INTRODUZINDO O PERCURSO...
Este texto visa apresentar reflexões acerca das oito abordagens contemporâneas para a educação sexual que foram apresentadas inicialmente por Jimena Furlani na tese de doutorado intitulada O bicho vai pegar! Um olhar pós-estruturalista à educação sexual a partir de livros paradidáticos infantis, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2005.
Desse modo, em um primeiro momento, apresentam-se as oito perspectivas sobre educação sexual e, posteriormente, disserta-se acerca da necessidade de haver uma proposta de respeito às diferenças no currículo brasileiro, pensando nas implicações dessa ponderação teóricoprática. Posteriormente, problematiza-se a aparição e o silenciamento de questões referentes a dimensões multifacetadas da sexualidade humana na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
AS OITO ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS PARA A EDUCAÇÃO SEXUAL
A abordagem biológico-higienista
Tal perspectiva considera a sexualidade humana, no que diz respeito ao desenvolvimento sexual, baseada no determinismo biológico. Daí são resultantes abordagens voltadas para a reprodução humana, planejamento familiar, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs1), ações de promoção à saúde etc. Consequentemente, parte-se do pressuposto de que diferenças entre homens e mulheres decorrem de atributos físicos do corpo. O efeito disso é que são naturalizados discursos machistas, misóginos, homofóbicos e transfóbicos, por exemplo, já que há tendência a corroborar a naturalização das desigualdades de gênero.
É importante mencionar que não se defende, neste texto, que a abordagem biológica não deva existir. O que se problematiza é o efeito higienizador daí decorrente. Por isso, exige-se atentar para o modo como é feita essa incursão na escola, para que a iniciativa não resulte tão somente em inflexão irredutível do currículo, tornando-o reducionista, por limitar a sexualidade à aura de perigo e de doença.
A essa altura, é interessante considerar a contribuição de Michel Foucault e de Judith Butler. Isso porque, ao elaborar análises históricas da sexualidade, o primeiro autor mencionado investigou como o sexo foi pensado no decorrer dos anos, o que possibilitou à segunda autora a constituição de bases sólidas para a formulação de que gênero, sexo e sexualidade não podem ser considerados entidades fixas, o que permitiu a Silveira (2019, p. 240) afirmar que, por isso, são “[...] vistas como construídas e reconstruídas ao longo dos anos em diferentes sociedades e contextos”. Ademais, para Butler (2003), os chamados gêneros inteligíveis são aqueles que, de algum modo existem e se perpetuam por meio de associações de coerência e de continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Nessa lógica, para ser homem, o indivíduo precisa ser dotado de órgãos sexuais definidos e comportar-se pelas regulações culturais da masculinidade que assim o definem, direcionando seu desejo para sujeitos do sexo feminino. Na prática, esses estereótipos reafirmam desigualdades de gênero e corroboram a reprodução de discursos preconceituosos em relação aos sujeitos que não se encaixam nos padrões da heteronormatividade.
A abordagem moral-tradicionalista
O discurso conservador ganha adeptos com frequência no mundo todo e, no Brasil, não é diferente. Essa abordagem pode ser associada, portanto, à elaboração e à reprodução da narrativa de que questões associadas a gênero e sexualidade são inimigas a serem combatidas pelas famílias, e, por isso, não podem ser implementadas nas escolas nacionais. O que esses discursos conservadores não respeitam é o fato de que a ausência de um trabalho responsável nas escolas referente a essas questões vai na contramão de perspectivas educacionais recentes. Situa-se, portanto, que o trabalho com gênero nas escolas não significa propagar que todos devam ser homossexuais, tampouco que se deva estimular crianças a transarem desde cedo, como o imaginário conservador apregoa com frequência.
