INTRODUÇÃO
O objetivo deste texto é analisar o processo de produção de sentido curricular em Angra dos Reis pós-BNCC, observando como a centralização nacional se torna possível como discurso. Quer dizer, a partir da política angrense (2021-2022), analisamos a articulação do currículo centralizado no discurso de inovação do atual governo, cujo prefeito é Fernando Jordão (MDB), desde 2021 no seu 4º mandato no município. Portanto, trata-se de um estudo da construção discursiva de um currículo, considerando os efeitos de sentidos que articulam a gestão educacional, formação de professores e demais elementos ligados à vida escolar.
Angra dos Reis é uma das cidades mais antigas do Brasil, tendo passado por distintos processos de organização política, desde a colonização. Foi construída pela escravização de indígenas e negros, tornando-se um dos polos de fluxos de escravizados, devido ao potencial para a exploração marítima. A cidade passou por mudanças avolumadas no século passado, devido a influências do governo federal, tornando-se de interesse nacional. Sob tal determinação, não houve eleição para prefeitos, o que mudou apenas no final dos anos 1980. A construção da estrada RioSantos, das usinas nucleares, do estaleiro da Verolme são alguns dos movimentos mais significativos, os quais alteraram a vida em Angra dos Reis.
Desde o processo de democratização, foram distintos os governos. Sob a administração petista, desde 1990 e parte dos anos 2000, a educação cria demandas por gestão democrática e por participação política abertas às questões populares. Por contraste, a cidade passou a consolidar crescente oposição ao PT, articulada ao pensamento pentecostal ou católico e do empresariado, sedimentando discursos, como a defesa da família, da segurança e da economia. O atual prefeito é um empresário reconhecido na região que publicamente se manifesta em defesa de valores judaicocristãos. Neste artigo, nos empenhamos em analisar, especificamente, o ponto em que a política educacional da cidade se encontra com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Para pensar o social, trabalhamos com a teoria política laclauniana, em uma abordagem discursiva. Cumpre esclarecer que não compreendemos discurso apenas como linguagem, tampouco rejeitamos a sua materialidade, ou mesmo assumimos qualquer relativismo estéril, características que não condizem com a profusão teórica pós-marxista, não antimarxista. Diferentemente, ressaltamos que o referencial, capitaneado por Laclau, Mouffe e outros estudiosos, reforça a característica política da pesquisa, oferecendo vias para problemas teóricos, como a ideia de fundamentos, procurando não os rejeitar, mas pensá-los de outro modo, desde uma perspectiva ancorada na diferença ontológica heideggeriana. Isso, a nosso ver, indica um potencial interessante para os debates curriculares no país, para a diferença e a alteridade.
Levado em consideração o exposto, organizamos este texto conforme segue. Na seção inicial, apresentamos os pressupostos teóricos. A seguir, trazemos à baila uma contextualização a respeito da centralização curricular no país. As duas seções seguintes expõem a análise de caso do município, a qual esteve suscitada por um corpus empírico acessível na internet, através de boletins, atas e outros documentos que dizem respeito à gestão educacional no município ao longo do ano de 2021. Ao final deste texto, tecemos considerações que expõem a maneira como compreendemos a formação discursiva apresentada e ainda indicamos reelaborações de novas pesquisas sobre o tema.
PRESSUPOSTOS PÓS-ESTRUTURALISTAS E A PERSPECTIVA DE DISCURSO
A tradição clássica do pensamento ocidental pressupõe a ideia de um fundamento transcendental que ocupa o centro da estrutura (Derrida, 2011a). Trata-se de uma perspectiva de produção de saberes que apresenta sempre a mesma fórmula: base, centro, origem, fim e essência. Assumimos outra maneira de pensar. Em uma tradição pós-estruturalista e pós-fundacional1, explicitamos a seguir os pressupostos teórico-metodológicos e o que entendemos por discurso.
