INTRODUÇÃO
Neste artigo, apresentamos uma investigação que percorre caminhos da docência enquanto temática de pesquisa (Schwantz, 2019). Para tal, compomos um atlas ao inventariá-la, a partir do exercício de escrileituras, desde as possibilidades existenciais e pedagógicas do fazer docente. Utilizamos o referencial teórico-filosófico de Deleuze e Guattari e outros intercessores artísticos e científicos. Esta proposição justifica-se pela inquietação denotada na produção radiofônica1 realizada por professores participantes de uma oficina de escrileituras2 denominada Conatus, em que disparam zonas de indeterminação ao dizerem de acontecimentos de um cotidiano escolar.
Também desbravamos o conceito de estilo para Deleuze, ao acompanhar o movimento, a composição, a variação e a fuga de uma prática educacional. Movemo-nos na circunstância de um problema a pensar: Como a constituição de um estilo afeta os modos de ser professor(a)? Num deslocamento cartográfico, mapeamos em planos extensivos (por meio de matérias e rastros deixados pela oficina) e intensivos (captura das forças e signos, concebendo a escrita de um bestiário em devir). A ação de escrever-ler favoreceu o aparecimento de um estilo animal na docência, evidenciando a necessidade de brechas de respiro de um fazer que diminui a força de agir. Para tal, a animalidade, enquanto estado de sensação, não se produz pela perda de nossas formas, mas ensina a viver numa multiplicidade.
Por se tratar de uma pesquisa orientada por um método cartográfico (Deleuze, Guattari, 1995a), apostamos na construção de mapas, ao acionar um campo intensivo de forças, através de suas linhas, pontos e sobreposições. Com o objetivo de rastrear e acompanhar os processos de produção de subjetividades (Passos, Kastrup, Escóssia, 2012), o mapeamento permitiu um deslocamento de pensamento das pesquisadoras no instante em que a pesquisa se desenvolvia, transformando, assim, percepções sobre determinados discursos em torno da temática, bem como da subjetividade implicada neste processo investigativo.
O movimento analítico se ateve aos encontros dos materiais (produção radiofônica criada por professores durante a oficina de escrileituras, notas de estudo realizadas pela pesquisadora sobre a temática da pesquisa, criação de mapas extensivos e intensivos do percurso da investigação), mas, sobretudo, apostou no movimento criador proporcionado pela pesquisa no instante do escrever, denominado de análise em transcriação. Pautada nas ideias dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto), entende-se que toda tradução envolve um processo de transcriação, em que o original é reproduzido, mas, também, carregado por uma marca daquele que opera nessas e por essas matérias, sejam elas de escrita, de leitura, visuais, fílmicas etc. “Ao traduzir elementos já existentes, o Didata não os funde numa generalização ou síntese superior; ao contrário, através de um projeto radical de intertextualidade, transcria-os; expondo-se aos riscos que envolvem toda audácia e ‘aventura do involuntário’” (Corazza, 2013, p. 193). Ao se relacionar com as matérias da pesquisa, a investigadora cria uma circunstância de tradução destas matérias que, portanto, a conduz numa escrita analítica criadora e não menos científica.
CARTOGRAFANDO A DOCÊNCIA ENTRE MATÉRIAS, RASTROS E ANIMAIS: A CONSTITUIÇÃO DE UM ESTILO
Qual o sentido dos mapas (extensivos e intensivos) e sua análise para a investigação cartográfica? Na busca por encontrar uma expressão para dizer do acontecimento de uma pesquisa que inventa seu método, criamos um atlas. Um conjunto de mapas desenvolvidos nos campos extensivos (deslocamentos das matérias e rastros das escrileituras radiofônicas) e intensivos (captura da região intensiva do mapa extensivo e criação do bestiário) desenhado a partir de um percorrido nos materiais arquivados de cinco oficinas de escrileituras denominada Conatus. São mapas-força, dizendo dos movimentos-acontecimentos de uma docência em torno daquilo que é oferecido como intercessor de um pensamento: matérias3 literárias, filosóficas, científicas, musicais que impulsionaram, naquele instante de experimentação, a leitura e a escritura dos docentes.
