INTRODUÇÃO
“Não é um ano perdido graças à resistência das professoras!” - afirmação eufórica de uma colega professora, nos provocou discutir modos de viver as docências que estão sendo possíveis no contexto pandêmico. É possível perceber aspectos positivos para o fazer docente nesse contexto? O movimento de resistência bradado pela interlocutora na afirmação inicial indica que sim e com esta, concordamos. É neste sentido que este ensaio pretende discutir a possibilidade de o trabalho docente que está acontecendo neste período pandêmico ser entendido como modo de resistência, de enfrentamento de um tempo de incertezas e de medo.
As autoras, professoras e pesquisadoras narradoras, afiliadas ao campo curricular dos estudos com os cotidianos (ALVES, 2001; ALVES, OLIVEIRA, 2008), isoladas e afastadas do exercício presencial da docência, se colocam em diálogo a outros possíveis no enfrentamento do cenário posto e se lançam ao desafio de entrelaçar práticasteoriaspráticas em modo de argumentação. Sem desconsiderarmos a tragédia1 que estamos vivendo, mas a partir dela, desejamos tensionar entendimentos do tempo do medo e da morte em que vivemos. Neste sentido, partindo da premissa de que as invenções curriculares são produzidas cotidianamente e que, visibilizá-las é parte do que entendemos como ético, estético e político de pesquisar educação na contemporaneidade, questionamos possibilidades de pensar a produção das pessoas que inventam os cotidianos (CERTEAU, 1994) como modos de resistência na afirmação da vida em um tempo de morte.
No aporte epistemológico teóricometodológico com o qual operamos com o mundo, estamos dedicadas à compreensão de “[...] como cotidianamente são enredados os conhecimentos e realizados os currículos” (ALVES, OLIVEIRA, 2008, p. 11), e aqui, enredando outras concepções de tempo para pensar os tais “tempos de pandemia” nas escolas, bem como em elementos da noção de cognição como invenção (KASTRUP, 1999, 2007), para refletir outras lógicas temporais nos cotidianos escolares e universitários.
A noção da tessitura de conhecimentos em rede (ALVES, OLIVEIRA, 2008), em que teoricamente se sustentam as pesquisas desse campo, nos levam a trabalhar com a ideia de processos, e não de objetos; com a dúvida e a incerteza permanentes, assumindo a impossibilidade de verdade como absoluta e aceitando os pontos cegos, a incompletude de nossa compreensão. Nossas pesquisas entendem os múltiplos contextos cotidianos (SANTOS, 1995) como espaços vivos e pulsantes, de criação, de invenção no uso das regras e dos produtos supostamente impostos pelo poder proprietário (CERTEAU, 1994).
É a partir daí e mobilizadas pela afirmação de movimentos de invenção de si e de mundos que pensamos que “[...] mesmo no inferno, a vida insiste das mais variadas formas. O importante aqui é o fato de conseguir ver e se conectar com aquilo que no inferno dele difere para seguir abrindo mais espaços de arejamento por onde a vida passa...” (COIMBRA, 2021, p. 137).
Chrónos, Kairòs e Aión: relações possíveis entre tempos gregos e o tempo escolar
Ao eleger o tempo como elemento importante desde o início dessa discussão, nesta seção buscamos tensionar os sentidos hegemônicos em dimensões temporais com as quais nos habituamos, futuro, presente e passado, como um condicionamento produzido historicamente. Neste sentido, o modo cronológico em que o tempo escolar é predominantemente organizado, está fundamentalmente imbricado nesse condicionamento. A partir do que temos experienciando nos cotidianos escolares nesses tempos pandêmicos, nos colocamos a pensar na potencialidade que outras temporalidades e invenções podem ter nesses espaçostempos, na produção curricular.
Com Gumbrecht (2015), vimos pensando na visão de mundo ainda predominante, que apresenta como traços, a crença na possibilidade de “deixar o passado atrás”; de contar o futuro como horizonte aberto de possibilidades e de reduzir o presente como momento de transição entre passado e futuro. São traços que nos permitem esquecer justamente de possibilidades de existência de outras temporalidades. Com o autor, entendemos vida em um novo presente, cada vez mais amplo, e que ameaça nos esmagar – sobretudo nesse momento, em que “[...] o futuro não é mais como era antigamente2”.
