QUANDO O OLHAR SUBVERTE E RECOMEÇAR A DOCÊNCIA É POSSÍVEL
O olhar infantil que subverte a ordem das coisas, nos ensina que é possível reescrever sempre a história. […] tateando esse mundo, as possibilidades de novos recomeços.
Com a redemocratização do Brasil nos anos 80, pesquisadores no campo da educação se debruçaram a compor um arcabouço teórico acerca da história e da trajetória de lutas pela inserção das crianças nas políticas educacionais. Muitas foram as conquistas em relação aos direitos das crianças no ambiente educativo formal, assim como os importantes debates provocados pela sociologia e filosofia da infância, que ajudaram a compor práticas pedagógicas e produções curriculares que não apenas as atreladas às lógicas da assistência e do cuidar; às de uma perspectiva psicologizante e desenvolvimentista apartadas dos aspectos sociais e culturais; ou até mesmo às de concepção de projeção da infância para o futuro.
Experiências socializadas pelas práticas de pesquisas, como as promovidas pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), em seus 44 anos de existência, por meio do grupo de trabalho 07, Educação de crianças de 0 a 6 anos, viabilizaram diferentes concepções de infâncias na trama curricular brasileira.
Já com pesquisadores cotidianistas, como Ferraço (2007), foi possível aprender sobre as pesquisas COM: as redes de conhecimentos, os cotidianos escolares, as composições individuais e coletivas em que os processos educativos são elaborados, avaliados e ressignificados, ou seja, passíveis de modificações e de escaparem ao controle, levando a pensar que:
[...] os sujeitos cotidianos, a cada dia, inventam-se e, ao se inventarem, inventam a escola. Por isso não há repetição, não há mesmice. A rotina é algo que se realiza a cada dia de forma diferente e que se expressa nas tentativas de enfrentamentos das questões que se colocam nas escolas (Ferraço, 2007, p. 92).
E isso tem se mostrado um grande potencial para a compreensão da complexidade do fenômeno educativo, ao tentar não dicotomizar as relações que são intrínsecas ao ato humano de aprender e ensinar. Às crianças não cabe mais uma visão limitadora de um vir a ser, elas são, no aqui e agora, sujeitos que produzem história, cultura, práticas e experiências.
Como docentes é preciso desaprendermos o modelo platônico de conduzir as experiências, ou seja, “[...] um modelo antropológico de homem adulto, racional, forte, destemido, equilibrado, justo, belo, prudente [...]” (Kohan, 2005, p. 49). Importa o afastamento com essa lógica que “[...] desqualifica os saberes das crianças, estabelece normas e padrões de condutas ideais que aprisionam as crianças dentro de salas” (Subtil, Gomes, 2018, p. 5).
Este artigo perpassa práticas e teorias implicadas na docência e pesquisas que provocam a inversão do olhar adultocêntrico para tentar aprender a fazer educação com as crianças, a pesquisar com elas e, assim, também a reescrever outros fragmentos da história dos currículos e das docências na educação infantil. Aprender com as crianças a cartografar o território físico e, também, o existencial da educação infantil. Deslizamos com Deleuze e Guattari (1995), Passos, Escóssia e Kastrup (2005) na pesquisa cartográfica, que não se pretende predeterminada, objetivista, neutra, mas se faz no acompanhamento da produção das subjetividades postas em relação, se compondo como uma pesquisa-intervenção, em que não há sentido dicotomizar sujeito e objeto, mas evidenciar campos problemáticos em constante fazimento. As pesquisas cartográficas com crianças nos interessam e nos mantém à espreita, pois abrem o campo de experimentação do real social, provocam o campo dos afetos que pedem passagem, bem no sentido que anunciava Sandra Corazza (2008, p. 240): “As crianças realizam viagens histórico-mundiais sem saírem do Continente da Infância e da Arte [...] abrem e fecham portas, telhados e planos, enlouquecendo totalmente o pensamento do bom senso da Infância e do senso comum da Arte”.
É com esse olhar infantil que nossas pesquisas têm-se debruçado a encontrar produção de sentido para as práticas curriculares na educação infantil. As crianças cartógrafas traçam suas linhas de criação diante a tantos desafios emergentes da contemporaneidade, dos quais não estão isentas, mas que mesmo assim não desistem de fabular.
