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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.75 Rio de Janeiro oct./dic 2023  Epub 26-Dic-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.79062 

“Vocês são importantes…”: questões de alteridade e diferença nas políticas curriculares

UMA PROFESSORA QUE CONTA HISTÓRIAS SOBRE INFÂNCIAS: gêneros e sexualidades dissidentes na escola

THE CHILDHOOD STORIES TOLD BY A TEACHER: dissident genders and sexualities at school

UNA MAESTRA QUE CUENTA HISTORIAS DE LA INFANCIA: géneros y sexualidades disidentes em la escuela

Dina Maria Vital Ávila1 
http://orcid.org/0000-0002-9045-0472; lattes: 7736432793596113

Marcos Ribeiro Mesquita2 
http://orcid.org/0000-0002-1642-0259; lattes: 9059784963404615

1Universidade Federal de Alagoas

2Universidade Federal de Alagoas


Resumo

O artigo propõe discutir os impactos do dispositivo curricular na constituição das infâncias dissidentes da norma de gêneros e sexualidades. Para tanto, lança mão dos registros feitos em um caderno, o qual nomeamos de diário de memórias do cotidiano escolar. Tais registros representam as cenas que tratam dos modos de resistência das infâncias em dissidência à norma, e estão relacionados às observações de uma professora a partir dos tempos e espaços de uma escola da etapa do ensino fundamental, ao longo de um ano letivo. Como objetivo visamos discutir o currículo a partir da presença das infâncias dissidentes da norma de gêneros e sexualidades. Trata-se de uma discussão pautada nas teorizações e metodologias pós-críticas em educação e currículo, as quais concebem a constituição dos corpos como efeito das práticas discursivas e das relações de poder. O estudo observou que, frente às estratégias forjadas pelo poder, estas infâncias criam brechas de fuga em prol de paisagens curriculares de liberdade, agindo em defesa do direito à vida como modo de sobreviver às tramas que constituem este dispositivo. Além disso, observou também que apesar de nos últimos anos a escola ter sido alvo de ataques ultraconservadores, esta instituição tem se politizado, expandindo-se para novas experiências na perspectiva de gêneros e sexualidades.

Palavras-chave: currículo; gêneros e sexualidades; infâncias.

Abstract

The article seeks to discuss how the structure of the school’s curriculum impacts the constitution of dissident childhood from the norm of genders and sexualities. For this research, it was provided writings from a notebook in which was named school daily memories diary. These writings represent fundamental materials that deal with the childhood forms of resistance when confronting the dissident curricula norms. The research seeks to interpret the functioning of the academic year through the lens of an elementary and middle school teacher. The research’s main goal is to discuss the curriculum based on the presence of childhood that deviates from the norm of genders and sexualities. This discussion is based on post-critical theory and methodology in education and curriculum, in which understand the constitution of bodies as an effect of discursive practices and power relations. The study observed that in the face of strategies forged by the power of the norm, childhood creates escape movements in favor of a more diverse, free and inclusive curriculum. Acting in defense of the right to life as a way of surviving in this structure. Furthermore, it was also observed that besides in recent years the school has been the target of ultra-conservative attacks, this institution has become politicized, in a way to expand and be more open to perspectives of genders and sexualities.

Keywords: curriculum; genders and sexualities; childhoods.

Resumen

El artículo propone discutir los impactos del dispositivo curricular en la constitución de infancias que se desvían de la norma de géneros y sexualidades. Para ello utiliza los registros realizados en un cuaderno, al que llamamos diario escolar de memorias. Estos registros representan escenas que abordan las formas de resistencia de las infancias en disidencia de la norma, y se relacionan con las observaciones de una docente desde los tiempos y espacios de una escuela primaria, a lo largo de un año académico. Como objetivo pretendemos discutir el currículo a partir de la presencia de infancias que se desvían de la norma de géneros y sexualidades. Se trata de una discusión basada en teorizaciones y metodologías poscríticas en educación y currículo, que conciben la constitución de los cuerpos como efecto de prácticas discursivas y relaciones de poder. El estudio observó que, frente a las estrategias forjadas por el poder, estas infancias crean brechas de escape a favor de paisajes curriculares de libertad, actuando en defensa del derecho a la vida como forma de sobrevivir a las tramas que constituyen ese dispositivo. Además, también señaló que, si bien en los últimos años la escuela ha sido blanco de ataques ultraconservadores, esta institución se ha politizado, ampliándose a nuevas experiencias desde la perspectiva de géneros y sexualidades.

Palabras clave currículum; géneros y sexualidades; infancias.

UMA PROFESSORA QUE CONTA HISTÓRIAS SOBRE INFÂNCIAS

Histórias, criações, ficções e invencionices constituem a desafiadora arte da escrita sobre os modos de resistência das infâncias dissidentes das normas de gêneros e sexualidades que constituem o currículo. Estas histórias brotam das experiências de uma educadora que não quer apenas enunciar, mas também ser o que narra (Motta, 1996). São histórias que se lançam nestas páginas, não por acaso, para revelar e (re)produzir experiências infantis vivenciadas no território da educação escolar. Larrosa (2022, p. 10) aponta que “[...] a experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme [...], algo que luta pela expressão [...], quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto”. Os cantos são sentidos que criam realidades e operam como dinâmicos mecanismos de subjetivação (Larrosa, 2022). Trata-se de cantos-resistência capazes de (des)tecer alguns discursos de efeitos normativos e libertar os saberes e desejos que não se ajustam à norma.

