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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./sept 2022  Epub 23-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.60606 

Artigos de Demanda Contínua

MUSCAFO DIGITAL: uma Abordagem Decolonial em Ambientes Virtuais de Ensino-aprendizagem

DIGITAL VERSION OF MUSCAFO: a Decolonial Approach in Virtual Teaching/Learning Environments

VERSIÓN DIGITAL DEL MUSCAFO: un Enfoque Decolonial en Entornos Virtuales de Enseñanza-Apredizaje

Marcelo Prudente Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-5893-3426; lattes: 1035389676331131

Mariana Pícaro Cerigatto2 
http://orcid.org/0000-0002-7626-8738; lattes: 0089803131113390

1Afiliação institucional – Universidade Tiradentes E-mail: mahcelo28@hotmail.com

2Afiliação institucional – Universidade Tiradentes E-mail: maricerigatto@yahoo.com.br


Resumo

Esse estudo apresenta o percurso metodológico da construção coletiva de um dispositivo pedagógico digital para o Museu Afro Comunitário Filhos de Obá, que integra o centenário terreiro de mesmo nome, uma das primeiras casas de culto afro no Brasil a ser tombada como patrimônio histórico nacional. Trata-se de um dispositivo que tem por objetivo contribuir para a difusão, reafirmação da identidade e preservação do seu acervo. Projetado a partir da metodologia investigativa aplicada Design-Based Research, o projeto integra especialistas acadêmicos convidados, a comunidade local e entrevistas qualitativas, além de diário de bordo. Os resultados englobam a apresentação do desenho pedagógico digital constituído em imagens e mapas de navegação, com os pareceres dos participantes do processo e indicações dos possíveis desdobramentos e contribuições do estudo para as pesquisas em educação e comunicação.

Palavras-chave: museu afro brasileiro; dispositivos pedagógicos digitais; decolonialidade

Abstract

This study presents the methological path of the colletive development of a digital pedagogical device for the Museu Afro Comunitário Filhos de Obá, which integrates the terreiro, with the same name, founded in 1909, being one of the first terreiros in the Official Brazilian Government Heritage List. Digital platform which has as objective contribute for the diffusion, reassurance of the historical identity and conservation of the museum collection. Projected by the methodology Design-Based Research, integrating academics specialists and the local community, using questionnaires in qualitative interviews and logbooks. The results include the presentation of the digital pedagogical design with sketches, screenshots and the architecture website with the opinion of the community and all invited, besides directing possible developments for researchs in Communication and Education.

Keywords: afro-brazilian museum; digital pedagogy; decolonial pedagogy

Resumen

Esa investigación presenta el camino metodológico de la construcción colectiva de un dispositivo digital de enseñanza para el Museu Afro Comunitário Filhos de Obá, conocido por integrar el centenario terreiro del mismo nombre, uno de los primeros espacios religiosos de origen africano a ser catalogado como patrimonio histórico por el gobierno brasileño. Es um dispositivo que pretende contribuir con la difusión, reafirmación de la identidad y preservación cultural de su colección. Y para eso se ha decidido trabajar con la metodología investigativa aplicada Design-Based Research, que integra expertos académicos invitados así como la comunidad participante. Para tanto, hemos utilizado las entrevistas cualitativas y el libro de registro. Con resultados que agregan todo el trabajo de la presentación del diseño pedagógico digital, por medio de imágenes de la interfaz y mapas de navegación, con las opiniones de todos los involucrados en el proceso y posibles consecuencias de la propuesta y los aportes de la investigación para los estudios relacionados a la educación y comunicación.

Palavras chave: museo afro brasileño; dispositivos pedagógicos digitales; pedagogia decolonial

INTRODUÇÃO

Ligado intrinsecamente à acepção de espaço de preservação e difusão do patrimônio, o Museu Afro Comunitário Filhos de Obá surgiu da necessidade de conceituar, proteger e expor bens culturais vistos como representativos para sua época, isolando-os do seu cotidiano para ser parte de um espaço institucionalizado ou mesmo de acervos pessoais. Assim como o seu conteúdo imagético e documental, essas instituições não só se transformaram para atender as necessidades sociais que despontavam, como também para sobreviver enquanto espaço relevante na formação cultural do seu povo.

Uma das formas encontradas pelos museus para manter-se em diálogo com a contemporaneidade – principalmente no que concerne aos aspectos técnicos e às formas de consumo de informações vigentes na era digital – foram as adaptações de museus prestigiados, ao redor do mundo, para o ciberespaço. Isso foi feito principalmente por meio de páginas na internet que permitem a estudantes e demais visitantes não apenas acessar informações históricas sobre as instituições, mas conteúdos com direcionamento pedagógico para uso em sala de aula, bem como o acesso ao seu acervo permanente de forma virtual, seja em galerias de fotos ou representações tridimensionais. Exemplos disso podem ser vistos nas versões digitais do TATE, do Museu Afro-Brasileiro da UFBA e do Vitrina Gallery1, dispositivos esses passíveis de uso como aparatos discursivos ou não.

Contudo, outro importante paradigma encontrado no decorrer da história das reconfigurações do museu ainda prevalece no debate quando esses espaços se propõem a retratar grupos sociais historicamente marginalizados pela sociedade. Pode existir uma controversa forma de representação identitária adotada pelo projeto expográfico e pela curadoria. Quanto a essa problemática, Abranches (1989) vê um recorrente processo de exotização de culturas ditas primitivas, baseado em uma visão eurocêntrica, com a finalidade de utilizar as instituições museais como mais um espaço de manutenção do poder da classe dominante, a partir de uma hierarquização no valor técnico e estético dos objetos expostos.

Diante dos desafios contemporâneos enfrentados pelos espaços museais, aqui apresentados, e sua importância e potencial enquanto ambientes de ensino e aprendizagem, o presente artigo traz o resultado de um estudo que explora a construção coletiva de uma proposta pedagógica digital para o Museu Afro Comunitário Filhos de Obá (MUSCAFO) de Laranjeiras, em Sergipe. O processo foi pautado na interação permanente com a equipe do museu e integrantes do terreiro; fez-se necessário a identificação das suas necessidades iniciais enquanto espaço museal digital, por meio do registro de um diário de bordo e de entrevistas qualitativas, bem como a colaboração de especialistas da área de curadoria digital, educação na cibercultura e antropologia.

