ENSINO DA LÍNGUA COMO CAMPO DE BATALHA PARA O PROJETO POLÍTICO NEOPATRIOTA1
“[...] é urgente que a questão da leitura e da escrita seja vista enfaticamente sob o ângulo da luta política a que a compreensão científica do problema traz sua colaboração
(Freire, 2011, p. 17)
Confirmando uma certa incidência histórica, a disputa no campo da alfabetização volta a se intensificar no Brasil, nos últimos anos, sob o mote principal dos aspectos metodológicos, na esteira do que muitos estudos evidenciaram (Mortatti, 2008, 2020; Soares, 2016; Leite; 2006; Gontijo, 2014, dentre outros), mas também apresentando singularidades e muitas implicações ainda não tão visíveis ou concretizadas socialmente. Algumas dessas particularidades (agora mais explícitas sob as chamadas direitas radicais, novas direitas, extremas direitas ou ainda direitas neopatriotas, neofascistas, dentre outras denominações e acepções que também estão no bojo do fenômeno mais amplo do bolsonarismo como força política e cultural2) são aqui objeto de reflexão, consideradas no contexto de projetos de poder e suas principais pautas.
Com mais ênfase, este artigo busca destacar como a alfabetização pode se revelar, novamente, numa arena central de disputa para um determinado projeto de poder (no caso, de fundo conservador nos costumes e liberal na economia, como estruturantes projetos coloniais/ modernos e em constante atualização, tal como o anti-cientificismo e o anti-intelectualismo recentes, na direção do que apontam Szwako e Ratton (2022), funcionando como destacada trincheira na chamada guerra cultural, o que retomaremos na sequência. Em outras palavras, na educação da infância (principalmente), o campo da alfabetização (em se tratando de suas políticas e discursividades afins) passa a operar como um dispositivo político-instrumental das referidas direitas, de modo que arregimente para si o pleno governo- negligenciando/ fragilizando os direitos humanos das crianças à informação, assim como o acesso aos bens culturais e simbólicos dessa minoria sociológica e política3 - consequentemente, obtendo a adesão das famílias (dentre outros setores e aspectos que aqui não temos a pretensão de discorrer4) e prevalecendo como hegemonia de poder.
Para tal tarefa, o estudo parte de uma concepção teórico-metodológica pós-crítica/ cartográfica (Deleuze, Guattari, 1995), pelo acompanhamento de processos na área, em nível micro e macropolítico, além de estudos já realizados, como principal fonte de produção de dados e decorrentes também de duas pesquisas de doutoramento (uma em andamento e outra já realizada que destacam alguns impactos dessas questões sobre crianças ouvintes e surdas como sujeitos de direitos); no caso, destacamos aqui alguns acontecimentos discursivos que circulam em diversos territórios: sites, blogs, redes sociais, mídias tradicionais (jornais e revistas, por exemplo),- apresentados no decorrer das análises embasadas pelos Estudos da infância (pelo enfoque de direitos) e concepções freireanas, destacadamente.
"PEDAGOGIAS ESQUERDISTAS" NA MIRA
O Brasil, como importante laboratório das extremas direitas mundiais (Caldeira Neto, 2023), vem sedimentando também essa "[...] espécie violenta e tribal" (Bogéa, 2021, p. 43), aqui entendida como bolsonarista. Para muito além de um governo propriamente dito e da necessidade específica de liderança do ex-presidente da República, o bolsonarismo (esse novo tecido social; a construção de homens novos, segundo Stefanoni, 2023, p. 63) nos choca por sua desumanidade, ainda nas palavras do autor (Bogéa, 2021, p. 43), ou seja, pela desumanização sistemática de grupos/ indivíduos já vulnerados historicamente, com mais ênfase. Isso se dá, de forma bastante resumida, por meio de uma programação cultural que mobiliza “[...] símbolos, significações, valores, instituições, aparatos tecnológicos, obras de arte, ideias, formas de viver e pensar... tudo aquilo que se pode chamar de 'cultura'", como se fosse uma necessidade biológica vital (Bogéa, 2021, p. 4041).