A intenção das narrativas-escritas nestas páginas não é demarcar verdades e “[...] transmitir o já sabido” (Larrosa, 2022, p. 7), mas (trans)criar e libertar experiências e afetos escondidos que clamam por expressão. Neste sentido, a experiência pode se converter em linguagem. A este respeito, Louro (2007, p. 236) aponta que “[...] não se trata de referir simplesmente que a linguagem que usamos reflete nosso modo de conhecer, e, sim, de admitir que ela faz muito mais do que isso, que institui um jeito de conhecer”; de produzir e dinamizar os corpos. Um jeito de transformar. Trata-se de pensar uma escrita em palavras e uma linguagem em experiências que nos liberte das verdades pelas quais educamos, e que fomos educadas/os. “Quem sabe assim possamos ampliar a nossa liberdade de pensar a educação e de nos pensarmos a nós próprios, como educadores” (Larrosa, 2022, p. 7).

Diz respeito a contar histórias em palavras sobre as práticas curriculares e o exercício do poder que atua com táticas disciplinares, as quais, a partir de uma anatomia política e econômica de técnicas minuciosas, dotadas de pequenas astúcias e um grande poder, buscam dar forma à (re)produção e a manutenção de corpos-sujeitos educados e obedientes (Foucault, 2011; Preciado, 2013; Paraíso, 2018).

Neste sentido, as práticas curriculares do cotidiano escolar podem possibilitar às/aos contadoras/es de histórias que investigam as infâncias, que utilizem deste dispositivo como uma ferramenta de análise, “[...] não como um fim em si” (Corazza, 2004, p. 44), mas como um meio para encorajar-nos, assim como para avivar as práticas sociais da instituição educacional, no sentido de organizar estratégias de resistência à opressão e contestação das estruturas de poder dominante. Equivale também a uma forma de mapear as táticas de tensões presentes no interior das estruturas disciplinares e, ainda, investigar as relações entre sujeitos, educação escolar, poder e resistência. Diz respeito a considerar o dispositivo, a partir da referência atribuída por Sandra Mara Corazza, como construtor das verdades que moldam e justificam mecanismos de dominação, em busca de naturalização.

Nessa trama de acontecimentos, nos espaços e tempos da escola, há resistência, por um lado, de movimentos forjados por um jogo constituído de regulamentos e disciplinamentos e, por outro, os movimentos de fuga das infâncias. Elas são andarilhas de caminhos encantados, que ao se movimentarem exalam resistência, pois seus corpos são locus de práticas de poder e, por não serem cera moldável, resistem aos chamados da heteronorma (Rodrigues, Prado, Roseiro, 2018). Elas são incorrigíveis frente às instituições disciplinares que desejam governá-las, por isso existem, enchendo o ar de chispas como fogueirinhas que, com suas diferenças, brilham com luz própria, incendiando a vida com tanta vontade que é impossível olhá-las sem pestanejar, e “[...] quem chega perto pega fogo” (Galeano, 2017, p. 13).

Este trabalho objetiva discutir o currículo a partir da presença das infâncias dissidentes da norma de gêneros e sexualidades. Para tanto, lança mão de algumas cenas tecidas no cotidiano de uma escola, contadas por uma professora a partir dos registros feitos em um caderno, o qual nomeamos como Diário de Memórias do Cotidiano Escolar.

Ele nasceu dos meus questionamentos e da minha necessidade de registrar, na escola onde trabalhei entre 2006 e 2014, as cenas vivenciadas pelas infâncias dissidentes da cisheteronorma. Naquele espaço/tempo, estas cenas me impactaram e tocaram profundamente, e eu, uma professora atuante na área de psicologia, não sabia como lidar pedagogicamente com estes corpos que caminhavam pelos longos corredores da escola, em busca de ninhos. A minha vivência com estas crianças marcou, desde esta época, meu corpo de mulher-docente e, desde lá́, a perspectiva de gêneros e sexualidades faz morada em mim como uma ativista e pesquisadora desse tema.

Cecília Warschauer (2002, p. 62) nos diz que o “[...] espaço-tempo para a escrita da ‘leitura’ do vivido auxilia na observação e na reflexão porque, a partir das vivências expostas no papel, é possível adquirir certa distância delas, necessárias para o ato reflexivo”. Assim, passados alguns anos desde as minhas experiências com estas infâncias na escola, eu vivencio outras reflexões e encontro, neste movimento, e neste momento, algumas brechas de resistência que eu não concebia na época. Vejo neste emaranhado de emoções que as infâncias mudaram e mudei eu.

A escola, lugar onde as cenas foram produzidas, é uma instituição pública, localizada em um bairro periférico da cidade de Maceió, no estado de Alagoas e atende infâncias entre 6 aos 12 anos de idade, que cursam a etapa do ensino fundamental inicial (1º ao 5º ano/série) na educação básica. Trata-se de uma discussão pautada nas teorizações e metodologias pós-críticas em educação e currículo, as quais concebem a constituição dos corpos como efeito das práticas discursivas e das relações de poder (Lopes, 2013; Paraiso, 2018; Silva, Paraíso, 2021).

Este trabalho foi escrito a quatro mãos, no entanto, por se tratar de uma experiência vivenciada pela primeira autora, em alguns momentos do texto, ele estará em primeira pessoa.