Com lápis e folha (re)existem às tentativas de enquadramento do olhar e do pensamento, encontram meios de viver-sentir a experiência do desenho, narram não só seus processos aprendentes escolares, enunciam seus desejos de criança e suas percepções de mundo. Quando a criança empresta sua mão para que o leão possa dar vida ao seu imaginário, o pensamento infantil ganha liberdade e os afetos que tanto pediam passagem se efetuam em desejo-criança.
Nesse sentido, o presente artigo1 visa ampliar sentidos sobre experiências com o desenho infantil em um centro municipal de educação infantil de Vitória/ES, junto às professoras e a um grupo de crianças entre 5 e 6 anos de uma instituição pública de ensino no ano de 2022. O campo problemático se constitui ao destacar as enunciações infantis elaboradas por meio de seus desenhos como potência para a produção de currículos. Aqui abordamos apenas as experiências educativas com o desenho infantil e os registros elaborados junto às professoras e a um grupo de crianças entre 5 e 6 anos.
No limiar textual, apresenta a metodologia da pesquisa cartográfica, destacando os dispositivos mobilizados na produção dos dados. Em um segundo momento, tece uma relação entre o desejo da criança e o desenho. Posteriormente, destaca conexões entre desenhos infantis e suas potências para currículos na educação infantil. Em seguida, considera as percepções de crianças e docentes acerca das produções infantis no contexto da educação infantil. Por fim, são tecidas considerações flutuantes, sempre provisórias e em fazimento.
O artigo faz o investimento teórico e metodológico na potência das enunciações infantis, por meio do desenho da criança, como modo de expressão legítima da liberdade do pensamento e de seu desejo, o que implica na assunção, pela docência, da tessitura de novas aprendizagens de si e de outros mundos, para compor com as crianças novos processos curriculares: mais inclusivos, dialógicos, horizontais, sem autoria marcada, mais éticos, estéticos, políticos e menos desiguais entre crianças e adultos.
UMA PERFORMANCE METODOLÓGICA… A PESQUISA CARTOGRÁFICA
Entrar em campo de pesquisa se constitui não como um procedimento regido por regras apriorísticas que a racionalidade moderna tanto inculcou, mas por novos exercícios vivificados, como uma performance metodológica: a cartográfica, fortemente implicada pela filosofia da diferença, mais especificamente pelos estudos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995). Um movimento de pesquisa que ocorre num duplo movimento de pesquisar-intervir (Faria, Gomes, 2021).
Com Deleuze e Guattari (1995), emergiu a importância de se traçar linhas de fuga dos modelos de pesquisa fechados em verdades hegemônicas, apontando para a necessidade de os pesquisadores se constituírem cartógrafos em aprendizagens, se lançando a uma cartografia de processos atentos às demandas emergentes na escola, aos seus processos de subjetivação. A cartografia de pesquisa instiga, no sentido de Rodrigues (2015, p. 28), a “[...] rasurar os métodos cartesianos de pesquisa”, a aceitar o convite feito pelo olhar infantil de nos deslocar para os acontecimentos cotidianos que escapam das generalizações descritivas.
Uma performance cartográfica de pesquisa não se limita a coletar dados, mas tece uma produção coletiva de processos de subjetivação em composição com o campo problemático do estudo, que se desdobrou no seguinte questionamento: as enunciações infantis elaboradas que emergem com seus desenhos produzem que tipo de potências para currículos na educação infantil?
Nesse movimento de pesquisa “[...] há um coletivo se fazendo com a pesquisa, há uma pesquisa se fazendo com o coletivo” (Barros, Kastrup, 2015, p. 73). Assim, algumas estratégias metodológicas foram criadas e alguns procedimentos investigativos utilizados para sistematizar os registros. Para isso, foi preciso mobilizar a observação participante e a aposta nas redes de conversações (Carvalho, 2009) entre crianças e professoras e nos registros em diário de campo, no qual os processos capturados foram escritos, fotografados, gravados e/ou filmados.
