INTRODUÇÃO
No Brasil, o direito à educação pública e a universalidade do acesso à educação básica são conquistas recentes. Ainda assim, problemas preexistentes na construção do vínculo escolar já deixavam à margem das redes de ensino um contingente expressivo de crianças e adolescentes que mantinham com a escola uma relação frágil.
Uma hipótese para a explicação desse problema estaria na maneira com que têm sido realizados os processos de expansão da escola. O segredo está na forma com que a educação amplia seu alcance no Brasil. No clássico Estado e educação popular - um estudo sobre a educação de adultos, Celso de Rui Beisiegel (2004), analisa a expansão da oferta de vagas no sistema público de ensino de São Paulo, entre as décadas de 1940 e 1960, demonstrando que a expansão escolar se deu, desde aquela época, com base na adoção de soluções de emergência, num quadro de permanente insuficiência de recursos financeiros disponíveis para investimentos na área. As soluções, adotadas com base em seu caráter emergencial, tornaram-se permanentes, e estratégias como: flexibilização do número de alunos por turmas para ampliação de seus limites máximos; criação de classes de emergência para ampliação das matrículas em cada estabelecimento; tresdobramento dos turnos diários de funcionamento das escolas, improvisação de salas em locais inadequados e rodízio de turmas, dotou o montante de vagas da rede de um caráter permanentemente flexível.
Efeito deste modo de ampliação das vagas, que não afeta apenas a rede de São Paulo, é que, por suas características, ele esgarça o tecido escolar. Sposito (1993) já apontava dificuldades semelhantes no desenho da instituição como ilusão fecunda, uma vez que, objeto de desejo dos movimentos populares por educação, se apresentava, na experiência de seus usuários, ao mesmo tempo, como conquista ilusória, na medida em que não se apresenta como simples ponto de chegada para o conjunto dos pleiteantes, mas também como ponto de partida, fecundo, para o estabelecimento de novos direitos.
Recentemente, Mônica Peregrino (2010), estudou a expansão escolar, a partir da segunda metade da década de 1990, com base em um estudo de caso investigando as trajetórias escolares de alunos em condições sociais desiguais em quatro décadas de escolarização, numa mesma escola pública de ensino fundamental no Rio de Janeiro. Concluiu que o que singulariza a desigualdade escolar a partir da expansão iniciada na década de 1990 - expansão também flexível na medida em que, nas palavras de Fanfani (2000) buscou fazer mais com menos - é que essa se manifesta pela atenuação dos mecanismos de exclusão escolar, com manutenção da seletividade dos sistemas.
Não chega a ser surpresa, portanto, que, no Brasil, a garantia do direito à educação passe, sistematicamente, por uma série de obstáculos. Também não é novidade que o processo de expansão do direito à educação tenha sido feito, em muitos casos, numa equação em que o provisório se torna permanente.
Atualmente, pesquisadores brasileiros vêm-se dedicando a compreender o impacto da pandemia da Covid-19 na educação. Edvaldo Souza Couto, Edilece Souza Couto e Ingrid de Magalhães Porto Cruz (2020) chamaram atenção para o fato de como o isolamento social foi experimentado pelos brasileiros de formas muito diferentes. Para eles, as classes sociais que mais dispunham de recursos financeiros, com amplo acesso à Internet, puderam viver o isolamento social de forma criativa. Enquanto um grupo social estava ocupando seu tempo vendo lives, assistindo programas que iam desde o cuidado estético a cursos de culinária, filmes e shows, e até aulas online, outro grupo não tinha sequer o que comer e nem como se proteger do vírus, dadas as condições socioeconômicas de que dispunham. Chama a atenção dos autores que ao passo que a globalização pode agregar e interligar sujeitos fisicamente isolados, ela também pode possibilitar a emergência de novas desigualdades socioculturais, econômicas e educacionais. E que “[...] os desafios para educar com tecnologias digitais ainda são imensos e precisam ser democratizados” (Couto, Couto, Cruz, 2020, p. 202).
Num ângulo diferente, Clóvis Trezzi (2021, p. 2), chamou atenção para o fato de que, se o Brasil teve dificuldades nessas últimas três décadas de universalizar o acesso para uma educação de qualidade, e propiciar, de fato, uma escola justa e inclusiva, esse processo teve uma tendência a se agravar na pandemia.
Em síntese, a expansão do direito à educação no Brasil, vem se configurando, ao longo dos tempos, às custas do estabelecimento de vínculos, por vezes frágeis, para com a instituição escolar, especialmente entre os mais vulneráveis. É neste quadro que a pandemia de Covid-19 impacta o sistema escolar. Por um lado, acirrando dificuldades e problemas preexistentes; por outro lado, demarcando, entre os grupos sociais, experiências não apenas desiguais, e, em alguns casos, irredutíveis, no enfrentamento do isolamento social, aí incluído o processo de escolarização.