Então, a presença do passado no presente é muito maior do que costumava ser antigamente. Entre aquele futuro já bloqueado e este passado que está inundando este presente, o nosso presente hoje já não é um presente estrito, um presente de pura transição, mas um presente cada vez mais amplo, um presente se amplificando, um presente de simultaneidades. Um presente que sempre já, desde o primeiro momento, é complexo demais. Um presente em que estamos navegando, mas no qual não temos mais um lugar natural (GUMBRECHT, HAMDAN, 2015, p. 836).
A noção de amplo presente de simultaneidades nos leva à importância de afirmar a resistência coletiva como modo de alargar um tempo em que se interprete e controle menos e acompanhe e ajude mais nas articulações compartilhadas de momentos presentes em cotidianos escolares e universitários. Esta compreensão nos leva a buscar diálogo com a Walter Kohan (2019), quando este sintetizar tempos gregos da seguinte forma:
Chrónos é o tempo do relógio, o número do movimento segundo o antes e o depois, o tempo que passa e não se detém. Chrónos tem duas partes: passado e futuro, com o presente como um limite entre os dois. É o tempo da ciência, da instituição, da história. Kairós é o tempo da oportunidade. O momento preciso. A qualificação presente no agora fugaz e não qualificado de chrónos. É um momento que se torna qualificado, único, singular, insubstituível. Já aión é o tempo da infância, do presente, do eterno retorno, brincadeira, do pensamento, da arte, da filosofia... do amor. Ama-se em aión, num tempo presente, de presença, de entrega, de arte (KOHAN, 2019, p. 131-132).
Assim, é possível pensar que, na intensidade e na duração das experiências temos outras possibilidades de perceber o tempo da vida humana com as professoras nas escolas e, muitas vezes, ambiguamente:
“Eu sento para responder um e-mail e vou resolvendo uma coisa e depois outra e quando vejo, o dia tá acabando! Não sobra tempo!” (Professora F.A)
“Tem dia que esse isolamento acaba com minha paciência! Já percebeu que uma reunião de duas horas que a gente faz parece que durou o dia inteiro?” (Professora A.R)
Desta forma, o tempo dominante da escola, o cronológico, o tempo do relógio, que conta as horas de aula, as “h/a”, os dias letivos, é empobrecido. Chrónos, colonizado pela lógica da modernidade ocidental, como tempo hegemônico, invisibiliza outras lógicas temporais que acontecem nas relações docentes e discentes. Criamos, inventamos, lemos, escrevemos, brincamos, filosofamos e amamos desafiando Chrónos em dimensões temporais outras, cujos sentidos não são quantificáveis.
O tempo da aula, que não está emparedado em sala de aula, ou o que flui pelos bits das redes sociais pode ser outro? Sendo Kairòs o tempo em potencial, como ele pode ser medido se quando produzido não pode ser mensurado, delimitado, ou confinado em uma linearidade? Kairòs pode ser o tempo da subversão não submetido à (mercado) lógica! Mesmo dependentes dos meios tecnológicos nas escolas não estamos totalmente mergulhadas no tempo capitalista. Por outro lado, sabemos que nossa docência deve muito ao corpo e se produzimos presença no tempo presente, como nos fazemos presentes numa escola sem corpos?
Com mais dúvidas, vagamos em Aión, o tempo realizado. Nele, nos abrimos ao devir, caminhamos por linhas de fuga que buscamos e que nos buscam quando nos dispomos a outras intensidades, a possibilidades no devir. Na dimensão aiônica, a criança brinca, o praticante inventa e o presente pode ser expandido! Em que situações conseguimos viver o tempo incerteza pandêmica como um contínuo presente em âmbito escolar; um “tempo-criança”, como aponta Kohan (2021)?
Com Boaventura (SANTOS, 2006) entendemos que a concepção ocidental de racionalidade é justamente a contração do presente com a expansão do futuro. Por isso, operando a partir das Epistemologias do Sul, a autor propõe o movimento inverso, de expansão do presente por meio da sociologia das ausências e de contração do futuro por meio da sociologia das emergências, pois “só assim será possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está um curso no mundo de hoje” (ibidem, p. 779). A dilatação do presente amplia o mundo e possibilita a valorização da riqueza social existente.
