INTRODUÇÃO
Este é um texto que emerge de encontros e trocas. Encontro entre duas docentes formadoras de professoras e professores e trocas proporcionadas por um estágio de pósdoutorado. No decorrer de alguns meses, nos engajamos em conversas que se converteram em leituras, leituras que se transformaram em imagens, imagens que se combinaram a pequenos textos, textos que migraram para as aulas, aulas que se tornaram material de investigação para a criação de ações, relações e práticas de docência. Se a docência fosse uma coisa, diríamos que ela foi o nosso objeto de pesquisa. Ela sendo uma relação, foi vivida e compartilhada nas trocas narradas nesse ensaio.
No exercício de narrar-ouvir-contar-escrever (Reis, 2023), nos reunimos para pesquisar o ensino, ensinar com pesquisa e articular pesquisa e ensino à extensão. Esses são os princípios que moldam a universidade, sendo também os fundamentos que estruturam nossas práticas na docência universitária e no trabalho com a licenciatura.
Apesar de serem premissas tão conhecidas e repetidas em todos os documentos oficiais e em incontáveis projetos de pesquisa, trabalhar com o ensino universitário é enfrentar os distanciamentos entre graduação e pós-graduação, entre bacharelados e licenciaturas, entre a docência universitária e a educação básica. Essas distâncias geram traumas e fraturas na concepção de universidade como espaço de encontro e participação, como lugar para se trabalhar o comum e construir outras e novas ideias compartilhadas. “O futuro do ensino superior passa pelo enriquecimento em comum do pensamento e do trabalho pedagógico” (Nóvoa, 2018, p. 22). Esse trabalho conjunto, afirma o autor, é a marca distintiva da própria universidade: um lugar que existe “[...] para pensar o que não é possível pensar noutros lugares” (Nóvoa, 2018, p. 23). A essa afirmação, acrescentamos: a universidade é um espaço para criar modos de relações entre as pessoas que não são criadas em outros espaços.
Se Nóvoa já vinha há tempos escrevendo e denunciando as ameaças internas e externas à pedagogia universitária, a situação se agrava com a combinação desastrosa da “[...] agenda de modernização das universidades” (Nóvoa, 2018) - marcadamente regida por princípios empresariais alheios ao tempo do ensino e da pesquisa -, com as exigências colocadas pelo contexto da pandemia de Covid-19. “Em poucos meses, deram-se transformações que, na normalidade dos tempos, teriam demorado décadas”, concluem António Nóvoa e Yara Cristina Alvim (2021, p. 34) ao discutirem a situação da educação pós-pandemia.
Nesse cenário de tantos desencontros, o encontro motivado pelo estágio pós-doutoral se torna ainda mais necessário e, principalmente, prazeroso. Buscou-se, neste ensaio, materializar na escrita as conversas tão vivas e presentes que deram sentido à feitura deste trabalho, que teve como tema a investigação da cultura visual1 na formação de professores/as. Conversas trocadas no processo de estudar, ler, escrever, interpretar os textos e as tecnologias, apreciar, confrontar e produzir imagens, e pensar o imagético, o digital, o presencial e o virtual, sem temores, nem encantamentos, mas com o discernimento e a coragem que a docência exige.
O QUE É SER PROFESSORA DE PROFESSORES/AS?
“Como se forma o professor universitário para atuar concomitantemente nas atividades de investigação e produção do conhecimento e nas atividades de ensino?”, questionam as pesquisadoras Maria Isabel de Almeida e Selma Garrido Pimenta (2014, p. 8). Embora a carreira docente possa ser classificada como um dos objetivos para quem ingressa num programa de Mestrado ou de Doutorado, a formação pedagógica específica ao magistério no ensino superior é pouco trabalhada nas pós-graduações. As atividades referentes às práticas de ensino, quando acontecem, ficam limitadas às poucas horas de estágio em disciplinas da graduação. Mestres/as e doutores/as são profissionalizados/as num longo processo de formação para a pesquisa e numa curta trajetória de aprendizagem sobre a docência.