David Nemer (2023) diz da formação de um Bolso-exército, uma base de fãs leais (além de outros dois grupos de eleitores por ele identificados: brasileiros médios e influenciadores que possuem semelhanças, mas têm papéis distintos no processo), organizado (e atuante) pela incitação via redes sociais e fake news, principalmente. Utilizando a linguagem da violência e um imaginário regressivo e vingativo, como avalia Ivana Bentes em recente entrevista, não existe projeto de país, de fato. Trata-se de uma contaminação de ódio em que não se trata apenas de linguagem figurada, mas de “[...] atos de fala que incentivam sua concretização” (Bentes, 2022, s. p.). Nesse ritmo, esferas fundamentais que cimentam nossas relações acabam por se esfacelar: pacto social, estado de direito, democracia e direitos humanos, como destaca a pesquisadora.
Trata-se de uma mudança cultural avassaladora, obtida pela beligerância (para além do nível discursivo). Mas daí à deflagração de uma guerra cultural? É o que reiteram vários estudos na área (Lins, 2022b), mas particularmente os próprios líderes bolsonaristas, quando se insurgem contra o que consideram ter sido historicamente imposto, sob a égide do marxismo cultural (principalmente por universidades e escolas). Olavo de Carvalho, aliás, incluía nessa lista: “[...] pedagogos esquerdistas como Emilia Ferreiro, Lev Vigotsky e Paulo Freire para implantar na mente infantil as estruturas cognitivas aptas a preparar o desenvolvimento mais ou menos espontâneo de uma cosmovisão socialista, praticamente sem necessidade de ‘doutrinação’ explícita5.” (grifos nossos).
O então mentor de Bolsonaro fazia declarações explícitas no sentido da referida guerra cultural6, recheadas de palavrões como estratégia persuasiva de praxe, e destacava especificamente o papel do método de alfabetização (no caso, o que nomeia como sistema fônico em detrimento de uma dimensão interlocutiva para o ensino da língua). Pode-se observar, portanto, como a alfabetização se torna um emblemático dispositivo político-instrumental dessas direitas, com cunho retro-utópico (Stefanoni, 2023).
Essa singular discursividade circula socialmente e se impregna no imaginário das famílias até os dias atuais, além de ter subsidiado as políticas públicas mais concretas realizadas pelo Ex- Ministério da Educação (a exemplo da Política Nacional de Alfabetização, PNA) (Lins, 2022a). Assim, o autoproclamado filósofo vociferava:
[...] eles inventaram esse método de alfabetização sintético [sic], copiado aí do Jean Piaget, Vygotsky e o c*, né? [...] se não fosse o sistema fônico não tinha palavra, p*! [...] antigamente, você aprendia toda a divisão de sílaba [...] Eu já mostrei que Piaget é um cretino sob vários aspectos [...] Piaget tem que ser jogado no lado do lixo né? [...]7
Acompanhando tal ideário, o filho do ex-Presidente revitaliza o projeto de ativismo, também em forma de curso, intitulado formação conservadora. Em vídeo nomeado guerra cultural e o processo de resgate do Brasil8, conclama em página oficial a tal formação9: “A missão é formar lideranças e preparar os conservadores para retomar espaços na guerra cultural, enfrentando as mentiras da esquerda no seu dia a dia, abrindo os olhos das pessoas à sua volta e atuando nas comunidades locais”. Ali, o Deputado estadual anuncia: “É necessário formar pessoas capazes de retomar os espaços não só na política, mas principalmente na cultura10", seguindo fielmente os preceitos olavistas. Segundo Ricardo Chapola, em reportagem à revista Veja11 (2022), em que destaca o grande ganho financeiro do filho do ex-Presidente com esse tipo de proposta: “[...] a meta é anunciada logo na apresentação do curso: vencer a guerra cultural, uma das obsessões de Olavo de Carvalho, e derrotar a esquerda”. O herdeiro bolso-olavista menciona expressões como entrar em campo nessa batalha cultural, mentalidade revolucionária, ativismo judicial, doutrinação e argumenta com veemência sobre uma urgente preparação “[...] para os embates sobre aqueles assuntos que são os mais importantes: feminismo, ideologia de gênero, cristianismo, juventude, marxismo cultural, ativismo judicial e educação12” (grifo nosso).