INFÂNCIAS DISSIDENTES DA NORMA E OS MODOS INSURGENTES DE ATUAÇÃO NA VIDA

O contato com as infâncias, nos espaços do cotidiano escolar, afogueia e abrasa os nossos viveres, inquietando-nos a narrar e experienciar, nas frestas de liberdade por eles criados, o fogo da existência para a criação de narrativas em contínua arte de vida. Neste sentido, nos convidam a inventar deslocamentos nos nossos modos de pensar, sentir e expressar a vida, inspirando-nos a cavar brechas em nossas escritas, no sentido de acomodar modos insurgentes e belos de atuação no mundo. Os corpos monstruosos e transgressores dessas infâncias teimam com a norma que configura o aparelho curricular, procedendo em recuos e avanços intermitentes como forma de driblar e desestabilizar os ditos e os não ditos que compõem o jogo discursivo do dispositivo curricular (Paraíso, 2018). Afinal, o que essas infâncias desejam é estremecer o regulamento que faz desse dispositivo uma disciplina a ser severamente seguida. E por ser fabricada no terreno das tramas discursivas, vez ou outra a norma é corrompida e vulnerabilizada e “[...] em algum momento falha ou se fragiliza, desliza (e até dorme)” (Pocahy, 2011, p. 18).

Assim, a partir de micro movimentos, essas infâncias resistem, hibridizam-se com outras forças e formas de subjetividade, transitando nas fronteiras entre a norma e a liberdade (Rodrigues, Prado, Roseiro, 2018). Até porque, inventar outras rotas, viver outras feituras rumo às aventuras de liberdade está nos devires e invencionices da imaginação do possível, que permeiam a existência dessas infâncias. Imaginação dita, aqui, como movimentos de criações que se materializam nas frestas perfuradas do regime disciplinar que ronda o território escolar.

Nesse sentido, a organização curricular é convocada a todo momento por estes corpos traquinas, a desordenar o previsível, criar novas coreografias, pois essas crianças são arteiras, errantes e existem em busca de outras possibilidades para exaltarem a vida, por isso elas escapam.

Seguimos com uma cena do diário de memórias do cotidiano escolar:

A professora Cida surpreende, entre carícias, beijos e afagos no banheiro feminino, duas estudantes, Lea e Bela, ambas com onze anos de idade. De olhos arregalados, a docente diz: “A mãe de vocês sabe dessas safadezas e do pecado que vocês estão cometendo?” Lea responde: “desde quando fazer carícias é pecado e safadeza, professora?”

O modo da professora Cida perceber a cena entre as duas estudantes é de censura, pecado e um certo grau de erotismo impróprio para as duas estudantes. A resposta de Lea evidencia uma brecha de fuga na norma que disciplina o olhar de censura da professora. Neste sentido, a atuação de Cida, frente à cena, evidencia a ideia de adulto normalizado sugerida por Preciado (2013) quando discute a internalização da norma de gênero e sexualidade, a qual se empenha por meio de um sistema educativo e social a punir todas as formas de dissidência com a intimidação e castigo (Preciado, 2013). Rodrigues, Prado e Roseiro (2018, p. 27), nesta mesma perspectiva, discutem a imagem de um adulto normalizado que, via de regra, vê as crianças como monstruosidades que relutam e resistem aos caprichos da instituição de sequestro - a escola. E nesse movimento, como dizem: “[...] a anormalidade é coproduzida com a normalidade, uma inventando a outra e garantindo a sua perpetuação”.

As duas estudantes, por sua vez, buscam escapar desse adulto. Elas são infâncias desobedientes à pedagogia da disciplina dos bons costumes, “[...] suas presenças em fronteiras e suas monstruosidades são uma afronta à ordem” (Rodrigues, Prado, Roseiro, 2018, p. 22). Na cena, a atuação de Lea e Bela perturbam a ordem como modo de resistir ao movimento disciplinar da cisheteronorma, uma matriz dotada de um poder repressivo “[...] que [...] é lançado como um torpedo que tenta um aniquilamento. Porém, quando os corpos dissidentes evocam um lugar, mesmo que [...] seja nomeada por alguém com muitas semelhanças - idade, raça, classe, cheiro, modo de falar, religião -, mas que se apoia nas normas cisheterossexuais para se impor” (Oliveira, 2018, p. 163), demarcam o centro e promovem a margem como único espaço possível para dissidências e corpos estranhos e monstruosos circularem. Frente a este não-lugar, os sujeitos em dissidência, tais como Lea e Bela, se asseveram na arte de luta e resistência pelo alcance de espaços de liberdade, nos quais elas possam ser o que são. Elas resistem à escola, a forma mais brutal e fantoche entre as fábricas de heterossexualidade, pois, aparentemente assexuada, esta instituição potencializa o desejo heterossexual e a teatralização linguística e corporal dos códigos da heteronormatividade (Preciado, 2020). Neste sentido, a escola não se confina a um espaço de aprendizagem de conteúdos, mas à aprendizagem da violência. Ela é uma fábrica de subjetivação cujo objetivo é a normalização na perspectiva de gênero e sexualidade.

Em Uma escola para Alan,Preciado (2020) analisa a história de um garoto com 17 anos e um dos primeiros adolescentes transexuais a alterar o nome no documento de identificação espanhola. Alan não resistiu à perseguição produzida pela escola que, insistentemente, se incumbiu de destruir sua autoconfiança e vontade de viver, conduzindo-o ao suicídio. Sofia Favero (2020), em seu livro Crianças Trans, dialoga com Preciado, ao revelar que as lógicas da cisgeneridade e do adultocentrismo confluem, produzindo olhares normalizadores, cujo propósito incide em enrijecer as experiências de gênero e sexualidade na infância. Por outro lado, apesar de nos últimos anos a escola ter sido palco de ataques ultraconservadores, tem-se politizado, expandindo-se para novas experiências na perspectiva de gêneros e sexualidades. As cenas aqui contadas demarcam esse lugar de luta e de estremecimento da norma.

