INTRODUÇÃO
Ao longo dos últimos anos, é observado o acelerado processo de fechamento das escolas do campo. Quando se compara as regiões brasileiras, os dados apontados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) sinalizam que o fechamento é ainda mais acelerado na região Nordeste, território em que somente no ano de 2019 foram fechadas mais de 29 mil escolas do campo (INEP, 2019). Essa situação se torna ainda mais agravada quando se faz um paralelo com o analfabetismo na região, que chega a 13,9%, sendo a maior taxa entre as regiões brasileiras (IBGE, 2019). Esses dados demonstram que existem várias lacunas referentes às políticas públicas voltadas para os sujeitos do campo; percebe-se, assim, que a educação, ainda que seja um direito garantido na Constituição Federal (BRASIL, 1988), não vem se efetivando de forma satisfatória no contexto camponês.
O que se observa é que, ao se implementar a política de fechamento das escolas do campo, é reforçada a lógica elitista que relega a educação do campo a planos inferiores, a partir da crença de que os camponeses não precisam de estudos, de aprofundamento intelectual (LEITE, 1999). Essa lógica é historicamente refletida na precarização das condições de infraestrutura, transporte, materiais didáticos para a educação do campo (LUTHER, GERHARDT, 2018). Sendo, portanto, o fechamento das escolas a culminância desse projeto de precarização, que aprofunda ainda mais as desigualdades educacionais existentes entre o campo e cidade, levando a uma série de consequências tanto na dimensão social quanto econômica.
Em resposta a essa estratégia de precarização e fechamento das escolas do campo, setores da sociedade civil têm se organizado para denunciar essas ações e, ao mesmo tempo, propor a concretização das políticas voltadas para o fortalecimento da educação do campo. Dentre essas articulações, uma das principais foi o movimento nacional por uma educação do campo1, que surgiu a partir do Encontro Nacional de Educação da Reforma Agrária (ENERA), no ano de 1997, o qual reuniu estudiosos, camponeses e movimentos sociais para pensar em políticas públicas e ações em torno da garantia do direito dos sujeitos do campo a uma educação que dialogue com seus modos de vida.
A partir desse marco temporal, as discussões em torno da educação do campo e as reivindicações para que as demandas fossem materializadas em políticas públicas que de fato atendessem as especificidades dos camponeses fortaleceram-se e conquistas foram alcançadas. Dentre elas, destaca-se a promulgação das diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo, por meio da Resolução CNE (Conselho Nacional de Educação) /CEB (Câmara de Educação Básica), de 3 de abril de 2002. As normativas cumprem a função de garantir proposituras mais específicas que as apresentadas na Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que, em seus breves artigos, não dão conta de compreender os territórios e as identidades camponesas em suas totalidades.
Apesar de avanços significativos, existem muitos desafios acerca das estruturas que mantêm a lógica de precarização da educação no território camponês, ainda pautada em moldes que cerceiam os direitos dos camponeses a uma educação contextualizada e libertadora2. O desmonte de vários direitos dos povos do campo foi uma prática recorrente nos últimos anos. Dentre esses retrocessos, destacam-se a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), que aconteceu no ano de 2019, com cortes de verbas no Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária (PRONERA)3 e em vários outros projetos e programas.
Esse cenário exigiu que organizações, movimentos e educadores caminhassem a partir da perspectiva de resistência e luta, na construção de um projeto que avançasse em diferentes territórios de atuação. Nesse sentido, o fortalecimento das articulações é uma das estratégias organizativas encampadas por esses sujeitos para que os direitos em torno da educação do campo sejam garantidos, ou, ao menos, mantidos.
É nessa perspectiva que se propõe refletir acerca da situação em questão, a partir da análise do papel organizacional da sociedade civil na luta contra o fechamento das escolas do campo, com o objetivo de traçar um breve panorama sobre as articulações em defesa da educação do campo e apresentar um estudo de caso, referente ao processo de resistência e luta relacionada à reabertura da Escola Municipal Maria Emília Maracajá, localizada no sítio São José do Bonfim, no município de Areia - Paraíba.