Com as redes de conversações mobilizou-se a produção de sentidos, discursos, textos, narrativas, imagens, sons, silenciamentos, encontros (Carvalho, 2009). Já o diário de campo seguiu a fluidez do tempo atual. O celular se tornou bloco de notas, câmera, filmadora, gravador de voz, ou seja, nosso grande aliado nos registros dos processos narrativosimagéticos da pesquisa que, segundo Rodrigues (2015, p. 56), compreendem imagem e/ou narrativa na ordem do acontecimento e não apenas tomando-as como representação.
Compreender as enunciações infantis nas redes de conversações e para almejar a inversão do olhar adultocêntrico, esse conceito é muito importante, pois ajuda a pensá-las para além da lógica representacional, que não interessa aqui, já que visa a uma repetição mecanizada ou que encobre a vida infantil com clichês e não provoca o pensamento da criança a criar suas próprias possibilidades de perceber e expressar o mundo.
Desse modo, os fragmentos do nosso diário de campo serão acionados como “[...] zonas de lembranças” (Rodrigues, 2015, p. 57) da pesquisa que trazem as imagens dos desenhos infantis, suas enunciações e os fragmentos das redes de conversações entre crianças e docentes que permitem problematizar currículos. As zonas de lembrança convocam a memória psicológica a rememorar os encontros cartografados no locus de pesquisa, já que, para Rodrigues (2015, p. 57), a cartografia “[...] fabular-se-á, portanto, a partir da escolha pelo lócus da pesquisa”.
Portanto, aponta a relevância de se produzir o acolhimento das enunciações, do conhecimento dos desejos e dos modos de expressões pelos desenhos das crianças e, assim, de se compreender quais as suas potencialidades para as práticas curriculares e para a tessitura de docências inventivas.
O DESEJO DA CRIANÇA E O DESENHO
Desejo da criança e desenho aqui se dedicam à criação de linhas de educação mais inclusivas, nas quais a criança esteja visibilizada não só pelos documentos curriculares orientadores, mas por elas mesmas em seus modos de existências e relações com o mundo. Essas linhas, Deleuze (1994) chamou de desejo. As linhas mais produtivas, compreendemos como políticas de criança e de docências. Linhas subversivas que criam seus modos de resistir às diferentes tentativas de modelizações dos corpos infantis aos papéis sociais estipulados e até mesmo à tentativa de burocratização de seus desenhos.
Com intuito de visibilizar suas enunciações, entendemos que criança e desejo apresentam uma relação muito peculiar. Quanto mais agenciada, mais expansão. E claro, essa expansão não é neutra e totalmente submissa. A criança e o desejo estão em processo e, como são políticos, sociais, culturais, econômicos, se fazendo e fazendo a sociedade, estão prestes à revolução. Essa força, prestes a eclodir, segundo Deleuze e Parnet (1998), seja qual for o lugar em que aconteça, pequena família ou escolinha de bairro, pode colocar em xeque as estruturas estabelecidas. O desejo é revolucionário, porque sempre quer mais conexões, mais agenciamentos.
Nas zonas de lembranças acionadas pelo diário de campo, algumas das conexões cartográficas destacam fragmentos de um momento de observação participante de conversações entre professoras-crianças-pesquisadoras:
Uma das atividades propostas por uma professora foi um ditado de como fazer um vulcão. A professora ia pronunciando a palavra e escrevendo no quadro, algumas crianças iam escrevendo sozinhas a partir da pronúncia da regente e outras copiando do quadro. A princípio não era para ser feito desenho junto com o ditado, pois o vulcão já havia sido desenhado anteriormente, porém se observou que algumas crianças desenharam algo relacionado com a escrita e outras fizeram desenhos aleatórios. Um aluno chamou a atenção da aprendiz-cartógrafa, pois se recusou a fazer o ditado e fez um desenho (de dragão que não deixava as pessoas entrarem na casa) no lugar da atividade proposta.
- Você não vai fazer o ditado? Copia primeiro, depois você desenha (Aprendizcartógrafa).
- Nãoooooo! (criança)
Ao fazer o relato para a professora, ela nos disse: “O desenho é sempre prioridade para ele!” (Professora).