Outra cena emblemática do domínio cisheteronormativo presente no cotidiano da escola é também registrada no mesmo diário:

Durante o recreio, crianças e jovens estudantes se misturam alegremente, entre brincadeiras e conversas. Tal fenômeno acontece na ausência do olhar adultocêntrico das professoras. Retornando à sala de aula, a professora Rubenita do 5º ano dá às/aos estudantes, as seguintes orientações: as meninas devem formar dois grupos, cada um contendo sete estudantes. Já os meninos precisam fazer dois grupos do lado oposto da sala, cada um contendo cinco estudantes. Estas são as orientações pedagógicas da docente. Segundo as explicações dessa professora, a aula a ser dada após o recreio será sobre o aparelho genital masculino e sobre o aparelho genital feminino. Ela enfatiza que não é concebível que os meninos conheçam o segredo das meninas, e estas, por sua vez, ainda são muito novinhas para conhecerem as particularidades dos meninos. Elas só têm 10 anos de idade, ressalta a professora. Porém, o retorno das/os estudantes para a sala de aula escapa do controle da professora, pois, apesar de formarem os grupos conforme a consigna da educadora, as/os estudantes se movimentam de forma a se misturarem (meninas com meninos), em busca de saberem sobre os segredos que os corpos de meninas e de meninos guardam (Cena do Diário de Memórias do Cotidiano Escolar).

Nesta cena, percebemos um nível de resistência no comportamento da professora Rubenita quando busca tratar da perspectiva de gênero e sexualidade em sala de aula. Compreendemos que a norma que rege o dispositivo curricular, que inspira e configura a atuação da educadora, é forjada por um “[...] controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 2011, p. 126). De outro modo, os mecanismos de vigilância e de disciplina que performam o fazer docente da professora são produzidos pelas tecnologias de poder, a partir de estratégias minuciosas que dificultam que ela escape aos regulamentos pela maquinaria do poder forjada. De acordo com Foucault (2011) estas tecnologias são atos herdados do poder disciplinar que surgiu no século XVII em meio ao poder absoluto (Foucault, 2011).

Neste sentido, em movimentos contínuos de estratégias de controle, o currículo segue por meio de sua arquitetura de poder, produzindo disciplina a quem a ele se submete. Porém, há também quem escapa aos seus regulamentos, há quem resista a ser submetido por seus disciplinamentos. É o caso das/os estudantes quando retornam à sala de aula. Elas/es até que tentam sucumbir à disciplina ditada pela professora Rubenita, porém o desejo de saber de si e do outro se constitui em motivação que tensiona estes corpos a contrariarem a disciplina curricular representada pelo exercício da educadora.

Vale nesta discussão um questionamento sobre como desestabilizar a norma a partir das certezas que constituem o currículo. De acordo com Louro (2008), o fato de compreendermos a norma como um produto cultural e, portanto, em constante movimento, leva-nos a pensar numa contrapartida e em arranjos e rearranjos de novas formas de abertura de vida, a partir de “[...] uma erotização dos processos de conhecer, de aprender e de ensinar. A erotização será tomada num sentido pleno e alargado, como uma energia e uma força motriz que impulsiona nossos atos cotidianos e nossa relação com os outros” (Louro, 2008, p. 71). Esta capacidade motriz de energia emerge dos embates pela sobrevivência que podem se constituir, por exemplo, quando contribuímos, em sala de aula, dando abertura para que a voz das/os estudantes seja considerada, ou quando docentes conseguem fazer brechas no currículo, incluindo outros desejos, outros corpos, que não os únicos tomados como verdadeiros e dignos de um lugar neste dispositivo.

EMERGÊNCIA DISSIDENTE DAS INFÂNCIAS: DIREITO À DIFERENÇA

Na realidade dessa pesquisa, em Maceió, no estado de Alagoas, as infâncias são em grande parte pretas/pardas, têm idade entre seis e doze anos, e ocupam as escolas localizadas às margens da cidade (Maceió, 2020a). Por outro lado, com base no Painel dos Indicadores Educacionais do Município de Maceió: números que formam e transformam, das pessoas que se declararam no ano de 2020 no Brasil, o percentual de matrículas por cor/raça, na etapa do ensino fundamental dos anos iniciais (1º ao 5º ano) foi de 44,9% de crianças brancas; 53,5% de pretas/pardas (Maceió, 2020b, p. 28). Observamos, também, que infâncias, de acordo com o Referencial Curricular de Maceió para o Ensino Fundamental:

[...] são provenientes de famílias em grande parte privadas de seus direitos sociais (culturais, educacionais, econômicos, de saúde, de saneamento e habitação). Esse fato aumenta a responsabilidade da escola quanto ao cumprimento da sua função específica, pois, instrumentalizados pelo conhecimento científico, esses estudantes podem ter melhores chances para reivindicar o usufruto desses direitos. [...] Portanto, uma escola que se pretenda inclusiva, democrática e cidadã, há de reconhecer as diversas presenças que a constituem, considerando a sua realidade social, pluriétnica e multicultural em suas práticas curriculares, para que a possibilidade de redução das desigualdades de oportunidades educativas seja concretizada, avançando, assim, o processo de superação de todas as formas de preconceito e discriminação (Maceió, 2014, p. 28 apudMaceió, 2020a, p. 37).