TERRITÓRIOS, SUJEITOS E CAMINHOS METODOLÓGICOS
Neste estudo, materializa-se parte do processo de luta junto à Escola Maria Emília Maracajá, que, a partir de ações coletivas, reuniu comunidade, mães, educadores populares, estudantes e líderes políticos locais, do território e do estado a se organizarem contra o fechamento da escola da comunidade São José do Bonfim, localizada no munícipio de Areia - Paraíba.
Esta pesquisa é um estudo de caso, que se alicerça a partir de uma abordagem qualitativa, nos fundamentos da pesquisa participante, que, mais que uma metodologia, surge no berço dos movimentos sociais também como forma de organização e sistematização dos processos de luta. É importante destacar que essa pesquisa faz parte de um contexto no qual os pesquisadores são também sujeitos do processo, configurando-se enquanto intelectuais orgânicos implicados no processo de organização, articulação e luta pela reabertura da escola Maria Emília Maracajá, e posteriormente, sistematização e análise da experiência.
Para Yin (2001, p. 21), “[...] como esforço de pesquisa, o estudo de caso contribui, de forma inigualável, para a compreensão que temos dos fenômenos individuais, organizacionais, sociais e políticos”. Os estudos de caso dialogam diretamente com a pesquisa participante. Brandão (2006) apresenta que essa abordagem metodológica está diretamente atravessada pelo campo da educação popular, destacando o contexto da América Latina, em que a pesquisa se configura enquanto sustentáculo do viés político e das ações dos movimentos sociais.
De acordo com Arroyo et al. (2008), o campo foi sempre tido como cenário esquecido e silenciado no meio das pesquisas, porém o autor coloca que, nos últimos 20 anos, a sociedade percebeu que o campo vive, passando assim a produzir uma dinâmica social e cultural, através de estudiosos que se reúnem, mobilizam, promovem debates, dentre outras ações junto às comunidades. Neste estudo, a partir de dados secundários, realiza-se um levantamento sobre o fechamento das escolas do campo nas regiões brasileiras entre 2018 e 2021; além disso, traça-se um breve panorama sobre as articulações em defesa da educação do campo. Em outra etapa da pesquisa, através do estudo de caso junto à Escola Maria Emília Maracajá, realizam-se análises a partir das práticas de pesquisadores educadores, pesquisadores militantes e pesquisadores participantes que misturam a vida com a pesquisa e a pesquisa com a luta.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Fechamento das escolas do campo: desafios, resistências e lutas
O fechamento das escolas do campo tornou-se uma prática vinculada a concepções políticas que se fundamentam nos moldes neoliberais, cujos alicerces se sustentam historicamente na negação dos direitos camponeses. Pesquisas apontam que, nas últimas duas décadas, entre os anos de 1997 e 2018, foram fechadas mais de 80 mil escolas no campo4. De acordo com um levantamento realizado a partir de estudos mais recentes, pode-se observar na Tabela 1 que, só entre os anos de 2018 a 2021, foram fechadas um total de 4.052 escolas do campo no Brasil. O recorte temporal apresenta um panorama da realidade que o campo brasileiro vive hoje, situação esta que continua avançando consideravelmente e que, consequentemente, tem levado o território do campo a permanecer sendo historicamente relegado a uma cultura de expulsão de camponeses. A região Nordeste é a mais afetada pelo fechamento, com um número de 2.883 escolas, o que corresponde a mais de 70% do total de escolas fechadas no Brasil.
Região | 2018 | 2021 | Escolas fechadas |
---|---|---|---|
Norte | 13.879 | 13.474 | 405 |
Nordeste | 30.842 | 27.959 | 2.883 |
Sudeste | 6.857 | 6.429 | 428 |
Sul | 4.407 | 4.140 | 267 |
Centro-Oeste | 1.624 | 1.555 | 69 |
Total | 57.609 | 53.557 | 4.052 |
Fonte: Adaptação dos autores a partir de dados do INEP (2018) e INEP (2021).