Nesse contexto, embora pareça recente, o termo ideologia de gênero teve surgimento em meados de 1990 e no início dos anos 2000, em uma ala conservadora da Igreja Católica. Atualmente, além de indivíduos católicos, grupos conservadores, fundamentalistas e evangélicos têm-se utilizado da expressão para contrariar estudos sobre identidades de gênero, o que reflete nas decisões políticas nacionais. No campo da política, por exemplo, em setembro de 2019, o então governador João Dória mandou recolher material escolar referente à disciplina de ciências, voltado para alunos do 8º ano do ensino fundamental da rede estadual de São Paulo. Na ocasião, o conteúdo apostilado mencionava questões referentes a sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, além de situar gravidez e ISTs.
Além disso, em 2004, no Brasil, surgira o movimento Escola sem partido, defendendo o combate a uma suposta doutrinação de esquerda nas escolas brasileiras. Entre as acusações, diziase haver encorajamento dos professores em relação aos alunos, para que discentes entrassem em contato com a homossexualidade (sic). Trata-se, portanto, de uma perspectiva moral-tradicionalista, porque tal discursivização se volta para o âmbito de defesa ao retorno do que é tradicional, normal, conhecido. O resultado disso situa-se em tentativas de pedagogização da sexualidade, culminando, por isso mesmo, em processos de subjetivação da identidade. Daí resulta que o sintagma ideologia de gênero constitui “[...] um poderoso dispositivo pedagógico usado pelos ideólogos da Escola Sem Partido como forma de produzir identidades heteronormatizadas” (Fraga, Souza, 2020, p. 375). Nega-se, assim, o racismo estrutural, a misoginia, a homofobia e o machismo. Tanto a Escola sem partido, o uso da expressão ideologia de gênero quanto o humor politicamente incorreto bebem em uma fonte comum: a abordagem moral-tradicionalista.
A abordagem terapêutica
Essa abordagem se volta para explicações de causas anormais advindas de problemas sexuais de indivíduos específicos. Daí, defende-se a possibilidade de haver cura para sujeitos desviantes. O resultado são conclusões “[...] simplistas, imediatistas, genéricas e universais para os fenômenos da vida sexual” (Furlani, 2016, p. 19). Pode-se situar que um levantamento recente, intitulado Entre ‘curas’ e ‘terapias’: esforços de ‘correção’ da orientação sexual e identidade de gênero de pessoas LGBTQIA+ no Brasil, publicado pela All Out e pelo Instituto Matizes, identificou a existência de 26 formatos em exercício de cura gay2 no Brasil (Fróes, Bulgarelli, Fontgaland, 2022).
A persistência da cura gay no país também está associada, segundo os autores, ao crescimento de instâncias religiosas evangélicas neopentecostais. Situam que o neopentecostalismo surgiu na segunda metade do século XX nos Estados Unidos a partir da teologia da prosperidade3, segundo a qual se apregoa que os cristãos alcançarão benesses divinas de saúde e dinheiro se seguirem determinados preceitos religiosos, além de defender a existência de uma guerra espiritual travada contra demônios que se manifestam na Terra, entre seres humanos (Mariano, 2010).
Por sua vez, a eleição de Jair Messias Bolsonaro para o cargo de presidente da República em 2018 colocou em cena a criação de um Ministério para a Família, Mulher e Direitos Humanos, cuja ministra foi Damares Alves. Por meio de tal instância, o então governo contrariou instituições que apregoavam a proibição da cura gay no país. Em 2019, observou-se que integrantes do movimento Ex-Gays do Brasil, formado por pessoas que negam a homossexualidade e afirmam ter decidido viver sem ela (sic), encontraram-se no gabinete com a ministra Damares Alves. Na ocasião, houve, ainda, em plataforma de denúncias de violação de direitos humanos do governo (o Disque 100), a inserção do termo ideologia de gênero no âmbito de recomendações de violências a serem reportadas pelos cidadãos brasileiros. Vale destacar que, apesar de ter contribuído para a existência de iniciativas de cura gay, a ideia não foi criada no governo Bolsonaro, visto que, como mencionado anteriormente, havia incidências desde antes de 2009 no país. Entretanto, a adoção de posicionamentos governamentais ambíguos, “[...] tem representado a consolidação dos esforços de campanhas e forças conservadoras e de extrema-direita nas últimas décadas para a tomada de espaços e a conformação de uma concepção moral e não-secular de direitos” (Fróes, Bulgarelli, Fontgaland, 2022, p. 64).