Entretanto, nos parece que, dadas algumas notícias atuais do (des)governo brasileiro, as quais nos remetem às absurdidades de Albert Camus, os tempos pandêmicos se distanciam da proposta de Santos (2006), tendo em vista que expansão do presente na Epistemologia do Sul se dá na visibilização e na valorização de grupos sociais e diferentes modos de vida, de saberes e de conhecimentos tratados como ausentes pela racionalidade moderna. Determinadas experiências nos atravessaram de modo tão contundente neste tempo pandêmico, que, mesmo incitadas ao alargamento do presente em desafio a Chrónos, vimos aprofundar a inviabilização, a invisibilização social, a subalternização de extratos sociais, muitos dos quais alijados de comunicação digital, por exemplo.
Aprofundando o diálogo, vamos compreendendo que fazer crítica à razão dominante da modernidade é condição necessária para a recuperação de experiências que estão sendo desperdiçadas de modo que “experiências produzidas como ausentes sejam libertadas dessas relações de produção e, por essa via, se tornem presentes” (ibidem, p. 789).
Invenções no tempo de aula?
Menina, o que você será no futuro?
-Florista.
- Aquela que cuida e vende flores?
-Não, professora. Aquela que inventa flores novas, diferentes, como uma azul.
#VidadeProfessora
Compreendendo os limites dados pelos aspectos inusitados do tempo da pandemia, buscamos abrigo na relação professora-aluno, naquilo que ocorre por meio do encontro deles mediados pelos ecrãs, nas telas. Nesse sentido, no acontecimento de uma aula, em um diálogo com a professora, a menina inventa uma florista de seus sonhos, que não é aquela que organiza flores. A menina acrescenta uma nova faceta para esse fazer: de invenção de novas espécies para o reino da botânica subvertendo a lógica adultocêntrica. Assim, em uma escala menor, podemos pensar que nas relações com as infâncias e seus tempos não cronológicos, vamos aprendendo o quanto esses encontros podem ser espaçostempos profanos de invenção de si e do mundo (KASTRUP, 2007), no tempo presente, cotidianamente tecido nas escolas, mesmo em tempos pandêmicos.
Quando aula é encontro (GARCIA, 2015), nossos corpos podem produzir paixões alegres e aumentar nossa potência de agir, segundo Spinoza. O que defendemos, revira a ideia de corpos objetivados pelo espaçotempo da aula cronometrada, seja presencial ou remotamente. Podemos pensar na escola como lugar onde as pessoas podem estar se afastadas por algum tempo da lógica escravizante da produção neoliberal. Nos instantes das aulas, nos nossos encontros, mesmo raros em tempos de solidão, Kairós, o tempo do momento oportuno, aparece de mãos dadas com o inesperado, naquele algo especial que acontece no plano de produção de subjetividades dos praticantespensantes (OLIVEIRA, 2012), nas interrogações que circulam como fluxos moventes na agitação criadora e incontrolável provocada pela alteridade. Nesse tempo, pequenas frestas de insubordinação temporal nascem e, pelos abalos afetivos, inventa, inventa-se, reinventa-se, inventanos outros; numa inventividade conduzida pelo movediço, pelo provisório.
Nesse sentido é que Masschelein e Simons (2014) compreendem a questão da profanação no tempo, do lugar e das coisas, ao se referirem às escolas como lugar e tempo para possibilidades e liberdade, já que na escola pode acontecer o desligamento das demandas da sociedade de mercado, (mesmo que precária e provisoriamente) ressignificando, no tempo presente, conhecimentos que circulam no mundo. Ao experimentá-los, fazem valer a permissão de que vivam a experiência de ser uma nova geração.
Sabemos que, mergulhadas ainda num tempo pandêmico, temos mais dúvidas do que certezas. O que estamos vivendo remotamente nas, das e com as escolas pode nos fazer manter o entendimento de tempo de aula como o de Chrónos ou como de Kairòs e Aión. Provisoriamente, com aqueles que podem estar conosco, vamos tecendo nossos conhecimentos juntos, ao mesmo tempo em que somos tecidas por eles. Mas com isso, não deixamos de refletir onde estão os outros, aqueles que não se conectam nas plataformas oferecidas como disponíveis; na pequena multidão de infâncias-mundo silenciadas, invisibilizadas.
Para Gumbrecht, a palavra “presença” se dá na relação espacial com “as coisas do mundo”, considerando “presentes” aquelas tangíveis de imediato contato com os corpos. São esses corpos presentes que inventam a si e ao mundo, de modo singular e coletivo nas redes complexas das relações, pelas histórias de vida entretecidas por meio de conversas, por leituras, debates, registros escritos, experiências narradas, discussões, fofocas e tantos outros modos... Com esse autor, afirmamos nossa produção de presença docente singular, expressa em movimentos rebeldes com os tempos que desafiam Chrónos.