O movimento Por uma educação do campo, foi o embrião de políticas que pensavam e discutiam o campo como lugar de vida. Contrariando o ruralismo pedagógico5, o movimento reconstrói a lógica pedagógica junto ao ensino escolar, com respaldo de estudiosos, educadores, pesquisadores e comunidades. Diante desse cenário e apoiados por políticas de governo da época6, a educação do campo fortaleceu-se, culminando no avanço do debate teórico e prático, que se materializou em programas, projetos e políticas, como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem Campo - Saberes da Terra), o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (Procampo), que deu possibilidades para a criação de cursos de Licenciaturas em Educação do Campo, entre outros, como os já citados nas linhas introdutórias. De acordo com Medeiros, Dias e Therrien (2021) existem 45 cursos regulares de Licenciaturas em Educação do Campo no Brasil, distribuídos em 29 universidades federais e em 04 institutos de educação, ciência e tecnologia.
A negligência aos direitos dos sujeitos do campo faz-se presente em nuances que demonstram o não reconhecimento da escola enquanto parte do território camponês, escolas estas que têm um significado maior que um lugar de aprendizado: significa também um espaço de sociabilidade e interação entre a comunidade. Encontra-se, assim, um movimento que isola os camponeses, desagrega a luta, inviabiliza os avanços que estão sendo materializados e anuncia o esvaziamento do campo, em mais um processo de expulsão de camponeses do seu território de origem.
As reflexões e abordagens ora apresentadas são compostas por um movimento que dialoga com a força presente na história e com articulações, leituras e proposituras de enfrentamentos de questões reais e atuais que ameaçam diretamente as conquistas, os processos que estão em andamento e, principalmente, a vida pulsante no campo brasileiro. Essas análises fazem parte de um escopo prático e teórico em construção que dialoga com Arroyo (2008; 2014), Luther e Gerhardt (2018), Ribeiro (2010), Rodrigues et al. (2017), dentre outros.
Articulações em defesa da educação do campo: fóruns e campanhas que fermentam a luta
Pretende-se nesta seção apresentar algumas articulações e campanhas que, ao longo da trajetória de luta pela educação do campo, promovem o debate, provocam a reflexão, propõem estratégias de construção/efetivação de políticas públicas e engendram conquistas que fortalecem a consolidação da educação do campo. Nesse sentido, destaca-se neste trabalho o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), criado em 2010, como uma das principais articulações no que concerne à luta em defesa da educação do campo em nível nacional, além de outras redes, como a Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB), criada em 2000, a Campanha Nacional contra os Fechamentos das Escolas do Campo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), lançada em 2011, e a campanha Raízes se formam no campo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), lançada em 2021.
O FONEC foi idealizado a partir de um encontro realizado em Brasília com a presença de movimentos e organizações sociais e sindicais do campo, universidades e institutos federais de Educação com o objetivo de promover o exercício da análise crítica constante, severa e independente acerca de políticas públicas de educação do campo, bem como a correspondente ação política com vistas à implantação, à consolidação e até mesmo à elaboração de proposições de políticas públicas de educação do campo (FONEC, 2010).
As articulações em torno da pauta central da defesa da educação do campo; denúncia aos retrocessos e problemáticas; e proposições de construção coletivas de possibilidades permeiam toda a ação do FONEC, que, nos anos de 2015, 2017 e 2019, garantiram a agenda nacional de encontros dos movimentos sociais, instituições de educação e organizações não governamentais, que, refletindo sobre a conjuntura, analisando a realidade e estudando as possibilidades, apontam caminhos para o fortalecimento das articulações em níveis local, regional e territorial como estratégia de consolidarem frentes organizadas de mobilização, lutas e proposições para a educação do campo.