A abordagem de cunho religioso-radical
A expressão ideologia de gênero foi invenção da Igreja Católica, e teve aparição em meados de 1990 e início dos anos 2000, por meio do Pontifício Conselho para a Família e da Congregação para a Doutrina da Fé (Garbagnoli, 2014). Na ocasião, a Santa Sé, sob a chefia de Karol Wojtila, o papa João Paulo II, voltou-se com maior ênfase na defesa de discurso moralista sobre a sexualidade.
O então pontífice defendia que a teologia deveria se basear em postulados nos quais a
heterossexualidade estaria associada à origem da sociedade e que o fundamento da harmonia comum entre seres humanos corroboraria a necessidade de matrimônio entre homens e mulheres.
Garbagnoli (2014) e Junqueira (2018) mencionam alguns documentos e eventos que podem ser associados ao início e à propagação do uso da expressão ideologia de gênero por parte da Cúria Romana. Os autores situam que, no documento intitulado Carta às Famílias (1994), por exemplo, João Paulo II reproduz uma retórica antifeminista. Desse modo, a chamada Teologia do Corpo reforçou a produção de discursos antigênero a partir de preceitos ideológicos, fazendo com que o discurso antigênero fosse concomitante à matriz da referida religião. No entanto, seria ingênuo acreditar que a igreja fosse a única responsável pela perpetuação do uso do termo ideologia de gênero, já que ela esteve articulada, no âmbito da batalha antigênero, a outros segmentos. Nesse sentido, podem ser situadas ações de movimentos pró-vida, pró-família, associações que defendem o uso de terapias de cura gay e, como não poderia deixar de ser, expoentes associados à ultradireita no mundo todo.
Não se pode deixar de mencionar que, antes de se tornar papa, Joseph Aloisius Ratzinger, o Bento XV, atacou em muitos instantes o feminismo e a liberdade sexual, o relativismo cultural e as relações homoafetivas. No texto O sal da Terra (1996), chegou a situar o conceito de gênero como sinônimo do ato de o homem se voltar contra suas origens biológicas. Em 1998, uma nota, intitulada A ideologia de gênero: seus perigos e seus alcances, foi publicada em ocasião da Conferência Episcopal do Peru. Em documentos oficiais da Santa Sé, o termo teve aparição em dois anos próximos: no texto Família, matrimônio e “uniões de fato” (2000) e no documento intitulado Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas (2003). Trata-se de marcos temporais, uma vez que, nos casos em questão, foram ocasiões em que o termo emergiu em documentos oficiais da igreja.
Mais adiante, na Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo (2004), novamente Ratzinger tem aparição, chegando a afirmar que o conceito de gênero instigava as pessoas a questionarem a base familiar heterossexual cristã, o que era um absurdo, já que, para ele, pessoas homossexuais não deveriam ter direitos assegurados por leis humanas. Uma das bases dessas incursões do movimento religioso antigênero foi a estadunidense Dale O’Leary, autora do livro Agenda de gênero, publicado em 1997, que se tornou uma espécie de compêndio da área. Nessa perspectiva, não raras vezes a homossexualidade é atribuída a um desvio de conduta, à possessão demoníaca ou, ainda, a um estilo de vida alternativo. Sob hermenêutica bíblica, podese mencionar que essa forma de interpretação tem servido para acentuar a subalternização e a discriminação de um coletivo de sujeitos que destoam da matriz heterossexual vigente. Desse modo, para Daniel Helminiak (1998, p. 12), tais interpretações literais são “[...] culturalmente condicionadas” e, também, chegam a ser consideradas “[...] a última palavra sobre a ética sexual” (Helminiak, 1998, p. 15).