SOBRE DIREITO À EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA
O debate sobre o direito à educação está circunscrito em uma arena de disputas em que é imprescindível considerar a trajetória histórica de luta pela declaração, reconhecimento e asseguração da educação como direito social. Isso significa dizer que não é possível falar em educação desvinculada do histórico de mobilizações sociais na contramão das bases dominantes de tradição escravocrata, católica, agrícola que configurou um sistema de ensino elitista e seletivo (Cury, 2014).
Se por um lado, não há dúvidas acerca dos avanços contemporâneos conquistados no âmbito da consolidação e ampliação das fronteiras do direito à educação na América Latina tal como preconizado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), por outro lado, é fundamental que se analise as especificidades que configuram a afirmação desse direito educacional e os sentidos que assumem. Em outras palavras, a consolidação do direito à educação é sempre condicionada ao jogo de forças de modo que as mobilizações sociais são sempre fundamentais para impossibilitar as dinâmicas de exclusão que limitam e/ou negam as possibilidades concretas de afirmação desse direito.
Uma sucinta incursão na história da educação permite salientar como o direito à educação foi se constituindo paulatinamente, configurando um processo político de retrocessos e avanços. Tal aspecto pode ser visto a partir dos elementos constitutivos do direito à educação (gratuidade, obrigatoriedade, laicidade, qualidade etc.). Tomemos a gratuidade do ensino como exemplo. Esse princípio aparece na primeira carta constitucional de 1824, porém desaparece na Constituição Federal de 1891. Não é necessário ir tão longe, basta observar que somente em 1934 o Estado reconhece a educação como direito de todos, e, apenas em 1969, como dever do Estado (Cury, 2014, Ranieri, 2009).
Nesse contexto, muitos segmentos sociais estiveram às margens da participação social, política e educacional: a população negra escravizada, as mulheres, os pobres etc. Se por um lado é possível inferir que o ordenamento jurídico indica os direitos, deveres, as proibições, as possibilidades e limites da atuação tal como pontua Cury (2014), vale destacar também que este mesmo dispositivo se emudeceu frente às contradições e ambiguidades estruturantes da sociedade brasileira (Bobbio, 1992; Cury, 2014).
Nesse sentido, pode-se afirmar que a trajetória do direito à educação encontra um ponto de inflexão na Constituição Federal de 1988, sobretudo no que se refere ao tratamento jurídico dispensado a esta no âmbito da universalização da educação básica, obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos, da ampliação da escolarização obrigatória, dentre outros avanços. Acerca disso, Cury (2014) salienta que o texto constitucional de 1988 declara, pela primeira vez na história, os direitos sociais, com ênfase sobretudo na educação, reiterando que se trata de um direito do cidadão e dever do Estado.
Em decorrência disso, segundo Cury (2014, p. 49), a Constituição Federal de 1988 elencou “[...] princípios, diretrizes, regras, recursos vinculados e planos, de modo a dar substância a esse direito” bem como estabeleceu “[...] as formas de realizá-lo tais como gratuidade e obrigatoriedade com qualidade e com proteção legal”. Com efeito, nesses termos, é possível afirmar que tal constituição instaurou a possibilidade de uma ruptura na trajetória das desigualdades educacionais e permitiu o traçado de novos contornos com vistas a uma educação democrática.
O direito à educação, passa, de conjunto de princípios mobilizados a partir de ferramentas para seu manejo, à ferramenta, ela mesma, de exercício de outros direitos sociais. Cury (2005, p. 197) nos ensina que é “[...] no reconhecimento da educação como direito que a cidadania como capacidade de alargar o horizonte de participação de todos nos destinos nacionais ganha espaço na cena social”, assim, a educação funcionaria como instrumento da cidadania ativa e prática política emancipatória que busca saídas democráticas para desigualdades históricas.
A operacionalização e o manejo de tais princípios e ferramentas oscilaram, na rapidez e na amplitude dos avanços alcançados, de acordo com os projetos de desenvolvimento nacionais disputados a cada quatro anos. Esse processo nos legou contradições e limites, mas também avanços importantes. A exemplo disso, conquistamos a ampliação da obrigatoriedade da educação dos 4 aos 17 anos, a universalização do acesso e a melhoria do fluxo escolar no ensino fundamental, a expansão do ensino médio, a ampliação dos horizontes de formação para além da educação básica e o desenvolvimento de mecanismos mais precisos para combate às desigualdades educacionais. Todas essas conquistas foram colocadas em questão com o golpe de estado de 2016.