Quando observamos nossa própria trajetória de formação, percebemos as semelhanças com as constatações descritas nos estudos que se debruçam sobre o tema da docência universitária (Almeida, Pimenta, 2014; Bolzan, Isaia, Maciel, 2013; Bolzan, Isaia, 2006; Campos, Almeida, 2019; Mizukami, 2005). Mesmo contando com a preparação prévia na licenciatura e a experiência no magistério da educação básica, reconhecemos que nossos saberes sobre a pedagogia universitária se constituíram, em grande parte, no próprio exercício da profissão, em um trabalho simultâneo de formação de estudantes e de nós mesmas.
A docência na universidade tem sido a atividade que exercemos há duas décadas e a sua prática tem se dado em meio às constantes disputas políticas e institucionais referentes aos princípios de formação de professores/as, que perpassam os espaços educacionais institucionalizados, da pré-escola à universidade (Almeida, 2019; Franco, 2019; Pimenta, 2019). Durante esses vinte anos, participamos da implementação de programas federais de incentivo à docência e de processos de institucionalização de políticas de formação inicial e continuada de professores da educação básica e superior. Atuamos na gestão universitária colegiada e na busca permanente pela democratização das políticas curriculares nas licenciaturas (Lima, Azevedo, 2019), por isso nos confrontamos com as concepções que implementam o pragmatismo tecnicista e instrumentalista da educação e enfrentamos as avaliações de cursos superiores que consideram, como indicadores de qualidade limitados, critérios quantitativos de eficiência, os quais desprezam, na maior parte das vezes, a dimensão da universidade como lugar de ensino.
Por essa razão, questionamos a pretensa neutralidade de políticas de educação orientadas por interesses financistas e resistimos à desqualificação, à instabilidade na carreira e à implementação de currículos predeterminados que desconsideram a mediação, a criação e a ação docente. Além disso, vivemos o cotidiano cindido entre os interesses econômicos de retração e os interesses sociais de expansão de vagas nas universidades públicas e de ampliação de programas de inclusão e de políticas de ações afirmativas. Isso faz com que confrontemos os que acusam os componentes curriculares pautados no debate dos direitos humanos de serem ideológicos e nos alinhemos àqueles/as que consideram a escola como promotora de uma educação democrática.
No processo de invenção da docência - a nossa e a de outros -, nos colocamos em diferentes situações e contextos formadores, compartilhando as discussões e reflexões coletivas sobre o conhecimento pedagógico e o fazer docente de forma interativa, processual e relacional (Bolzan, Isaia, 2006) e, ao mesmo tempo, singular e diferencial. Entendemos, portanto, que formar professores/as é formar intelectuais capazes de construírem as suas próprias interpretações sobre a vida social e produzirem conhecimentos e, por meio dessa construção, elaborarem as suas práticas cotidianas em sala de aula (Freire, 2000, 2001, 2015).
Como professoras da licenciatura, nos preocupamos com os conteúdos específicos de nossa área de atuação - no caso, as ciências sociais -, mas nos empenhamos ainda em desenvolver modos específicos de ensinar, para que os/as profissionais que formamos também sejam ensinantes, inventores/as de relações entre as pessoas as quais geram conhecimentos e alternativas de vida. Entendemos assim porque é dessa maneira, também, que percebemos nossa própria formação como professoras. A docência, seja na educação básica ou superior, seja na escolar regular ou em outro espaço institucional, é um trabalho constante de formação e autoformação. Uma espécie de metaformação, no sentido de atribuir a essa palavra todo o potencial que o prefixo lhe empresta: mudança, transcendência e reflexão. A docência universitária na licenciatura, sobretudo, exige uma espécie de metadidática, ou seja, uma didática que pensa a própria didática. Em outras palavras, uma epistemologia própria.
