“Acontece que se trata da necessidade premente de espremer as palavras e de torcer a língua, de botar a guinchar os textos e de trapejar as práticas da tradição na pesquisa”
Sandra Mara Corazza
Obra de fôlego, Discurso educacional contemporâneo: inventário analógico, de Julio Groppa Aquino, apresenta-se como um imenso vestígio de ideias pedagógicas em circulação no Brasil entre os anos de 1986 e 2019. Tomando como corpus documental 10 revistas de referência na imprensa periódica educacional,1 o estudo tem como matéria 1.165 entrevistas concedidas por 896 expoentes do campo pedagógico (304 estrangeiros/as e 592 brasileiros/as). O resultado: 5.000 excertos divididos em 332 verbetes dispostos em 7 grandes sessões (Grandezas e durações; Emergências e cânones; Gestos e afetos; Culminâncias), além de um índice onomástico e outro remissivo, com 332 verbetes extras – oferecidos como uma espécie de convite a uma nova montagem –, a listagem das fontes e um posfácio (in memorian et in corde dividido com Sandra Mara Corazza), totalizando 1.216 páginas.
Esse amplo quadro diacrônico diz respeito tanto à história das narrativas pedagógicas em curso no país quanto à da intrincada mecânica de governamento docente apregoado pela expertise intelectual em destaque, de modo que o arranjo final é também um inventário crítico de princípios, opiniões e indicações gerais de conduta dirigidas aos/às agentes educacionais nas últimas décadas. Um contorno discursivo de nossas experiências, portanto.
Esse livro um tanto escrupuloso – pois não pretende outra coisa, em sua exposição, senão entabular um “[... ] trabalho de edição ou, em última instância, de curadoria no tocante à montagem/remontagem dos discursos sob exame” (AQUINO, 2021, p. 13) – é também um livro pessoal; nele o autor toma partido, por meio das múltiplas vozes extraídas de outrem, não apenas sobre os problemas da crescente “[...] pedagogização do pedagógico” (AQUINO, 2019, p. 314), mas também sobre o próprio problema teórico-metodológico das pesquisas no campo educacional. Nesse aspecto, o procedimento investigativo que envolve o estudo instaura duas ordens de leitura: a primeira, guiada pela mão do pesquisador, é uma leitura aparentemente contínua, que segue o curso grandioso dos verbetes e das passagens neles contidas – o rigor estrutural da obra trabalha em favor dessa leitura em linha reta: ordenação cronológica de 15 passagens de até 90 palavras para cada verbete, como forma de preservar uma uniformidade textual e de evitar qualquer tipo de privilégio a este ou aquele verbete e/ou depoente.
A segunda leitura é uma leitura de bastidor, pré-textual, relativamente independente daquilo que é reunido e exposto em cada uma das sessões. Nela, o que lemos é certa ideia de arquivo, maiormente eivada por uma perspectiva impura de pesquisa. Na companhia de Michel Foucault e de seus interlocutores, o autor-arquivista é antes um apropriador, que escreve sem escrever. Enunciado no prólogo, o princípio geral da pesquisa – “[...] jamais representar, jamais falar em nome de outrem, jamais submetê-lo a qualquer grilhão hermenêutico” (AQUINO, 2021, p. 13) – sugere um procedimento de seleção e montagem cujo objetivo geral é criar condições para um movimento de sentido orientando por um estilo de pensamento que também é conector, e não decodificador.
A mão que recorta e transcreve repete o dito e escrito, mas não o reproduz: deslocado e atualizado em uma montagem não-original, o referente é parte de uma trama intervalar, dentro da qual ele redimensiona e é redimensionado pelos elementos com os quais divide uma mesma superfície sem fundo. Por exemplo: o verbete Zero, que inaugura a sessão Grandezas, reúne nomes como Paulo Freire, Yves de la Taille, Rubem Alves, Ignácio de Loyola Brandão e Maria do Pilar Lacerda. O que os aproxima não é uma categoria temática comum, e sim o termo específico que é destacado dos fluxos discursivos e nomeia a montagem que eles encerram no livro.
