A avaliação da aprendizagem é uma temática que tem ocupado um vasto espaço de discussões e reflexões na esfera educacional, caracterizando-se como mecanismo intrínseco da prática pedagógica docente no ambiente escolar. Logo, esta não se constitui como uma ação que se desenvolve posteriori a prática pedagógica, mas sim como um processo contínuo, constante e gradativo em que, a partir dos progressos e/ou dificuldades apresentadas pelos/as estudantes, o corpo docente poderá buscar outras estratégias que melhor possam robustecer o processo de aprendizagem.
Desse modo, Luckesi (2012) evidencia a imprescindibilidade de o professor desenvolver uma constante reflexão sobre a sua prática e direcioná-la consoante ao contexto sócio-histórico em que atua. Assim, para que a práxis educativa esteja inclinada às demandas dos/as educandos/as, faz-se necessário que a escola, e especialmente os/as professores/as ressignifiquem e adequem o fazer pedagógico às querelas sociais, políticas e culturais que são assumidas nas pautas do sistema educacional atual. Ademais, é pertinente elucidar que a avaliação da aprendizagem possui um caráter multidimensional (Hadji, 2001), que contempla profusos contextos, realidades, formas e encadeamentos do conhecimento (Oliveira, 2010).
Conscientes, pois, da relevância da avaliação ao processo de ensino-aprendizagem, conversamos com o professor Cipriano Carlos Luckesi, reconhecido nacionalmente enquanto um exímio estudioso da avaliação da aprendizagem e autor de diversas obras de referência sobre o tema, dentre as quais: prática docente e avaliação (1990), avaliação da aprendizagem escolar (1995), avaliação da aprendizagem na escola (2003), avaliação da aprendizagem: componente do ato pedagógico (2011).
Cipriano Luckesi1 possui licenciatura em filosofia (1970), pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Católica do Salvador (UCSAL), e bacharelado em teologia (1968), pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem mestrado em ciências sociais (1976), pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e doutorado em educação (1992), pelo programa de pós-graduação da PUC-SP.
No que concerne à atuação profissional, é atualmente professor aposentado da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, na qual atuou como docente do departamento de filosofia, lecionando na graduação, no período de 1971 a 2002. No tocante ao curso de graduação em filosofia, ele ensinou, principalmente, as disciplinas de introdução à filosofia, axiologia, pensamento filosófico na América Latina e leitura do texto filosófico.
Luckesi atuou no programa de pós-graduação em educação (mestrado e doutorado) da Faculdade de Educação da UFBA, no período de 1985 a 2010, ministrando aulas e desenvolvendo atividades de orientação para mestrandos e doutorandos. Ainda, o pesquisador trabalhou na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), vinculado ao departamento de ciências humanas e filosofia, lecionando a disciplina de metodologia do trabalho científico e metodologia da pesquisa, no período de 1976 a 1994.
Nessa direção, suas áreas de atuação e pesquisa voltam-se às temáticas da filosofia da educação, teoria do ensino, didática, educação e ludicidade e avaliação da aprendizagem escolar (tema no qual, ao longo do tempo, sagrou-se referência), comportando em sua produção científica mais de 14 livros publicados, além de diversos artigos em revistas especializadas.
Nesta entrevista, dialogamos com o professor Luckesi sobre a materialização da avaliação formativa na educação escolar, as repercussões da avaliação provocadas pelas diferenças regionais no processo de formação de professores, a utilização de provas como instrumento de aprovação e reprovação no percurso formativo de professores e sobre os impasses e potencialidades à avaliação no contexto do retorno ao ensino presencial na educação brasileira. Assim sendo, a entrevista sedimenta o entendimento que a avaliação da aprendizagem constitui um mecanismo que promove a formação qualitativa dos sujeitos e sua emancipação, contrapondo os paradigmas de ensino liberal e conservador que atendem necessidades e interesses de um modelo dominante (Luckesi, 2012).