O espaço escolhido como objeto de estudo narra a história de um dos mais antigos terreiros de Candomblé de Sergipe, a Sociedade de Culto Afro-Brasileiro Filhos de Obá (SCAFO), tombado como Patrimônio Cultural do Estado e primeiro terreiro reconhecido nacionalmente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN. Ademais, a digitalização de seu acervo se faz necessária também pela falta de visibilidade do SCAFO na região, visto os problemas estruturais históricos da sociedade que contribuem para ocultar, nas diversas esferas sociais, as representações de matrizes africanas, perpetuando, assim, uma cultura colonizadora.

No intuito de atingir os objetivos propostos e para legitimar as etapas e o produto projetado, optou-se por trabalhar a pesquisa-aplicação orientada para a utilidade por meio da metodologia investigativa aplicada Design-Based Research (DBR). Esta metodologia, concebida por Barab e Squire (2004), de cunho socioconstrutivista, exploratória, com características intervencionista, permite a utilização de dados quantitativos e qualitativos, com base em entrevista e diário de bordo. E tal escolha foi feita por entendermos que essa abordagem valoriza a interação social e cultural como ponto de partida para que o processo de aprendizagem ocorra de forma mais significativa para os sujeitos envolvidos, responsáveis por validar os processos e resultados.

OS PARADIGMAS DOS ESPAÇOS MUSEAIS ATRAVÉS DA HISTÓRIA: DE ASHMOLEAN À REPRESENTAÇÃO IDENTITÁRIA DOS MUSEUS AFROS

Tendo a sua construção conceitual originária nos templos das musas, filhas de Zeus, graças a Mnemosine, o entendimento sobre as dinâmicas e o papel dos museus passou por inúmeras transformações através dos séculos, e o perfil dessas instituições encontrou novos contextos e delimitações mais amplas.

Na discussão de alguns problemas já presentes nas primeiras instituições museais, Scheiner (1998) lembra que, em sua origem, esses espaços representavam o desejo de posse acima da sua função social de preservação da história. Esse desejo já se manifestava nos espaços responsáveis pelas primeiras coleções particulares, as quais posteriormente deram forma aos primeiros museus, como no caso do Museu Ashmolean de Arte e Arqueologia, considerado o primeiro museu público, fundado a partir da coleção de John Tradescant, doada por Elias Ashmole à Universidade de Oxford, Inglaterra, no fim do século XVII. Isso permitiu que os museus passassem a buscar refletir a sociedade em seus diferentes contextos históricos.

Com o advento do museu enquanto instituição, a percepção sobre a história e a produção cultural foram modificadas. Porém, apesar das frequentes reestruturações das instituições museais no decorrer dos anos, alguns resquícios problemáticos dos primeiros museus se mantêm em muitos dos espaços contemporâneos, quase que cristalizados, como algumas peças dos seus acervos históricos.

Nesse estudo, o entendimento de museu é apresentado conforme o Conselho Internacional de Museus (ICOM), que o caracteriza enquanto uma instituição sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e aberta ao público; que adquire, conserva, pesquisa, divulga e expõe, para fins de estudo, educação e divertimento, testemunhos materiais do povo e de seu meio ambiente.

Ao trazer o debate crítico sobre os espaços museais para as especificidades do contexto brasileiro, Scheiner (1998) salienta que a criação do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criado por D. João VI em 1818, já atendia aos interesses de promoção do progresso cultural e econômico do Brasil; essa política se perpetuou no decorrer do século seguinte com especial atenção a década de 1960 – período em que o novo governo ditatorial se utilizou das instituições museais e de seu potencial histórico de preservação e difusão cultural como forma de resgatar um passado de funções homologatórias e conservadoras, com o intuito de fortalecer o tema da identidade cultural.

Sobre esse aspecto, à luz dos estudos de Meneses (1993), os museus se tornaram parte fundamental das estratégias políticas de legitimação. Por isso, seu espaço – visto por muitos como imaculado pelas premissas seculares de preservação do patrimônio cultural – tem sido usado, ao longo da história, como instrumento para reafirmação de uma hegemonia cultural, intrínseca ao poder econômico; quando não, ainda, tornando-se espaço de exotização do outro, periférico aos territórios da efervescente vida artística e cultural ocidental das grandes metrópoles.

Ao delinearmos o compromisso social do museu com a divulgação da cultura em suas diversas formas e segmentos, principalmente aquelas culturas negligenciadas pelas dinâmicas de manutenção dos ideais eurocêntricos, alcançamos o objeto deste estudo e propomos reflexões quanto às escolhas museográficas das instituições voltadas para a difusão e preservação da cultura afro-brasileira. Entretanto, para iniciar essa discussão, faz-se necessário, antes de tudo, entender uma das maiores contradições do tema: grande parte do Patrimônio Africano não se encontra no continente de origem. Abranches (1989) denuncia essa apropriação de bens culturais ao escrever que:

Numerosos são também os testemunhos do Patrimônio Cultural Africano que se encontram no estrangeiro não somente a partir do facto colonial mas também a partir de um importante tráfico ilícito, em geral mais poderoso que o combate que lhe é feito pelas autoridades nacionais e internacionais. Poder-se-ia mesmo dizer que certos países africanos, senão mesmo a maior parte, se encontra em suma, melhor representados nos museus da Europa e da América que em sua própria terra. (ABRANCHES, 1989, p. 20)

Na visão ideológica imposta, o africano não teria a capacidade de preservar sua própria cultura material, tal ideologia valida o discurso colonialista e sua prática ao tomar posse dos bens patrimoniais de vários povos. Com isso, as primeiras instituições coloniais reuniam em uma mesma coleção objetos naturais e culturais, apresentando o Homem africano e sua produção cultural como paisagem, sem o devido valor técnico, social ou artístico. Nesse quadro, Abranches (1989) enfatiza que o papel artificial dos museus coloniais o afastava ou mesmo ignorava a população negra e indígena que representava, tratando estas de maneira exótica, primitiva e desprovida de história e de relações sociais.