A esta altura, falar de fundamentalismo religioso sem falar de neopentecostalismo seria, no mínimo, lacunar. Primeiramente, vale acentuar que o movimento neopentecostal iniciou nos anos 1960 nos Estados Unidos e, atualmente, a principal denominação religiosa desse segmento é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que emergiu na cena nacional com Edir Macedo na década de 1970. Além dela, nesse ínterim, podem ser mencionadas: a Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada pelo pastor Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares), em 1980; Igreja Renascer em Cristo, fundada pelos bispos Estevam Hernandes e Sônia Hernandes (1986); Igreja Renascer em Cristo, fundada pelos bispos Robson Rodovalho e Maria Lúcia Rodovalho (1992); Igreja Mundial do Poder de Deus, fundada pelo pastor Valdemiro Santiago (1998). Tanto a Igreja Internacional da Graça de Deus quanto a Igreja Mundial do Poder de Deus são ex-IURDs. Além disso, antes de haver as igrejas neopentecostais, pode ser mencionada a igreja pentecostal Assembleia de Deus, fundada em 1911, em Belém do Pará, pelos sueco-estadunidenses Gunnar Vingren e Daniel Berg. A importância desse movimento tem-se destacado sobretudo por causa da influência da bancada evangélica no Congresso Nacional. Daí a relevância de dedicar algumas linhas a essa instância, buscando entender um pouco mais sobre a singularidade dessa manifestação religiosa fundamentalista no Brasil.
Puntel (2011) defende que, para compreender o processo de midiatização da religião no Brasil, é preciso se voltar para esse contexto. Segundo o autor, na década de 1980, a igreja neopentecostal se adaptou às disposições midiáticas existentes, redefinindo os conceitos de comunidade humana, via crescimento da oferta virtual de cura que tem a teologia da prosperidade e da saúde como base, passando a alcançar um público cada vez maior de adeptos. Ademais, como esta subseção se refere à abordagem de cunho religioso-radical, não se pode ocultar a Frente Parlamentar Evangélica (popularmente chamada de bancada evangélica), fundada em 2003, cuja maioria de membros é composta por integrantes da Assembleia de Deus e da IURD. A participação de evangélicos no cenário político não é inédita nem recente. Depois do período militar, por exemplo, eles também constituíram uma bancada evangélica que apoiou Collor de Mello (PRN).
Embora similares, tais abordagens têm diferenciações. Para Furlani (2016, p. 23), o que as une é a presença de ações pedagógicas sobre a sexualidade. No entanto, ao invés de focar somente em abordagens negativas, é preciso apresentar, ainda, abordagens “[...] próximas do reconhecimento da diferença como positiva e benéfica a um mundo que se encontra no terceiro milênio”. Trata-se de abordagens de direitos humanos, de direitos sexuais e a abordagem queer.
A abordagem dos direitos humanos
No Brasil, frequentemente se confunde defesa de direitos humanos com defesa de bandidos, ainda que os direitos humanos se voltem para a defesa de qualquer indivíduo. Então, não é à toa que a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha surgido na década de 1940, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O resgate da racionalidade humana, na ocasião, adveio da possibilidade de que outra tragédia pudesse acontecer e, por isso, a Declaração não diz respeito somente a determinadas pessoas de algumas nações (que participaram da Guerra), mas a pessoas de todas as nações do mundo.
Essa abordagem permite que os espaços educativos sejam pensados como lugar de contestação e de resistência de grupos subalternos e, para isso, “[...] é preciso considerar as duas dimensões em que ela se realiza, ou seja, a educação como um direito humano e para os Direitos Humanos” (Brasil, 2009, p. 7).
Some-se a isso o fato de que, em 2012, o Ministério da Educação aprovou as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (DNEDH), concatenadas com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/1996) e com a Constituição Federal de 1988, além do fato de que nas Competências Gerais da BNCC também consta a questão dos direitos humanos. Na BNCC, menciona-se que as decisões comuns devem considerar os direitos humanos e haver estímulo ao diálogo respeitoso, a fim de considerar a diversidade de indivíduos e saberes, para que não haja reprodução de preconceitos na escola. Só por essas considerações, dá para notar porque a abordagem de direitos humanos é importante e não pode ser negligenciada na escola. Apesar de positiva, a aparição dos direitos humanos na BNCC não indica, diretamente, que a educação sexual esteja ali inserida, pois a aparição é de termos gerais e, em nenhum momento, o termo sexualidade é mobilizado (Silveira, 2023).