Importante se faz, nesse estudo, tecer negociações e diálogos com Vera Maria Ferrão Candau e os estudos culturais. De acordo com a estudiosa é preciso espreitar a educação dessas crianças, tendo em vista as diferenças que as constituem e as marcam como pertencentes a diferentes grupos culturais, gêneros, sexualidades, raça, etnia, classe social, idade, territorialidade, condição física, condição intelectual e sensorial, tendo como princípio que “[...] o arco-íris das culturas nas práticas educativas supõe todo um processo de desconstrução de práticas naturalizadas e enraizadas no trabalho docente para sermos educadores/as capazes de criarmos novas maneiras de situar-nos e intervir no dia a dia de nossas escolas e salas de aula” (Candau, 2016, p. 28).

Note-se que estas infâncias são provenientes, em maioria, de comunidades periféricas, de condições sociais e econômicas mínimas para o seu desenvolvimento integral. Elas não são abstratas, ou dadas por uma ideia de universalidade, como insiste muitas vezes a racionalidade da modernidade ocidental (Corazza, 2004). Elas são constituídas por diferentes marcadores sociais, que também devem ser considerados nesta equação.

Os reflexos da ciência moderna na contemporaneidade ainda insistem em negar e silenciar a constituição multicultural e discursivamente produzida que embalam os corpos infantis, “[...] e não há como deixar de se oferecer alguma resposta a essa inescapável pluralidade” (Candau, 2016, p. 7). Desse modo, na contrapartida dos rastros da ciência moderna, faz-se urgente um olhar atento em favor de políticas comprometidas contra a opressão e discriminação que marcam esses corpos nas instituições educacionais.

Mas como resistem essas crianças que sorrateira e persistentemente adentram e bagunçam o currículo, destoando e inventando modos outros de existência? Como se comportam esses corpos de modo a constituírem espaços de possibilidades de existências outras? Que modos de vida são capazes de principiar? Por que precisam forjar movimentos de resistência à norma de gêneros e sexualidades que tensionam governá-las?

As investidas do poder disciplinar tensionam esses corpos, movendo-os a um recrudescimento e resistência a tais investidas e, em nome da sobrevivência, eles se autoconvocam a abrir rupturas no funcionamento do sistema regulatório das tecnologias de poder que, por meio de estratégias de homogeneização de corpos, insistem em normalizá-los.

Em contrapartida, o sistema regulatório busca se fortalecer com a agudeza dos movimentos binários, insistindo em engessar as subjetividades que buscam se afastar da rigidez do binômio homem-mulher, menina-menino. Sobre isso, podemos mencionar um outro episódio, quando a formação de filas, um fenômeno que ocorre cotidianamente nessa escola, separa, lado a lado, as meninas dos meninos. Ao chegarem à sala de aula, as/os estudantes se acomodam em carteiras, cujas fileiras estão separadas por duas cores. Desse modo, as meninas se sentam nas fileiras de carteiras demarcadas pela cor rosa, e os meninos se acomodam nas fileiras de carteiras demarcadas pela cor azul. Lucas, um estudante dessa sala de aula questiona a forma como a professora distribui a turma, dizendo à professora que gosta muito da cor rosa e, portanto, quer sentar junto as meninas, até porque, diz Lucas, os meninos da sala perturbam a sua atenção, dizendo que ele é igual a uma bonequinha jeitosinha. Lucas representa as infâncias que incomodam ao estremecer a norma. Atitudes como estas são capazes de borrar as fronteiras entre o normal e o abjeto, um binômio fabricado pela norma regulatória de gênero e sexualidade.

Neste sistema, a norma é reificada insistente e cotidianamente no currículo, um dispositivo que para além de um rol de disciplinas, é uma rede discursiva de práticas sociais que pressupõe estrategicamente a produção de subjetividades para atender ao determinante social existente, embora nos interstícios dessa prática, as infâncias cavem rotas de fuga que possibilitam um lugar possível para a transcriação de outras posições subjetivas. Porém, nem sempre estas infâncias são bem-sucedidas quando, em comportamentos (trans)criados, buscam viver seus corpos e prazeres com autonomia. O aparelho disciplinador está sempre à espreita, pronto para atacar qualquer comportamento contrário à manutenção da cisheteronorma.

O currículo é constituído por estas práticas disciplinadoras. Ele é um artefato cultural produzido por um sistema de dominação, no qual “[...] a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual [...] se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas [...] a quem rompe as normas de gênero” e sexualidade (Miskolci, 2020, p. 48).

De outro modo, ele é um conjunto de valores e mecanismos que definem, validam e impõem modelos de como ser menino ou menina; homem ou mulher; heterossexual ou homossexual. São formas rígidas de expressão de gênero e sexualidade, nas quais as infâncias dissidentes da norma estão imersas. Mas com jeitos outros, essas infâncias demoram na fronteira, permitindo-se desabrigar “[...] no espaço ‘entre’ dois ou mais lugares, que se deixam ficar numa espécie de esquina ou encruzilhada” (Louro, 2008, p. 19). Por meio de movimentos destoantes do regime disciplinar de gênero e sexualidade, estas crianças efetuam, no currículo, criações que engendram possibilidades de descontinuação das maneiras de subjetivação impostas para meninas e meninos, inaugurando outras formas de existência.