A professora não repreendeu as crianças por terem desenhado na atividade e afirmou que: “O desenho faz parte do processo de aprendizagem das crianças, tudo que elas fazem é parte desse processo”. (Professora)
A avaliação docente acerca do desejo infantil se alinha com a concepção de infância como ‘experiência’ (Kohan, 2007) como um modo de ser e estar no mundo capaz de ultrapassar as categorias geracionais e se prolongar para além do tempo, pois porta em si algo que toca, afeta, atravessa, no sentido que ensina Jorge Larrosa (2002). Os afetos que provocavam o corpo da criança, no momento da atividade, não se associavam ao ditado, mas ao fluxo do pensamento que buscava expressões de inteligibilidade outras pela via do desenho.
Ao acompanhar as crianças em outras atividades, notamos as investidas do capitalismo nos seus modos de brincar e de criar personagens. Muitos desenhos retratavam o que viam nas propagandas de brinquedos infantis, inserindo as crianças na lógica individualista, produzindo novos consumidores e desestimulando o interesse infantil por brinquedos não estruturados, pelas brincadeiras populares, pelo brincar livre ou coletivo, além de trazerem, em grande maioria, estereótipos com distinção entre gênero (rosa para meninas, azul para meninos).
A engrenagem capitalista promove o agenciamento maquínico do desejo das crianças pelo intermédio dos anúncios nas mídias digitais e televisivas. Busca capturá-lo de acordo com seus próprios objetivos: o lucro e o novo consumo. O desenho da Figura 2 permite questionar os jogos de força produzidos nos currículos, indagando: que experiências as instituições educativas podem promover para a criança se encontre com a arte, com o pensamento, com o outro, sem alimentar a lógica do consumo alienante?
Entender quais linhas agenciam o desejo de conhecimentos, de linguagens e de afetos é importante para que outras conexões possam surgir, já que o agenciamento de desejo, para Deleuze (1994, p. 4), “[...] jamais é uma determinação natural, nem espontânea”. O desejo é produzido e capturado de modo social, econômico, histórico e político, por algum signo, como, por exemplo, o desenho da criança, ao retratar os bonecos Huggy Wuggy, apropriado pela lógica capitalista de consumo.
Já que o desejo e seu agenciamento não são determinações naturais, pois podem ser feitos pela lógica capital ou pelos coletivos de enunciação, Delgado (2013), reflete sobre criança e desejo, evidenciando o papel por vezes desempenhado por pedagogos, psicólogos e juízes na rejeição das forças do desejo infantil, como tentativa de fazer conter o fluxo da infância que, por vezes, “[...] produz um assujeitamento às normas e aos valores dominantes, valores que colocam em ação as semióticas dominantes, as quais, por sua vez, contaminam as percepções e os afetos” (Delgado, 2013, p. 154).
Entregar o papel, escolher a posição da folha, delimitar o espaço que o desenho ocupará, indicar o personagem, restringir as cores a serem utilizadas, solicitar que se refaça o desenho mais de uma vez (porque não ficou bom) são alguns movimentos cotidianos vividos por crianças em algumas práticas educativas. Depois disso tudo, onde será que o desejo da criança foi parar?
Em atenção às engrenagens da maquinaria capital, se faz urgente um envolvimento político engajado com a elaboração de docências que se posicionem em prol das infâncias e das possibilidades de expressão do desejo infantil, em voga neste texto pelos desenhos, pois, como destacam Guattari e Rolnik (2007), a máquina da subjetividade capitalista se instaura com a entrada da criança no mundo das linguagens dominantes.
Assim, uma pesquisa com crianças e docências pretende aprender seus pontos de vista, capturar fragmentos de desejos que crianças e docentes manifestam nos currículos da educação infantil. Não se pretende com isso proteger de forma clichê as crianças da realidade social, mas pensar em condições para enfrentar a modelização dos desejos. Nem se pretende romantizar a profissionalização docente, mas evidenciar o processo de reflexão da práticateoriapratica para sua constituição individual e coletiva.
É fundamental que o trabalho dos profissionais da educação infantil esteja implicado com a infância como experiência, como transformação de si, como experimentação de um exercício “micropolítico” (Deleuze, Guattari, 1995) da docência, capaz de questionar o olhar adultocêntrico e as verdades docentes diante do desejo da criança e das possibilidades de expressão de seus modos de singularidades de subjetivação.