Nesse sentido, é preciso destacar que os movimentos sociais têm buscado apontar para tal fato, a fim de demonstrar como as políticas e as formas de pedagogização contemporâneas articulam ou invisibilizam determinados marcadores sociais da diferença: sexo, gênero, sexualidade, raça, classe. Desse modo, a educação sexual baseada nos direitos humanos é aquela que desmantela estereotipias e imaginários negativos atribuídos a determinados grupos sociais que têm, por consequência, suas identidades apagadas. Trata-se, portanto, da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
A abordagem dos direitos sexuais
Em 1997, ocorreu o 13º Congresso Mundial de Sexologia, em Valência, na Espanha, resultando na Declaração dos Direitos Sexuais. Dois anos depois, em agosto de 1999, a revisão do documento foi efetuada e a versão final apresentada no 14º Congresso Mundial de Sexologia, em Hong Kong, na China. Para Furlani (2016) trata-se de um documento político, que reflete a busca de direitos de populações subalternas mundo afora.
Um dos desafios mais proeminentes da educação sexual é a equidade das relações sociais entre pessoas de diferentes gêneros. Desse modo, cabe reiterar que a educação sexual é um direito humano (constitui o Artigo 10 da Declaração dos Direitos Sexuais). Cabe acentuar que, nesse âmbito, a educação sexual escolar e a educação sexual familiar são complementares. Isso porque, para Miranda (2020), tratar a sexualidade numa perspectiva biopsicossocial diz respeito a trabalhar aspectos como prazer, afetividade, escuta e assertividade, que refletem diretamente na tomada de decisões individuais e coletivas e estão associadas à busca do bem-estar dos indivíduos. Assim, a educação sexual não pode se restringir ao aspecto biológico, enfocando somente questões de ordem reprodutiva, como prevenção de gravidez precoce, aborto e tecnologias reprodutivas, por exemplo, ainda que estas também sejam importantes. Por isso, podem ser mencionados fatores associados a reivindicações de grupos minorizados, como equiparação salarial entre mulheres e homens; direito à participação em esportes; direito a voto; de participação na política; de evitar ter filhos; além de ter patrimônio em seu próprio nome (no caso de mulheres) e não somente em nome do marido. Entre as instâncias mencionadas, algumas já foram alcançadas, outras nem tanto. Além disso, pode-se mencionar que a homofobia, a lesbofobia, a transfobia e a discriminação sexual estão associadas à questão dos direitos sociais das populações LGBTQIA+.
Afinal, o que isso diz respeito à educação? Guacira Lopes Louro (1999, 2005) menciona que as minorias até podem chegar a ser contempladas em projetos político-pedagógicos, mas, na prática, essa aparição ocorre de forma tímida, o que faz com que se camufle a invisibilização de tais sujeitos nas esferas de pedagogização humana. O resultado é que essa aparição sutil faz com que “[...] as atividades [...] não chegam a perturbar o curso ‘normal’ dos programas, nem mesmo servem para desestabilizar o cânone oficial” (Louro, 2005, p. 45). Entretanto, mantendo a provocação de Furlani (2016), que ninguém se engane: há um propósito político na perpetuação desse silenciamento, o que faz com que não se problematize a questão central: o estabelecimento e a reprodução de modelos por meio dos quais se perpetua um status quo acerca de quem tolera/quem compreende em relação a quem é tolerado/quem é compreendido.