O pós-estruturalismo não é uma escola que reúne ideias homogêneas. Trata-se, antes, de um termo cunhado, no âmbito acadêmico estadunidense, que teve por objetivo categorizar perspectivas teórico-filosóficas desenvolvidas por autores franceses que, a partir do final dos anos 1960, elaboraram, de forma simultânea, ainda que não coordenada, a crítica aos essencialismo e fundacionalismo no então triunfante estruturalismo (Peeters, 2013). Mesmo articulado à pósmodernidade, incluindo críticas à ciência moderna, não são termos intercambiáveis, tampouco significam niilismo. É empobrecedora a redução irônica ao dictum derridiano il n'y a pas de hors-texte (não há fora-de-texto) consagrado na Gramatologia (Derrida, 2011a): tudo é discurso ou tudo é relativo. Isso apenas atesta que o relativismo é uma crítica inadequada ao fundacionalismo, formulada a partir das próprias regras do fundacionalismo (Marchart, 2007). Trata-se de uma abordagem heterogênea de múltiplos enfoques, cujos pressupostos estão relacionados ao estruturalismo e ao pós-fundacionalismo.
O livro póstumo de Ferdinand Saussure (Saussure, 2012) influenciou gerações, de onde partiram ideias para várias áreas, estimulando horizontes teóricos no ambiente de uma Europa arrasada e de pensadores descrentes com o humanismo e a modernidade. Nesse contexto, a ideia de uma ciência piloto, que oferecia rigor para a apreensão de um sistema invariável, tornou-se condição crucial à emergência do estruturalismo. Para o pai da linguística moderna, a linguagem exige um sistema a cada instante e depende, simultaneamente, do estabelecido e do que está em curso. Apresenta um lado individual e outro social, enquanto a língua possibilita a apreensão de uma unidade de classificação, um sistema de signos.
Dosse (2018) destaca o estruturalismo como um movimento importante no pensamento francês. O historiador evidencia o impacto da Segunda Guerra, a invasão soviética da Hungria e a crise das apostas europeias no comunismo, após a descoberta dos crimes no período stalinista. Pessimismo e desconfiança marcaram os intelectuais europeus no período, havendo embates com a ciência, o que gerou a reviravolta na ideia de sujeito. Nesse bojo, o olhar volta-se para o outro: o selvagem, a criança e o louco, por exemplo. A ideia é apostar no pensamento formal, objetivo e científico. Assim, a linguística se torna a ciência piloto para nomes como Lévi-Strauss, para muitos, o pai do estruturalismo2.
O estruturalismo encontrou terreno no marxismo, o qual salienta que, para tratar da formação social, passamos pela produção capitalista e pelos meios de reprodução. Althusser (1970) ressalta o que é o ponto crucial para Marx: para que haja produção, é necessário reproduzir. Porém, a reprodução das forças de trabalho é ameaçada pela luta de classes. Nesse sentido, a classe operária enfrenta o aumento da carga de trabalho e a redução salarial. Classe dominante, burguesia versus classe dominada, operária, apresentam posições antagônicas estabelecidas pela estrutura. A economia define os meios de sucesso da empreitada, o que significa a exploração eficiente de trabalhadores como a base do capitalismo. A força produtiva depende da qualificação, o que se dá mediante instituições que sustentam a ideologia.
Assim, se analisa os aparelhos ideológicos que sustentam a sociedade alienada. Nesse sentido, a ideologia é material e depende do indivíduo que está ligado a ela como sujeito. Instituições como a polícia, o direito e o exército exercem função repressiva; já o hospital, a escola, pública ou privada, a família e outras instituições, funcionam como aparelhos ideológicos. Na primeira, prevalece a violência; na segunda, a força das ideias e a acomodação. Assim, como o inconsciente, a ideologia não tem história. Althusser não está se referindo a ideologias particulares que são muitas e mudam; antes, ele se refere ao domínio ideológico sobre o sujeito que está sempre submetido a um sistema. O indivíduo se torna sujeito de uma ideologia mesmo antes de nascer, interpelado a ocupar posições.