São as formas de resistência forjadas pelas infâncias dissidentes da norma de gênero e sexualidade que, para existirem e expressarem seus corpos de forma prazerosa, precisam desordenar o eixo heteronormativo que mantém o currículo. De outra forma, os modos de resistência exercidos são possíveis, pois elas já estão nas escolas, nos corredores, nos pátios e arredores, tensionando relações, desestabilizando estereótipos de gênero e sexualidade, provocando e desordenando as certezas consideradas no artefato curricular (Gonçalves, 2019). Neste campo, incide o objetivo desta pesquisa quando pergunta: sobre quais experiências são acionadas por estas infâncias para resistirem à norma de gênero e sexualidade forjadas nas práticas curriculares? Como elas resistem ao currículo heteronormativo?

Foucault (2008, p. 55) destaca que a formação subjetiva se constitui por meio de práticas discursivas presentes nos dispositivos aos quais nos conectamos, e que estas “[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”, são capazes de criar realidades possíveis; modos possíveis de subjetividades. O currículo é o dispositivo frente ao qual as infâncias em dissidência criam rotas de fuga para não se deixarem governar, atrevendo-se a outros modos, ao escaparem da via planejada, extraviam-se. Põem-se à deriva (Louro, 2008, p. 19), (trans)criam movimentos outros como fuga do regime heteronormativo que as pretende homogeneizar ao modelo de subjetividades obedientes a tal sistema.

Insufladas pelo entendimento de Richard Miskolci (2020); Paul Preciado (2013); Silva, Paraíso (2017); e Silva (2018), consideramos que as infâncias dissidentes são aquelas que não se submetem ao rebanho crescente dos modernos reacionários, defensores da hegemonia heterossexual; elas não se deixam governar pelo discurso do adulto normalizador, e lutam pelo direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade; elas destoam da norma, a partir de fissuras nas inscrições discursivas que constituem o mundo capitalista. Estas infâncias desenham rotas de fuga nas produções heteronormativas que querem transformar monstruosidades em crianças obedientes. As infâncias dissidentes querem crescer num mundo de afetuosidade e acolhimento, sem violências sexual e de gênero. Diante do encantamento e resistência que constituem essas infâncias, nós somos aprendizes.

Permitam-me inventar, retrospectivamente, uma cena de enunciação, de dar um direito de réplica em nome da criança governada que eu fui, de defender outra “forma de governo” das crianças que não são como as outras. [...] Quem defende o direito das crianças diferentes? (Preciado, 2013, p. 97).

Este chamado propõe em primeira mão em focarmos as infâncias a partir das resistências e reinvenções apostadas no cotidiano escolar, mas também olharmos as estratégias de controle dos aparelhos disciplinares que afetam as vivências escolares dessas crianças, bem como, e de forma não menos importante, propõe investigar, para tentar descortinar, sem a pretensão de eliminar, as estratégias de aniquilamento produzidas nas práticas escolares pela matriz masculinista ocidental moderna, geradora de relações de poder. Esta maquinaria que dita verdades universais insiste em fabricar expectativas sociais pautadas em modos únicos de comportamentos de gêneros e sexualidades, os quais tornam a escola um espaço de reprodução de opressões. Paradoxalmente à operação repressora dessa matriz, os movimentos de resistência são inventados por crianças e as/os professoras/es ditas/os aliadas/os.

Neste ponto, concordo com Fernando Pocahy (2011, p. 18), quando pontua que “[...] uma das formas possíveis de contestação à norma que estabelece a heterossexualidade como referente de inteligibilidade incontestável é feita em micro movimentos”. Nestas trilhas de acontecimentos, as infâncias em dissidências (trans)criam, representam, fragilizam-se, fortalecem-se, e se performatizam. “Esse movimento não pode ser pensado sem o jogo da resistência” (Pocahy, 2011, p. 18).

Uma cena performática que tipifica o jogo da resistência é criada por Maria (Mike):

[...] uma criança com onze anos de idade, que ao responder a uma atividade de classe, a qual solicita um gráfico representacional do quantitativo de meninas e meninos que estudam na sua sala de aula, teve seu gráfico corrigido como errado pela professora, pois por se definir como um menino (Mike), sua resposta não correspondia ao resultado dito correto. A família de Maria (Mike) foi convocada a uma reunião na escola para tratar sobre o tema. A mãe não se espanta ao escutar. Ao responder à coordenadora pedagógica, a mãe discorre que desde os seis anos de idade sua filha Maria (Mike) apresenta desconforto por ser vista como menina. Passados alguns meses desde este episódio, na comemoração das festas juninas na escola, Mike (gênero como ele se identifica), aparece lindamente vestido com saias rodadas e coloridas. A professora alegremente fala: “você realmente é uma bela menina”, e ele respondeu: Eu vim fantasiado de mulher! (Cena do Diário de Memórias do Cotidiano Escolar).

Com essa performance Mike resiste à norma, ignorando a presunção de onipotência desta. Nesse sentido, Pocahy (2011, p. 18) enfatiza que “[...] assumir a constância de uma norma seria aceitar que ela é natural e incontestável”. Mas, diante desse episódio de resistência (trans)criado por Mike, podemos conjeturar que a norma é produzida nas relações discursivas de poder, sendo possível adormecê-la.

Judith Butler (2017) acrescenta que a norma, uma entidade culturalmente produzida, atua nos corpos, constituindo uma aparência de substância e de essência, de um corpo com gênero constante. Esta constância exige um processo de episódios reiterados, de gestos, movimentos e performances corporais que se cristalizam para dar a ideia de materialidade. Mas esta ação não é consumada totalmente porque nas brechas do poder se encontram as possibilidades de agência, compreendidas como força e resistência de ação política. A agência é movimentada pela força da existência, impulsionando mudanças, abrindo espaços de liberdade, ativando o poder de reflexão para transcender os limites impostos, gerando resistência/agência.