Em relação ao procedimento de trabalho na oficina Conatus4, tínhamos, inicialmente, o objetivo de problematizar o adoecimento docente. Juntamos matérias (pontos descritos no mapa 1), direcionamos percursos, reinventamos trajetórias, aumentamos as velocidades na repetição de oficinas. Acionamos um pensar, juntamente com professores em formação inicial e continuada. A oficina Conatus foi desenvolvida cinco vezes pelo Núcleo Escrileituras UFPel entre os anos de 2012 e 2016. A primeira edição aconteceu no Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS-Sindicato), núcleo Rio Grande, em 2012. A terceira edição numa escola estadual na mesma localidade, em 2013. A segunda, a quarta e a quinta edição aconteceram na Faculdade de Educação da UFPel em 2013, 2015 e 2016 (Schwantz, 2019, p. 20). Realizamos as oficinas em uma escola pública, na Universidade, no Sindicato dos professores, tocamos em seu cotidiano, arquitetamos juntos, a criação de personagens e a possibilidade de pensar e problematizar o fazer docente com arte, filosofia e escrileituras.
O grupo de pesquisa criou um arquivo composto por essas matérias utilizadas na execução de cada atividade, juntamente com as chamadas escrileituras radiofônicas (radionovelas produzidas pelos participantes das oficinas). Para o desenvolvimento da pesquisa-tese, escolhemos olhar para este arquivo na tentativa de rastrear uma docência que cria, que escrilê, experimentando o que era possível extrair desse encontro pesquisadoras-arquivo. Adotamos como procedimento de experimentação do arquivo, primeiramente, a sua incessante e repetida leitura. Juntamente a leitura, escrevíamos. No material das escrileituras radiofônicas, transcrevemos os áudios de cada uma delas, somando um total de 15 produções.
No encontro com as matérias fílmicas, literárias e filosóficas que foram utilizadas nas oficinas, nos colocamos novamente a olhar para este material, mesmo já o conhecendo, pois tínhamos contato com eles no instante de planejamento e execução em cada oficina, mas, desta vez, se tornava uma circunstância de pesquisa, o que nos realocava de posição e experimentação frente ao corpus. Essa experimentação diante do arquivo possibilitou movimentar um pensamento (a partir da filosofia) e uma escrita, compondo com matérias de campos de saberes diversos (arte, filosofia e ciência), variar um dizer sobre a existência e prática docente, subtraindo o uno como elemento que mantém uma estrutura em sua originalidade (Deleuze, Guattari, 1995a). Neste exercício analítico, pudemos enxergar uma animalidade que transcendia das escrileituras radiofônicas e do próprio ato de escrever a pesquisa, como na radionovela intitulada A vaca, por exemplo (Schwantz, 2019, p. 129-130).
Dessa maneira, o problema posto em questão esteve atrelado aos rastros deixados por este arquivo, como uma força mobilizadora para pensar, escrever e ler: Como a constituição de um estilo, por meio do exercício de escrileituras, afeta os modos de ser professor(a)? Juntamente a isso, pensamos a docência em relação a um estilo, não somente literário (daquilo que escreve um docente), mas em termos existenciais e pedagógicos - o que é posto em movimento, composição, variação e fuga na sua prática -, nas microrrelações de um cotidiano escolar.
O método não tratou apenas de descrever etapas de um desenvolvimento, mas tecer os caminhos do cultivo e refinamento necessários para o crescimento do estudo (Passos, Kastrup, Escóssia, 2012). Os mapas serviram como expressão do procedimento investigativo, uma forma de linguagem utilizada para expor um acontecimento vivido. Incentivaram seguir o curso das coisas, evitando a fixação em pressuposições de discursos introjetados na profissão docente. Como diz Deligny (2015): não interpretar, mas permitir. Como cartógrafas, permitimos, num plano extensivo, seguir os deslocamentos pedagógicos realizados em cada uma das cinco edições da oficina Conatus (mapa 1), relacionando e analisando as matérias propositoras de tal ação. Também percorremos os rastros deixados pelas escrileituras radiofônicas criadas (mapa 2), escutando, transcrevendo e lendo as criações das professoras e professores, foi possível encontrar pontos recorrentes [nome próprio, olhar, som e doença] que se tornaram rastros analisados com uma atenção mais orientada.