Dado esse cenário, é fundamental concebermos a educação das infâncias sob a perspectiva e enfoque de direitos (ONU, 2005; Unicef, 2019), ou seja, as crianças não devem ser concebidas e tratadas como objetos passivos em termos de cidadania, mas como sujeitos ativos de direito, em todos os âmbitos de suas vidas. Isso significa assumirmos (e fortalecermos) a prerrogativa do interesse superior das crianças (melhor interesse), e a doutrina da proteção integral (Brasil, 1988, 1990; Unicef, 1989), destacando principalmente que as mesmas têm assegurado, como expresso no Art. 13 da Convenção sobre os Direitos das Crianças, CDC (Unicef, 1989) e acompanhado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA (Brasil, 1990): “[...] a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente de fronteiras, seja verbalmente, por escrito ou por meio impresso, por meio das artes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança”, dentre outras garantias legais. Tal posição é acompanhada pela premissa de que a educação de qualidade - em todos os seus objetivos e desdobramentos - deve ser laica, inclusiva e pluralista como política pública (Brasil, 1988, 1996, 2014).
A partir disso, estabelecemos diálogo com os estudos surdos, a história e a filosofia, principalmente, e apresentamos alguns dados e análises que dão a ver a questão aqui exposta. Destacamos a negação ou fragilização das práticas de letramento na alfabetização como um dos principais dispositivos das políticas bolsonaristas na educação (sob o argumento do combate às pedagogias esquerdistas, mais explicitamente, ou ainda subliminarmente, a partir do mote alfabetização baseada em evidências), na direção das análises de Chraim e Pedralli (2023), Gontijo e Antunes (2020), Mortatti (2020), dentre outros/as. Significa analisarmos como tais políticas impactam os direitos humanos das crianças, com destaque à vulneração e à injustiça epistêmica, como concebida inicialmente por Miranda Fricker (2007), assim como impactam o pleno direito à educação de qualidade socialmente referenciada e à cidadania ativa.
A ALFABETIZAÇÃO COMO TRINCHEIRA
Políticas de alfabetização bolsonaristas e os dispositivos de governo da infância engendrados
No estudo em andamento, Silva (2023, no prelo) propõe-se mapear e discutir alguns dos dispositivos de governo da infância no campo da alfabetização de crianças engendrados na gestão do presidente Bolsonaro, a partir da articulação entre os Ministérios da Educação (MEC) e da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH). Tendo o enfoque de direitos como uma das principais bases analíticas, a pesquisa, de natureza cartográfica (Deleuze, Guattari, 1995), com foco documental, tomou como fonte de dados os documentos relacionados à alfabetização e à(s) infância(s) dos Ministérios citados, bem como pronunciamentos, publicações e entrevistas de autoridades governistas divulgadas na Internet e redes sociais, além de matérias jornalísticas e vídeos afins veiculados pela mídia.
Partindo da compreensão de que a alfabetização é um direito humano, entendendo-a a partir do ponto de vista crítico e democrático como ato de conhecimento, ato criador e político (Freire, 2011), portanto, como uma questão que não é somente técnica e/ou politicamente neutra, o estudo ressalta a potência que a leitura e a escrita carregam na busca e no fortalecimento de processos democráticos e de cidadania.
No Brasil, dar foco à alfabetização é um movimento político que tem sido considerado estratégico “[...] para a execução e consolidação de projetos políticos para a nação” (Mortatti, 2018, p. 23). Ainda assim, no contexto do projeto de poder das direitas radicais, as ações em torno da alfabetização têm ganhado contornos únicos, transformando-a em arena de batalha e dispositivo político-instrumental indispensável na maquinaria de governamentalidade das crianças (Silva, 2023, no prelo), na acepção foucaultiana (Foucault, 1997).