O DESENHO INFANTIL E SUAS POTÊNCIAS CURRICULARES
A história da educação ocidental moderna manteve-se atrelada a preocupação didática com a forma de ensinar e de desenvolver métodos mais eficientes para um ensino/aprendizagem mensurável ao longo do tempo (Silva, 2021). Entretanto, outros pensamentos passaram a permear o cenário educacional e o currículo escolar, exigindo que o processo educativo deixasse de ser passivo ou, nas palavras de Freire (2004), deixasse de ser um depósito de conteúdos/informações.
O currículo educacional passa a ser considerado como um texto político, discursivo, com responsabilidades sociais, econômicas, ambientais, éticas, estéticas, inclusivas, multiculturalistas. Essa concepção perpassa pelas lutas históricas travadas pelas teorias críticas e pós-críticas de currículos, já que “[...] estão preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder” (Silva, 2021, p. 16).
Em diálogo mais próximo com os intercessores teóricos pós-críticos que são mobilizados nesta escrita, buscamos pensar uma política curricular pautada na diferença, nas fugas de modelos curriculares pré-estabelecidos sem a participação dos sujeitos escolares. Críticos aos métodos alienados dos debates sociais, econômicos, culturais, políticos e ambientais, com caráter burocratizado e recognitivista da forma tradicional de currículo.
Importa ultrapassar a concepção de desenho como mera representação dogmática, e tomá-lo como compositores de currículos mais inclusivos, diversos, múltiplos e ecológicos. O convite é olhar para as miudezas dos traçados infantis e desenvolver uma performance da pergunta: O quanto as linhas de desenho têm enunciado os desejos das crianças nos currículos da educação infantil?
Assim, os desenhos-desejos das crianças convidam a docência às linhas de suas enunciações, entendendo-as como processo coletivizado pelas práticas educativas, curriculares, pois é preciso “[...] desconstruir o que é considerado uma essência da prática educativa: a palavra de ordem verticalmente orientada; a autoria individual; e a vida refletida nas práticas e publicações como lugares de autoria marcada” (Carvalho, Silva, Delboni, 2018, p. 813-814).
A escuta e a observação atenta das crianças possibilitam conhecer suas enunciações, assim como os traços de seus desenhos permitem compreender as produções de sentido, a criação de realidades e a atuação dos distintos mecanismos de subjetivação, pois “[...] se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos” (Larrosa, 2002, p. 21). Em um currículo em que a palavra é verticalmente orientada, com autoria marcada, se produzir invisibilidades, inexistências, oculta as potências de vida e se exerce uma docência com medo.
Não negligenciando a função dos professores na atualidade em planejar o ensino, envolvendo a seleção, a organização de conteúdos e experiências ao longo do tempo (Lopes, Macedo, 2011), o currículo na educação infantil é ampliado quando acolhe as enunciações infantis e os desejos que as instigam e envolvem-nas ativamente nos espaços e tempos coletivos e políticos de participação, de tomadas de decisões e de produção de experiências, e que conduzam as crianças a produzirem diferença e singularidades, assim, “[...] O currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz” (Silva, 2001, p. 27).
Assim, o desenho da criança se constitui como um importante dispositivo capaz de criar currículos menos burocráticos e pragmáticos, para os mais ousados, dialógicos e inclusivos. Desenho é aprendência, “[...] é experimentar incessantemente, é fugir ao controle da representação. É também, nesse mesmo sentido, impedir que a aprendizagem forme hábitos cristalizados” (Kastrup, 2007, p. 174). O desenho se afirma como potência para o pensar, quando ultrapassa a representação dogmática, se efetivando como criação de si e de mundos, para crianças e docências que se inventam juntas neste processo.
OS DESENHOS DAS CRIANÇAS E SUAS ENUNCIAÇÕES
As múltiplas linguagens em articulação com a arte na infância buscam expandir a percepção de mundo das crianças de forma gradativa e sensível para as coisas à sua volta. Compreendendo como se percebem sujeitos que praticam os espaços e tempos da educação infantil, quais são seus imaginários, suas realidades vividas, os atravessamentos históricos, culturais, econômicos, ambientais que permeiam a experiência aprendente de si e do outro. Na cartografia da pesquisa, em muitos desenhos é possível compreender as crianças como sujeitos produtores de suas histórias, de suas culturas, mas os seus registros nem sempre são considerados como valiosos. Assim, trazer para a cena da pesquisa acadêmica o desenho infantil como registro de um tempo infantil vivido, de suas histórias, memórias e experiências é ajudar a montar coleções acerca dos saberes e fazeres e poderes infantis.