Em um plano intensivo, capturamos devires de um corpo docente em transformação, a partir do que relaciona ao escrever-ler. Devir como condição de vir a ser outro em si mesmo. Tratase de uma zona de conexão, uma válvula de escape do que nos é majoritário, identitário. Diz de uma capacidade de afetar e ser afetado. Para Deleuze e Guattari (2012, p. 67):
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo.
A pesquisadora se coloca como coprodutora nesta relação, se relaciona com as matérias investigadas, lendo-as, experimentando-as e se põe, também a escrever. Cria-se (transmuta-se em) uma personagem conceitual (Josefina) e passa a invocar, neste plano intensivo, devires animais, despersonalizando e desinstalando uma suposta identidade professoral. Esta figura promoveu, num exercício de escrileituras, um funcionamento do pensar sobre a existência e o fazer docente. Josefina demonstra, a partir das matérias e da intercessão com diferentes personagens, obter consciência de si e persistir em sua função, que é a potencialização de um existir e de um fazer na docência. Ela surge no curso da pesquisa e seus encontros, deformando-se a cada um deles. De Josefina antenada à ursa, amazona, rata (mapa 3 e 4 e produção escrita do bestiário). Desloca-se de um território, por ora consagrado, para a transfiguração de habilidades como nomear, olhar, escutar e resistir ao que paralisa um processo. Josefina escreve, experimentando um estilo em sua docência. E este exercício de escrita permite que assista suas potências e aquilo que a despotencializa na sua condição de pesquisadora mas, também, na experiência como professora-pedagoga de uma escola pública estadual, quando atendia crianças do 4º ano do ensino fundamental, de 2012 a 2017.
ERA ISSO A DOCÊNCIA, POIS MUITO BEM, OUTRA VEZ!
(Análise em transcriação: mapa 1)
- Sai do lugar, menina!
Diziam seus sapatos velhos.
O escrever-ler (as escrileituras) foi a aposta para a menina sair do lugar comum, aquele lugarzinho que a deixa um tanto anestesiada, meio preguiçosa. Uma tarefa, por vezes, difícil de ser executada. Os sapatos gritam, as pernas tremem, o coração acelera. Calma! É só mais um pedido para estar no aqui e agora, fazer isto para menos sair voando. Precisava de um pouco mais de chão.
Não que gostasse de calçá-los, mas a sensação de conforto que cabia a seus pés fazia com que a menina usasse o sapato sempre que caminhasse demais. Os trajetos sinuosos, com diferentes obstáculos, eram os que a faziam calçar os sapatos gastos. O mesmo solado, os cadarços um tanto esfarrapados, a ponta colada numa tentativa de reaproveitá-los um pouco mais. Mudar de sapatos exigia nova adaptação dos pés, do corpo, do percurso e dos desvios a serem realizados caso algum caminho estivesse interrompido, mesmo que temporariamente.
Em metamorfose, num corpo-escrita inseto, sentiu suas costas enrijecerem, as ideias se misturavam num processo lento de vir a ser. Foi dolorido. Capturava matérias que tivessem força suficiente para derrubar pensamentos pesados e cheio de teias (Fragmento da escrileitura radiofônica A vaca). Josefina, apesar de seu nome próprio, intitulava-se como uma “[...] agente de fluxos de invenção” (Corazza, 2013, p. 192).
Quando acordou, certa tarde, de uma sesta agitada, viu-se transformada. Sua voz modificara-se, ouvia-se um horrível sibilar tremido, que permeava cada palavra pedindo por água e socorro. “Mas o que aconteceu comigo?”, pensou ela. Talvez teria almoçado um tanto mal, bebido demais; ou gritado demasiado com as crianças naquela manhã, pois mantiveram-se impertinentes e agitadas o tempo inteiro.
Como poderiam estar diferentes se ela própria tinha chegado com a sensação de um agitamento incomum naquele dia? Uma angústia desmedida, como “[...] um nó muito apertado bem no meio de seu sossego” (Falcão, 2001, p. 7) e que corrompia o pensamento. Talvez nada de grave; quem sabe apenas conflitos existenciais de uma professora em transformação? Tinha a sensação de que as quatro horas de trabalho não eram o suficiente para ensinar o que havia para ensinar, aconselhar o que achava necessário para eles. Por vezes, também achava que não era boa naquilo que exercia enquanto profissão. Sentia grandes responsabilidades sobre aqueles aprendizes.