A partir da articulação de tais conceitos aos direitos humanos das crianças e à perspectiva interlocutiva sobre o ensino de língua, até o momento, o referido estudo destaca alguns dispositivos de governo da infância, sinteticamente apresentados na sequência. O primeiro deles foi a criação de velhos/novos léxicos. A partir da guerra cultural instaurada, ganha destaque - nas políticas de alfabetização inauguradas na gestão de Jair Bolsonaro (Política Nacional de Alfabetização - PNA, Programa Tempo de Aprender, Programa Conta pra mim, entre outros13) - o uso recorrente de palavras e expressões como eficácia, eficácia comprovada, evidências científicas, alfabetização baseada em evidência, literacia e literacia familiar. A pesquisa considera tais expressões que compõem uma retórica singular, com o esvaziamento de significados já conhecidos e do uso de palavras com sentidos diferentes, criando assim velhos/novos léxicos (já que os termos só foram contorcidos14 com novos sentidos). A Tabela 1 mostra a ocorrência de expressões amplamente utilizadas nas políticas de alfabetização do MEC (2019-2022):
Expressões / Documentos analisados | eficácia | evidências científicas |
literacia | literacia familiar |
letramento | |
---|---|---|---|---|---|---|
Decreto n. 9.765, de 11/4/2019 (instituiu a PNA) | 2 | 3 | 12 | 2 | 0 | |
Caderno de apresentação PNA | 6 | 16 | 60 | 13 | 0 | |
Portaria n. 421, de 23/4/2020 (instituiu o programa "Conta pra mim") | 0 | 1 | 5 | 16 | 0 | |
Guia de literacia familiar do programa "Conta pra mim" | 0 | 3 | 2 | 100 | 0 | |
Editais PNLD15 |
2021 - Ensino Médio | 2 | 0 | 0 | 1 | 1 |
2022 - Educação Infantil | 2 | 1 | 43 | 0 | 0 | |
2023 - Ensino Fundamental Anos Iniciais |
3 | 3 | 14 | 0 | 0 |
Fonte: Silva, 2023, no prelo.
O segundo dispositivo identificado foi a expulsão da dimensão política da alfabetização e, por consequência, da educação da infância. A despolitização desse grupo é um feito histórico que estrategicamente tem sustentado poderes adultocentrados (Silva, 2023, no prelo). Um dos impactos sobre os direitos humanos das crianças e a dimensão política de sua educação se deu quando o MEC apagou o termo letramento dos documentos e políticas oficiais e passou a usar a expressão importada literacia16. Com esta artimanha, ao escolher usar o termo literacia e anular o constructo teórico letramento nas políticas de leitura e escrita, o bolsonarismo disseminou uma política tecnicista e mecânica da alfabetização (com base única na ciência cognitiva de leitura e nos estudos da psicologia), expurgando a dimensão política de tais práticas (Freire, 2011) - seu principal alvo - e, portanto, negando o pleno aprendizado da leitura e da escrita, como também apontado por Bunzen Jr. (2020).
Assim, trechos de discursos e produções do ex-secretário de alfabetização, Carlos Nadalim, materializam a referida manobra. Em vídeo de maio de 201817, Nadalim diz que a abordagem presente nos documentos do MEC até aquele momento demonstrava "[...] uma preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista, em formar leitores críticos, engajados e conscientes, e em acabar com os preconceitos e discriminações de todo tipo". Na visão do ex-secretário, "[...] há tanta preocupação em fomentar a socialização e em promover uma visão crítica na criança que resta pouco tempo e pouco investimento para ensinar o básico, o fundamental".
As análises da pesquisa de Silva (2023, no prelo) apontam ainda que a alfabetização passou a ser usada como dispositivo de controle da família sobre a criança. O governo Bolsonaro recorreu diversas vezes à narrativa de crise familiar (Biroli, Machado, Vaggione, 2020) na busca por reestabelecer "[...] a família privada como a principal fonte de segurança e também como uma alternativa ao Estado de bem-estar" (Lins, 2022b, p. 230). Adicionou um novo contorcionismo léxico quando passou a falar de “[...] direitos dos pais em relação aos filhos" e de "[...] direitos das crianças na perspectiva da família" (Lins, 2022b), enfraquecendo, mais uma vez, “[...] as possibilidades de avanço em direção à compreensão/ representação social das crianças como detentoras de direitos” (Silva, 2023, p. 80, no prelo).
Nessa conjuntura, o programa de literacia familiar “Conta pra mim” é um exemplo de destaque lançado no período que promoveu o aumento do controle dos pais sobre os filhos (isto é, a prevalência do direito dos pais sobre os direitos das crianças), por meio de tais políticas (o que contradiz o Artigo 227 da Constituição Federal, a CDC e o ECA, por exemplo). Pautado em uma representação de criança como aquela que precisa ser constantemente controlada (Ramalhete, 2020), a ação disponibilizou mais de 40 livros infantis em formato digital e também vídeos com cantigas populares e fábulas que, antes de serem divulgados passaram por um processo de revisão, coordenado por Carlos Nadalim que limpou as histórias, retirando delas todas as partes consideradas inapropriadas e polêmicas (a partir da visão moralista e conservadora do revisorcoordenador) para o público infantil.