Mesmo nos dias de hoje, a incorporação nos museus metropolitanos dos bens culturais – que foram tomados no período colonial e pós-colonial, agora dentro de um contexto museográfico científico – não busca valorizar a identidade africana, pois, como nos lembra Fonseca (2017), muitas das propostas museológicas destas instituições, ainda leva em consideração grande parte do discurso evolucionista, comum na Europa do século XIX; segundo este discurso, a Europa é aceita enquanto ápice da civilização humana, enquanto continentes como a África retratam o lado primitivo da humanidade.

Muito desse apagamento no Brasil advém, segundo Munanga (2010), de algumas vozes que, no âmbito nacional, buscam reunir todas as identidades e etnias em torno da unidade mestiça, pois, teoricamente, esta englobaria todos os brasileiros. Essa proposta ideológica, segundo o autor, é usada para recuperar a ideia de unidade nacional não alcançada devido ao fracasso do almejado branqueamento físico. Contudo, a identidade mestiça única se apresenta como um contraponto aos movimentos de reafirmação negra e de outras minorias como a indígena, que teve pouca visibilidade ao longo da história.

Sobre a urgente necessidade dessa ruptura colonialista, Sandell (1998) ressalta a importância do museu dialogar com a comunidade à sua volta, sendo um agente social para inclusão nesse debate. Assim, seria possível a criação de mecanismos através dos quais a comunidade seria empoderada e se tornaria parte dos processos de produção; a comunidade teria, desse modo, suas prioridades identitárias postas em evidência e haveria uma troca de experiências entre museu e público, possibilitando um maior engajamento dos atores sociais e o cumprimento do papel social da instituição, relevante e alinhada ao seu tempo.

A expansão na sua potencialidade – enquanto campo de preservação da ancestralidade, difusor de culturas negligenciadas e, principalmente, enquanto meio de transformação social – desenha enormes desafios para o horizonte da cibercultura. Aqui, mais especificamente, há “[..]um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças” (BOURDIEU, 2004, p. 23). Todavia, essa mesma carga de responsabilidade transformadora traz com Hooper-Greenhill (2000) a reflexão sobre o museu do futuro.

O ideal de pós-museu imaginado por Hooper-Greenhill (2000) pressupõe a adoção de inúmeras formas arquitetônicas diferenciadas, porém agora sem os limites das paredes sólidas, podendo se mover no tempo e espaço de acordo com as necessidades da comunidade e grupos que buscará representar. Esse pós-museu se ressignifica no palco do futuro não apenas por intermédio das linguagens digitais contemporâneas, mas também pelo diálogo de forma responsável com seu entorno e incentivo a parcerias mutuamente estimulantes para celebrar a diversidade que tanto sofreu com apagamentos históricos no decorrer dos séculos.

O PENSAMENTO DECOLONIAL NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM EMANCIPADOR

O processo histórico da formação colonial na América Latina, através dos séculos, foi um dos grandes responsáveis pela segregação racial e pela desigualdade de acesso de alguns grupos à direitos básicos no continente. Os diversos tipos de violência cometidos contra todos aqueles originários de países africanos, trazidos escravizados das suas terras, e contra seus descendentes, integra o que Santos (2004) classifica como procedimentos coloniais sufocantes dessas culturas, baseados na opressão e na exclusão destes do processo de autorrepresentação na ideia de modernidade ocidental.

Em seus estudos, Quijano (2005) enfatiza um dos importantes processos históricos que ilustra a implementação, no final do século XIX, de um novo padrão de poder mundial excludente das culturas não-europeias e que vigora até hoje: a distinção entre conquistados e conquistadores, definido pelo conceito de raça, e responsável por hierarquizar os grupos, ao colocar o europeu em uma posição de superioridade natural sobre as outras raça. Esta foi uma estratégia fundamental de dominação, que validaria o funcionamento dos mecanismos históricos de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do mercado e do capital no mundo.

Para Quijano (2005), apenas um caminho poderia guiar os povos para a democratização da sociedade e do Estado: o processo decolonial das relações sociais, políticas e culturais entre as raças, especificamente, entre grupos e elementos de existência social divididos em europeus e não europeus. Para o autor, a estrutura de poder sempre esteve e continua organizada sobre e ao redor de eixo colonial, com o ideal de Nação e Estado que não contempla a população indígena, negra e mestiça. Preceito este perpetuado na ideia de modernidade, desde a sua concepção, com um projeto de hierarquização, no qual o sentido de progresso está ligado às premissas europeias, sendo este grupo o único produtor e protagonista da modernidade.

A semente da ideia de decolonialidade, defendida nesse estudo, já são encontradas nas análises de Quijano (2005), Santos (2004), entre outros autores, e os ideais defendidos em seus estudos se relacionam com o projeto de decolonização, na medida em que estes aspiram romper com a visão unidirecional da modernidade. Contudo, Colaço (2012) ressalta que: para alcançar a proposta vigente decolonial, é preciso conceber que essa proposta pensa a colonização como um grande evento ininterrupto e de muitas rupturas, não somente como uma etapa histórica encerrada e já superada. O objetivo não é desfazer o colonial ou revertê-lo, suprimindo o momento colonial em detrimento do momento pós-colonial, “[..]a intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial implica, portanto, uma luta contínua” (COLAÇO, 2012, p. 08). Esse enfrentamento passa diretamente pelos processos educacionais, que quando projetados com a consciência de equidade e justiça social se tornam determinantes e contribuem para a superação de desigualdades e com o combate à invisibilidade de culturas marginalizadas pelo sistema eurocêntrico predominante.

Alinhada a esse pensamento, Hooks (2019) sublinha que, ainda hoje, as escolas e demais ambientes educacionais representam, muitas vezes, um espaço restrito a uma única forma de pensamento e de experiência, defendida como universal, desconsiderando as particularidades do contexto do estudante. Isso se configura como uma barreira para implementação de novos métodos, alinhados a realidade contemporânea, e de currículos multiculturais, essenciais para a emancipação do sujeito, visto ser um dos caminhos da representação da sua identidade no contexto escolar.