Esperamos que a presente entrevista possibilite a compreensão de questões relevantes e necessárias para um maior aprofundamento no que concerne ao tema da avaliação, para além disso, que suscite ainda mais o desenvolvimento de outros estudos do gênero.
Entrevistadoras: Para início de conversa, gostaríamos de saber, no seu ponto de vista, quais os desafios para a materialização de uma avaliação formativa no dia a dia da educação escolar e acadêmica, como também no Ministério da Educação (MEC)?
Cipriano Luckesi: Em primeiro lugar, compreender a dinâmica do ato avaliativo importa ter presente que a expressão avaliação formativa não significa um tipo de avaliação, mas sim uma conduta do profissional da educação que faz uso formativo dos resultados da investigação avaliativa. Fazer uso formativo significa servir-se dos resultados da investigação avaliativa tendo em vista subsidiar novas e adequadas decisões em busca dos resultados desejados e, por isso, propostos para a ação em execução. A investigação avaliativa revela a qualidade da realidade. Quem faz uso dos seus resultados investigativos é o gestor da ação, que, frente à qualidade da realidade, decide a conduta a ser assumida e praticada. Diante disso, importa ao educador, à educadora, previamente, ter presente a compreensão epistemológica do ato de avaliar acima sinalizada. Então, a seguir, servindo-se dessa compreensão, praticar a investigação da qualidade da aprendizagem por parte dos estudantes. Por exemplo, servindo-se de um teste escrito, elaborado segundo as regras da investigação científica que implicam em: (1) cobrir todos os conteúdos essenciais; (2) utilizar-se de linguagem compreensível; (3) estabelecer uma compatibilidade entre ensinado e aprendido; (4) cuidar da precisão na formulação das questões. Com o instrumento de coleta de dados pronto, deve-se aplicá-lo e corrigir as respostas dadas, atividade que possibilitará a esse educador, essa educadora, ter ciência das aprendizagens dos estudantes, assim como de seus limites. E com os resultados da investigação avaliativa da aprendizagem dos discentes em mãos, importa fazer uso dos conhecimentos obtidos tendo em vista subsidiar novas decisões na busca desejada do sucesso na atividade de ensinar e de aprender na sala de aula. Desse modo, a avaliação da aprendizagem é a parceira do profissional de ensino, a anunciar-lhe o sucesso de sua ação ou a anunciar-lhe que os resultados aspirados ainda não foram obtidos. Então, caberá ao gestor da ação pedagógica - professor, professora - a decisão de investir mais e mais na busca desses resultados. A avaliação da aprendizagem é, pois, a parceira do educador, da educadora em sala de aula, a avisar-lhe do sucesso ou insucesso de seus estudantes no que se refere à aprendizagem relativa aos conteúdos ensinados, fator que possibilita novas decisões na busca do sucesso das ações de ensinar e aprender. Quanto à avaliação institucional, envolvendo a escola, e de larga escala, envolvendo municípios, estados e federação, haverá, de um lado, a necessidade de investimentos nessas práticas investigativas, e, de outro, a decisão de seus gestores em servirem-se dos resultados das variadas práticas investigativas disponíveis com o objetivo de buscar e obter os melhores e mais significativos efeitos, estes decorrentes da prática educativa tanto para os estudantes, tomados individualmente ou em grupos, como para a vida social.
Entrevistadoras: As diferenças regionais (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste) têm impactos na formação de professores? Se sim, quais?