Já o pós-estruturalismo reconhece o caráter relacional da identidade; porém, rejeita a estrutura como essencialista e fundacional. Aliado à desconstrução do signo, a teorização se dá a partir da perspectiva pós-fundacional, o que não é anti fundação. Assim, não há um centro imutável que estaria de fora, determinando a estrutura (Deus, Razão Universal, Homem etc.), nem origem e nem fim predeterminados. Nenhum sujeito é absoluto, mas sujeito do discurso. É justamente o vazio/falta de sentido que oferece possibilidades e não o fundamento tanto buscado. O pósfundacional é uma tradição crítica à ideia de telós, centro, verdade, origem ou essência. De outro modo, o fundamento é parte da significação. A sobredeterminação é a indissociabilidade entre o material e o simbólico. Assim, toda representação é opaca. Já que a linguagem funciona como a tradução impossível, jamais há plenitude; não representa, mas é parte da instituição.
Nessa perspectiva, Derrida (2011b) se utiliza de Lévi-Strauss não para expressar deficiências, mas para argumentar que a questão já estava nos textos do antropólogo: reafirma que ciência e filosofia se amparam na metafísica da presença, quer dizer, na ideia de um transcendente que ocupa a função de controle externo em relação à estrutura. Nesse sentido, a estruturalidade da estrutura é a questão. Contrariamente, não há nenhum universal transcendente à estrutura. O que há é um processo de suplementaridade, via deslocamento da estrutura e do centro interditado. Os nomes para esse centro são vários, mas a função é sempre a mesma. Na tradição pós-fundacional, a falta de um centro mobiliza o jogo de diferenças. Não há mais significado e significante, apenas significantes em uma estrutura descentrada. O sentido está sempre adiado.
Laclau (1990) lembra que há duas formas essencialistas de lidar com a ideologia na tradição marxista. Como totalidade social, esta se torna ilusória, uma vez que a articulação de distintas perspectivas e o antagonismo impedem a totalização. Já a falsa consciência também é problemática, uma vez que precisaríamos definir o falso e a verdade. Tudo leva a crer no abandono do conceito, mas Laclau vê outra via. A alternativa é evitar o essencialismo marxista ao mesmo tempo que se deve manter a ideia de falsa representação. Nesse sentido, a ideologia é toda a tentativa de fixar sentido ao social, já que nem o social e nem o sujeito estão dados e jamais estarão. Assim, toda afirmação se torna ideológica, ainda que necessária.
Para Laclau e Mouffe (2015), a relação entre socialismo e democracia é objeto de disputas e ameaças: há transformações no capitalismo que levaram ao declínio da classe operária clássica em países pós-industriais; penetração das relações de produção capitalista em diversas áreas da vida social, o que gera novas formas de protesto e antagonismo; formas de luta política no contexto histórico e social atual que não seguem o padrão das lutas de classes tradicionais; crise e descrédito em relação ao socialismo real e novas formas de dominação produzidas em nome do proletariado. Ademais, as novas gerações não são afetadas pelas certezas de ontem.
Nesse sentido, o discurso não é a fala ou escrita de alguém, tampouco separa prática e matéria; mas, articula elementos linguísticos e extralinguísticos. Fatos físicos são, portanto, discursivos. É claro que objetos existem independente da vontade. Um dos erros da crítica é não situar a questão em termos ontológicos. O outro é acusar a teoria de relativista, um falso problema. Ninguém está dizendo que algo é tão válido quanto qualquer outra coisa. A verdade, factual ou não, é discursiva, está inserida em um sistema de relações que é contextual, não inerente ao objeto. Mas, o ser não se basta à existência. Algo só faz sentido relacionalmente. Nunca há transparência, mas práticas que significam. Contingente não é efêmero, pode durar mil anos, como no caso do Império Romano. O registro pós-fundacional rejeita a ideia de sujeito privilegiado e considera o indecidível constitutivo do político. Só há decisão, porque, no limite, não há um fundamento que subjaz a própria decisão.