O programa foi exaltado em meio aos apoiadores do governo e, como difundiu um dos filhos do ex-presidente, teria sido promovido como meio de combater a suposta militância destruidora dos laços familiares desde a primeira infância, como demonstrado na Figura 1:
Fonte: Twitter. Disponível em https://twitter.com/CarlosBolsonaro/status/1235576244378521600. Acesso em 12 jan. 2021.
Políticas de alfabetização bolsonaristas e alguns impactos sobre os direitos humanos de crianças surdas
No que diz respeito ao campo da educação de surdos no país, a pesquisa de Cabello (2021) indicou que, embora haja uma aparente convergência sobre questões linguísticas no campo da educação de crianças surdas no país, as propostas educacionais que vinham sendo defendidas e reivindicadas historicamente pelo campo dos Estudos Surdos - numa perspectiva bilíngue/bicultural18, em que Libras é reconhecida e defendida como língua natural/materna das crianças surdas para que a língua portuguesa possa ser ensinada como segunda língua em sua modalidade escrita - sofrem uma reviravolta impulsionada, aparentemente, pelo também inesperado discurso de posse proferido em Libras por Michelle Bolsonaro.
A pesquisa mapeou discursos de lideranças surdas em redes sociais, eventos online e/ou reportagens divulgadas pela mídia durante o maior período do governo Bolsonaro e identificou que esse acontecimento, bastante emblemático para a comunidade surda brasileira - que pela primeira vez assistiu um discurso de posse presidencial proferido diretamente em Libras (ainda que pesem as discussões quanto à fluência em Libras de Michelle Bolsonaro na ocasião) - foi capaz de mobilizar afetos/sentimentos e de fazer com que muitas pessoas surdas sentissem uma conexão imediata com o governo que se iniciava19, talvez como promessa de um reconhecimento/pertencimento representada ali (Cabello, 2021).
Assim, embora o movimento social surdo tenha se articulado e conquistado ações importantes em décadas anteriores no país - quando, por exemplo, no início dos anos 2000, durante o primeiro mandato do atual presidente Lula, Libras foi reconhecida como língua no país (Lei n. 10.436/02 e Decreto n. 5.626/05) ou, mais recentemente, na definição da Meta 4.7 do Plano Nacional de Educação (Brasil, 2014) - o fato de que profissionais surdos(as) tenham integrado pela primeira vez importantes cargos junto ao MEC, durante a gestão bolsonarista, pode ter acentuado um sentimento de pertencimento a um grupo social minoritário que, historicamente, tem reivindicado o reconhecimento de sua diferença linguística/cultural como um direito.
Cumpre destacar que, infelizmente, governos progressistas anteriores não atenderam - ou atenderam parcialmente - pautas antigas e reiteradas pelo movimento social surdo (Campello, Rezende, 2014), o que pode auxiliar na compreensão do apelo não apenas do discurso em Libras durante a posse presidencial de Bolsonaro, mas também do que foi se delineando no campo das políticas educacionais, no que se refere também à alfabetização no campo da educação de surdos, numa aparente captura cognitiva e afetiva, fazendo com que outros contornos para as reivindicações históricas quanto à alfabetização e letramento de crianças surdas (tidas como retrógradas e opressoras) passassem a ser assumidas mais recentemente pelo movimento social surdo (Lins, Cabello, no prelo; Cabello, 2021).
É no contexto mais amplo da discussão sobre a alfabetização de crianças ouvintes no país que observamos os desdobramentos às crianças surdas, evidenciando as implicações da Política Nacional de Alfabetização (PNA, Brasil, 2019) para o surgimento de novos conceitos, tais como método fônico visual ou método letrônico na área, na mesma direção que aponta a pesquisa de Silva (2023, no prelo).
Também o campo da educação de surdos se vê diante de novos/velhos léxicos e de uma distorção, numa retórica que tenta dar novas/outras roupagens a termos/conceitos tais como o oralismo/ouvintismo20 na educação de surdos, que já foram exaustivamente debatidos e compreendidos como métodos ultrapassados e equivocados para a apropriação da escrita da língua portuguesa por crianças surdas - dada a perspectiva clínica/médica de reabilitação e normatização que carregam (Lane, 1992; Strobel, 2012; Campos, Stumpf, 2012).