Nossos argumentos aqui expostos não se dão sobre a escola. São entendimentos com as escolas, com as pessoas que inventamos os currículos nos cotidianos escolares e universitários. A pandemia nos suprimiu experiências físicas, mas no corpo sentimos os efeitos da presença dos nossos outros. Não há mais as salas de aulas que habitávamos como docentes da escola básica e do ensino superior público. Nos reinventamos, resistimos, reexistimos, modificamos e fomos modificadas por experiências (LARROSA, 2002) em docência a partir de modos rizomáticos de aprender e ensinar. Rizomamos em direções móveis, sem linearidade, sem início ou fim, como fazem os infantes-alunos presentes na narrativa abaixo, quando, provocados a pensar onde um peixe vive, atiram a docente em um “mar de possibilidades” de novas enunciações:
A professora planeja a confecção de sanduíches para sua turma de 5 anos. Entre os ingredientes, uma lata de sardinha. Informa sobre os nutrientes do peixe e arremata perguntando onde o animal vive. Trava-se um debate entre duas crianças:
- Tia, ela vive na loja.
- Que loja, cara?! Tá maluco! É sardinha!!! Você não sabe que ela vive no supermercado?!
#VidadeProfessora
De forma análoga à menina que inventa uma florista para si, o menino produz um novo habitat para as sardinhas adicionando criação, engendrando múltiplas invenções que provavelmente circularam nas subjetividades das outras crianças que partilharam daquele momento com ele. Para Maturana e Varela (1986) conhecer é viver e esse não se dá somente no plano das experiências, mas também e, ainda mais profundamente, de modo autopoiético. Nessa compreensão, aula, como espaçotempo profano de conhecer, é inventivo, porque “[...] ocorre entre a regularidade e mutabilidade, na combinação entre solidez e areias movediças” (MATURANA, VARELA, 1986, p. 205).
Assim, nesses tempos pandêmicos de interdição do lugar e do tempo do profano, desejamos seguir compreendendo as fricções que ocorrem e como ocorrem. Onde estão as profusões inventivas dos corpos de professores e estudantes produzidas nos espaçotempos escolares e universitários? Moveram-se das salas de aula, dos corredores barulheiros, da correria dos recreios, de espaços habituais de produção de diferença. Estão habitando chats, telas em plataformas educacionais, lives, podcasts. Aparecem em mensagens instantâneas particulares e em grupos, em videochamadas, em áudios, em vídeos caseiros curtos ou não, em filmes, nos “ei, professora, já viu isso no tiktok?!”. Seguimos produzindo outros meios de existir, resistir e reexistir em cotidianos que insistem no comum como modo de produção (NEGRI, 2017).
Diante da necessidade, dando continuidade à vida escolar, fomos submetidas a arremedos precários na criação de aulas sem lugar e sem tempo, perigosamente esgueirando, entre as armadilhas das corporações educacionais, senhoras de latifúndios digitais, famintas para capturar nossa profanação cotidiana e torná-la mercadoria. Ainda sem solução, temos experimentado um tempo outro, menos marcado por dias e noites, borrado nas fronteiras entre as tarefas e o lazer, o doméstico e o alheio. Sem dúvidas de que há o problema da exacerbação do tempo cronológico na escola e no exercício de ser docente, limitando nossas invenções. Há que visibilizá-lo pois aí desdobram fazeres e afazeres; sobram preocupações - mas afirmamos que temos sempre o devir, onde supomos, moram chaves para os enigmas que estamos vivendo.
A lógica do tempo escolar excessivamente cronológica transposta para o trabalho remoto traz consigo a dimensão de um estado que instala o cansaço pelo paradoxo da ausência de presenças físicas e da ânsia gerada pelo conteudismo – não negamos. Mas anunciando a vivência de outras dimensões temporais como formas de resistência em processos formativos, potencializamos experiências temporais outras no processo de produção curricular, as quais não sejam somente quantificáveis.
Assim seguimos: resistindo. Enfrentamos, no maior colapso sanitário da história do Brasil, o distanciamento físico dos nossos espaços escolares habituais. A pandemia que aí está não nos permite mais operar somente segundo a lógica exclusiva do tempo cronológico nos nossos cotidianos escolares e universitários e é isso que nos mobiliza a defender ainda mais intensamente a importância de esforços coletivos de ousarmos operar com outras lógicas temporais no campo curricular contemporâneo.