Desse modo, ao inventar e construir as docências possíveis, inventamos também nossa própria docência, estudando sobre o ensino e a pedagogia universitária e encontramos autoras e autores que nos trouxeram um vocabulário para conceber, elaborar, exercer, significar, questionar e nomear nossas práticas. De Lea Anastasiou, pedimos emprestada a ensinagem. De Sandra Corazza, a escrileitura e a artistagem docente. De bell hooks, a integridade.
A MONTAGEM DE UM LÉXICO DOCENTE
Os atos de ensinar e as circunstâncias do aprender, inseparáveis, se expressam no neologismo de Lea Anastasiou (2002, 2004, 2007, 2009). Ensinagem é a ação de ensino que resulta na aprendizagem discente. Para que ela aconteça, deve-se afastar a noção do estudante como uma tábula rasa a quem se deve apresentar conteúdos prontos, pois ensino e aprendizagem constituem um processo relacional, no qual conteúdos, formas e resultados são mutuamente dependentes. A construção do conhecimento e a síntese dessa construção acontecem de forma articulada, compartilhada e dinâmica.
Para que exista aprendizagem, é preciso que haja o apreender, ou seja, a ação consciente do fazer aula por parte do/a docente e do/a discente a partir de um compromisso de responsabilidades compartilhadas. Apreender, em outras palavras, consiste em apropriar-se do processo de construção do conhecimento. Nas aulas, explica a autora, a intencionalidade na ação de ensinar se combina ao envolvimento da ação de apreender, portanto, a ensinagem estabelece uma relação de parceria (Anastasiou, 2002, 2004). Essas ações dialéticas processuais são mediadas pela condução docente atenta aos elementos de análise, síntese, construção dos nexos internos, elaboração e reelaboração dos conteúdos.
Como vemos, essa é uma prática social complexa, na qual o processo gera um conhecimento novo tanto para docentes quanto para discentes. Por se tratar de um processo, a ensinagem não acontece de forma isolada, nem somente com o trabalho do/a professor/a ou apenas com o esforço do/a estudante, não se limita a algo que se realiza unicamente em uma disciplina, mas depende de uma construção coletiva, institucional e política. Conforme escreve a autora:
O processo de ensinagem se efetivará nesse trabalho conjunto, nessa parceria dos professores entre si e com os alunos, numa nova aventura do ensinar e apreender, do saborear na sala de aula da universidade. Nisto está contido um desafio, uma aventura e o compromisso da conquista do conhecimento, com posicionamento de sedução e parceria, na direção de um fazer solidário (Anastasiou, 2002, p. 76).
Ensinagem: palavra que guarda em seu sufixo a relação com a ação, o processo e o resultado que transforma a composição, aparência, estrutura sobre o que se age. Sufixo que Sandra Corazza, por outros caminhos teóricos, também acrescenta à docência e aos processos didáticos: a artistagem.
Desencadear devires, essa é a perspectiva de Corazza. O trabalho docente está em constante feitura de si mesmo, em variação contínua, gerando a diferença. Por essa razão, Corazza se recusa a pensar a docência desvinculada da individualidade. Tornar-se professor/a não é conquistar um conjunto de competências e habilidades pré-determinadas, capazes de atestar a eficiência do coeficiente de professoralidade de alguém. Não existe a/o docente simplesmente; mas esta/este docente, existente em sua singularidade. Essa perspectiva enxerga a docência como uma criação poética, um exercício de tradução, um trabalho ético e estético e a didática como uma prática de transcriação. Escreve a autora em parceria com dois colegas: “A docência como uma operação estreitamente vinculada ao trabalho da criação, que opera em processo de tradução permanente e, nesse sentido, como um exercício intensivo de pensamento” (Aquino, Corazza, Adó, 2018). Corazza propõe um pensamento que se arrisca na composição de si mesmo, na elaboração de sentidos e na indistinção entre teoria e prática.