Cipriano Luckesi: As diferenças regionais, seguidas de suas compreensões teóricas, deveriam ser levadas em conta no processo de formação dos educadores juntamente à formação relativa aos conhecimentos universais. Existem, de um lado, as características do país, da região e da cidade onde estão situados os estudantes, assim como seus professores e professoras, e, de outro, os variados conhecimentos ensinados têm características que fazem a mediação entre o universal e o particular. Não existe uma matemática, uma física ou outra disciplina qualquer que, como ciência, tenha as características exclusivas de um país, de uma região ou de um local, ainda que os objetos de estudos possam ser próprios do país, da região ou do local. Ocorre sempre uma leitura que integra o local, o regional com o universal. Por exemplo, o estudo de uma formação geológica situada em um estado brasileiro contemplará as características físicas desse local, mas sua abordagem deverá levar em consideração tanto seu aspecto específico como sua universalidade científica. O mesmo ocorrerá com um estudo antropológico de um agrupamento humano situado em uma região específica do planeta. No caso, importará sempre ter presente as características específicas do agrupamento que está sendo abordado, como também as características antropológicas universais dos grupamentos humanos. Em síntese, tanto no investigar quanto no ensinar, será de todo importante ter presente, por uma parte, a descritiva e a compreensão da situação específica estudada, e, por outra, sua compreensão sob a ótica universal da ciência. O particular e o universal sempre estarão presentes nas abordagens científicas, filosóficas, sociológicas... da realidade. Os educadores escolares necessitarão, de um lado, auxiliar seus estudantes a olharem para a realidade local, compreendendo-a e, ao mesmo tempo, integrando-a no universal, e, de outro, auxiliá-los a compreender que as formulações universais possibilitam a todos uma visão abrangente daquilo que é local. Tanto na investigação como no ensino, portanto, importa ter presente a dialética entre o particular e o universal ou, de maneira inversa, entre o universal e o particular. As duas dimensões constitutivas da compreensão da realidade têm importância na formação cognitiva e, consequentemente, afetiva e ética dos estudantes.
Entrevistadoras: Gostaríamos de saber o seu entendimento a respeito da utilização de provas como instrumento de aprovação ou reprovação no percurso da formação de professores.
Cipriano Luckesi: A respeito da questão formulada, importa compreender que todos nós fomos formados através de uma prática escolar que assumiu as provas como recurso de aprovação ou de reprovação dos estudantes, sem levar em conta que elas podem ser uma parceira do educador, da educadora, como sua subsidiária a avisar-lhe da qualidade da aprendizagem dos e das estudantes sob sua responsabilidade. A Pedagogia Jesuítica, formulada no decurso da segunda metade do século XVI, previa duas ações no que se refere à avaliação da aprendizagem. A primeira compreende o acompanhamento dos estudantes em sala de aula no decurso do ano letivo; e a segunda diz respeito aos exames finais que ocorriam por uma única vez ao final de cada ano letivo. Tal acompanhamento deveria subsidiar o educador a auxiliar os estudantes a aprender o necessário e, por sua vez, os exames ao final do ano letivo tinham por objetivo confirmar e garantir que eles aprenderam aquilo que deveriam ter aprendido. A Pedagogia Protestante, paralela historicamente à Pedagogia Jesuítica, ainda que denominasse as práticas avaliativas de exames, também investiu na construção da aprendizagem por parte de todos os estudantes. Valem observar que, ao longo do tempo, nos séculos XVIII, XIX, e XX, os teóricos do ensino - afinal, os pedagogos - defenderam a compreensão e o uso da avaliação da aprendizagem como recurso subsidiário da ação pedagógica institucional, tendo em vista favorecer decisões construtivas no decurso dos procedimentos de ensino. Propriamente, pós-Revolução Francesa - com o uso do sistema numérico de registro do aproveitamento escolar em uma escala que varia de 0 (zero) a 10 (dez) - a prática avaliativa da aprendizagem escolar foi perdendo seu lado subsidiário aos investimentos em uma aprendizagem satisfatória por parte de todos os estudantes, reduzindo-se quase que exclusivamente aos atos de aprovar e reprovar