Da vontade de criar uma rádio na escola, surgem lampejos de uma oficina que desejava pôr a vazar ideias preconcebidas dos modos de ser, nas finitudes de um cotidiano escolar. Buscava capturar singularidades das matérias utilizadas para a ação proposta, ao invés de estabelecer uma forma geral de tratamento. Preocupava-se que sua nova forma fosse prejudicar a vida pacífica que (Pacheco, 2010) a escola levava. Como a menina que, de tanto que se explicava, as pessoas se irritavam (Falcão, 2001). Ali nada tinha para explicar, pois via-se apenas como um urso dos canos dos prédios (Cortázar, 2009) carregado de um discurso sobre o que faz, vê, é e sente.
Josefina sabia que as relações que estabelecia com diferentes matérias para ensinar constituía um modo de ser e agir em suas atividades docentes. Algo a afetava, mas não conseguia dizer o que acometia aquele corpo, efetivamente. Também conhecia os desprazeres que atormentavam sua mente e alma. Mas havia alguma coisa ali não explicada, pouco questionada, que fazia o bigode tremer. Como poderia ser realmente um animal, se ficava tão emocionada com a música? (Pacheco, 2010). Uma desconfiança permutava suas ideias (o que teria acontecido naquele corpo?) pois viu-se na cama transformada e não era um sonho (Kafka, 2016).
Cantava.
Buscava pela liberdade de uma moral de animal de rebanho (Nietzsche, 2005), em que precisa aceitar pacífica e pacientemente as imposições ditadas sobre como deve ser e o que deve fazer. Por que apenas um jeito de ser e fazer? Algumas questões levam a produzir perspectivas que não a paralisam, esgotando sua vontade de agir. Potência para e na vida: uma questão de princípio? A lógica é inabalável, mas não resiste a uma mulher que quer viver (Kafka, 2017).
Josefina-professora escreve. Tratou a escrita livre de regras, pretendendo acionar fabulações, atingir visões a partir do que viveu. Buscou abrir uma fenda de passagem da vida pela linguagem, na ideia de escrileituras como ação de escrever sobre aquilo que se lê e vice-versa, do que pulsa no pensamento conduzido por acontecimentos (Corazza, 2011). E se proporcionasse essa experiência de escriler com os alunos? Pensou. Então, era isso sua docência? Pois muito bem. Agora, outra vez! (Nietzsche, 2005).
NOS RASTROS: NOME PRÓPRIO, OLHAR, SOM E DOENÇA
(Análise em transcriação: mapa 2)
Ao mapear e sobrepor os rastros das 15 escrileituras radiofônicas criadas por docentes durante as oficinas, as pesquisadoras percebem pontos recorrentes (nome próprio, olhar, som e doença) e se afetam ao experimentar (escutar e ler) a produção. Apresentamos um recorte desta análise em transcriação.
NOME PRÓPRIO
Durante a oficina, o som do estalar de uma máquina de escrever produz algo ao ouvido que traz às pontas dos dedos um personagem. Mas qualquer coisa muda. Há modificações na percepção que tinha do outro, de si e da docência enquanto profissão do social. Passa a operar uma condição de entendimento de que a subjetividade é processo e produção social e histórica de novos modos de ser-estar no mundo (Guattari, 2012). O nome próprio, como identidade, que antes era sEU, agora esfacela-se, metamorfoseia-se, atravessa sua formação: uma trans(form_ação). Algo se despersonaliza, deformando-se pela força dos encontros (com livros, ideias, pessoas, seres, pensamentos) que, ao se chocarem, arrebatam sentidos e criam novas conexões (Crizel, Munhoz, 2016).
Entram mais dois integrantes ao grupo. Novamente a escrita e o nome próprio se acham numa instância de modificações. Mutações de nomes, de gente, de coisas em cores no instante em que Ana verde voltava pra casa, e seu corpo estava dolorido, debilitado. Mas também por que escolher aquele filme? Injusta (eco). Justo aquele filme [...]. Cor que transforma com a doença do outro. Contamina. E Ana violeta inaugura um possível... um possível [...] (Fragmento da escrileitura radiofônica denominada Saída do cinema).