Ao nos aprofundarmos na reflexão de Hooks (2009), podemos notar a importância de os alunos conhecerem a diversidade epistemológica em um espaço, criado pelo professor, que inclua temas que tratem, por exemplo, da consciência de raça, sexo e classe, associando-as à disciplina oferecida. Uma educação libertária, que não faz dos estudantes pessoas meramente passivas e engessadas, e não exige apenas o despertar da criticidade acerca da sociedade em que vivemos, mas também, a visibilidade dos não-brancos, entre outros grupos marginalizados. Para Hooks (2009), apenas a educação engajada permitirá visualizar como as relações de poder interferem na educação, para assim desarticular o caráter opressor presente nos ambientes educacionais.

Os esforços de iniciativas para a diversidade dependem da reestruturação da forma de pensar a comunicação com e entre os sujeitos na sala de aula. E sobre a iminência desse movimento, Hooks (2019, 2019, p.57) escreve:

A adoção do multiculturalismo obriga os educadores a ir além na comunicação entre os sujeitos envolvidos no processo, e centrar sua atenção na voz destes. Ao perguntar-se: quem fala, quem ouve e por quê? Cuidar para que todos os alunos cumpram sua responsabilidade de contribuir para o aprendizado na sala de aula não é uma abordagem comum no sistema que Freire chamou de educação bancária, onde os alunos são encarados como meros consumidores passivos.

Diante das discussões expostas, é possível observar que a educação para emancipação do sujeito, principalmente daqueles que compõem as parcelas invisibilizadas pela estrutura social vigente, passa pela desconstrução e transgressão de valores e métodos estabelecidos nas várias esferas da sociedade. Isso exige dos envolvidos o comprometimento na construção coletiva do conhecimento, em que todas as partes devem ter suas vozes ouvidas e possam se apropriar das ferramentas de ensino e aprendizagem, para assim se tornarem sujeitos ativos, para além do muro das escolas, transformando seu entorno e a eles mesmos enquanto indivíduos.

EDUCAÇÃO INOVADORA EM ESPAÇOS MUSEAIS DIGITAIS: CULTURA PARTICIPATIVA E AS NOVAS HABILIDADES INTEGRANTES DA CIBERCULTURA

Observar a educação com um olhar de fora do espaço físico da escola permite enxergar que não apenas os métodos e abordagens educacionais estão ultrapassados, mas os instrumentos de ensino e aprendizagem têm também caminhado em descompasso com as transformações e exigências socioculturais contemporâneas. Com isso, a necessidade da implementação de novas propostas que dialogam com as demandas da era da informação é uma das barreiras na conexão entre ambientes educacionais e a realidade dos sujeitos já integrados à cibercultura.

Diante desse novo cenário, pensar o museu enquanto espaço unicamente voltado à preservação patrimonial é aceitar as limitações de um sistema que não faz sentido na contemporaneidade, uma percepção rígida do real que já não dialoga com o sujeito hoje. As novas tecnologias da comunicação, que emergem dessa conjuntura, têm um profundo impacto na construção coletiva da memória e sua relação com o processo de identidade. Nessa direção, Sansone (2013) destaca que, com a popularização da internet, smartphones e demais recursos digitais, o sujeito tem a possibilidade de um maior e mais dinâmico acesso à informação e com isso estabelecer novas formas de relação com o seu entorno e o outro. Contudo, é necessário entender as especificidades técnicas e pedagógicas dos dispositivos pedagógicos, assim como o espaço onde este se encontra estabelecido nas dinâmicas sociais da contemporaneidade.

Em seu estudo, Fischer (2002, p. 155) posiciona claramente o dispositivo pedagógico da mídia na sociedade atual:

Descrevo o dispositivo pedagógico da mídia como um aparato discursivo e ao mesmo tempo não discursivo, uma vez que está em jogo nesse aparato uma complexa trama de práticas de produzir, veicular e consumir TV, rádio, revistas, jornais, numa determinada sociedade e num certo cenário social e político, a partir do qual haveria uma incitação ao discurso sobre si mesmo, à revelação permanente de si; tais práticas vem acompanhadas de uma produção e veiculação de saberes sobre os próprios sujeitos e seus modos confessados e aprendidos de ser e estar na cultura em que vivem. Certamente, há de se considerar ainda o simultâneo reforço de controles e igualmente de resistências, em acordo com determinadas estratégias de poder e saber, e que estão vivos, insistentemente presentes nesses processos de publicização da vida privada e de pedagogização midiática.

O desenvolvimento de um museu digital, como o apresentado neste trabalho, busca ainda atrelar-se a concepções pedagógicas que remetem a um novo pensar sobre as necessidades de alfabetização do século XXI. Para a Unesco (2005, 2005, p. 09), a alfabetização passa por um contexto de mutação, que “[..]envolve uma atitude contínua de aprendizagem ao permitir que os indivíduos alcancem seus objetivos, desenvolvam conhecimento e potencial para participar ativamente na comunidade e na sociedade como um todo”.

O contexto de um museu digital é delineado ainda por perspectivas contemporâneas de educação, expressas na alfabetização midiática e informacional (AMI) da Unesco (WILSON et al, 2013), delimitadas por competências gerais que valorizam a aplicação de formatos novos e tradicionais de mídias e a ligação do contexto sociocultural aos conteúdos midiáticos. Para a Unesco (2005), a educação atual deve ser pensada não somente a partir do ponto de vista individual, mas do coletivo e dentro de um processo de apropriação cultural. Pode-se ainda dizer que o desenvolvimento da proposta de educação digital, no panorama da cibercultura, expressa o desejo de construção de um laço social, ligado a interesses comuns e ao compartilhamento do saber; prioriza-se a aprendizagem cooperativa e os processos abertos de colaboração, o que fortalece o processo em rede de formação de inteligência coletiva (LÉVY, 2003).

Delineando-se ainda pela pedagogização midiática, a construção do aparato digital aqui exposto atende ao perfil de leitor contemporâneo, em um hipertexto não-linear, e favorece a multimodalidade de linguagens e formatos. Para Santaella (2001), há três matrizes da linguagem que se unem no cenário digital, combinando linguagem verbal e não-verbal: a sonora, a visual e a verbal. Supõe-se que essas três matrizes da linguagem operam todas as hibridizações de signos e de linguagens, bem como de organização e de busca da informação e do conhecimento no ciberespaço

A convergência de linguagens, textos e formatos expressa o atual cenário de cibercultura. Jenkins e outros (2006) aponta para a necessidade de navegação transmídia e apropriação dos valores que estão no bojo de uma sociedade conectada e que compreende diferentes meios, tempos e lugares. A navegação transmídia aponta para a capacidade de acessar e interagir com diferentes linguagens e plataformas; e a apropriação está ligada à capacidade de entender as novas possibilidades de produção de conteúdo possibilitadas pelo meio digital.