A abordagem emancipatória
A abordagem emancipatória pode ser pensada como sinônimo de uma necessidade de aprendizagem contínua, realizada por toda a vida, não restrita a apenas esta ou aquela fase de desenvolvimento humano. O que se defende, por meio dessa perspectiva é que pode haver uma melhoria no que respeita à qualidade de vida da população em geral, baseando-se em um ponto de vista que privilegie o desenvolvimento da criticidade individual e coletiva. Para Monteiro et al. (2020), o reflexo mais imediato é que tal abordagem faz com que as visões hegemônicas tradicionais sobre sexo e sexualidade sejam problematizadas.
A educação sexual emancipatória está associada aos estudos da pedagogia de Paulo Freire, sobretudo na obra Pedagogia do oprimido. A obra em questão, a mais conhecida do autor, foi escrita no Chile, em 1968, e sua publicação só ocorreu anos mais tarde, no Brasil, em 1974. Tal perspectiva considera que a teoria não pode estar apartada da mudança social. Por meio dela, busca-se instaurar problematizações e debates acerca da educação sexual, de forma que tais ações resultem na transformação da sociedade, quanto à busca de igualdade entre indivíduos de todos os gêneros e/ou sexos, apontando para modos múltiplos de conceber as diferentes sexualidades existentes. Busca-se, então, a alteração de relações sociais e sexuais pautadas em padrões hegemônicos reproduzidos culturalmente no imaginário individual, coletivo e no universo das práticas.
A abordagem queer
A primeira obra brasileira de que se tem notícia acerca da abordagem queer voltada para a educação foi Um corpo estranho - ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Lopes Louro, publicado em 2004. A referida autora inseriu a temática no âmbito da Linha de Pesquisa Educação, sexualidade e relações de gênero, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. Segundo essa abordagem, a associação entre teoria queer e educação pode resultar em alunos que venham a expressar suas sexualidades sem repressão, a fim de vivenciar e verbalizar experiências situadas fora da heteronormatividade. Desse modo, a teoria queer rechaça binarismos de gênero e de identidades sexuais, subvertendo hegemonias heteronormativas, justamente por não pensar a cultura como um organismo monolítico.
Tal assertiva pode ser associada às inflexões oriundas do estudo de Deleuze, em Diferença e repetição, quando este afirma que a diferença precisa ser pensada em si mesma, e não submetida às exigências da representação. A obra em questão resultou da tese de doutorado de Deleuze e teve sua primeira edição publicada em 1968. Nela, há um esquadrinhamento de dois espaços de pensamento: de um lado, o espaço da representação (moral, racional, metafísico, marcado pela ortodoxia); do outro, o espaço da diferença (múltiplo, ontológico, ético). Nesse ínterim, o diferente é sempre aquele que não está de acordo com a matriz hegemônica heterossexual.
Se for levado em consideração que todo currículo resulta de conflitos culturais, de processos de escolha e de disputas de poder entre grupos sociais, então não pode ser reduzido a uma folha de papel digital ou impressa com diretrizes sobre processos educativos. Para Silva (2001), cada proposta curricular é um discurso político sobre o currículo, de modo que não existe neutralidade adjacente, já que há sempre intenções definidas por determinado grupo social. Qualquer discurso sobre o currículo não poderia ser diferente e, por isso, as abordagens também não são neutras. Até mesmo quando se descreve o currículo, o que se faz é produzir uma noção de currículo específica. Quanto à abordagem queer, pode-se afirmar que, esta, busca estabelecer problematização contínua sobre a hegemonia da matriz heterossexual que regula condutas, hábitos e pensamentos sobre sexo, gênero e sexualidade. Nessa perspectiva, o currículo é visto como instância processual, resultado de um diálogo cultural que envolve diferentes saberes, conhecimentos e práticas e que não pode restringir-se a reproduzir o direcionamento de um grupo social privilegiado, cujas ações fazem com que demais manifestações de sexualidade e de identidade sexual sejam varridas para debaixo do tapete.
