser reconhecida, respeitada, estrutura o pensar e a subjetividade de pessoas conforme o lugar que deve ocupar. A de gênero cuida de restringir o acesso de mulheres a espaços de reconhecimento, status e renda considerados de alto padrão; além do que trabalha na desconstrução da autoestima delas, repetidamente inculcando que não são nem boas, nem belas, nem sábias e nem capazes. Apesar de tudo isso, no entanto, as narrativas das mulheres transcritas, além de outras, demonstram que, se tiver força, quase sobrenatural, é possível encontrar meios de se reconstruírem, se reerguerem, e se reestruturarem num ato de rebeldia sistêmica.
A escolarização, a participação nos movimentos sociais certamente foi a chave que construíram para abrir os portões de entrada, para a vida autônoma, para o êxito escolar, profissional ou econômico. No entanto, ainda é necessário continuar na luta, como elas mesmas o fazem, para garantir de forma efetiva e definitiva o movimento de deslocamento de outras gerações de mulheres, da perspectiva colonizadora e subalterna para protagonistas.
Faz se necessário, de igual modo, desconstruir as estruturas das colonialidades, que continuam impedindo muitas mulheres de realizarem seus projetos de vida ou coletiva; é urgente problematizar o patriarcalismo, o racismo, as colonialidades como centro das desigualdades, não é mais tolerável que os direitos das mulheres negras, mulheres quilombolas, sejam transformados em sacrifícios como modos de alcance. E, por fim, é necessário reconhecer adequadamente, nas literaturas, na pesquisa, nos espaços políticos, e sociais a grande contribuição que essas mulheres prestaram/prestam à sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo permitiu, ao adentramos no universo do feminismo negro e, mais especificamente, das mulheres negras que pertencem ao quilombo, observar a potencialidade das concepções decoloniais, para analisar as condições e experiências dessas mulheres negras, rurais, pobres e quilombolas. Tomando como exemplo o Território Quilombola Vão Grande, por meio das falas de professoras quilombolas, foi possível verificar as dificuldades que precisam ser vencidas nas comunidades quilombolas. Necessário se faz um olhar que se atente às condições sociais, educacionais e de acessibilidade, por meio de estudos mais amplos sobre a ausência de políticas públicas nas comunidades que integram o Território Quilombola Vão Grande.
A narrativa das professoras evidencia a persistência do racismo, estrutural e estruturante, do patriarcalismo, das colonialidades na sociedade brasileira, demonstrando que o acesso de mulheres negras e quilombolas a quaisquer direito ou bens não se dá por vias naturais. Pelo contrário, é preciso muita luta para conquistar os mais elementares direitos, como a escolarização, por exemplo. Entretanto, demonstra a força, a determinação, a valentia que tais mulheres emanam na construção dos seus eus pessoal, profissional, social e político, e a potência de suas lutas para efetivação dos direitos de sua Comunidade. Portanto, dar visibilidade às experiências delas é nos somarmos as suas vozes, que dizem respeito à importância de suas existências, mas, também, é denunciar, o caráter violento da sociedade brasileira.