Essas novas concepções ligam-se ainda ao que Moran (2018) chama de aprendizagem por tutoria. A aprendizagem por tutoria supõe que as tecnologias também mediam conhecimento, e que este hoje é descentralizado. Pode-se aprender por diferentes canais, pessoas e fontes, em diferentes tempos e espaços.

Importante ainda salientar que no desenvolvimento do Muscafo Digital, e seguindo as concepções de aprendizagem digital de Tavares (2017), procurou-se explorar os paradigmas pedagógicos ligados ao construtivismo, que possibilitam ao aprendiz experenciar e transformar seu conhecimento inicial; ao nível de aprendizagem relacional, tem como objetivo a aquisição de habilidades e a interação com a tecnologia; e , quanto à aprendizagem do sujeito, recorre-se à abordagem do tipo algoritmo, em que se predomina a aprendizagem experimental ou por descobrimento.

CONCEPÇÃO DO MUSCAFO DIGITAL: O USO DO DESIGN-BASED RESEARCH PARA UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA DIALÓGICA E POLIFÔNICA

Situada a 18 quilômetros de Aracaju, Laranjeiras, berço da Sociedade de Culto Afrobrasileiro Filhos de Obá (SCAFO), foi fundada em 1605, sendo a segunda cidade mais antiga do estado de Sergipe. Com um comércio favorecido pela estratégica localização portuária, o que Nunes (2006) aponta como fator que a levou a se tronar, em seus primeiros anos de existência, um importante centro de chegada de imigrantes europeus, que mais tarde se tornariam influentes Senhores de Engenho e transformariam a cidade em um dos maiores polos escravocratas do estado.

Entretanto, mesmo com a supremacia da Igreja Católica sobre a cidade, desde sua formação até o início do século XX, a acentuada presença de negros escravizados, em razão da cultura açucareira, acarretou também o fortalecimento das religiões de matrizes africanas na cidade. Fatores primordiais para o surgimento de um dos primeiros espaços de culto afro e de resistência em Laranjeiras, o Terreiro Filhos de Obá.

O terreiro tem sua origem no ano de 1906, porém, Leal (2019) afirma que a fundação da Sociedade de Culto Afro-brasileiro Filhos de Obá, mantenedora do espaço, ocorreu apenas em 1909, por meio da luta de cinco escravas, todas originárias da África, dentre elas Tá Joaquina que, pelo seu maior conhecimento sobre as práticas religiosas, liderou o grupo, tornando-se a primeira Yalorixá com a primeira sede e plantio do axé na Rua Porto dos Oiteiros, no município de Laranjeiras.

Com o longo período de atuação na cidade, a Casa se firmou como um dos primeiros terreiros do Estado e, após um longo período de tramitações documentais para seu tombamento, a SCAFO conseguiu, no ano de 1994, o reconhecimento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como um legado do culto nagô, e foi tratado pelo órgão como maior ponto de irradiação da cultura negra em Sergipe. Em 1996, alcança mais uma conquista com o título de tombamento pela Secretaria de Estado da Cultura de Sergipe, com reconhecimento pelas suas ações voltadas à cultura afro-brasileira no município de Laranjeiras, tendo entre os principais méritos da titulação o valor cultural dos seus aspectos religiosos, históricos e antropológicos.

Com os títulos de reconhecimento público a nível estadual e federal, a Casa ainda tinha um desafio pela frente: definir o melhor caminho para preservação e difusão do seu acervo histórico. Assim, nas entrevistas2 realizadas nesta pesquisa, a líder atual do grupo, Yiá Ginalva, relata que os membros do Terreiro, juntamente com o apoio da Prefeitura de Laranjeiras e a Universidade Federal de Sergipe, decidiram em 28 de julho de 2017 inaugurar o Museu Afro Comunitário Filhos de Obá com o Salão Gitoki. Essa decisão teve por intuito construir uma área para guardar seus objetos sagrados, indumentárias e acervo pictográfico, bem como oferecer à comunidade uma proposta expográfica que integrasse o terreiro, a trilha Gliage, (onde realizam parte dos seus rituais) e um museu, que pudesse servir também como memorial para exaltação da história de resistência de uma comunidade centenária, que traz em sua narrativa de luta a própria história de Laranjeiras.

Com essa expressiva trajetória e dada a importância da instituição enquanto difusora não apenas dos seus mais de 100 anos de história, mas também da representação afro-brasileira em Sergipe, fez-se necessário buscar uma metodologia que contemplasse as polifônicas vozes envolvidas no processo de construção coletiva desse dispositivo pedagógico digital. E nessa perspectiva de compreender a complexidade do problema da pesquisa, legitimando suas etapas e o resultado final, a partir da participação ativa dos envolvidos, optou-se por trabalhar a pesquisaaplicação orientada para a utilidade, por meio da metodologia investigativa aplicada Design-Based Research (DBR).

Barab e Squire (2004) definem a DBR como uma série de procedimentos de investigação, aplicada ao desenvolvimento de teorias, artefatos e práticas pedagógicas, que sejam de potencial aplicação e utilidade em processos de ensino e aprendizagem existentes. Contudo, a DBR vai além de projetar e testar intervenções específicas, pois suas ações incorporam fundamentação teórica sobre o ensino e aprendizagem e refletem o compromisso de compreender as relações entre teoria, artefatos projetados e prática; além disso, a DBR tem uma metodologia flexível que permite um alto número de customizações nas etapas do processo, contemplando diferentes objetos de estudos e problemas.

Ao aplicar a metodologia em campo, priorizou-se a técnica de entrevista semiestruturada, do tipo semiaberta (MANZINI, 2003), que “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...]” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).