Em 2020, a educação brasileira se defronta com a crise sanitária resultante da pandemia do Covid-19, que expôs o quadro de nossas desigualdades educacionais e lançou a educação para uma zona permeada por incertezas. Nessa conjuntura foram elaborados intensos debates e embates na arena pública bem como pesquisas capazes, em tese, de nortear os rumos das ações governamentais e as perspectivas futuras.
Os dados aqui trabalhados, fazem parte da segunda etapa da pesquisa do Censo Escolar 2020 que apura a situação do aluno. Nomeada como Resposta educacional à pandemia de Covid-19 no Brasil, o objetivo dela foi identificar as ações adotadas pelas escolas brasileiras diante da necessidade de medidas de enfrentamento à disseminação do coronavírus. Seu questionário estava organizado em três blocos. O primeiro referia-se ao calendário escolar, no segundo bloco estavam as perguntas sobre as estratégias de continuidade das atividades pedagógicas durante a suspensão das atividades presenciais e o terceiro bloco referia-se às estratégias de retorno às atividades presenciais - ano letivo de 2020.
Selecionamos as questões localizadas no segundo bloco do questionário, que podem nos ajudar a identificar como o direito à educação foi desenvolvido durante o período em que foi necessário evitar o contato físico entre as pessoas, assim como os desafios encontrados pelas escolas para realizarem suas funções, levando em consideração suas condições de funcionamento na ocasião.
O DIREITO À EDUCAÇÃO NA PANDEMIA: O QUE REVELAM OS DADOS DO CENSO ESCOLAR 2020 (INEP)
Em 2020, havia no Brasil 179.533 escolas, ao todo, sendo 41.046 escolas privadas e 138.487 públicas. Estas encontravam-se divididas em 700 escolas federais, 29.888 escolas estaduais, 107.899 escolas municipais. Responderam ao Censo Escolar 2020, durante o período da pandemia, 168.739 mil escolas (94% do total), e, desse conjunto, 134.606 escolas da rede pública (97%) e 34.133 da rede privada (83%) (BRASIL, 2020).
Em março de 2020 se decreta a pandemia e a emergência em saúde de âmbito internacional. Isto é, os países determinaram a necessidade do isolamento social e uma série de medidas para evitar a contaminação e proliferação do vírus. Apesar das falas de descaso do então Presidente da República no Brasil, Jair Bolsonaro, a maioria dos estados decreta o isolamento social. E não por acaso, uma das perguntas feitas às escolas foi se adotaram ou não estratégias não presenciais de ensino. Do conjunto das escolas públicas e Privadas que responderam ao questionário, (98,1%) responderam positivamente à questão. É importante destacar que a adoção de estratégias para a realização do ensino não presencial não variou significativamente quando desagregamos os percentuais de respostas. Responderam sim a esta questão, (98%) das escolas públicas e (98,7%) das escolas privadas, (99%) das escolas urbanas e (96%) das escolas rurais, e, no conjunto das escolas públicas, (99,5%) das escolas federais, (98,5%) das escolas estaduais e (97,8%) das escolas municipais (Brasil, 2020).
Na análise que se segue, organizamos os dados em quatro tabelas que agregamos a partir de dois eixos de discussão: a) no primeiro, organizamos duas tabelas para tratarmos dos dados que apontam para os investimentos em recursos que funcionaram como bases estruturais para a garantia de atividades remotas no período que abarca a pandemia de Covid-19; b) no segundo, usaremos duas tabelas para analisarmos os investimentos realizados pelas escolas nas mediações junto aos professores e alunos, tanto para o uso de ferramentas e tecnologias para a construção de estratégias pedagógicas para o ensino não presencial, quanto na oferta de apoio à comunicação entre os atores e a instituição, buscando refazer laços interrompidos pela necessidade de isolamento social.
PLATAFORMAS, FERRAMENTAS E SEU USO NAS ATIVIDADES DE ENSINOAPRENDIZAGEM
O que e como fizeram as escolas para oferecer suporte tecnológico e ferramentas que condicionaram o acesso de alunos a processos de ensino-aprendizagem durante o período da pandemia, quando a necessidade de isolamento social impôs limites à frequência presencial? Também se interroga: como esses recursos foram distribuídos entre escolas públicas e privadas, urbanas e rurais, e, no interior das redes públicas de ensino, entre escolas federais, estaduais e municipais?