Acessar essas linhas de criação e de desejo infantil, potencializar a aprendizagem e torná-la mais alegre para os estudantes, tem sido um desafio para um modelo de educação obsoleto. Porém, para a filosofia da diferença, em Deleuze, o ato de aprender não é algo comum para todos, homogêneo, mas está ligado ao modo como somos afetados pelos signos, em especial os signos artísticos, que seriam os mais livres em condição de expressar o pensamento e o desejo.
Uma aprendizagem aberta aos signos se alinha à liberdade do pensar e do desejo, não o julga ou o reprime por meio de justificativas politicamente corretas. No desenho acima, um olhar adultocêntrico poderia criar um campo representacional que indicasse uma criança má, aprisionando um pássaro, negando os direitos dos animais de viver em liberdade. Entretanto, o desejo não é aprisionado totalmente, ele também pode escapar, o que faz crer que outras tantas reflexões podem emergir dessas linhas desejantes. Seria um desenho-desejo infantil de conhecer o pássaro de perto, descobrir suas cores, suas penas, seu canto, seu peso, seu tamanho, admirar sua beleza, compartilhar essas proezas com outros seres curiosos?
O desenho como signo artístico e com qualidades sensíveis, como ajuda pensar Deleuze (2003), proporciona a estranha alegria de libertar o pensamento da representação, da necessidade de estabelecer uma verdade/moral para as ações. Assim, compreendemos com Deleuze que os desenhos infantis importam, pois se constituem como signos artísticos capazes de reagir sobre todos os outros signos, de dar-lhes um sentido estético e de abrir o campo do inteligível na experimentação imanente do sensível.
Muitos docentes defendem que quanto mais se ampliam as possibilidades de experienciar o desenho com diferentes suportes, com a música, a literatura, a poesia, a pintura, a dança, mais se instiga a curiosidade e os processos de criação, produzindo, assim, memórias e histórias no território da educação infantil. Quanto mais o currículo propuser o encontro com signos artísticos, mais afetos aumentarão a potência de aprender e de inventar outros currículos, já que para Kohan (2007, p. 89), “[...] A memória se faz companheira e amiga da invenção, de um novo tempo, de um novo pensar [...]”.
As infâncias e as docências, em seus diversos contextos, apresentam disposição para sacudir e desenraizar o verbo ser (Deleuze, Guattari, 1995) pois a multiplicidade de seus corpos, a cartografia de seus desenhos, de seus modos de ser-estar no mundo, ajudam a mapear as vibrações estéticas, éticas e políticas infantis, elaborando a educação infantil como território de negociações, de resistências e de muitas potências que precisam “[...] evitar a mutilação da alegria de aprender, do prazer de criar nas salas de aula das escolas e, nesse sentido, devemos explorar o currículo como um ‘acontecimento’ vivido nele mesmo” (Carvalho, 2011, p. 78).
Durante a pesquisa-intervenção, buscamos ouvir as enunciações infantis para compreender se os desenhos criados na educação infantil são guardados para que a criança rememore-contempleaprecie posteriormente as produções realizadas na infância.
- Vocês gostam de levar os desenhos de vocês para casa? (Aprendiz-cartógrafa)
- Simmmm! (Crianças em coro)
- Por quê? (Aprendiz-cartógrafa)
- Minha mãe ama meus desenhos… ela coloca na geladeira. (Gatinha)
- Minha mãe colocou no quadro. (Arlequina)
- Eu gosto de desenhar minha família. (Lucas)
- Eu desenho na minha casa. Minha mãe comprou tinta pra mim! (Matheus)
- Eu estou dentro do foguete para ir pegar a estrela lá longe. (Isabeli)
Assim, a performance cartográfica desenvolvida com as crianças do grupo 63 utilizou diversas temáticas com o intuito de ampliar o repertório visual/cultural e suas manifestações artísticas, atravessadas pela rotina da educação infantil. A rotina faz a docência correr contra o tempo, dar conta de um currículo prescrito, que cada vez é mais cobrado pelas instâncias superiores, e “[...] com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera [...]” (Larrosa, 2002, p. 23).