Um ser que se desloca de um determinado território, desterritorializando-se para constituirse em um novo. Pelo nome próprio, há a transfiguração de uma formação que marca o estabelecimento de um domínio, uma morada (Deleuze, Guattari, 2012). Maria Joana da Silva, mãe de dois filhos. Esposa. Mora em uma cidade cinza. Trabalha todo dia: louça, roupa, chão. Maria sente dor e solidão. Este é o lar de Maria [...]. Como galho Maria fica confusa. Olhando pro seu corpo percebe fissuras em si. Como galho, Maria está quebrando. Se joga no lago em busca da morte, seca e impotente (ploft). De repente ela percebe que, como galho, ao invés de quebrar-se, abre-se um broto. Maria não morre, vira flor (Fragmento da escrileitura radiofônica O despertar de Maria).
De um domínio mulher dona de casa, ela devém coisa-galho-flor, transmutações na escrita da expressão de uma subjetividade feminina, mulher-docente em transformação. O nome próprio, adotado nesta perspectiva teórica, não diz de pessoas ou objetos, mas sim de matérias e funções (Deleuze, Guattari, 1995b), de algo que se coloca em relação e em funcionamento como uma máquina. A matéria apresenta um certo grau de intensidade, e o seu conteúdo emite signos para que possam ser relacionados. A função tem traço de expressão de um coletivo que salta de um conteúdo (escritas-leituras), de modo que produz tensores no pensar.
É por uma maquinaria que se extrai essa expressão e conteúdo da matéria e sua função. Alguns nomes próprios destacam-se nas escrileituras radiofônicas não apenas para designarem uma identidade professoral que emerge daquela experiência, mas surgem da intensidade com que esta experiência, enquanto máquina do pensar sobre a docência, acionando escrever-ler por meio das multiplicidades de matérias ofertadas na oficina, dá outro funcionamento à temática desbravada naquela circunstância (o adoecimento docente).
É pelo nome próprio que um coletivo de vozes emerge, agenciando, naquele que escreve, um “[...] outro de si, composto de muitos” (Crizel, Munhoz, 2016, p. 947). Porque conta histórias de vidas, dos sonhos do João, da Maria, da Michele, do Tiago, do Mateus, do Gabriel, da Rosa e por aí vai (Fragmento da escrileitura radiofônica Costucantarolando), deixa impregnar uma força acometida pelos encontros que se efetivam (Deleuze, Guattari, 2012). Encontros esses sejam eles na escrita, na leitura, ou na audição das escrileituras radiofônicas que dizem das cenas de uma vida de professora (Corazza, 2005).
Neste exercício de despersonalização, Josefina individua-se pelo acontecimento de escrever e ler-se. Busca extrair expressão e conteúdo enquanto matéria e função. Apresenta graus de intensidade e tensores na sua escrita, pois, ao transformar uma matéria sem forma em uma substância, faz surgir outra expressão. Desterritorializa-se pelo próprio nome próprio que não mais indica sua identidade professoral, fugindo da ação de falar em nome do outro mas assume uma posição, numa coletividade que recolhe modos de ser, selecionando ruídos que produzem novos enunciados sobre maneiras de dizer quem é.
OLHAR
De que maneira o olhar é capturado nas escrileituras radiofônicas como um rastro a ser analisado na pesquisa? A começar, diferentes foram as formas e palavras utilizadas nas escrileituras para mostrar que ali havia algo que olhava ou era olhado. Josefina foi compondo. Na sala de aula, sentada em sua classe à frente dos alunos, sentia-se observada por eles. Ao fundo, um menino, sozinho, percorria aquele lugar com os olhos passivos, sem cansar de olhar. Seus olhos se encontram (Fragmento da escrileitura radiofônica Bartleby), sabia que ele a fitava, sem estar certa de que realmente estava sendo vista. Uma distorção inconcebível (como era possível olhar sem ver?) Achava que, ao arremessar um sinalizador (Fragmento da escrileitura radiofônica A vaca), Josefina o visse, mas era pequeno, com um olho só, conseguia ver apenas a metade do que estava à sua frente (Fragmento da escrileitura radiofônica O direito de ver). Ela sabia que o filho de Adolfo tinha sido reprovado no exame final. Por vezes, acreditava em culpa da família, por não ter dado o apoio necessário àquele menino. Em outra ocasião, sentenciava-o pela sua imaturidade percebida nas ações do dia a dia.