Como mostra a Tabela 1, os aplicativos ou ferramentas para realização de videoconferências (WhatsApp, Zoom, Youtube etc.) foram os meios de conexão mais utilizados pelas escolas, com (86%) das respostas. O Google Classroom foi a segunda estratégia mais frequentemente utilizada pelas instituições (37,9% das opções). Nesse caso, já é possível perceber disparidades importantes: entre as escolas situadas em meio urbano (43,3% de respostas positivas) e aquelas situadas em meio rural (22,9%); em segundo lugar, entre as escolas públicas de circunscrição federal (69,1%), estadual (73,5%) e municipal (24%). Destaca-se, na frequência das respostas, a opção plataforma desenvolvida especificamente para a secretaria de educação municipal ou estadual ou para a escola, de importância maior entre as escolas públicas (31,3%) do que entre as escolas privadas (16,4%), e, entre as escolas públicas, mais presente entre as escolas federais (38,6%) e estaduais (55,6%) e do que entre as escolas Municipais (23,9%). Outra constatação importante na análise da tabela é que (15%) das escolas de localização rural e 10% das escolas públicas municipais indicaram não ter acionado nenhuma das opções apresentadas.
Dependência administrativa e localização territorial | Escolas que adotaram estratégias online no desenvolvimento das atividades de ensinoaprendizagem |
Total de escolas que responderam ao item da planilha | Plataforma desenvolvida para a secretaria de educação municipal ou estadual ou para a escola (%) | Google Classroom (Google sala de aula) (%) |
Micro- soft Teams for Educa- tion (%) |
Blackboard Learn / Blackboard Unite (%) |
Aplicativos ou ferramentas para realização de videoconferências (WhatsApp, Zoom, Youtube etc.) (%) |
Nenhuma das opções apresentadas (%) |
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Escolas públicas e privadas | 145.654 | 145.563 | 28 | 37,9 | 11,3 | 0,8 | 86 | 6,9 |
Escola pública | 113.648 | 113.588 | 31,3 | 35,6 | 10,2 | 0,5 | 85,7 | 8,1 |
Escola privada | 32.006 | 31.975 | 16,4 | 46,2 | 15,2 | 1,8 | 87 | 2,8 |
Escola urbana | 107.196 | 107.130 | 31,4 | 43,3 | 14,1 | 1 | 88,1 | 3,9 |
Escola rural | 38.458 | 38.433 | 18,5 | 22,9 | 3,4 | 0,2 | 79,9 | 15,4 |
Escola pública federal | 621 | 621 | 38,6 | 69,1 | 26,2 | 2,3 | 89,2 | 1,4 |
Escola pública estadual | 26.069 | 26.058 | 55,6 | 73,5 | 25,8 | 1,5 | 90,1 | 2,5 |
Escola pública municipal | 86.958 | 86.909 | 23,9 | 24 | 5,4 | 0,2 | 84,3 | 9,9 |
Fonte: Censo Escolar 2020.
A Tabela 2 trata das estratégias e ferramentas adotadas no desenvolvimento das atividades de ensino-aprendizagem com os alunos e dos modos de realização das aulas. As escolas podiam marcar mais de uma opção de resposta, na medida em que, tanto a adoção de ferramentas quanto a organização de aulas não presenciais se deram a partir de estratégias, que permitiam composições entre o uso de tecnologias e estratégias de ensino.
Dependência administrativa e localização territorial | Total de escolas que responderam ao item da planilha | Realização de aulas ao vivo (síncronas) mediadas pela internet (possibilidade de interação direta entre os alunos e o professor) (%) | Transmissão de aulas ao vivo (síncronas) por TV ou rádio (%) | Transmissão de aulas ao vivo (síncronas) pela internet (%) |
Transmissão de aulas previamente gravadas (assíncronas) por TV ou rádio (%) | Disponibilização de aulas previamente gravadas (assíncronas) pela internet (%) |
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Escolas públicas e privadas | 159.625 | 42,6 | 7 | 33,3 | 12,5 | 55,7 |
Escola pública | 126.662 | 35,5 | 8,5 | 26,5 | 14,2 | 51,1 |
Escola privada | 32.963 | 69,8 | 1,3 | 59,3 | 5,7 | 73,5 |
Escola urbana | 111.642 | 50,3 | 8,4 | 40 | 15,1 | 63,4 |
Escola rural | 47.983 | 24,5 | 3,9 | 17,5 | 6,3 | 37,7 |
Escola pública federal | 624 | 91,2 | 1 | 80 | 4 | 88,80% |
Escola pública estadual | 27.482 | 63,3 | 24,5 | 54,4 | 31,9 | 61,3 |
Escola pública municipal | 98.556 | 27,4 | 4,1 | 18,4 | 9,4 | 48 |
Fonte: Censo Escolar 2020.