Dito isto, reconhecemos os espaços/tempos da escola como produtores de vidas, de experiências, de resistências que emanam das relações de poder, assim como “[...] em reconhecer e desafiar as epistemologias hegemônicas que defendem cronogramas, fases, etapas, desenvolvimentos muito bem definidos e delineados, com a etiqueta da legitimidade impressa e colada em suas produções e pesquisas” (Leonardo, 2018, p. 9). Vasculhamos nos caminhos dos ditos e não ditos o conjunto de enunciados que formam os discursos, os quais são produzidos, entre outras expressões, por silenciamentos, gestos, omissões, brincadeiras, arquitetura dos prédios, convicções filosóficas e crenças, as quais buscam materialidade nos cotidianos do território escolar. Tais discursos buscam instaurar e manter as estreitezas dos binarismos produzidos por relações de poder, pois “[...] a escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas” (Louro, 2000, p. 57). Guacira Lopes Louro enfatiza que a instituição escolar entende disso. Como dito, ela produz discursos, subjetividades e coisas e, por meio das relações de poder instauradas, tem como função reprimir e enquadrar os corpos em um sistema disciplinar reducionista e simplista (Foucault, 2008).

Pensando nas táticas repressoras constituídas pelo dispositivo do poder, este estudo coloca em discussão as facetas produzidas e multiplicadas em relação aos gêneros dissidentes e às sexualidades das infâncias. Assim:

Os sentidos precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos implicadas na concepção, na organização e no fazer cotidiano escolar. O olhar precisa esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se nas pessoas, nos seus gestos, suas roupas; é preciso perceber os sons, as falas, as sinetas e os silêncios; é necessário sentir os cheiros especiais; as cadências e os ritmos marcando os movimentos de adultos e crianças. Atentas/os aos pequenos indícios, veremos que até mesmo o tempo e o espaço da escola não são distribuídos nem usados - portanto, não são concebidos - do mesmo modo por todas as pessoas (Louro, 2000, p. 58).

Dessa forma, Guacira Lopes Louro alerta para afiar os sentidos na investigação do cotidiano escolar e observarmos as estratégias de produção de sujeitos ditos normais forjadas pela maquinaria de poder. Os sentidos devem estar atentos também à disposição dos artefatos culturais que configuram a instituição escolar. Assim, os estudos culturais apontam “[...] desde a década de 1960, a importância de estarmos atentas/os à construção do discurso sobre determinados corpos, especialmente aqueles que estão à margem das hegemonias” (Fioravante, Schmidt, 2018, p. 270).

A luta edificada pelos movimentos sociais, durante o século XX, foi relevante sobre a maneira como os sujeitos são construídos e interpelados (Fioravante, Schmidt, 2018). Diante dessa premissa, nós precisamos atentar e desafiar as produções hegemônicas organizadas estrategicamente nos espaços educacionais que configuram a escola.

As experiências que me atrevo a colocar em palavras pretendem remontar o diário do cotidiano da escola. Nas linhas desse diário, eu registrava cenas de resistência com contornos de amorosidade e emoção que exalavam dos corpos infantis ditos dissidentes. “Ali a gente brincava de brincar com palavras” (Barros, 2015, p. 13). As crianças se amontoavam em cantos fronteiriços e intensos de poesia, como se estivessem à procura de abraços, acolhimento e legitimação de seus corpos carregados de inscrições dolorosas sob a forma de diagnósticos como leva para a tua sala para consertar o andar; ou, por favor, não a transforme em homem, ela é tão bonitinha.

Essas crianças traziam em suas narrativas corporais as marcas estereotipadas que as nomeavam como maria-homem, mulherzinha, maria sapatão, mariquinha, fresco, viado, viada, bicha, baitola, bichinha, boiola, morde-fronha1. Estes xingamentos tendem a expor e confrontar quem recebe tais ofensas e chacotas, atribuindo o lugar de abjeto, algo a ser temido; do qual se quer manter distância (Miskolci, 2020). Estes sujeitos não podem ser o centro e a margem, o lado de fora é sim um lugar. O lugar para quem expressa pecado, perigo, anormalidade, fragilidade física e emocional (Oliveira, 2018, p. 165). São sujeitos com quem não se pode ter amizades, pois não são confiáveis e podem levar quem com eles se juntam para o mau caminho. Paradoxalmente, estão presentes nas conversas da sala de professoras/es, nos corredores, nas falas das/os recreadoras/es na hora do lanche; é delas/es que falam, que tecem comentários, ou ainda, comparações com outras crianças que também vivenciaram essa mesma trajetória de discursos disciplinares e normalizadores, entre outras formas de interdição.

Em contrapartida, no campo da educação a ignorância sempre foi concebida como o outro do conhecimento e, então, repudiada. Agora, a ideia é compreendê-la como implicada no conhecimento o que, surpreendentemente, leva a considerá-la valiosa (Louro, 2008, p. 68). Comparando neste jogo a posição de abjeção à argumentação de ignorância, concebida por Louro (2008) como o outro marginal e repudiado, percebemos a posição de humilhação, desrespeito e insulto. Neste ponto, no momento da nomeação, há possibilidades de criação de movimentos de resistência e a produção dos corpos e de sujeitos (Louro, 2008), pois a vivência de abjeção pode produzir uma experiência de resistência, de confronto e de criação de possíveis. O lugar de abjeto é sustentado por um sistema de regras que “[...] delimita os padrões a serem seguidos e, paradoxalmente, fornece a pauta para a transgressão” (Louro, 2008, p. 17). Neste sentido, não só há corpos que se moldam, mas os que subvertem.