A (DES)APARIÇÃO DOS CONCEITOS REFERENTES ÀS DIMENSÕES DA SEXUALIDADE HUMANA NA BNCC
Em 2001, o Plano Nacional de Educação (PNE/Lei n. 10.172/2001) determinou diretrizes e direcionamentos para a educação brasileira, perdurando até 2010. No âmbito desse documento, apareceram abordagens de gênero, educação sexual, ética, saúde e temas locais. Em 2009, ocorreram conferências estaduais e municipais em todo o país, que antecederam a Conferência Nacional de Educação no ano seguinte, que culminaria com a criação do novo PNE. No referido documento, a questão da sexualidade esteve contemplada no eixo II: Educação e diversidade: justiça social, inclusão e direitos humanos. O eixo II objetivou estimular o exercício da igualdade de gênero, racial, por orientação sexual e identidade de gênero, além do entendimento acerca de direitos reprodutivos e de prevenção a abusos e explorações sexuais (CONAE, 2014).
Posteriormente, veio a BNCC, em cuja versão final, promulgada pelo Conselho Nacional de Educação em 2017, o tema gênero e sexualidade no contexto escolar foi contemplado apenas na disciplina de ciências no oitavo ano do ensino fundamental e reduzido à reprodução e a infecções sexualmente transmissíveis. Assim, ainda que se trate de uma temática necessária, o resultado é que persiste uma tendência em “[...] rodear o exercício da sexualidade de uma aura de perigo e de doença” (Louro, 1999, p. 140).
Diferente das versões anteriores - quatro ao todo, sendo a última a quarta -, a versão final da BNCC teve menções aos termos gênero e orientação sexual excluídos. A palavra sexualidade aparece somente na página 349, no item habilidades, referente ao componente curricular de ciências do oitavo ano:
(EF08CI08) Analisar e explicar as transformações que ocorrem na puberdade considerando a atuação dos hormônios sexuais e do sistema nervoso. (EF08CI09) Comparar o modo de ação e a eficácia dos diversos métodos contraceptivos e justificar a necessidade de compartilhar a responsabilidade na escolha e na utilização do método mais adequado à prevenção da gravidez precoce e indesejada e de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST). (EF08CI10) Identificar os principais sintomas, modos de transmissão e tratamento de algumas DST (com ênfase na AIDS), e discutir estratégias e métodos de prevenção. (EF08CI11) Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) (Brasil, 2017, p. 348-349).
Vale acentuar: não se engane quem pensa que a aparição do termo múltiplas dimensões associado ao vocábulo sexualidade demonstra efeitos de uma abordagem emancipatória ou queer. Isso porque a redação do documento deixa explícito que a exclusão dos termos gênero e orientação sexual não foi acidental. Tanto é que a abordagem biológico-higienista triunfa soberana sobre as demais. Pode haver quem defenda que a abordagem de direitos humanos foi considerada, mas o que se privilegiou foi a perspectiva que associa sexualidade à patologia e uso de métodos contraceptivos, o que reduz o corpo humano a distinções associadas à diferença de órgãos reprodutores. Para maquiar essa lacuna constitutiva do documento, aparecem os termos sociocultural, afetiva e ética. Cabe-nos, então, indagar: qual a dimensão afetiva da sexualidade que será abordada se sequer os termos gênero e orientação sexual podem ser utilizados em documento oficial? Restam palavras tranquilizadoras, que amansam adeptos da hegemonia heterossexual conservadora e que atendem a limitações opressivas de abordagens moral-tradicionalista e de cunho religioso-radical.
A abordagem terapêutica não está explicitamente contemplada, mas não deixa de ser irônico que a discussão sobre orientação sexual apaga do documento a homossexualidade e demais gêneros (junto com a palavra gênero também), por não estarem em acordo com a matriz hegemônica heterossexual. Compulsoriamente, o efeito é uma cura gay do documento, já que os vestígios foram quase extintos e, como os ex-gays, resta-lhe o fantasma de assumir timidamente a existência de múltiplas dimensões da sexualidade humana.