Na contramão dessa dureza, importa a fluidez dos encontros infantis, o instante rápido do desenho ou o deleite do colorir e admirar a sua criação. Por uma educação infantil que se elabora como um território onde se produzem possíveis, é necessário investir em configurações docentes e curriculares mais éticas, estéticas, poéticas, com apostas crianceiras que existam, “[...] parecendo, assim, afirmar a possibilidade de se constituir o currículo escolar de modo alternativo e de exercitar outros possíveis e/ou outras formas de ser e estar […]” (Carvalho, 2019, p. 101).
Pode ser que esses territórios curriculares ainda precisem ser criados, mas muitos já existem em potencialidades. É urgente encontrarmos novas formas de configurá-los como currículos validá-los na articulação do conhecimento científico, tecnológico e escolar. Essa busca requer uma atenção ao que se passa entre/com as crianças para que a docência seja tocada pelo que realmente se passa, afeta e provoca o desejo de conhecer e viver das infâncias, “[...] enfim, a própria arte parece ter seu segredo nos objetos a descrever, nas coisas a designar, nas personagens ou nos lugares a observar [...]” (Deleuze, 2003, p. 21).
É essa performance participante, atenta, que vai permitir que uma simples observação promova inferências e constitua aprendências junto aos movimentos infantis e docentes. Essa postura cartográfica, convida atenção especial à docência, pois implica relacionar-se com um processo de aprendizagem inventiva, que, para Kastrup (2008, p. 127), está relacionado com o ato de “[...] colocar em questão o que somos, pensamos e sabemos. É então um movimento de saída de si, um abandono de uma parte de si em proveito de algo que não é nem familiar nem garantido de antemão [...]”.
Colocar em questão o que se sabe tem a ver com o abandono de perspectivas obsoletas de educação que não abrem espaço para as enunciações dos desejos dos estudantes. Com o exercício de uma docência outra, enviesada com os viventes. Assim, docentes e crianças vão elaborando outros modos de composições curriculares, outras práticas educativas mais significativas e produtoras de sentido.
As crianças da minha turma gostam muito de pintar com canetinha, mesmo eu falando que a canetinha seca e estraga, não adianta, então, me rendi e fiz duas caixas exclusivas apenas com canetinhas para eles usarem nas pinturas, os desenhos realmente ficam lindos e bem mais coloridos (Narrativa docente).
Ao ouvir as crianças e conhecer suas enunciações, a professora abandonou parte de si. Já no fragmento de pesquisa destacado abaixo, a docência evoca a invenção de si e do mundo. Após os diálogos, negociações e consentimentos, as crianças desenharam e analisaram se estava tudo da forma que planejaram na releitura do livro “Como pegar uma estrela”. Seguimos para um momento de conversas.
- Por que vocês fizeram dois sóis? (Cartógrafa)
- Porque cada uma quis fazer seu próprio sol! (Criança)
Novos aprendizados se integram as múltiplas infâncias que fazem parte do território da educação infantil, movendo-se entre o que Kastrup (2007, p. 235) chama de nova política cognitiva pela aprendizagem inventiva, “[...] em seu sentido primordial, invenção de problemas, pois é a invenção de problemas que coloca a cognição em devir, sendo o primeiro passo para a invenção de si e do mundo [...]”.
Uma desafiadora que convida a docência a inventar junto com as crianças seus próprios problemas, não para que encontrem soluções frágeis, simplórias e recognitivistas, mas coletivas, fugazes do medo e da aniquilação do pensamento. Assim, na rede cotidiana do CMEI outra docente provoca o pensamento infantil:
Pensem, imaginem e criem mundos a partir da história “O que Dani deve fazer?” (Professora).