A entrevista foi realizada de forma presencial na sede do Terreiro com os responsáveis pelo MUSCAFO. Para coletar as informações, foi usado o diário de bordo/diário de campo do pesquisador; neste, as anotações das experiências dos integrantes com o MUSCAFO – tanto durante as mediações culturais, realizadas por eles com visitantes, quanto o processo de conservação patrimonial adotado e a vivência pessoal no terreiro – direcionaram as escolhas técnicas, estéticas e pedagógicas do resultado final do protótipo aqui apresentado. As anotações de campo, de acordo com Triviños (1987), tiveram dois objetivos: descrever as respostas dos entrevistados e também servir de conteúdo para reflexão.

Os encontros com os integrantes do Terreiro aconteceram entre o período de 31 de julho do ano de 2019 a 31 de janeiro de 2020. Foram reuniões mensais, sempre na última quarta ou sexta do mês, de acordo com a disponibilidade da agenda de atividades ritualísticas do espaço, sempre com os três integrantes responsáveis pela administração do museu e do Terreiro.

Além disso, houve a participação de especialistas acadêmicos da área, convidados a contribuírem com observações técnicas e estéticas sobre diferentes aspectos do projeto: Kaio Eduardo de Jesus Oliveira, Doutor em Educação e Comunicação; Leonardo Vieira Silva, Mestre em Antropologia com pesquisas na área de religiões de matrizes africanas; e Sara Perrella, doutora em Museologia e Educação, com foco em curadoria digital. Essa parte do processo se deu por meio de correio eletrônico, visto o impeditivo territorial, por dois dos participantes viverem em cidades ou países diferentes.

Entre as observações apresentadas pelos especialistas foram pontuados apenas poucos ajustes no material produzido, voltados aos aspectos técnicos, como detalhes da arquitetura de navegação do protótipo, contribuições como sugestões de plataformas para a implementação online, além de ajustes de nomenclaturas no uso de termos do candomblé, visto as especificidades linguísticas por sua origem no Iorubá.

No decorrer das reuniões, os participantes apresentaram as escolhas expográficas do acervo físico e a importância do prédio histórico, enquanto espaço de visitação, para expandir as paredes da própria galeria. Foram expostos também os pontos centrais das visitas mediadas como: o conteúdo abordado com os estudantes; os desafios em desconstruir a visão radical cristã e eurocêntrica de alguns visitantes, em seu contato com conceitos e elementos do candomblé; o percurso museal feito pela instituição; e as formas de contato com a escola, seja por meio do agendamento de professores ou diretorias das instituições de ensino.

Esse contato com as escolas se dava principalmente para atender a Lei 10.639/03, que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, e dá outras providências.

Os primeiros encontros foram direcionados para a apresentar a metodologia desta pesquisa, os problemas e pressupostos preliminares e os objetivos gerais e específicos iniciais a serem trabalhados; além disso, fizemos uma introdução acerca das possibilidades pedagógicas dos recursos digitais para espaços museais, da importância da digitalização na preservação do patrimônio cultural e para difusão deste. Neste momento, os integrantes puderam também expor suas demandas enquanto Museu Comunitário e refletir sobre a falta de visibilidade do terreiro na comunidade local, apesar dos seus 110 anos de história; puderam, ainda, discutir a necessidade de uma representação mais ativa nos ambientes virtuais, principalmente de forma a publicizar ainda mais as ações da instituição e a importância das manifestações religiosas de matriz africana enquanto movimento de resistência contra o racismo e a intolerância religiosa.

Quanto às entrevistas, foi identificada a necessidade de dispositivos pedagógicos digitais para mediação no museu – como era pressuposto no início da pesquisa, visto o regular trabalho de visitas monitoradas com escolas da região. Além disso, uma outra necessidade foi identificada: a de ter um site que pudesse servir de repositório digital do acervo do MUSCAFO e de central de informações básicas do espaço, como seu histórico, agenda de ações realizadas na comunidade e registro fotográficos das atividades festivas anuais. Espaço virtual que poderia servir como central de informações, de fácil alimentação e customização pela sua equipe técnica, mesmo que esta tivesse pouca familiaridade com programação e outros recursos digitais mais sofisticados; um espaço que funcionasse concomitantemente com as redes sociais já existentes do museu.

Durante as etapas dos ciclos iterativos de produção do site e do dispositivo pedagógico digital, os integrantes participaram da análise de instituições museais similares pelo Brasil e pelo mundo, com exemplos de representações online do MAFRO em Salvador, na Bahia; do Museu Afro Brasil em São Paulo e da plataforma digital da exposição Um itinerário da magia nas brincadeiras infantis indígenas, do Museu do Brinquedo da UFSC, de Florianópolis, Santa Catarina. Neste processo, foi estabelecido um debate sobre os elementos e a forma como foram empregados em cada iniciativa, sobre a potencialidade dos recursos digitais aplicáveis no dispositivo pedagógico digital para o MUSCAFO, e sobre as similaridades e diferenças entre as narrativas e objetivos de cada projeto.

Nas entrevistas também foram discutidas as referências visuais a serem adotadas e a forma como os responsáveis pelo MUSCAFO enxergam o terreiro e a importância histórica dos seus antepassados para o Museu hoje. Com o propósito de coletar o máximo de informações possíveis para as escolhas estéticas do desenho do artefato, levando-se em conta principalmente a ancestralidade, os orixás cultuados e os elementos simbólicos do candomblé, presentes no terreiro.

Antes de proceder para a elaboração das interfaces gráficas do Museu Digital, fez-se necessário a concepção coletiva de uma identidade visual para o MUSCAFO, que ainda não tinha uma representação visual oficial. Para isso, entrevistou-se a líder do terreiro, Yiá Ginalva, que apresentou os conceitos primordiais que serviram de âncora em cada etapa do processo: os desafios dos antigos líderes, a importância da fundadora da Casa para a sua existência hoje e o quanto a origem no continente africano e toda história de luta de um povo permanece forte em cada escolha do grupo.

Esses preceitos direcionaram a concepção da identidade visual para o desenho de um logotipo, que representasse o percurso dos seus pares durante os 110 anos de Sociedade de Culto Afro-Brasileiro Filhos de Obá, com a imagem de sete figuras negras em uma linha reta, reforçando o conceito de continuidade e o valor da ancestralidade para o hoje e o amanhã.