As aulas síncronas, realizadas ao vivo, permitiam mais e melhores interações, no entanto, exigiam recursos (em termos de pacotes de dados, equipamentos individuais, um ambiente relativamente controlado) acessíveis a poucos professores, alunos e responsáveis. As modalidades assíncronas, por sua vez, sem a possibilidade de interação imediata, eram, menos exigentes em termos de equipamentos e de poder de conectividade, aumentando as possibilidades de autoorganização dos envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem.
As escolas, de maneira geral, organizaram suas atividades operando com uma variação de combinações, buscando incorporar possibilidades variadas de acesso às atividades desempenhadas combinando aulas nos modos síncronos e assíncronos. Portanto, a possibilidade de combinar modos, estratégias e ferramentas de ensino pode indicar maior ou menor condição institucional de efetivar práticas educativas.
Pensando dessa forma, decidimos realizar a leitura das respostas dadas pelas escolas, separadamente, de maneira a perceber a importância e a distribuição, por sistemas e redes de ensino, de cada uma das ferramentas e estratégias adotadas nas atividades escolares; e, ao mesmo tempo, somar as frequências com que as escolas, em suas várias dependências administrativas, acumularam recursos para o funcionamento remoto.
Analisando os tópicos mais acionados nas respostas das instituições, verificamos que o recurso mais usado foi a disponibilização de aulas previamente gravadas (assíncronas) pela internet, com (55,7%) das respostas. Desagregados por dependência administrativa, verificamos que esse foi um recurso mais usado por escolas privadas (73,5%) do que públicas (51,1%); por escolas urbanas (63,4%) mais do que rurais (37,7%); e, no âmbito das escolas públicas, mais por escolas Federais (88,8%) e estaduais (61,3%) do que municipais (48%).
Em segundo lugar, as escolas acionaram a realização de aulas ao vivo (síncronas) mediadas pela internet e com possibilidade de interação direta entre os alunos e o professor, acumulando (42,6%) das respostas. Aqui se apresentam as disparidades mais significativas, separando as escolas desagregadas por dependência administrativa. Não à toa, essa foi a estratégia que permitiu a composição entre sincronicidade e possibilidade de interação direta entre professores e alunos, e que exigiu equipamentos individuais, disponibilidade de rede e ambiência adequada. Responderam afirmativamente à questão quase (70%) das escolas privadas e (35,5%) das escolas públicas; (50,3%) das escolas urbanas e (24,5%) das escolas rurais; e, no conjunto das escolas públicas, (91%) das escolas federais, (63%) das escolas estaduais e apenas (27%) das escolas municipais.
Por outro lado, as escolas usaram mais de uma estratégia no desenvolvimento das atividades de ensino-aprendizagem. Para a construção desse indicador, somamos, em cada tipo de dependência administrativa, os percentuais de respostas positivas a cada estratégia ou ferramenta adotada. Nesse caso, quanto maior o resultado da soma, maior a possibilidade de composição entre os elementos. Nessa operação, a estratificação entre escolas se mantém: com maior soma de respostas positivas, temos, em primeiro lugar as escolas públicas federais, seguidas pelas escolas s estaduais. Em terceiro lugar aparecem as escolas privadas, e as escolas situadas em territórios urbanos. Com o menor percentual de respostas somadas, encontram-se as escolas públicas municipais e as rurais.
ESTRATÉGIAS ADOTADAS JUNTO AOS PROFESSORES E ALUNOS DURANTE O PERÍODO DA PANDEMIA
Diante das estratégias de isolamento, as perguntas feitas pelo Censo às escolas, cujas respostas recortamos para a análise que se segue, são: o que e como as escolas fizeram para manter o contato com os alunos e professores? Como esses suportes foram distribuídos entre escolas públicas e privadas, urbanas e rurais, e, no interior das redes públicas de ensino, entre escolas públicas federais, estaduais e municipais?
A Tabela 3 trata das estratégias adotadas pela escola/secretaria de educação junto a professores. Nas estratégias que dependem, especificamente, do trabalho do professor, como “[...] reorganização/adaptação do planejamento/plano de aula com priorização de habilidades e conteúdos específicos”, os percentuais de respostas positivas foram expressivos, em torno de (90%) em todas as escolas.