Esse livro é ótimo! Conta a história de um menino chamado Dani, um aprendiz de super-herói, ele tem que tomar várias decisões. Eu vou contando a história e pergunto a página que elas querem que eu conte, cada página vai ser um rumo diferente dependendo da escolha, pode ser bom ou ruim, as crianças precisam tomar decisões diariamente, mesmo não percebendo (Professora explicando para a aprendizcartógrafa).
A professora solicitou que cada criança desenhasse qual superpoder gostaria de ter. As crianças elaboravam suas criações e vinham mostrar para a professora, uma a uma faziam as enunciações de seus superpoderes:
- Supervelocidade, para chegar rápido quando a pessoa passar mal (Valentina Pontes).
- Superforça para ajudar as pessoas (Neymar).
- Superpoder de soltar água quando as pessoas sentirem sede (Gatinha).
- Superlaser! Soltar laser quando a pessoa não tem fogo para esquentar as coisas, a comida (Arlequina).
- Superpoder do gelo para apagar o fogo (Tio Felipe).
- Superpoder do fogo para fazer churrasco (Sol).
- Superpoder da mente para saber onde as pessoas estão (Lucas).
- Superpoder do ouro, eu sou um moleque bom, quando as pessoas não tiverem dinheiro eu dou ouro para elas (Romeu).
- Superpoder de cuidar das flores (Isadora).
Nas articulações tecidas entre as docências e as crianças na educação infantil, os desenhos infantis permitem comunicar a capacidade crítica, ética, estética, política e criadora das infâncias nos currículos. O trabalho tecido pelo coletivo docente no CMEI, a partir dos desenhos como força para a enunciação do pensamento infantil, possibilitou que um processo formativo colocasse em questão o importante conceito de infância como experiência, muito trabalhado por Walter Kohan, ampliando sua compreensão prática, social e política para a participação ativa das crianças na composição dos currículos na educação infantil.
As enunciações, a expressão do pensamento infantil e sua emergência nos currículos escolares, seja por intermédio das palavras ou dos registros feitos pelos desenhos das crianças, se efetuam quando há uma abertura nas relações adulto e criança. Quando o exercício de si é uma prática horizontalizada e favorece a conversação, a fluidez do pensar, a alegria, a escuta atenta, o acolhimento que ressignifica o instante vivido e conduz a uma política cognitiva de aprendizagem inventiva.
CONSIDERAÇÕES FLUTUANTES
Chegando às linhas limites do texto, mas não ao esgotamento das questões importantes para as pesquisas no campo da educação infantil, não oferecemos verdades definitivas, mas cartografias sempre provisórias da pesquisa com crianças, com professoras, com os currículos da educação infantil.
Considerando o desenho na educação infantil e sua grande relevância para que a criança possa expressar a liberdade de pensamentos, sensações e modos de compreensão de si e do mundo, importa destacar que o currículo não deve e não pode ser neutro no que diz respeito à sua mediação, seu desenvolvimento, mas precisa constituir “[...] formas de experiências nas quais os indivíduos podem se tornar agentes coletivos” (Carvalho, 2011, p. 78).
Com o duplo movimento de pesquisar-intervir foi possível destacar que as enunciações infantis elaboradas pelas crianças em seus desenhos produzem potências para currículos, pois evidenciam a força da experiência como uma condição da infância, capaz de ultrapassar as categorias geracionais e se prolongar para além do tempo, transformando a si e ao outro, produzindo novos recomeços.
Entre enunciações, desenhos ou palavras, nota-se que, mesmo que a engrenagem capital tente controlar a força criativa, produzindo subjetividades consumistas, o desejo é revolucionário. Apesar das muitas práticas de assujeitamento às normas e aos valores dominantes postos em relação ao desenho-desejo da criança, com a imposição do olhar adultocêntrico, há resistência e burlas nos processos aprendentes que permitem o exercício da liberdade do pensamento infantil, indicando o quanto os desenhos das crianças importam para a educação.
A ressignificação dos currículos na educação infantil ocorre quando envolve as crianças nos espaços e tempos coletivos e políticos de participação, de experiências e singularidade. Esse processo exige o fortalecimento de relações de vida menos desiguais e a compreensão da relevância dos desenhos como força do pensamento infantil para que o processo formativo docente amplie a compreensão do conceito de enunciação para abertura nas relações adulto e criança e para a participação ativa das crianças na composição dos currículos.