No âmbito do currículo, o texto é um vir a ser a partir de um fluxo imprevisível. Pode-se imaginar a leitura, mas não se pode definir certezas a partir das quais se mobiliza texto e contexto, a não ser como fantasia. Há o caráter tradutório instituído pela indefinição. Nesse caso, o conhecimento é produzido na linguagem, o que expõe os limites da objetividade. Assume-se a retoricidade, já que é necessário decidir. Porém, a decisão não se dá em um terreno a priori. Ela não é resultado do exercício puramente racional, mas da tentativa de tradução. Se o significado é adiado, não há identidades plenas, nem sujeito estabelecido. O que implica repensar o currículo, assumindo o deslocamento da sedimentação e o paradoxo de produzir conhecimento e ao mesmo tempo dessedimentar o que se sabe e produzir o que se supõe saber (Lopes, 2018). Uma negociação que expande processos políticos, sem nos tornarmos porta-vozes da verdade, efeitos que não encerram, sempre outro / desde o outro.
EDUCAÇÃO NO PROJETO DE CIDADE DE ANGRA DOS REIS: A QUALIDADE COMO INOVAÇÃO
Demandas3 podem retornar à centralidade, não exatamente da mesma forma. Por isso, destacamos os processos decisórios no município de Angra dos Reis, como um caso para que se visualize a ameaça e a articulação à cadeia discursiva que se forma em torno de um projeto de cidade, regularidades discursivas e elementos-momentos que geram corte antagônico. Para tal, utilizamos documentos oficiais de 20214.
Independentemente da ideologia, por mais críticas que se tenha à escola, no país, não é comum que se queira romper o acordo de que a criança deva frequentá-la. Portanto, seja qual for o governo, a evasão escolar se torna uma questão de acesso, permanência, término, distorção sérieidade, aprendizagem. Os referidos significantes se articulam como ameaça, já que o discurso de sucesso é uma construção na qual tais aspectos estão sedimentados. Além da evasão, outra ameaça é a desqualificação, a qual, segundo o governo, leva a índices de desemprego. No caso, o discurso enfatiza que os jovens não estão preparados para o mercado/ para o futuro, orquestrando a significação que injeta culpabilização e meritocracia. Se o estudante não está na escola, não é útil às empresas, rompendo com o pacto da segurança.
Eu tenho orgulho de ser o prefeito das escolas públicas do município de Angra dos Reis. Nosso objetivo é preparar as crianças e jovens para o mercado de trabalho. Além disso, vamos colaborar com a segurança, porque segurança não se faz só com as forças policiais, mas com investimentos no futuro... (Angra dos Reis, 2021a, p. 1).
Como resposta à violência, a segurança pública abraça a escola como solução, aliada à força policial: “‘Segurança não é só polícia na rua, é também investir na educação e na preparação dos jovens’, costuma dizer o prefeito” (Angra dos Reis, 2021a, p. 1). No aludido contexto, qualidade é sinônimo de “Inovação. Esta é a palavra que está norteando a educação pública do município de Angra dos Reis” (Angra dos Reis, 2021b, p. 1). O que ajuda a produzir a promessa da educação moderna, que deve fazer da cidade uma referência mundial, elemento-momento indispensável que articula a população à cidade do futuro, uma vez que o objetivo “[...] é inovar a educação de Angra e utilizar melhor os recursos para isso... vamos também capacitar os professores, com foco em melhorar nossos índices” (Angra dos Reis, 2021c, p. 1).
Inovação se articula à ideia da gestão eficiente da cidade. Nesse caso, a tecnologia é a grande aposta para tornar a cidade uma referência, com promessa de empregos, visando ainda mais investimentos: “O cenário econômico do Município necessita de inovação, assim, é necessário atrair novos investimentos, novas tecnologias, reduzir o número de violência e oferecer qualificação profissional aos habitantes” (Angra dos Reis, 2021d, p. 26).