Dependên- cia administrativa e localização territorial |
Total de escolas que adotaram estratégias não presenciais de ensino |
Total de escolas que responderam ao item da planilha | Realização de reuniões virtuais de planejamento, coordenação e monitoramento das atividades (%) |
Treinamento para uso de métodos/ma- teriais dos programas de ensino não presencial (%) |
Disponibilização de equipamentos para professores (computador, notebook, tablets, smartphones etc.). (%) |
Acesso gratuito ou subsidiado à internet em domicílio (%) |
Reorganiza ção/adapta ção do planejamen to com priorização de habilidades conteúdos específicos (%) |
Nenhuma das estratégias listadas (%) |
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Escolas públicas e privadas | 160.623 | 159.624 | 89,6 | 63,7 | 30,3 | 6,3 | 90,4 | 1 |
Escola pública | 127.488 | 126.661 | 88,3 | 59,6 | 25 | 5,3 | 90,5 | 1 |
Escola privada | 33.135 | 32.963 | 94,4 | 79,5 | 50,6 | 9,9 | 90,1 | 0,9 |
Escola urbana | 112.262 | 111.641 | 94,2 | 70 | 37 | 7,7 | 91,5 | 0,6 |
Escola rural | 48.361 | 47.983 | 78,9 | 49 | 14,7 | 2,9 | 88 | 1,8 |
Escola pública federal | 628 | 624 | 99,5 | 94,1 | 61,1 | 20,8 | 94,9 | 0,2 |
Escola pública estadual | 27.678 | 27.481 | 97,1 | 79,9 | 43,4 | 15,9 | 92,6 | 0,4 |
Escola Pública Municipal |
99.182 | 98.556 | 85,8 | 53,7 | 19,7 | 2,2 | 89,9 | 1,2 |
Fonte: Censo Escolar 2020.
Porém, pequenas variações começam a aparecer quando o trabalho do professor exige a mediação de equipamentos. Nas respostas à pergunta acerca da “[...] realização de reuniões virtuais de planejamento, coordenação e monitoramento das atividades”, as distâncias começam a se ampliar. Acima da média, responderam (94,4%) das escolas privadas, (94,2%) das escolas urbanas, (99,5%) das escolas públicas federais e (97,1%) das escolas públicas estaduais. Em contrapartida, os mais baixos percentuais de respostas positivas encontram-se entre as escolas públicas (88,3%), as escolas rurais (78,9%) e as escolas municipais (85,8%).
Nos percentuais de respostas referentes às estratégias adotadas por secretarias e gestões escolares junto aos professores, as desigualdades se mostram de maneira ainda mais evidente. Na pergunta acerca da “[...] disponibilização de equipamentos para os professores - computador, notebook, tablets, smartphones etc.”, o conjunto das respostas positivas alcança (30,3%). As variações encontradas, porém, alcançam percentuais importantes. As escolas privadas apresentam percentuais duas vezes maiores do que aqueles apresentados pelas escolas públicas. É significativa também a variação das respostas afirmativas dadas pelas escolas urbanas (37%) e rurais (14,7%). A distribuição de equipamentos para professores também apresentou variação importante entre escolas públicas municipais, estaduais e federais, a frequência de respostas alcançou, respectivamente, (19,7%), (43,4%), e (61,1%).
Finalmente, nas respostas das escolas à pergunta acerca da existência de “[...] treinamento para uso de métodos/materiais dos programas de ensino não presencial”, as variações das frequências nas respostas novamente apontam para desigualdades entre sistemas e redes de ensino. As escolas privadas perfizeram (79,5%) de respostas positivas, e as escolas públicas (59,6%); as respostas foram positivas em (70%) das escolas urbanas e em (49%) das escolas rurais; e, dentre as escolas públicas, responderam afirmativamente (94,1%) das escolas federais, (79,9%) das escolas estaduais e 53,7% das escolas municipais.
Em síntese, no âmbito das estratégias adotadas junto aos professores, encontramos variações bastante regulares entre sistemas e unidades escolares e redes de ensino. As escolas públicas federais, estaduais, privadas, e urbanas aparecem como as mais providas em relação aos investimentos em equipamentos, e qualificação para uso de tecnologias de ensino remoto. Como menos suportes (no tocante ao trabalho do professor) estão as escolas públicas municipais, e rurais.
A Tabela 4 nos permite analisar as estratégias de comunicação e apoio tecnológico disponibilizadas aos alunos. Em relação ao apoio tecnológico destacamos: o acesso à Internet e a disponibilização de equipamentos para uso do aluno. Quanto às estratégias de comunicação: a conexão direta dos alunos com a escola e os canais abertos através da mediação dos professores.