O arquivista é um operador da palavra, uma vez que é pela palavra, significante maior, que os intervalos espaço-temporais são traçados. Assim, o zero é signo ideológico em Paulo Freire; consequência de um problema político em Yves de la Taille e Maria do Pilar Lacerda; questão didática com Rubem Alves; matéria de memória e traço geracional através de Ignácio de Loyola Brandão. Se o arquivo, tal como nos ensinam as lições foucaultianas, determina a lei e os limites do dizível em determinado contexto histórico, o inventário aqui em destaque torna explícita a condição plástica de suas fronteiras. À leitura em linha reta cabe testemunhar os termos circulando de excerto em excerto no interior de um mesmo quadrante, descortinando assim o gesto legitimamente autoral daquele que re-tece os discursos em um novo roteiro.
Roteiro, aliás, é uma palavra bastante adequada a este estudo. Não apenas porque sua composição é fruto de uma rigorosa operação de passagem, apropriação e recriação por entre a discursividade documentada, mas também pelo intenso potencial exploratório sugerido por sua leitura. Caso não queira acompanhar a sequência proposta pelo autor, o/a leitor/a pode, por exemplo, tomar como guia o índice onomástico, detendo-se na realidade narrativa de um ou outro nome – nesse caso, poderá verificar, entre outras coisas, que António Nóvoa detém o maior número de entrevistas (são 9 concedidas para 7 diferentes revistas) e de incidências nos verbetes (39 fragmentos). Ou então circular por uma revista à sua escolha, delimitar um arco temporal de sua preferência, buscar temas específicos no índice remissivo, transversalizar de diferentes modos o arquivo.
Sobre o próprio método, o autor age à espreita de persistências de leitura, pinçando os termos mais recorrentes na massa documental analisada. A partir deles, extrai e agrupa passagens de texto em arranjos anacrônicos, de modo a tensionar diferentes temporalidades. Entendendo que o pesquisador arquivista tem como matéria o presente que compartilha com seus contemporâneos – “[...] esse acontecimento ainda sem nome, sem sentido e, portanto, sem razão de ser assim” (AQUINO, 2021, p. 13) –, Aquino sugere uma longa série de miradas caleidoscópicas para o campo educacional que nos abriga, em um jogo que acolhe diferentes personagens e contextos (impossível e milhões, os dois verbetes com maior espessura temporal dentro da obra, abarcam enunciados proferidos nos anos de borda da pesquisa, 1986 e 2019). Desse modo, o que está sendo proposto é um pensamento de resquícios, cuja imagem é efeito não do acúmulo do que já foi dito, mas sim do arranjo daquilo que persiste no que foi dito em seu modo de atualização no presente.
É aí que a obra depara um problema decisivo, que é o da articulação entre a pesquisa educacional e a sua forma de expressão; longe de configurar uma simples reposição de dados obtidos junto a fontes empíricas reunidas em sua biblioteca, o autor faz do inventário uma zona de cruzamentos e de encontro entre matérias até então incomunicáveis, e o que vemos emergir daí, como uma espécie de indireto, é uma discursividade híbrida, com força suficiente para instaurar novos estilos de presença no presente educacional.
Nenhum dos verbetes em destaque traz afirmações verdadeiras ou falsas, justamente porque o que convém ao trabalho é a legitimação de suas existências e a afirmação de uma diferença: é porque a montagem não suprime a alteridade de seus elementos; é porque o trabalho com o arquivo se traduz em uma estrutura assimétrica, plena de passagens, pontos cegos, ruídos, desvios de sentido; é porque a lista dos/as entrevistados/as e o manejo de suas palavras nos ensina que a pesquisa, assim como a docência, começa nas costas, na forma como a coluna se alinha a certo passado eleito, desde que se debruça sobre a matéria que escolheu cuidar; é por isso e sobretudo pela defesa incondicional de um diferenciar-se através daquilo que se é feito – o estremecimento de um fazer futuro animando o quadro imóvel dos discursos, seus riscos e seus chamados, sua própria aventura – que esta coleção de nichos analógicos, com a generosidade do gesto que a prepara e a oferece, deve nos interessar.
A obra está disponível no Portal de Livros Abertos da USP.2