Com 10 anos de existência completados em 2020, o fórum mantém sua característica de defesa da educação do campo alinhada às análises da realidade. Nesse ano, a pauta central estava relacionada aos impactos da Doença por Coronavírus - 2019, ou Coronavirus Disease 2019 (COVID19), de modo que foi apresentado o documento Direito à Educação em Tempos de Pandemia: defender a vida é mais do que reorganizar o calendário escolar, provocando também a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, para que analisasse as considerações do fórum (FONEC, 2020a, 2020b). Ainda em 2020, o Fórum ampliou a possibilidade de abrangência virtual a partir da promoção da TV FONEC em uma plataforma de vídeos na internet.
Entende-se que as estratégias de articulação do FONEC se constituem amparadas na lógica de organização inspiradas nos movimentos sociais, que buscam alterar a estrutura da educação predominante a partir da força social e estabelecimento de redes de enfrentamento e anúncios de outra forma de pensar e fazer educação. Essa aglutinação de diferentes setores da sociedade tem se mostrado fundamental e cada vez mais urgente quando se observa a grandeza de desafios a superar no que diz respeito à garantia do direito dos povos a uma educação que verdadeiramente atenda às suas demandas e valorize seus saberes.
Destaca-se também o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, um movimento camponês oficializado em 1984 no I Encontro dos Sem Terra, em Cascavel, no Paraná, que tem se organizado em âmbito nacional, pautando a reforma agrária (MOREIRA, COSTA JUNIOR, 2020). Para além da luta pela terra enquanto principal bandeira do movimento, o MST, a partir da consolidação do setor de educação em sua organicidade tem empreendido esforços para construir coletivamente um conjunto de práticas educativas na direção de um projeto social emancipatório, protagonizado pelos trabalhadores e trabalhadoras (MST, 2022).
Dentre as ações promovidas no eixo da educação, enfatiza-se a Campanha Nacional contra o Fechamento e pela Construção de Escolas no Campo. Com o slogan Fechar escola é crime!, a campanha, com início em 2011, teve como objetivo promover o debate sobre a educação do campo com o conjunto da sociedade, articulando diversos setores contra os retrocessos relacionados à educação, principalmente no meio rural e denunciar a continuidade dessa política (ALBUQUERQUE, 2011).
Diversas ações têm sido realizadas ao longo desses onze anos de campanha, desde atos de rua, com o propósito de denunciar e dialogar com a sociedade sobre os impactos desses fechamentos, à ocupação de núcleos estaduais de educação, para reivindicar junto aos gestores a reabertura de escolas e estruturação de outras.
Outro espaço de articulação é a Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB), que congrega militantes, educadores, estudiosos, organizações governamentais e não governamentais e diversos membros da sociedade civil organizada que lutam por uma educação contextualizada, em cuja sua gênese respeite as particularidades e diversidades do Semiárido Brasileiro (SAB).
A RESAB surgiu no ano de 2000, promovendo ações e organizações em todos os territórios do SAB. A rede tem como principal objetivo formular políticas públicas educacionais e fomentar ações a partir dos princípios da Educação para a convivência com o SAB (ARAÚJO et al., 2017).
A rede conta hoje com uma experiência de articulação que possui mais de 20 anos de história e vem construindo processos significativos nos territórios do SAB, articulando educação em ambientes escolares e não escolares e construindo um arcabouço prático e teórico no campo da educação contextualizada para a convivência com o SAB.
Além das articulações apresentadas, destaca-se a Campanha da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)7, Raízes se formam no campo: educação pública e do campo é um direito nosso! A campanha é um movimento de articulação que denuncia e luta contra o fechamento das escolas do campo, cujo objetivos são apresentados na Carta Manifesto em Defesa das Escolas do Campo (CONTAG, 2021a).
A campanha da CONTAG foi um importante passo, em função da força de articulação da Confederação, que congrega muitas frentes camponesas de base e tem uma história de mais de 50 anos no Brasil. Assim, essa articulação passa por um movimento de denúncia do desmonte que vem ocorrendo nas últimas décadas nos territórios camponeses com o fechamento das escolas e, ainda, anuncia possibilidades de organização a partir de uma ótica de educação que respeite as territorialidades camponesas e esteja embasada nos princípios de uma educação emancipadora e dialógica.