A tarefa mais difícil era rever sua prática. Lapsos de pensamento a fizeram notar o pouco olhar dedicado a esse menino para alcançar a tão sonhada aprovação e sistematização de um conhecimento. De fato, esses lapsos se tornavam quase memórias, o que abandonava toda vez que via o grau de dificuldade em relação à tarefa de educar e ser Josefina naquele ano. O olhar, carregado de incontingências, tem como fundamento as incertezas de que algo pode ou não acontecer. É da ordem do acontecimento e menos daquilo que é planejado, programado; um particular que flana nos limites de si. Convoca a pensar sobre aquilo que é permitido de se ver e o que se atualiza nos corpos que aprendem, docentes e discentes, no convívio em sala de aula. É mensagem, o lugar por onde o ser sai de sua solidão e se abre ao outro. Trata-se de um primeiro passo para a construção da comunidade humana. Lugar onde há a participação e o encontro do humano com o humano. Saber a diferença entre ver e olhar nos põe em variação, pois o ver conota certa passividade ao vidente. Variação não no sentido de romper um sistema mas de modificar gradualmente sua frequência, na medida em que vão coexistindo e continuando diferentes do próprio sistema (Deleuze, Guattari, 1995b).
SOM
Uma sonoridade preenche seus ouvidos na medida em que escuta as criações radiofônicas. Um trabalho de pensamento que diz sobre o som, a musiquinha (Deleuze, Guattari, 2014) comumente aparecida em algumas delas. A intrusão do som é vista e ouvida. “Será aliás um canto” (Kafka, 2016, p. 280) o que Josefina emitia? Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz (♪) (Fragmento da escrileitura radiofônica Costucantarolando).
O som torna-se uma forma de expressão que, como linha de fuga, aciona uma saída, mesmo que mínima, de um modo opressor evidente em determinada situação. Sob o som musical, a cabeça de Josefina reergue-se de um desejo que bloqueia uma territorialidade (Deleuze, Guattari, 2014). Uma linha de fuga é traçada diante do ruído exalado, ela aponta a janela (som de saxofone). Olha, ouçam a música! Vamos pra lá, vamos dançar! Vamos procurar outra forma pra gente (som de saxofone) (♪) (Fragmento da escrileitura radiofônica Frederico no HPS). Esse desejo, que é reerguido, desafia-se e abre-se a novas conexões com o mundo, um bloco animal se apodera, uma desterritorialização absoluta (Deleuze, Guattari, 2014).
Josefina ouve, na cena da aula, uma intrusão sonora do cotidiano. Não se trata de uma música composta a priori para estabelecer comunicabilidade entre a professora e seus alunos. Mas há algo ali que desafia a comunicação: muuuuu (Fragmento da escrileitura radiofônica A vaca), uma composição animal vocalizada por ela. Aquele som anômalo produz nela uma potência de desterritorialização (Sauvagnargues, 2006), uma saída daquele lugar comum ao qual se submetia, onde sentia sua força de agir diminuída. Não se tratava apenas de manter uma forma de existência dada a sua professoralidade, mas de um processo que a fez encontrar brechas de respiro. Ela dizia algo nebuloso, mas que remetia a um estado novo naqueles corpos que dançavam (som ao fundo) (♪) (Fragmento da escrileitura radiofônica Dorothy). Ouviste isso agora? “Era uma voz animal [...] atraído pela música, ousara avançar um pouco para a frente” (Kafka, 2016, p. 26).
DOENÇA
Queria estar em outra dor, não mais nessa (Fragmento da escrileitura radiofônica Leito de morte). Seu corpo frágil era uma escapatória, facilitava a vida em algo, deixando-a, ao menos, escrever-ler, fazer seus movimentos de pensamento, escutar a vida. Utilizava-se da doença para recuperar um pouco da potência. Ela não precisava ser vista apenas como uma inimiga, pois aguçava naquele corpo frágil uma sensação de vida mais do que de morte. Tinha dores pelo corpo todo (Fragmento da escrileitura radiofônica Timóteo).