Outra pista sobre as sexualidades dissidentes está na expressão com ênfase na AIDS, visto que, no passado, o vírus da doença foi associado a homossexuais, inclusive no Brasil, fazendo com que, nos anos 1980, a explosão da doença acarretasse estigmatização do sujeito político LGBTQIA+. Os gays chegaram a ser considerados historicamente redutos da representação social da doença. Se for levado em consideração o fato de que, no âmbito da abordagem terapêutica, a população LGBTQIA+ é composta de pessoas que precisam de cura, especificar justamente uma patologia associada a infecções sexualmente transmissíveis (IST) não parece ser um ato acessório em documento oficial, porque políticas públicas também são elaboradas e apresentadas em meio a uma sociedade com grupos sociais privilegiados que cerceiam, inclusive, o modo de (re)produção de conhecimentos na escola.
Quando se fala em abordagem de direitos humanos e sobre abordagem de direitos sexuais, significa dizer que é direito humano e direito sexual aprender sobre métodos contraceptivos, gravidez precoce e ISTs. No entanto, a abordagem da educação sexual não pode se reduzir a esse viés, visto que a aparição dos termos sociocultural, afetiva e ética não convence acerca da consideração da diversidade sexual existente na sociedade brasileira. Além disso, causa estranhamento o fato de que o termo IST foi substituído oficialmente em 2016, mas, na versão final da BNCC, lançada em 2017, a expressão doenças sexualmente transmissíveis (DST) permaneceu, apesar de a troca de nomenclaturas ter sido decisão do Ministério da Saúde, por meio de atualização do regimento estrutural do referido Ministério, devidamente instituída pelo Decreto n. 8.901/2016.
A abordagem emancipatória passou longe do documento, pois, conforme mencionado, a análise evidenciou que há direcionamento que situa a educação sexual na abordagem biológicohigienista, voltada para minimizar problemas de saúde pública. Além disso, há outro detalhe: segundo o portal De Olho nos Planos (2018, s. p.), “[...] das 235 contribuições enviadas por escrito à 3ª versão da Base, 75 citam explicitamente ‘gênero’ e/ou ‘orientação sexual’, sendo 23 contrárias e 51 favoráveis à inclusão dos temas”. Tal apuração se articula com a afirmação de Ximenes (2017), para quem não houve transparência nos debates, no âmbito da elaboração da BNCC. Ademais, sendo a maioria das contribuições a favor da inclusão ou manutenção dos termos no referido documento, a desaparição dos termos gênero e orientação sexual soa, no mínimo, problemática. Daí, pode-se afirmar que houve influência da abordagem moral-tradicionalista e da abordagem religiosoradical, sobretudo advinda do viés conservador oriundo do movimento Escola sem partido e das pressões da bancada evangélica, além do desconforto de setores da extrema-direita sobre o uso das expressões mencionadas.
CONSIDERAÇÕES (NADA) FINAIS
Este texto buscou investigar se houve a (des)aparição de discussões recentes acerca das dimensões da sexualidade no documento da BNCC. Conclui-se que tal documento excluiu expressões gênero e orientação sexual de sua última versão, o que resultou na relativização da abordagem acerca de direitos humanos (porque obstruiu parcialmente as relações com o conhecimento a ser adquirido); na segregação de direitos sexuais; e na regulação de questões abordadas a partir da matriz hegemônica heterossexual, além de ratificar pressupostos da abordagem moral-tradicionalista e religioso-radical. A relutância em considerar abordagens queer e emancipatória está presente em vestígios da escrita do documento, conforme demonstrado na análise efetuada. Conclui-se que, cada vez mais, é preciso estranhar o currículo e os efeitos contraditórios da (in)visibilidade de questões sobre gênero e sexualidade daí adjacentes, para que a educação não se reduza a um antro de reprodução da desigualdade social e de exclusão de sujeitos que políticas públicas e diretrizes curriculares insistem em deixar de lado. Resta-nos, então, problematizar e instaurar processos de desconfiança, para que se possa “[...] interrogar a história e qualquer de seus objetos no lugar de se deixar conduzir por eles” (CARVALHO, 2014, p. 112).