A artistagem docente exercita as escrileituras, processos de leitura e escrita criativas e ensaísticas, geradoras de formas de escrita abertas, nas quais os textos (ou vídeos, imagens, performances e quaisquer outras formas de expressão) ao mesmo tempo descobrem o existente e inventam o ainda não existente. A invenção não é necessariamente o novo, mas o inusitado, o possível, o singular e emerge de processos que aparentemente nada tem de novo, como os atos de estudar e de ler. Cada leitor/a inventa a leitura, cada escritor/a inventa a escrita, cada docente inventa a aula e existe uma dimensão de coautoria em cada uma dessas atividades: essa é a poética docente. Nos atos de ensinar e aprender, os trabalhos são sempre coletivos e compartilhados. A autora enfatiza o aspecto de encontro do ensino e as aulas são obras desse encontro, momentos coletivos de ensaio.
Nas ensinagens e artistagens docentes, a ação didática é concebida em seu potencial criador, e isso não significa ignorar as forças de reprodução e opressão presentes no sistema educacional; significa, apenas, não sucumbir a elas, não as negligenciar. Encarar a educação patriarcal, racista e colonizadora, reconhecê-la em nossos sistemas educacionais e nos mobilizarmos contra ela é conduzir a educação com integridade, defende hooks (2020). Conduzida de forma íntegra, a criação docente é um ato de compromisso com a liberdade, ensina bell hooks (2013).
Uma pedagogia engajada e democrática exige participação mútua e riscos compartilhados. Os riscos estão presentes porque tal pedagogia é aberta ao reconhecimento de tudo o que não se sabe, exigindo a busca pela inteireza e o compromisso com práticas didáticas que não são regidas por um esquema fixo e absoluto (hooks, 2013, p. 17). O ensino deve incorporar o entusiasmo e a individualidade na construção de uma comunidade aberta de aprendizado. “Mas o entusiasmo pelas ideias não é suficiente para criar um processo de aprendizado empolgante”, alerta hooks (2013, p. 17). Uma comunidade de aprendizado é constituída por um esforço responsável, coletivo e participativo. É uma comunidade dialógica, na qual existe espaço para que as pessoas ali engajadas narrem as suas próprias histórias e teorizem a partir delas (hooks, 2020). “Para educar para a liberdade, portanto, temos que desafiar e mudar o modo como todos pensam sobre os processos pedagógicos. Isso vale especialmente para os alunos. Antes de tentarmos envolvê-los numa discussão de ideias dialética e recíproca, temos de ensinar-lhes o processo” (hooks, 2013, p. 193).
hooks dialoga com a teoria feminista e com Paulo Freire ao falar sobre educação. Anastasiou concebe a ensinagem numa concepção dialética do ensino e da aprendizagem, em diálogo com a perspectiva materialista e histórica. Corazza questiona as sínteses, enfatiza as relações e combina Deleuze, Derrida, Barthes e Haroldo de Campos numa escrita poética da filosofia da diferença. Combinar essas autoras é realizar uma montagem, uma colagem, talvez. Não buscamos, nessa breve discussão, pontos em comum em suas proposições, a fim de transformá-las num arcabouço teórico supostamente homogêneo. Ao contrário, quando as combinamos, procuramos destacá-las em suas singularidades. O vocabulário que elas nos oferecem é, portanto, pensado como uma assemblage: componentes distintos, que, juntos, ganham nova formação (sem serem reduzidos a uma fórmula).
UM EXERCÍCIO DE A/R/TOGRAFIA
Como forma de mobilizar o vocabulário apreendido e de expressar as ensinagens e artistagens do estágio pós-doutoral, nos aventuramos na realização de uma a/r/tografia. Isto é, na elaboração de um trabalho que combina as dimensões artísticas, pedagógicas e investigativas da prática docente.
A/r/tógrafos são capazes de criar artefatos e textos que representam a compreensão adquirida a partir de suas perguntas iniciais [...], concentram seus esforços em melhorar a prática, compreender a prática de uma perspectiva diferente, e/ou usar suas práticas para influenciar as experiências dos outros. (Irwin, 2023, p. 31).