Fonte: Acervo do MUSCAFO

Figura 1 Primeiras propostas com base nas colocações da líder do grupo, Yiá Ginalva 

Quanto à tipografia utilizada na escrita, foram projetados três modelos, um deles a partir da fachada atual do museu e os outros dois, com base em estudos das referências de trabalhos de design do Congo, a partir de grafismos em tecidos existentes na região e de estudos dos traços orgânicos inspirados na natureza local; critérios essenciais como legibilidade e aplicabilidade em diferentes suportes e dimensões foram respeitados.

Fonte: Acervo do MUSCAFO

Figura 2 Propostas de tipografia elaboradas a partir das entrevistas com o grupo 

Durante a análise das propostas apresentadas, a líder do grupo se mostrou preocupada em não esquecer a origem negra do terreiro, sua história de injustiças, dor e luta; por isso, os personagens aparecem com posturas sérias. Ela ressaltou o orgulho do preto como sua cor e a importância também da cor verde, já mencionada anteriormente, representativa da região de origem das fundadoras. A partir disso, os desenhos sofreram alterações, com novas figuras de movimentos corporais mais contidos e o uso do preto para ressaltar a negritude dos seus antepassados.

Definido o logotipo do MUSCAFO, passou-se para a elaboração da interface do site propriamente dito. Iniciando pelo fundo da tela, foram realizados estudos de releituras de padrões geométricos de algumas das regiões da África, de origem dos fundadores da Sociedade de Culto Afro-Brasileiro Filhos de Obá (figura 3): Reino Congo, Reino do Daome, Reino de Save, Reino de Ketu, Reino Ijexá e Ilê Ifé. Isso permitiu fundir no projeto a ancestralidade, ressaltada nas entrevistas, com a contemporaneidade, enquanto espaço de resistência cultural que representa o MUSCAFO hoje.

Fonte: Acervo do MUSCAFO

Figura 03 Logotipo final aprovada pelos responsáveis do MUSCAFO 

Fonte: Acervo do MUSCAFO

Figura 04 Padrões de tela ao fundo e seus referenciais 

A partir das referências visuais do logotipo e do background estabelecido para todas as telas, foi desenvolvido o layout do site, seguindo as regras de usabilidade para estrutura e diagramação de Nielsen e Loranger (2007) e Nielsen e Budiu (2014). A partir dessas regras, foram feitas escolhas de diagramação e o projeto arquitetônico de informação, que permitisse uma boa legibilidade do conteúdo, assim sendo, definiu-se a hierarquia de informações de acordo com o grau de importância de cada uma, o contraste e os espaçamentos necessários para visibilidade de todos os públicos e os elementos fundamentais para diminuir a quantidade de frustrações na experiência Homem-Máquina.

Como definido em entrevistas, foi estabelecida a divisão da página em: homepage (com as informações centrais sobre o MUSCAFO); Institucional (com um texto breve acerca da SCAFO); O Museu (com a missão do museu e a proposta expográfica); Exposição Permanente e Acervo (repositório com registros fotográficos para acesso de pesquisadores, visitantes e estudantes, dividido em uma linha de tempo, relacionada a cada líder do terreiro e seu período a frente do SCAFO); Blog (onde os responsáveis pelo MUSCAFO poderão descrever de forma mais densa a simbologia dos rituais, discutir os desafios do espaço diante da intolerância religiosa e outros temas de interesse do grupo); e a Trilha Gliage (uma área experimental onde os visitantes poderão visitar, a partir de um vídeo em 360 graus, um dos ambientes mais emblemáticos para o terreiro, a trilha dos Orixás, que se encontra atrás do prédio histórico onde estão estabelecidos).

Fonte: Acervo do MUSCAFO (http://www.muscafo.com)

Figura 05 Layout proposto para homepage e uma das subpáginas 

Após a aprovação do layout, subdivisões das seções e testes preliminares de usabilidade com o site, partiu-se para o primeiro objeto pedagógico interativo a ser produzido, o jogo eletrônico Conhecendo os Orixás e sua iconografia. Com esse material, buscou-se contemplar as necessidades de fixação das informações apresentadas na mediação cultural com os visitantes, dada a complexidade de elementos simbólicos dos orixás presentes na casa. O jogo consiste em um recurso interativo projetado coletivamente – com o respaldo teórico dos estudos de Nielson e Budiu (2014) sobre usabilidade móvel – que possibilita ao público participar de pequenos desafios sobre as vestimentas, os acessórios e as simbologias que compõe cada Orixá; assim, os estudantes são convidados a conhecer mais sobre a rica iconografia desses Deuses e Deusas e as relações entre cores e elementos com a história e o contexto de cada entidade.

Fonte: Acervo do MUSCAFO/ Instituto Carybé

Figura 06 Interface do jogo pedagógico interativo proposto Conhecendo os Orixás e suas iconografias 

Em uma das seções do dispositivo pedagógico digital, as histórias dos Orixás, do MUSCAFO e da Sociedade de Culto Afro-Brasileiro Filhos de Obá, serão representadas a partir de pequenos curtas metragens animados, com seus modelos projetados pelo mediador cultural da instituição, Brenno Mattos, utilizando-se dos softwares livres.

Fonte: Acervo do MUSCAFO/ Instituto Carybé

Figura 07 Storyboard para animações (meramente ilustrativo) 

O espaço de navegação em 360 graus (figura 8) foi inspirado na proposta e nos recursos do projeto Google Arts & Culture, o qual apresenta museus do mundo todo, em diferentes seguimentos, permitindo o acesso imersivo diferenciado em sua estrutura; neste projeto são utilizadas setas e trajetos, para interação em tempo real; ele apresenta uma seleção de obras na tela para aproximação com detalhes, bem como, informações mais detalhadas sobre os trabalhos, artistas, técnicas e especificidades, sistema de busca de obras, em qualquer uma das centenas de instituições museais cadastradas, além de diversos outros recursos digitais.

Fonte: Acervo do MUSCAFO

Figura 08 Navegação 360° pela Trilha Gliage 

Ao final da concepção de todos os desenhos e da descrição da dinâmica de funcionamento de todo projeto, os especialistas acadêmicos3 de cada área foram convidados a apresentarem as suas observações.