Dependência administrativa e localização territorial | Escolas que adotaram estratégias não presenciais de ensino |
Total de escolas que responderam ao item da planilha | Acesso gratuito ou subsidiado à internet em domicílio (%) |
Disponibilização de equipamentos para uso do aluno (computador, notebook, smartphones etc.) (%) |
Manutenção de canal de comunicação com a escola (e-mail, telefone, redes sociais, aplicativo de mensagens) (%) |
Manutenção de canal de comunicação direto com os professores (email, telefone, redes sociais, aplicativo de mensagens) (%) |
Nenhuma das estratégias listadas |
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Escolas públicas e privadas | 160.623 | 159.624 | 6,3 | 9,2 | 82,6 | 86 | 9 |
Escola pública | 127.488 | 126.661 | 6,6 | 8,7 | 80,4 | 84,8 | 10,4 |
Escola privada | 33.135 | 32.963 | 4,9 | 11,2 | 91,2 | 90,4 | 3,8 |
Escola urbana | 112.262 | 111.641 | 7,6 | 11,2 | 89,7 | 91 | 4,3 |
Escola rural | 48.361 | 47.983 | 3,2 | 4,6 | 66,2 | 74,2 | 20 |
Escola pública federal | 628 | 624 | 82,5 | 80,9 | 99,2 | 97,6 | 0 |
Escola pública estadual | 27.678 | 27.481 | 21,2 | 22,6 | 92,1 | 93,4 | 4 |
Escola pública municipal | 99.182 | 98.556 | 2 | 4,3 | 77 | 82,3 | 12,2 |
Fonte: Censo Escolar 2020.
Os percentuais de respostas positivas em relação ao acesso gratuito ou subsidiado à internet em domicílio foram baixos, sendo (6,3%) no total, com destaques para algumas diferenças: (6,6%) nas escolas públicas e (4,9%) nas privadas; (7,6%) nas urbanas e (3,2%) nas rurais. Nas escolas públicas, a oferta de acesso apresenta variações expressivas, uma vez que as escolas federais aparecem à frente com (82,5%) das respostas afirmativas, seguida pelos (21,2%) das estaduais e (2%) municipais.
Foram também discretos os percentuais de respostas afirmativas à pergunta sobre a “[...] disponibilização de equipamentos para uso do aluno (computador, notebook, smartphones)”. Em geral, (9,2%) das escolas responderam afirmativamente. Mas, aqui também as variações nas respostas positivas devem ser sublinhadas: (8,7%) nas escolas públicas contra (11,2%) privadas; (11,2%) nas escolas urbanas em relação a (4,6%) rurais. Novamente, as variações mais expressivas aparecem na esfera das escolas públicas, respondendo afirmativamente (80,9%) das escolas federais, (22,6%) das estaduais e (4,3%) das municipais.
Quanto à abertura de canais de comunicação com a escola e, diretamente, com os professores, as perguntas obtiveram índices bastante elevados de respostas positivas, com percentuais gerais de (82,6%) e (86%) respectivamente. Entretanto, outra vez, as menores frequências foram alcançadas pelas escolas públicas municipais e pelas escolas rurais.
Em síntese, se houve escassez generalizada na oferta de suportes aos alunos para as aulas não presenciais, houve maior investimento das escolas no estabelecimento de canais institucionais de comunicação com os discentes. Todavia, podemos perceber, em relação aos suportes (técnicos e comunicacionais) disponibilizados aos alunos, a mesma estratificação detectada entre os suportes oferecidos aos professores: pela maior intensidade nas ofertas e nas disponibilidades estão as escolas públicas federais e estaduais, as escolas privadas e as escolas situadas em meios urbanos, e, pela menor frequência na oferta de suportes, as escolas públicas municipais e as escolas rurais.
CONCLUSÃO
Os dados até aqui analisados nos permitem perceber que, em 2020, sob o primeiro impacto da pandemia, desigualdades importantes emergiram entre os sistemas e redes de ensino, uma vez que a educação escolar passou a ter como pré-requisitos a posse ou aquisição de certas condições socioculturais, econômicas e técnicas para sua realização.
Nossa análise nos permite constatar que tais condições estiveram relacionadas, primeiramente, à capacidade dos alunos e de suas famílias de possuírem /e/ou terem acesso (por disponibilização da escola ou por meio de recursos próprios) a equipamentos, a redes, suportes da família, necessários para auxiliar os processos de ensino-aprendizagem; em segundo lugar, ao grau, tipo e nível de articulação entre pais, familiares e alunos com a escola, sua gestão e seus profissionais; em terceiro lugar, ao tipo de escola que se frequenta (pública ou privada, rural ou urbana, rede federal, estadual ou municipal), sendo as escolas privadas e/ou as escolas urbanas e/ou as escolas públicas federais e estaduais, aquelas que ofereceram maior quantidade e variedade de suportes sob a forma de estratégias de comunicação e de capacitação de agentes mediadores, mobilização de métodos e de tecnologias de ensino-aprendizagem presenciais ou não, disponibilização de uma variedade de recursos; finalmente, ao nível escolar em curso no momento da pandemia.