No que tange às escolas, entram em cena os números educacionais, cada vez mais cruciais de modo a alimentar o próprio discurso da falta/do desejo. Mas, números não são neutros, números performatizam o discurso. Em Angra, estabelecem a garantia de que a promessa poderá se realizar, servindo como parâmetros que inserem o município no contexto da educação global. Por isso, “[...] é preciso ouvir o que os números têm a dizer”, diz o secretário de educação da cidade, como vimos logo abaixo. No entanto, a quantificação do desempenho escolar não tem adesão geral dos docentes na cidade, pelo contrário, se constitui como um provável corte antagônico. Apesar disso, vimos que se torna o objetivo melhorar os resultados, apontando uma regularidade discursiva, sob a perspectiva do poder.
Argumentou [o secretário de educação] que normalmente as pessoas não gostam de falar em ‘rankeamento’, mas que é importante observar que os Anos Finais de nosso município estão em 78º lugar, num total de 92 municípios; os Anos Iniciais estão em 63º. Segundo ele, desqualificar o indicador não é um bom caminho pois temos que pensar o que esses números traduzem para nós (Angra dos Reis, 2021e, s./p.).
Conforme Lopes (2012), a adjetivação do termo qualidade é parte de uma articulação entre unidades essenciais e o social como totalidade, um esforço de se distinguir sentidos. A despeito disso (qualidade do ensino na educação, qualidade social do ensino ou qualidade socialmente referenciada), o conhecimento, como dado e universal, assume a centralidade, repertório acumulado da humanidade ocidental iluminista. Por isso, entre desenvolvimento econômico neoliberal e demandas de emancipação, a qualidade ganha adjetivos, mas, todas centralizadas no ensino: “Considerando que a educação é imprescindível para o desenvolvimento do município, o programa visa realizar ações para melhoria da qualidade social de ensino” (Angra dos Reis, 2021d, p. 92).
A questão é o que a escola e o docente ensinam enquanto valor de qualidade. É claro que há disputas a respeito. Porém, mesmo quando se complexifica o debate, o ensino não perde força e acaba assumindo o lugar da promessa. O que traz implicações para a forma como a cultura é tratada: adendo ao currículo. Nesse entendimento, há o conhecimento de um lado e as culturas de outro. Já a tecnologia aponta para a execução eficiente, envolvendo pesquisas e preparação, para a realização de tarefas educativas. O que pode oferecer, além de oportunidades e ampliação de receita, maior controle, seja interconectando áreas de atuação e secretarias, seja na comunicação com os pais, mediante reconhecimento facial e envio de mensagens de SMS de modo que saibam se o estudante está frequentando a escola.
A tecnologia, segundo o secretário de Educação, possibilitará que a presença do aluno seja detectada pelo reconhecimento facial. Logo após, os pais ou responsáveis receberão SMS informando a entrada e a saída dos estudantes. Mais do que isso, a ausência dos alunos será informada aos pais e responsáveis e essa será uma grande estratégia que utilizaremos contra a evasão escolar (Angra dos Reis, 2021b, p.1).
Com o aluno cativo e o investimento no ensino e avaliação baseada em padrões, espera-se o resultado, excluindo a imprevisibilidade e o imponderável do processo. A melhora do ranking da cidade é a resposta para a empregabilidade nas indústrias e empresas locais, qualificando a mão de obra. Porém, promessas, como a cidade do futuro, do conhecimento, da modernidade e inovação esbarram na discussão sobre as prioridades apontadas no Plano Municipal de Educação e precisam estar dentro do orçamento.
O secretário se disponibilizou a falar francamente e com transparência em relação às questões apresentadas e alertou para inviabilidade do completo cumprimento do PME em função dos recursos, mas se colocou à disposição para conhecer o plano e afirmou que considera necessário trabalhar a partir do já construído (Angra dos Reis, 2021f).
Nesse sentido, o financiamento se torna uma relação seletiva, entrando em confronto com o movimento local de amplo debate no qual a sociedade civil definiu o plano de educação para a cidade. Ignorando isso, afirma-se que os recursos não são suficientes, todo o PME deixa para trás o caráter de plano de Estado, tornando algumas metas mais relevantes e o jogo político decidirá as prioritárias. Nesse caso, a forma de responder a demanda da valorização docente, se dá no uso dos fundos da educação básica, tornando a questão episódica.