O professor doutor Kaio Eduardo de Jesus Oliveira descreveu suas considerações acerca dos aspectos pedagógicos do dispositivo, exaltando a importância do projeto transportar o universo dos museus para o ambiente digital, por meio da abordagem científica, cultural ou antropológica; ele destacou a contribuição do dispositivo para a aprendizagem on-line, popularizando experiências muitas vezes pouco acessíveis aos estudantes. E como sugestão para melhoria do material, o professor propôs o uso de uma linguagem menos acadêmica para atender a um público mais diverso.

Em sua contribuição, o mestre Leonardo Vieira Silva se utilizou da análise comparativa entre a narrativa proposta no dispositivo deste estudo e a sua própria pesquisa sobre as práticas e os saberes das religiões afro-brasileiras, na qual estudou o mesmo grupo desta investigação. A partir das suas experiências acadêmicas, sugeriu que essa proposta aprofundasse os estudos sobre a história do terreiro, com sugestões de pesquisas sobre o tombamento patrimonial do espaço para enriquecer as narrativas históricas do projeto pedagógico digital. Também sugeriu a revisão na aplicação de termos do Candomblé, que têm especificidades linguísticas devido a sua origem no Iorubá.

Por fim, à professora doutora Sara Perrella coube a responsabilidade de apreciar aspectos técnicos como a interface gráfica, a arquitetura da informação e a curadoria digital adotada pelo desenho proposto. Quanto a esses pontos, a especialista convidada julgou não haver ajustes técnicos estruturais necessários, pois todos os critérios de qualidade necessários foram atendidos, assim como a navegabilidade. A professora ressaltou também as boas soluções gráficas escolhidas, remetendo aos padrões das regiões de origem dos antigos líderes do terreiro. Sugeriu apenas a possibilidade futura da inserção de um podcast e outros conteúdos midiáticos que possam expandir a experiência do visitante e o conteúdo informativo. Finalizou sua análise com a recomendação da plataforma Wordpress para implementação do site, por conta de suas experiências anteriores positivas na produção de materiais similares.

ANÁLISE DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposição de soluções para problemas pedagógicos em espaços escolares regulares e de educação não-formal, a exemplo de instituições museais, se apresenta como um desafio no que se refere à validação dos envolvidos, tanto no que diz respeito ao processo quanto no que se refere ao resultado do projeto. Convidar os integrantes do MUSCAFO para atuarem como sujeitos ativos na investigação, por meio da metodologia DBR, integrando o processo técnico e criativo, não apenas contribuiu para a identificação dos problemas e necessidade do grupo; mas fez deles agentes fundamentais das revisões em ciclos iterativos, que procuraram contemplar as reivindicações técnicas, estéticas e principalmente identitárias que um projeto do tipo exige para uma validação final, coerente com a história e os discurso de resistência do espaço museal.

O objetivo maior do projeto foi atingido ao concluir o desenho pedagógico digital com os pareceres positivos dos responsáveis pelo MUSCAFO e dos convidados especialistas da área. Elementos e aspectos como interface gráfica, arquitetura da informação, navegação e usabilidade, narrativas históricas propostas e potencialidade pedagógica foram estudados pelos participantes e especialistas, revisados quando necessário, e aprovados para a sua implementação. O objetivo central da proposta foi contemplado, assim como foram realizados também o levantamento narrativo e pictográfico, a digitalização do acervo centenário do Museu e a reflexão quanto às práticas pedagógicas desenvolvidas com os visitantes. A partir de autores como Abranches (1989), Sansone (2013), Lévy (2003), entre outros, foi possível estabelecer um diálogo entre os espaços virtuais e físicos da instituição, pautado nos debates sobre representação identitária afro nos espaços museais e na importância da sua digitalização,.

Esse estudo também ressaltou alguns dos obstáculos para a implementação da Lei 10.639/03, os quais passam por uma discussão acerca dos vestígios do período escravocrata no Brasil. Identificou-se problemas estruturais da sociedade, entre outros contextos, no que concerne à intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana. Além disso, os debates dos autores aqui apresentados evidenciam essa problemática, presente em várias esferas da sociedade e torna urgente uma reação das instituições de ensino no intuito, no sentido de assumir seu papel como espaço de celebração da diversidade e de construção de um ensino voltado ao multiculturalismo.

E, nesse horizonte de oportunidades, os museus e as novas tecnologias digitais são provocados a desempenhar uma importante função, com a oportunidade de abrir o caminho para a pluralidade das narrativas culturais. Os museus, aliados às tecnologias, podem se tornar importantes agentes sociais de difusão e de preservação patrimonial da diversidade que forma o Brasil. Ou podem, também, aumentar ainda mais o abismo social, agora também digital, ao se omitir diante do quadro de desigualdade de acesso à informação, que se desenha na contemporaneidade, com um número significativo de desconectados e não letrados digitalmente.

Essa iniciativa é apenas um dos caminhos possíveis para contribuir com a luta de resistência e reparação histórica, após décadas de processos de invisibilidade social dos terreiros e museus afros. Essa discussão vem somar-se a outras propostas pedagógicas e oferece uma experimentação local cujo ciclo iterativo continua no comprometimento das pesquisas, voltadas à polifonia dos grupos que persistem e perseveram pela sua fé, em memória de cada Ialorixá e Babalorixá que desenhou com sangue e suor as trilhas do candomblé, até os dias de hoje.

2As entrevistas qualitativas foram realizadas com três integrantes do grupo, a pedido destes. Visto o sistema hierárquico do terreiro a ser respeitado pelos seus integrantes e pessoas externas que venham a desenvolver estudos sobre o espaço. Foram eles: Yiá Ginalva, líder do Terreiro, Edilma Chagas, Diretora do MUSCAFO e Brenno Mattos, vice-diretor do MUSCAFO. Nesses momentos, foram coletadas não apenas informações da história do grupo, seus líderes e impactos da sua ancestralidade no espaço, mas, também, aspectos estéticos e simbólicos importantes do Terreiro e Orixás que regem a casa para serem replicados no dispositivo digital.

3Prof. Dr. Kaio Eduardo de Jesus Oliveira, Prof. MSc. Leonardo Vieira Silva, Mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Profª Dra. Sara Perrella, Doutora em Cultura, educazione, comunicazione pela Università degli Studi di Foggia.

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Recebido: Junho de 2021; Aceito: Fevereiro de 2022

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