O vasto campo das pesquisas na área da surdez (nacionais e internacionais) também não é explorado ou sequer citado pela PNA - com exceção, não por acaso, de trabalhos que defendem a consciência fonológica para surdos (Cruz, 2016; Stone et al., 2015), com o referencial cognitivista anteriormente citado. Ao mesmo tempo, a pesquisa de Cabello (2021) aponta que, embora os lugares de poder ocupados por lideranças surdas tenham se alinhado a um posicionamento político revisionista, colonizador e reacionário - inclusive no campo da alfabetização/letramento de crianças surdas - algumas lideranças e representantes surdos/as também se manifestaram publicamente no período, repudiando tais discursos e posicionamentos que revisitam as concepções clínicas/patológicas da surdez, como apontado na Figura 2:
Assim, o trabalho de Cabello (2021) indicou que as pedagogias surdas entram em disputa a partir de diferentes territórios. Em nome de uma pretensa moral e dos bons costumes, o campo foi tensionado a ponto de aceitar, em alguma medida, o retorno da concepção patológica sobre suas vidas e educação, aparentemente seduzidos por discursos antigos assumidos por pesquisadores ouvintes da área, mas mais recentemente repaginados.
QUE FUTUROS SE ANUNCIAM?
Podemos observar um particular estado de coisas (de projetos de mundo/ sociedade) que mobilizam e buscam instaurar o caos (ainda que sob o pretexto de resgate cultural) como ferramenta política, de modo que se possa obter o pleno controle econômico, além dos demais. Segundo Sanahuja e Burian, em termos de agência, as guerras culturais impulsionadas por esses grupos buscam repolitizar assuntos e construir uma agenda de contestação “[...] traduzida em discursos polarizantes” (Sanahuja, Burian, 2023, p. 27). Essas características tornam-se constituintes do fenômeno das guerras híbridas (Ramina, 2023, p. 355): “[...] guerras sem o envolvimento de armas bélicas, e entre as quais estão a guerra econômica e a guerra jurídica ou lawfare, aliás exemplo cada vez mais importante na América Latina”. Embora pareça difícil de acreditar, tais guerras trazem consequências “[...] tão catastróficas quanto aquelas das guerras tradicionais”, como também aponta Ramina (2023, p. 355).
Valendo-se de tais estratégias, o mundo atual vem se tornando radicalmente anti-ilustrado e a educação e a ciência se fundem também em desprestígio de que só poderão sair se “[...] se mostrarem capazes de oferecer soluções concretas à sociedade: trabalhistas, técnicas e econômicas” (Stefanoni, 2023, p. 65, livre tradução). Rita Segato (2014), em direção aproximada, nos diz de “[...] novas formas de guerra” que constituem uma pedagogia da crueldade, destacadamente “[...] contra aqueles que não jogam o papel de antagonistas armados - mulheres e crianças - nos enfrentamentos” (Segato, 2014, p. 15, livre tradução; grifos nossos). Desse modo, tais guerras - alicerçadas nos pânicos morais vigilantes quanto à doutrinação das crianças - tendem a facilmente capturar o imaginário popular e das famílias.
É provável que levemos muito tempo para curar essa fissura, porque a guerra cultural vem tomando conta das famílias e rachando o país, o que tem nos levando a uma forma bárbara de vivência coletiva (inclusive afetando a subjetivação das crianças e jovens).
Um futuro incerto tem se tornado um horizonte para os/as brasileiros/as e a alfabetização passa por tais incertezas e tensionamentos, quando professores/as, educadores/as e escolas sentem-se intimidados, desencorajados ou impedidos em garantir justiça, diversidade e crédito epistêmicos (Kotzee, 2017), neste caso, fortalecendo o pleno direito à informação às crianças e jovens (mas não apenas!), as pedagogias ativas (como as propostas pelos educadores/as que Olavo de Carvalho mais combateu em vida e, nesse ínterim, de práticas de letramento/ leitura de mundo que devem compor esse processo formativo, de forma indissociável (Soares, 2016; Leite, 2006; Freire, 2011), ou seja, de práticas de alfabetização que não dissociem ou abandonem a politicidade intrínseca da alfabetização (Freire, 2011). Portanto, práticas que busquem fortalecer os processos de subjetivação e socialização mais ternos, plurais e democráticos como parte dos direitos humanos. Há que se forjar uma contra pedagogia aos modos estreitos, regressivos e obscurantistas de ensinar a ler e a escrever palavras e mundos. Comecemos pela detecção das principais armadilhas nesse caminho.