Emprestamos, assim, um procedimento da pesquisa educacional fundamentada em arte. Melhor seria dizermos, apreendemos esse modo de fazer pesquisa. Nos apropriamos dele, agarramos, assimilamos, compreendemos que as perguntas geradas em nossos encontros exigiam estudar os eventos educativos numa perspectiva transdisciplinar, reconhecendo a educação “[...] como um campo que frequentemente extravasa seu próprio território” (Oliveira, Charreu, 2016, p. 367), exigindo um processo de pesquisa viva: “Quer dizer que nos importa mais o que está in progress, o que está em percurso durante o processo, a criação em si, do que os dados coletados, as amostras, as verificações e as análises de dados ou a própria materialidade da pesquisa” (Oliveira, Charreu, 2016, p. 374).
Marilda Oliveira e Leonardo Charreu (2016) destacam que as metodologias das pesquisas educacionais fundamentadas em arte buscam desenvolver estratégias investigativas que incorporem a tradição das artes e das humanidades ao descrever e interpretar o mundo (Oliveira, Charreu, 2016). Não se trata apenas de incorporar processos de interpretação visual e artística, mas também de criar obras e expressões estéticas que se fazem de forma simultânea à investigação acadêmica e que trazem a essa investigação outras dimensões além daquelas estabelecidas pelas metodologias científicas, como a experimentação com as linguagens e vivências, a busca por formatos variados de produção e de circulação do conhecimento e as formas coletivas e compartilhadas de reflexão (Borre, 2020; Oliveira, 2014).
O experimento a/r/tográfico consistiu numa ação simples. Iniciamos com a elaboração de colagens digitais. Buscamos, em diversos arquivos de instituições públicas e privadas, gravuras, fotos, desenhos, imagens distintas, disponibilizadas como domínio público. Selecionamos as imagens que se referiam a materiais didáticos ou registros históricos provenientes de pesquisas acadêmicas e científicas, ou imagens que tivessem tido bastante impacto e circulação no momento em que foram publicadas e exibidas. Inventamos uma espécie de personagem na composição dessas colagens: a figura de um peixe artista-pesquisador-professor (um peixe a/r/tógrafo, portanto), que envia cartas e cartões postais a destinatários desconhecidos (Figuras 1, 2, 3 e 4). Procuramos atribuir a esse personagem uma dimensão do inusitado, do humor, da leveza, mas também do incômodo e do provocativo. É como se esse personagem, criado do encontro furtuito de elementos, estivesse em busca de outros encontros furtuitos para que pudesse, a partir deles, gerar vínculos, criar conexões e produzir novos conhecimentos.
Fonte: Elaboração própria. Colagem digital composta por imagens disponibilizadas em arquivos de domínio público, 2023.
Uma vez elaborada uma série de colagens, as imprimimos como cartões postais e as espalhamos pelos escaninhos dos docentes da universidade. Acrescentamos aos postais um folheto explicativo da proposta e uma carta direcionada aos/às docentes (Figura 5).
Agimos inspiradas pelas ações da arte correio, um movimento artístico também conhecido como arte postal, ou mail art, o qual se caracterizou pelo uso dos correios como meio de experimentação de trabalhos artísticos trocados entre artistas de diversas partes do mundo. “A Arte Correio surgiu numa época em que a comunicação, apesar da multiplicidade dos meios, tornou-se mais difícil”, afirma Paulo Bruscky (1976, p. 374), um dos principais nomes do movimento.
Instigadas pela afirmação do artista, direcionamos nosso olhar para os espaços universitários e os modos de comunicação presentes em seu cotidiano. Identificamos um espaço comum a diversos departamentos: os escaninhos, pequenos compartimentos usados para guardar objetos, entregar documentos, informes e informativos. Nesse exercício, os escaninhos foram pensados como locais de presença, pertencimento, comunicação e encontros, ou talvez, espaços que expressem a ausência deles. Espaços que podem ser tomados como relacionais, quem sabe, espaços que podem ser tomados para questionar nossos modos de convívio e nossas práticas de ensinagem. Espaços nos quais podemos estabelecer relações.