Os afetos de Josefina foram dispostos no plano de forças, fatos e processos, menos de prescrições. Buscava entrar em contato com as relações possíveis, mudando o modo de olhar, dizer e fazer algo com a própria dor de existir. Proporcionou um espaço para entrar em relação com sua docência pela escrita-leitura. E, por esse ato de escrileiturar, apresentava suas relações feitas no partilhar matérias. Parece leve agora essa ausência de rigor. Onde estarão as fronteiras? (Fragmento da escrileitura radiofônica Saída do cinema).
De certo modo, a doença apareceu como um elemento recorrente. Apesar de apontar relação entre aquilo que escrevia, pensava que não escrevia com as próprias neuroses, porque não considerava passagens de vida. “A doença não é processo, mas parada do processo” (Deleuze, Parnet, 1997, p. 14). Não podia nem queria parar. A escrita foi para ela uma maneira de cuidar de si. Havia sido receitado um remédio pros olhos vermelhos de tanto provocar sintomas (Fragmento da escrileitura radiofônica Animal abandonado). A literatura surtia efeitos, como uma espécie de empreendimento de saúde (Deleuze, 1997), aglomerando aquilo que se ouviu (som) e viu (olhar) nas andanças da escrita-leitura. Suas escrileituras foram produzidas em meio aos sintomas, desafiando seus malestares. Cavava valos por onde algum suco pudesse passar, ao invés de quebrar-se, abre-se um broto (Fragmento da escrileitura radiofônica O despertar de Maria) num modo de ser e fazer que ali cindia.
Pensava na tristeza que acometia os professores, sendo que a superação da doença poderia estar relacionada à capacidade de afirmar a vida e vivê-la novamente, cada segundo do que já se passou (Nietzsche, 2012). A doença e a dor não podem ser capazes de diminuir a potência do existir, mesmo sabendo que isto faz parte de nós. Não se trata apenas de evitar a tragédia, mas conhecer o lado corajoso que temos, criando sentido para aquilo que não está dado. Tratamos de dedicar a vida numa questão ética: viver como se cada minuto, cada instante da vida fosse retornar eternamente, enaltecendo o amor fati: o querer a eternização do tempo vivido, o amor do acontecimento (Machado, 2014). Dizer que há uma saúde a se tirar de exemplo é fortalecer as vozes de uma medicina moral que está sempre pronta a nos dizer como bem ou mal viver. Nossa virtude, em sua singularidade, é a saúde de nossa alma. Tal virtude dependerá daquilo que exerce (força, impulsos e erros) ao determinar o que de fato é saúde para um corpo. Existem doenças, mas também, diferentes saúdes do corpo e da alma. Esta “[...] exclusiva vontade de saúde não seria um preceito, uma covardia e talvez um quê de refinado barbarismo e retrocesso” (Nietzsche, 2012, p. 135)? A doença existe e a existência de Josefina diz de uma rota de fuga, uma brecha para sair.
Subtrair dali algo, uma potência de vida, “[...] escrever a n-1” (Deleuze, Guattari, 1995a, p. 21). Imagina-se na superfície de um texto, em que age numa “[...] voracidade roedora, ruminante e silenciosa de um tal animal-máquina” (Derrida, 2011, p. 73) que se apodera de si e rasura seu próprio ser. Escreve novamente.