Essa é uma constatação assustadora, na medida em que, quando observamos os dados do Censo Escolar 2020, verificamos que, do total de 138.487 mil escolas públicas existentes no Brasil, as escolas municipais correspondem a quase (78%) do total de escolas. Isso, pode ser explicado, em boa parte, por serem estas escolas as responsáveis por “[...] oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental” (Brasil, 1996, Art. 11, V). Todavia, mais que a responsabilidade de ofertar o ensino fundamental, os municípios são a porta de entrada das crianças e adolescentes na instituição.
Foram principalmente os alunos, professores e familiares das escolas públicas, de circunscrição Municipal, aqueles que se encontraram mais fragilizados em termos de suportes, mais desamparados para enfrentar os enormes desafios abertos pela educação escolar em tempos de pandemia.
Sem tocarmos no fato de que esses conjuntos institucionais abarcam os perfis mais vulneráveis de estudantes, o fato do maior desamparo institucional abarcar as comunidades escolares Municipais traz profundas preocupações ao vínculo escolar e ao engajamento dos alunos mais vulneráveis, exatamente no momento de sua entrada no sistema educativo, nos anos iniciais do ensino básico.
A supressão da presencialidade rompeu o contato com a escola, para parte significativa das crianças e adolescentes. Nesse âmbito, a fragilidade das estratégias mobilizadas para oferta dos meios, dos equipamentos e das tecnologias, as dificuldades encontradas para a preparação/capacitação de mediadores (pais, responsáveis...) capazes de dar suporte à construção de pontes entre os estudantes e as instituições, e as dificuldades encontradas na comunicação entre as escolas e os agentes escolares, apresentaram-se como impedimentos importantes, que, na prática, impuseram obstáculos ao acesso de crianças e adolescentes às escolas. O fato desses impedimentos terem atingido mais duramente as redes municipais de educação, nos permite avaliar o impacto da pandemia sobre o exercício do direito à educação na porta de entrada do sistema educativo.
Peter Berger e Brigit Berger (1977) já demonstraram, há muito, as relações entre as condições de existência e os processos de socialização. Daniel Thin (2006) em seus estudos sobre a socialização escolar em meios populares nos mostra tratar-se esse de um processo potencialmente conflitivo (porque envolve disputa desigual entre valores), e que, acontecendo em um espaçotempo específico (a escola) envolve a apropriação de uma gramática institucional. É exatamente a assimilação dessa gramática que permite interação, comunicação e vinculação do aluno para com a escola.
Esse processo não foi suspenso, nos dois anos que exigiram a frequência não presencial às escolas. Ele, porém, passou a depender da mobilização de um conjunto significativo de mediações: técnicas (envolvendo redes, plataformas, programas); materiais (acionando equipamentos, material didático especializado, preparação de espaços físicos); comunicacionais (envolvendo estratégias de relacionamento entre instituições, profissionais, usuários, e eventuais mediadores); e pedagógicos (com a adaptação de currículos, reelaboração de programas, invenção de didáticas). Mas se ele não foi suspenso, como vimos ao longo do artigo, também não teve distribuição equânime.
Concluímos, portanto, que a forma específica com que a necessidade de isolamento social, impactou a reorganização das escolas para implementação de ensino não presencial afetou o direito à educação, no mais fundamental dos seus níveis, com efeito de amplo alcance, uma vez que ele se dá sobre as maiores e mais numerosas redes de ensino do país.
Por outro lado, ao afetar a mais fundamental das etapas de ensino, a forma com que o país lidou com a pandemia, implicou impedimentos de acesso àquilo que se configura como a porta de entrada ao sistema de ensino, afetando a experiência inicial dos alunos com a escola.
Tais dificuldades apontam para possíveis desdobramentos futuros (podendo afetar inclusive as trajetórias escolares da geração que ingressa no sistema escolar no momento da pandemia), na medida em que atinge: as possibilidades de apropriação e acúmulo dos conhecimentos escolares referentes a essa etapa de ensino e também a socialização escolar, que, principalmente em seus primeiros anos, é essencial para a apropriação dos valores escolares e da gramática institucional, possivelmente impactando o processo de escolarização de todo uma geração escolar.