O caminho da subversão impõe riscos com andanças pelas margens. Megg Rayara de Oliveira (2018, p. 165), travesti negra que vivenciou toda essa trajetória de abjeção em sua infância e na escola, assegura que “[...] o caminho não é feito em linha reta, e tão pouco por terrenos planos: é um ziguezague constante por terrenos acidentados”. Neste sentido, os movimentos de zombaria e insultos que atravessam os corpos das infâncias dissidentes podem, por outro lado, ocasionar efeitos danosos que se encravam na vida integral, acarretando bruscamente o desempenho intelectual e afetivo dessas crianças.

Como já discutimos anteriormente, estas crianças povoam o território escolar, circulando por diversos espaços/tempos, nas igrejas, redes sociais, praias, praças, lares, ruas e, também, no currículo escolar, bagunçando e subvertendo a norma de gênero e sexualidade da escola (Silva, Paraiso, 2021). Seus corpos não se acomodam a uma prática curricular que insiste em não as reconhecer, controlando seus modos de existir e, por não se acomodarem aos regulamentos curriculares, essas infâncias são tratadas como abjetas (Butler, 2017). Atento a esses questionamentos, Miskolci (2020, p. 5) aponta que “[...] uma escola que não discute sexualidade e gênero em uma perspectiva de respeito às diferenças [...] pode se tornar um espaço do medo, da discriminação e da violência”, marcando um processo curricular com práticas excludentes e autoritárias, na busca insistente de (re)nomear e garantir o sistema cisheteronormativo.

Esta instituição curricular, atravessada pela norma de gêneros e sexualidades, é normativa, prescritiva e marcada por um processo educacional excludente, em que algumas crianças, mais que outras, travam lutas para existirem (Silva, Paraíso, 2021; Miskolci, 2020). Resistindo aos regulamentos da escola, essas infâncias não aceitam sucumbir à norma de gênero que permeia a moral das práticas curriculares e, por isso, querem o direito a um currículo que as oriente para a liberdade de existirem longe do silenciamento que as atormenta. Aqui encaro como desafio contribuir para a visibilização desses processos de apagamento, questionando-o, descrevendo-o como forma de fazê-lo objeto de análise (Miskolci, 2020).

Estas infâncias que povoam o currículo escolar, de acordo com Silva (2018, p. 108), “[...] questionam as estruturas rígidas de significação que definem, antes de mais nada, o que é correto e o que é incorreto, o que é moral e o que é imoral”. São infâncias vigiadas por uma ordem que, segundo Preciado (2013, p. 96), as “[...] privam de qualquer forma de resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livre e coletivamente”. Mas, na contramão dessa ordem, elas resistem e tensionam a norma por liberdade, tal como uma criança que fala para a turma de colegas na sala de aula: “Eu até gosto quando me chamam de veadinho. Só assim eu posso dançar, rebolar, usar batom e até deixar as unhas crescerem para pintá-las de cor vermelha. Eu sou um veado mesmo!”

Performadas pela emergência da sobrevivência e pela criação de outros sentidos para o mundo, estas infâncias caminham pelos terrenos áridos do currículo, lutando contra o poder de uma engenharia que destroça vidas e esperanças. Neste sentido, é contra o assombro iminente do enquadramento das hierarquias do poder presentes no cotidiano escolar, que estas infâncias lançam mão da transgressão como uma ferramenta empunhada de resistência e, passo a passo, entre avanços e recuos, elas deslocam a ordem vigente, estremecendo as estruturas de poder que constituem a agenda curricular colonial da escola que, por sua vez, objetiva uma educação de agenda curricular colonial (Rufino, 2021).

Para a norma de gênero, elas são descartáveis, pois não se enquadram à heteronorma, sendo assim marginalizadas nos corredores, nas salas de aula, nas reuniões de professoras/os, nos encontros das boas famílias. A lógica binária e normativa do currículo busca sequestrar, de si, as infâncias que são insistentemente convocadas para legitimar “[...] a norma, pelas vias da justiça, medicina, igreja, instituições educativas, para fabricar a família heterocentrada” (Rodrigues, Prado, Roseiro, 2018, p. 21). Com base nessa norma, os defensores da infância apelam para a figura da criança que eles constroem, pressupostamente heterossexual e com gênero normatizado (Preciado, 2013).

O regulamento que viabiliza este cenário na escola, como dito, exclui um olhar para as diferentes infâncias; para as infâncias que escapam. Assim, as narrativas aqui pautadas nos convidam a uma analítica sobre a produção disciplinar das infâncias monstruosas no território da escola, assim como conclamam à partilha das angústias de investigadoras/es inquietas/os e reflexivas/os em busca da instituição de campos de pesquisa para diálogos sobre as infâncias em dissidência da norma de gênero e sexualidades.

A educação que nos interessa tem um olhar avassalador de afetos e acolhimento; acontece no entre: entre corpos-docência-discência, em que o que acontece no entre é o que nos importa. O que acontece nessa relação foge à disciplina e cria processos, reverberando nos processos formativos da escola. Por tudo isso que nos chega, esta educação nos convida a vivenciar as experiências a partir da presença do outro, que ao tocar os nossos corpos nos faz uno de afetações e potência.

1Termos utilizados por algumas pessoas na escola quando ousam xingar quem não se enquadra na norma de gênero e sexualidade. Aqui nos referimos às crianças.

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Recebido: Setembro de 2023; Aceito: Outubro de 2023

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