A Escola Municipal Maria Emília Maracajá: contexto, luta e conquista
A Escola Maria Emília Maracajá está localizada no sítio São José do Bonfim, município de Areia, Paraíba, Brasil, e existe há 34 anos na comunidade, cumprindo um papel social que vai além da alfabetização. Desde sua fundação, sua história é marcada pela participação ativa da comunidade na qual ela está inserida. Parte dos funcionários da escola são da comunidade e também foram educandos dela. Além do sítio São José do Bomfim, a escola recebe crianças de comunidades próximas, funcionando com três turmas multisseriadas da seguinte forma: ensino infantil - pré I e II, ensino fundamental - 1° e 2° anos e 3° e 4° anos.
Ao final de 2017, a comunidade escolar foi surpreendida com o aviso por parte do gestor sobre o fechamento da escola sob a argumentação de que ela estava gerando gastos. No entanto, a escola é uma unidade gestora que se mantém com a verba advinda do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e o corpo de funcionários são efetivos. As mães dos estudantes negaram a proposta de fechamento da escola, tendo em vista o significado daquele espaço para a comunidade, como afirmou um dos pais e ex-estudante: “Essa escola é como uma célula do nosso corpo, não podemos fechar” (Pai, 2017). Essa afirmação mostra o real sentido da escola numa comunidade, um espaço que vai além do alfabetizar, um espaço que se configura enquanto espaço de vida, de fortalecimento de vínculos entre a comunidade.
Além da importância e significado da escola, as mães também se colocaram contra o fechamento, apontando o desafio estrutural, justificando que a escola para a qual os estudantes iriam, além de ser mais distante de suas residências, já estaria com lotação completa das turmas, e que isso poderia atrapalhar o processo de ensino e aprendizagem de seus filhos.
Diante desse contexto, passa-se, junto ao coletivo, a refletir sobre as possibilidades de resistência. Assim, questiona-se: o que diz a legislação sobre os trâmites para o fechamento das escolas do campo? A Lei n. 12.960, de 27 de março de 2014, assim determina:
[...] o fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas será precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar (BRASIL, 2014, s. p., grifo nosso).
Considerara-se ainda que “[...] o fechamento de escolas sem a prévia oitiva do Conselho Municipal de Educação, e a garantia da participação da comunidade escolar, viola os princípios da gestão democrática e vedação do retrocesso” (MOREIRA, 2017, s. p.).
E, ainda, reiterando tal afirmativa, a Lei n. 9.394/1996 enfatiza em seu Art. 4° que é:
[...] dever do estado a educação escolar pública e estipula algumas prerrogativas, com destaque para seu inciso X, que define a exigência de vaga na escola pública de educação infantil ou de ensino fundamental mais próxima de sua residência a toda criança a partir do dia em que completar 4 (quatro) anos de idade (BRASIL, 1996, s. p.).
Apesar do direito garantido nas legislações citadas acima, a Escola Maria Emília Maracajá foi fechada no de 2018. No entanto, as mães e pais não aceitaram de maneira passiva a decisão arbitrária pelo fechamento. E iniciou-se o processo de mobilização e luta pela reabertura da escola.
Assim, a comunidade escolar, passou a se organizar e buscar apoio para reabrir a escola. Movimentos sociais e/ou instituições somaram-se a essa luta, tais como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Levante Popular da Juventude8, o MST, o Fórum dos Assentados da Paraíba, a Rede de Educação do Campo do Polo da Borborema, a Associação dos Educadores do Município de Areia-PB (ASSEMA), o Sindicato dos Trabalhadores Públicos Municipais do Agreste da Borborema (SINTAB), o Serviço de Educação Popular (SEDU), a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e representantes do legislativo municipal e estadual.