Como sabemos, Angra dos Reis tem sua história marcada pelas lutas de movimentos sociais e por espaços democráticos de debate popular, no qual muitos professores se sentem inseridos. Se isso não garante o atendimento de demandas locais e se muda com a migração de professores e a insatisfação da população, não deixa totalmente para trás a herança antagônica às propostas arroladas acima. Já as parcerias, como as que resultam do apoio ao governo federal, trouxeram a ideia de uma escola militar para o município, amplamente divulgada e desejada pelo prefeito. Mas, demandas populares não podem ser simplesmente apagadas, são incorporadas à cidade moderna. Por sua vez, diversidade e norma não se contrapõem, necessariamente.
A FORMAÇÃO DO DISCURSO CURRICULAR CENTRALIZADOR NO MUNICÍPIO
Conforme Macedo (2014), a centralização do currículo remete a debates antigos no país, intensificados após o novo Plano Nacional de Educação (PNE, 2014-2024), imbuído de celeridade e decisões autoritárias e antidemocráticas, sobretudo, após o impeachment de Dilma Rousseff (Aguiar, Dourado, 2018). Em 2017, é homologada a versão do documento intitulado Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação infantil e ensino fundamental, enquanto a inclusão do ensino médio vem a ocorrer um ano depois. Desde então, torna-se obrigatório que toda a produção curricular no país esteja alinhada. Em 2019, o governo federal institui a portaria Pró-BNCC a partir da qual se intensificam os processos de implementação da Base nos estados e municípios.
Como busca pela sedimentação, a BNCC encarna a educação e assume a posição de comum, com a promessa de preenchimento do significante vazio qualidade, atendendo a variadas demandas público-privadas. Estudos como os de Ribeiro (2020) e Lopes (2018) ressaltam que a ideia é equivalente a instituir o conhecimento comum. o qual alude a uma abordagem universalista de educação. Em tais termos, a tendência é reforçar a negatividade sobre a escola, como o lugar onde não se ensina, ocultando que a desigualdade atribuída à educação decorre menos de registros pedagógicos do que investimentos nas condições de vida em um país desigual e que tende a naturalizar tal desigualdade como culpa dos indivíduos, o que irá se articular à formação discursiva da inovação angrense.
Vimos que a educação municipal está articulada ao projeto de governo em uma cadeia discursiva regulada pela economia, capitaneada pela promessa de empregos e desenvolvimento. A educação que se espera inovadora é um instrumento para anseios do discurso que, sob o poder local, está investido da promessa, tão audaciosa quanto anedótica, de se tornar referência mundial. Tal desenvolvimentismo demanda rastros instrumentais que, no caso da referida educação municipal, produz o sentido do conhecimento como investimento, mobilizado por promessas de futuro. Assim, se articula à avaliação como desempenho. Por sua vez, ainda que não desarticulada do resultado, a cadeia discursiva crítico-libertadora (Angra dos Reis, PME, 2015) se mobiliza pela diversidade, gestão democrática, cultura local, participação política e luta por direitos, ainda que esta não seja o foco deste artigo. A despeito disso, parece que em ambas as formações discursivas, currículo tende a ser significado como o conhecimento do que vale a pena ser ensinado. Como qualidade está atrelada à equidade e ensino, entendemos que o que está se enfatizando é a eficácia no cumprimento curricular e na capacidade docente de concretizar o projetado (Lopes, 2012).
Afinal, tablet para estudantes, computador para docentes, climatização e controle de presença apontam o resultado pelo resultado. Conforme estudamos, as ações de inovação visam atingir avanços no processo ensino-aprendizagem e combate à evasão escolar. Com isso, a distribuição dos dispositivos tecnológicos também é tomada como forma de valorização dos professores, “[...] para que possam preparar suas aulas e fazer pesquisas”. Nesse sentido, “[...] é necessário atrair investimentos, novas tecnologias, reduzir o número de violências e oferecer qualificação profissional aos habitantes” (Angra dos Reis, 2021d, p.194-195).