Escaninhos vazios, escaninhos lotados, eles foram apropriados no experimento a/r/tográfico como lugar de troca, de encontro com um objeto não esperado, de invenção de relações - conforme concebemos a própria universidade. Escaninhos como espaços para cartas. Cartas pedagógicas, no modelo em que apreendemos de Paulo Freire (2000, 2015). Cartas acompanhadas de cartões, elaborados por meio da colagem digital. Colagem como encontro furtuito de elementos que, na composição, assumem uma forma duradoura, composta por um novo conjunto de elementos (Bourriaud, 2009).
Imaginamos, assim, essa ação de postar cartas e cartões nos escaninhos como um convite para pensar de forma compartilhada sobre a docência universitária e, também, para compartilharmos os estudos, as leituras e as escrituras do estágio pós-doutoral. É uma partilha e, também, um convite para entender que, mesmo mestres/as e doutores/as, permanecemos em processo de educação.
Um convite, portanto, repleto de riscos. O risco de não ser levado a sério, de ser ignorado, de ser descartado. Risco que assumimos ao experimentar uma prática que exige interação e relação. O peixe artista-pesquisador-professor é um modo de chamar a atenção para a docência como algo que vai além do meramente técnico, uma expressão visual que busca uma singularidade no inusitado.
O trabalho docente, assim, é concebido, construído e exibido como um trabalho orientado, sistematizado, mas criador, inusitado, artisteiro, como nos ensinou Corazza. Conduzida com rigor e criatividade, a ensinagem na universidade deve olhar para as práticas culturais e sociais, aprender com elas, trazê-las para as práticas universitárias e, nessas trocas, assumir, como parte da formação profissional, uma dimensão emancipatória, capaz de fabular alternativas de futuros possíveis e políticas da esperança forjadas no trabalho da imaginação (Freire, 2015; hooks, 2013).
APONTAMENTOS FINAIS
Apesar das incertezas que nos acompanharam na elaboração desse exercício de a/r/tografia, ele partiu de um pressuposto em certo sentido óbvio: a universidade é lugar de ensino. Embora não seja uma asserção inédita afirmar a pedagogia universitária como prática educadora, inventiva e geradora de outras práticas produtoras, ela causa estranheza e incômodo a muita gente, sobretudo àqueles/as que consideram o ensino “[...] uma preocupação menor dentre as diversas ocupações acadêmicas” (hooks, 2013, p. 23). Exatamente por isso, pelo seu potencial de confronto, o reconhecimento da docência como ofício artesanal e intelectual se coloca como um enfrentamento político.
“Firmar a posição de professor e afirmar a profissão docente” (Nóvoa, 2017) nunca é algo imparcial, isento ou inocente, dentro ou fora da universidade. Sobretudo num contexto político e econômico em que em cada vez mais que a universidade e a formação para a docência são pressionadas a se adaptarem às exigências do mercado (Almeida, 2019; Franco, 2019; Pimenta, 2019). A ensinagem e a artistagem docente se colocam no enfrentamento das propostas educacionais que esvaziam a presença e as narrativas educacionais, limitando as possibilidades de futuro a formatos predeterminados por currículos reformistas supostamente inovadores.
Os intercâmbios institucionais e o fomento às parcerias nos processos de formação do/a professor/a universitário/a fortalecem a universidade como lugar de encontros, enraizada nas presenças, alicerçada em projetos políticos-pedagógicos geradores de políticas educativas autônomas. Universidade como espaço em que duas docentes formadoras se reconheçam em processo de formação e não como entidades possuidoras de supostas professoralidades acabadas e homogeneizantes, mesmo após vinte anos de práticas e pesquisas, e se aventurem em práticas repletas de riscos, nas quais muitas vezes se sentem “peixes fora d’água”, mas, ainda assim, peixes artistas-professoras-pesquisadoras.