na vida escolar. Essa modalidade de prática avaliativa da aprendizagem - aprovar/reprovar - se estendeu pelo mundo ocidental em geral, chegando até nós. Certamente que, hoje, não conseguiríamos, de modo imediato, proceder mudanças na modalidade de registro do aproveitamento escolar presente em nossas instituições de ensino, através das notas escolares variando de 0 (zero) a 10 (dez). Todavia, podemos aprender a utilizá-la de modo favorável aos atos de ensinar por parte do educador, da educadora, e de aprender por parte dos discentes. Para tanto, importa que nós, educadores e educadoras, não nos demos por satisfeitos enquanto nossos estudantes não obtiverem uma classificação mínima com nota 8,0 (oito) em cada um dos conteúdos ensinados. A exemplo, em matemática, no tocante às operações básicas, seria: nota aproximadamente 8,0 em adição, 8,0 em subtração, 8,0 em multiplicação, 8,0 em divisão, redundando em uma média mínima 8,0 como expressão de que eles aprenderam aquilo que deveriam aprender. Afinal, todos os estudantes necessitam aprender, não um ou outro. Então, nesse contexto, a prática avaliativa será sempre a parceira do educador, da educadora, no cotidiano escolar, a avisá-los quando um estudante ou uma estudante manifesta já ter aprendido o necessário ou quando ainda necessita de cuidados relativos aos atos de ensinar e aprender o conteúdo com o qual se estiver a trabalhar. Com essa conduta, evitaríamos estar nos desgastando com os embates quanto às práticas educativas escolares e estaríamos investindo no sucesso individual de cada um de nossos discentes, assim como na construção de uma sociedade saudável.
Entrevistadoras: Que aspecto o professor elencaria como impeditivo ou desafiador para a materialização de uma avaliação na perspectiva que defendes?
Cipriano Luckesi: O pano de fundo mais significativo para a prática da avaliação da aprendizagem, sob a modalidade de provas e exames, é o modelo de sociedade nascido com a emergência da Modernidade e sua sedimentação e manutenção até o presente, afinal, o modelo burguês de sociedade com as classes alta, média e baixa. De fato, epistemologicamente, o ato de avaliar pertence ao ser humano em seu modo constitutivo de ser. Avaliamos vinte e quatro horas por dia, minuto a minuto. A avaliação, como investigação da qualidade da realidade, subsidia nossas escolhas e decisões, inclusive no caso da aprendizagem escolar e acadêmica. Ao invés de usar os resultados da investigação avaliativa de modo classificatório, como usualmente temos praticado na educação institucional, devemos usá-los de modo subsidiário às nossas decisões, tendo em vista a construção de resultados satisfatórios decorrentes de nossa ação pedagógica. A avaliação é um ato parceiro a nos avisar a respeito da qualidade dos resultados de nossa ação, permitindo escolhas, decisões e consequentes reconstruções.
Entrevistadoras: Quais desafios e potencialidades poderiam ser elencados frente à avaliação no contexto do retorno ao ensino presencial na educação brasileira?
Cipriano Luckesi: O fato de o ensino dar-se de modo presencial ou a distância não traz nenhuma mudança epistemológica ao ato de avaliar. Sempre é e será o ato de investigar a qualidade da realidade que subsidia escolhas e decisões; no caso, subsidia escolhas e decisões a respeito da qualidade da aprendizagem dos nossos estudantes. A meu ver, a escolha deverá ser sempre destinada a garantir a aprendizagem satisfatória por parte de todos os estudantes que se encontram sob a responsabilidade de cada um de nós. O retorno às atividades presenciais, no sistema de ensino, no que se refere à avaliação, implica exclusivamente na proximidade física, social e psicológica entre educador e estudantes. No caso, o ato de avaliar, como investigação da qualidade da realidade, não terá novas configurações epistemológicas devido ao fato das aulas retornarem a ser presenciais. A avaliação continua sendo o ato de investigar a qualidade da realidade. A diferença, no caso, é que, na educação a distância, a coleta de dados é realizada também a distância e, na prática da educação presencial, a coleta de dados se dá a partir da relação entre educador e estudantes. O ato de avaliar, em si, para ser efetivamente um ato de avaliar em uma ou outra dessas circunstâncias, continuará sendo uma prática de investigação da qualidade da realidade, cujos resultados devem subsidiar escolhas e decisões.