Como vimos, o que se entende por qualidade e por currículo não estão dados, assim como não são fixas as identidades dos sujeitos articulados e antagonizados (Lopes, 2012). Os significados são contingentes e precários, construídos nos processos de constituição de demandas. Portanto, não se trata de seleção de conteúdos elaborados por classe definida em um universo cultural mais amplo. Currículo é política cultural, a própria disputa pela sua significação, processo que não se esgota em fixações, seja por agências multilaterais, em definição de textos políticos etc. Trata-se de fluxos mobilizados por ações, questões e sentidos em múltiplos contextos.
Dessa forma, mobiliza-se a valorização do ensino de matemática, língua portuguesa, ciências e tecnologias, incentivos à robótica, escola de talentos, eventos de ciência, convênios com instituições de ensino e pesquisa (Angra dos Reis, 2021d, p. 47), demandas da formação discursiva. É parte de disputas políticas que reivindicam distintos sentidos de qualidade educacional e de currículo de qualidade. No jogo de poder e de diferença, as preocupações da gestão recaem sob tais elementos. Como as finalidades educacionais não são as mesmas, distintas formações discursivas se distanciam na significação de conceitos e se aproximam em outros. No PME, por exemplo, especificamente a meta 19 de gestão democrática, apresenta ideias híbridas que emergem de discursos variados:
19.3 - Na gestão da qualidade reunir dimensões: respeito aos direitos à diversidade cultural, equidade, democracia, coletividade, participação, eficiência, humanismo, sustentabilidade, perfazendo prática libertadora e crítica (Angra dos Reis, 2015, p. 48).
Portanto, a prática libertadora e crítica está articulada à eficiência, reforçando o argumento de que nenhum documento oferece leitura única. Lopes (2012) lembra que a fronteira imaginada nós x eles também é processual. A despeito de possíveis objeções, a incerteza nos convoca a constantemente pensar sobre a adesão aos discursos. Do modo exposto, o curricular tende a girar em torno do que se ensina e/ou se aprende, atrelado à preocupação com a escolarização básica, sem deixar de responder a determinadas questões locais.
Cumpre destacar ainda que questões de acesso, permanência e terminalidade se articulam a demandas curriculares de trabalho de memórias africanas e afro-brasileiras, de povos ciganos, de povos indígenas, de caiçaras e população do campo, reforçando o trabalho com a diversidade cultural e decisões coletivas e protagonizadas pela participação política, conforme o PME. Como dito antes, será preciso negociar com a diversidade e a inclusão, significantes flutuantes que geram disputas locais.
Apesar disso, se articulam à inserção no projeto municipal, como uma ficcionalização da totalidade, excluindo a dinâmica de constituição da prática ambivalente da cultura. O que se evidencia na ideia dicotômica de culturas separadas e a universal, investida do termo hierárquico conhecimento. Distintos são os projetos em disputa, mas ambos tendem a pensar um resgate particular de culturas no todos do um da cidade Como se as supostas identidades estivessem prontas; como se houvesse totalidade; como se diversos projetos políticos estivessem definidos; como se não houvesse mudanças das culturas; como se não houvesse poder e processos impossíveis de se tornarem equivalentes; como se a unidade se tornasse harmônica; como se soubéssemos o que é uma cultura e o que é a outra para dialogarem como se fossem blocos já previamente estabelecidas. Nada disso é simples.
Como reforça Lopes (2012), tal articulação é possível mediante a concepção estruturalista de sociedade e essencialista de identidade/cultura. Diversidade e norma curricular se articulam e o diálogo com conhecimentos se torna quase a obrigação para culturas marginalizadas. Por sua vez, assimilação parece indiscutível, haja vista a tentativa de construção de memória e de patrimônio, mas podem apaziguar um dos mais graves processos de genocídio, exploração e escravização. Em meio ao histórico de discriminações e desigualdades, não por acaso é a meta a mais no município. No entanto, se reafirma a tendência da formação discursiva com rastros instrumentais e prescritivos, hibridizada à abordagem crítico-libertadora que trabalha com a ideia de currículo como seleção da totalidade. Com o discurso de necessidade da Base mobilizada em contexto nacional, a política centralizadora e a visão instrumental, a BNCC se torna articulação adequada à promessa de conteúdos e de valores supostamente universais e humanizados.