Nesse processo, o coletivo traçou algumas estratégias de organização, para criar formas de enfrentamento. Houve a demarcação da luta a partir de duas linhas de ação: linha 1 - visibilidade, articulação e organização da luta contra o fechamento da escola: a ideia desse eixo era apresentar à comunidade as problemáticas e desafios que vinham sendo enfrentados pela comunidade/escola. Assim, foram realizadas audiências públicas, denúncias em programas de rádio e atos públicos na cidade de Areia-PB, para provocar pressão política e ampliar a rede de apoio contra o fechamento da Escola Maria Emília Maracajá, e a linha 2 - resistência da escola na comunidade: essa linha de ação contou com um processo de articulação prática, junto à comunidade, por meio de um movimento de resistência e reabertura da escola. É importante destacar que a sistematização dessas estratégias de ações foram processos vivenciados a partir da pesquisa participante.
A partir da resistência dos responsáveis públicos ao diálogo, as mães decidiram por não matricular seus filhos na escola indicada para o destino das crianças e, inicialmente, buscaram o apoio do MPA para compreenderem as melhores estratégias coletivas. Assim, foi dado início ao processo de mobilização da comunidade com o intuito de dar visibilidade à luta. Compreendeu-se que além do desejo da permanência da escola aberta, existiam leis que asseguravam o direito de educação para seus filhos e filhas em território de origem, o que motivou ainda mais a organização da comunidade escolar para reabertura da escola.
Em janeiro de 2018, ao saber de uma audiência pública com o ouvidor do Ministério Público da Paraíba no município de Areia, as mães juntamente com o MPA participaram e denunciaram o fechamento da escola sem a anuência dos responsáveis. Logo em seguida, utilizaram um programa de rádio do município para comunicar a população sobre a situação e solicitar apoio da sociedade.
No início do ano letivo do município, em 31 jan. 2018, apesar de a escola estar fechada, foi organizada uma aula pública simbólica em frente ao prédio da escola com o tema: “Não vou sair do campo para poder ir para escola, educação do campo é direito e não esmola”. Mães, crianças, educadoras e comunidade fizeram-se presentes como forma de fortalecerem as articulações e de pressionarem o gestor para que a escola fosse reaberta. Fortalecida, a comunidade decidiu que as crianças iriam permanecer sem se matricularem em outra escola, e que as mães juntamente com os apoiadores iriam permanecer em luta para que a Escola Maria Emília Maracajá fosse reaberta pelos gestores.
Permanecendo com a estratégia de dar visibilidade e pressionar para que atitudes fossem tomadas, além de acionar o Ministério Público, a comunidade denunciou o fechamento no Conselho Tutelar do município, na Secretaria de Educação do Estado. O MPA encaminhou a denúncia do fechamento arbitrário e o apelo pela reabertura da escola através de um abaixo assinado da comunidade e apoiadores no Ministério Público Federal, na cidade de Campina Grande - PB, o que refletiu na iniciativa do requerimento, por parte de um deputado, à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados para que fosse averiguado o impacto do fechamento.
Também foram solicitadas audiências públicas, tanto a partir do poder legislativo municipal, quanto estadual, com o prefeito, na tentativa de que, a partir do diálogo, a demanda da comunidade escolar fosse atendida. A temática também foi ponto de pauta na reunião do Comitê Estadual de Educação do Campo, como forma de dar uma amplitude estadual ao caso e fortalecer ainda mais a luta. E atos de rua foram realizados para manter a população informada sobre a situação da luta e pressionar para que o desfecho fosse favorável à comunidade escolar.
A partir da pesquisa de campo e acompanhamento do processo de luta, foi observada a necessidade de criação de alternativas para ministrar as aulas. Diante desse contexto, com o objetivo de que as crianças não perdessem o ritmo dos estudos, mães e educadoras criaram salas improvisadas no terreno da escola, e as educadoras dispuseram-se, voluntariamente, a ministrar as aulas. Para conseguirem uma estrutura mínima de sala de aula, foi lançada a campanha: Escola Maria Emília Maracajá Resiste, para arrecadação de materiais didáticos e suporte estrutural para o levantamento das salas. Assim, os pais e apoiadores construíram duas salas com bambu e lona, onde as crianças começaram a ter aulas. As mães, por sua vez, dispuseram-se a fazer a merenda, e as aulas foram conduzidas nesse ambiente como forma de resistência9.