A base já se apresentava nos livros didáticos, avaliações, aulas e formações. Gerou a definição do novo documento curricular em Angra dos Reis, demandado pelas políticas públicas, discutido em encontros de conselheiros. O IV Encontro de Conselheiros Municipais de Educação da Região Sudeste “Educação brasileira: perspectivas e desafios à luz da BNCC” teve como objetivo “[...] subsidiar o fortalecimento dos conselheiros municipais de educação, visando a implementação da Base Nacional Comum Curricular e suas funcionalidades” (Angra dos Reis, 2018).
É em meio a celeridades e autoritarismos que a BNCC se processa em âmbito nacional (Ribeiro, 2020), durante a pandemia, se torna parte das exigências municipais, de forma condicionada a repasse de verbas e ameaças de irregularidades.
Foi cobrado, nesta reunião, que os conselhos municipais homologassem os documentos produzidos pelos municípios. Se não houver esta homologação o município fica irregular e passa a ter dificuldades com repasses de verbas... os recursos federais vinculados ao Censo Escolar têm a implementação da BNCC como condicionante... (Angra dos Reis, 2021g).
O discurso articula a produção curricular, reduzido à BNCC, no contexto nacional e global. É o que se busca hegemonizar no município. É a ideia de direitos, inserir os estudantes em um sistema, cativos pela tecnologia, sob o ensino regulado que irá conduzir sujeitos às demandas desenvolvimentistas. Afinal, jovens precisam ser capazes de garantir seus empregos, o que antecipa uma resposta à ausência (futura) de tais empregos como culpa individual. Formação nesse sentido é garantir tal processo. Porém, o discurso enfrenta o desejo pela gestão democrática e participativa. O que já fora construído, bem como uma percepção interna sobre o antagônico, entram em negociação (Mendonça, 2012). Há discursos, princípios e conteúdos considerados essenciais que dialogam com a Base. Porém, há o traço autoritário no formato e uma outra Base política curricular local antecedente à BNCC.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste estudo foi analisar, com base em pressupostos pós-estruturalistas, em especial na teoria do discurso de Laclau e Mouffe, a formação discursiva em torno da centralização curricular gerada pela BNCC. Para elaboração do trabalho, destacamos os elementos teóricometodológicos que têm nos conduzido na pesquisa. Utilizamos o caso de Angra dos Reis como uma articulação que reúne elementos para os nossos estudos. Trata-se de um processo envolvendo um município marcado por uma história de relações não democráticas e militares com o governo federal. Ademais, que sofre mudanças no último século, como rodovias, estaleiro, usina nuclear, as quais impulsionam o turismo e a especulação imobiliária.
A BNCC remete a um debate tenso e que foi conduzido de formas distintas, a depender do governo, mas sempre diante de um público crítico que apontava outras direções para a política educacional. Não há consensos nem mesmo a respeito da necessidade de uma centralização. No entanto, com mudanças recentes no governo federal, sobretudo, após Michel Temer, a Base ganha celeridade e se desenrola de maneira autoritária diante dos posicionamentos críticos de diversas entidades de pesquisa no país. Em meio à pandemia, a despeito dos problemas no Ministério de Educação, gerados no governo de Jair Bolsonaro, a portaria Pro-BNCC torna obrigatório que todos os entes federais se adaptem ao instituído como base para todos os currículos do país.
O enfoque do texto então se volta para compreender em que medida a centralização curricular adere à política angrense, a qual está endereçada pelo atual governo à população com uma perspectiva desenvolvimentista, na qual o significante vazio inovação é central. Não foi o objetivo dar ênfase a formações críticas, mas à cadeia discursiva que aderiu ao discurso, o que tem sido priorizado pela política curricular local e o que é posto à margem como exterior constitutivo.