No decorrer do processo, muitos desafios foram encontrados, como ameaças ao corte do bolsa família, em virtude da não matrícula das crianças, intimidações a profissionais da educação, dentre outras situações que tinham como principal foco a desarticulação do movimento, entretanto, naquele local, construiu-se um espaço de organização sólido e fortalecido por pais, mães, educadores, comunidade e apoiadores. Esse coletivo conseguiu construir um espaço solidário e repleto de organicidade.
O fechamento da escola e a resistência na manutenção das aulas em salas de lona foram divulgadas pela mídia (jornais, sites de notícias, redes sociais), um movimento com uma grande visibilidade e tomando grandes proporções. Mesmo diante das denúncias, pressões midiáticas e movimentos sociais, a gestão optou por manter o fechamento da escola.
Em março de 2018, uma ação pública foi ajuizada pelo Ministério Público da Paraíba na qual a promotoria solicitou uma liminar para que a justiça determinasse à Prefeitura de Areia a reabertura das escolas que foram fechadas no município. Enquanto a decisão não saía, as aulas permaneceram nas salas de lona, e a mobilização social continuou.
Após quatro meses em luta pelo direito à educação na comunidade, a justiça decidiu pela reabertura da escola, que voltou a atender as 47 crianças matriculadas. Em um cenário em que o fechamento das escolas do campo tem-se tornado prática constante dos gestores, a vitória da comunidade de Areia traz ensinamentos valiosos. A Escola Maria Emília Maracajá ensinou, nesses quatros meses, muito além do bê-á-bá, a comunidade deu aula de cidadania, de solidariedade, de incidência política, do poder da organização popular e protagonismo feminino para a conquista de seus direitos. Ensinou que os movimentos sociais e a sociedade civil organizada são fermentos que fazem a luta crescer. Ensinou que resistir não é palavra, é ação.
Arroyo (2014, p. 16) sinaliza que: “Na medida em que esses coletivos exigem ser reconhecidos sujeitos políticos de uma tensa história de libertação/emancipação estão a exigir o reconhecimento de serem Sujeitos de Outras Pedagogias de libertação/emancipação”. Assim, esse movimento bebe na história embrionária da educação do campo, na luta por uma educação que respeite os territórios e identidades camponesas, o que só é possível se escolas, a exemplo da Escola Maria Emília Maracajá, continuarem abertas, vivas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível perceber que existem vários movimentos de resistência contra o fechamento das escolas do campo, estes ocupam várias frentes, materializando-se enquanto grandes articulações em redes que lutam e resistem, construindo propostas, políticas e ações que orientam contra o fechamento arbitrário das escolas do campo no Brasil.
Esse estudo serve de subsídio para se pensar em possibilidades concretas nos territórios da educação do campo, diante do cenário abissal que se materializou nas últimas décadas no Brasil. A reabertura é uma conquista importante e se configura enquanto inspiração para a resistência de outras comunidades e territórios. Contudo, muitos desafios ainda estão postos, entre eles, o de que as políticas públicas voltadas para a educação do campo sejam implementadas na Escola Maria Emília Maracajá, que o município reconheça a importância da educação do campo e adote medidas para efetivá-la.
Por fim, observa-se que existem duas linhas quando se pensa na superação dos inúmeros desafios impostos: a linha central diz respeito à resistência ao não fechamento das escolas do campo, a outra linha, refere-se à luta pela reabertura das escolas do campo que infelizmente foram fechadas de forma arbitrária. A saída para a superação se dá necessariamente pelo fortalecimento das comunidades, organizações e articulações que resistem e defendem outro tipo de educação.