AMAZONA
Galopeando sobre o cavalo, senti-me puxada. O chicote estalado nas minhas costas tecia rugas na pele e me fazia andar cada vez mais veloz. O pelo já não adormecia a dor que insistia em queimar os poros mais profundos de um lugar de superfície. Que poderia eu dizer ou reclamar? Fazia parte de mim. A posição estava dada, sentada ao lombo daquele animal, éramos uma coisa só, uma mistura. Quatro ou seis patas. Uma crina que protegia o pulmão da água que escorria da chuva torrencial [...]. Diante do mundo-espetáculo transformado e consolidado em que reside uma vida amazona, em que a miséria aparece cada vez mais forçosamente, como alegria, a crueldade como amor e a doença como beleza, coloco esta existência docente a partir da perspectiva das coisas como elas são. [...]. Buscar, com isso, escapar de um olhar alienado sobre os acontecimentos. Por simbiose, há trocas de existências que se misturam, a mulher e o cavalo, tornando-se uma só coisa, uma existência amazona em meio à vida. Nesse encontro, há a captura daquilo que tem mais potência para agir, elevando as forças de existir. Por vezes, deixo o cavalo partir. E, quando nos despedimos, nenhum sai da mesma forma que começou. Um carrega consigo um pouco do outro, de suas potências vivificadoras (nesta relação de movimentos e repousos), deixando um pedaço de cada uma de suas partículas, o cavalo na partícula humana da mulher e a mulher nas partículas animais do cavalo. Escrevo nesta possibilidade de habitar outro corpo docente carregado de marcas, em devir-amazona. Com fúria, destroço pensamentos dogmáticos incapazes de manter viva a chama da criação. Talvez por isso seja tão difícil criar, achar uma fenda por onde escapar, uma saída, ao menos. Galopeando, encosto a cabeça sobre a crina e partimos mais uma vez para a próxima parada.
RATA
Sabendo que o assobio era uma de minhas particularidades, duvidei se de fato o que fazia fosse algo considerável. A voz retumbava na sala ao passar pelas fronteiras do comum. Poderia ser um canto, um assobio ou um grito. De histeria, preocupação ou loucura. Mas e a enorme comoção que causava? As palavras que saíam da boca ressoavam aos meus ouvidos e da plateia que assistia atônita. Sentia-me frágil com uma pulsação que fazia tremer o palco. Percebia, no canto encantador, um ruído mesquinho e enganador. Doce, frágil, feroz e violenta [...]. Foi num momento de criação que me mostrei má, rejeitando a possibilidade de qualquer aula ser uma aula; de que qualquer aula pudesse ser considerada como arte [...]. Ninguém sozinho é capaz de fazer algo grandioso, do que numa coletividade [...]. Tudo o que eu mais queria era um reconhecimento de minha arte. Porém, e apesar de todo o esforço pedagógico, nada mais vantajoso do que conhecer-se a si mesmo antes de qualquer coisa. Como eu aprendia? Perguntei-me certa vez. Se isso não fosse, de certa forma, qualquer coisa que pudesse ser entendido, como faria para que os estudantes aprendessem aquilo que, dia após dia, assobiava em aula? O afastamento entre eles e eu, às vezes, se concretizava pela distância do conhecimento em relação ao meu canto e como chegava a seus ouvidos. Na medida em que se despistavam, maior era meu esforço em aumentar a propagação de tais ondas sonoras. Muito mais do que aprenderem também um canto, queria que respeitassem o meu. Falsa tática de um estilo fracassado. Talvez, por isso, não venham a sentir tanta falta. Estarei livre dos temores demasiadamente humanos para uma vida de rata? No geral, aí se tem uma espécie que se empenha em transformar a profissão em algo digno de se manter num palco. Por isso, as dificuldades em preservar as coisas simples da vida normal, como o poder de um assobio. No fundo da toca, quase incapacitada de sair dela, é que percebi minha única exceção: reclamar por uma felicidade que talvez somente meu canto proporcione. E, juntamente a isso, notei como venho cada vez mais cantando menos. E como já mencionei, o assobio é uma de minhas melhores particularidades. [...]. Todo o esforço lançado em prol de uma variação advém de qualquer coisa que ainda subsiste em nós, povo de camundongos, uma força que vibra na arte de assobiar.
DOCÊNCIA EM ESTILO ANIMAL: PLURALIDADE, TRANSGRESSÃO E MUTAÇÃO
O que teria esta docência a aprender com o animal? A amazona galopa corajosamente em união ao seu cavalo, na luta pela sobrevivência do fazer coletivo, compondo forças para suportar os desafios de uma profissão que ensina. Escapa de um ver alienado, transmutando-o em um olhar atento aos acontecimentos gerados pelo público diante de sua performance. Pelo olhar, também aprendemos que nem tudo que está dado a ver constitui-se como a verdade. Partimos as coisas para capturar os signos emitidos e, assim, estabelecer relações desde uma atenção amazona: num estar à espreita como condição corporal; numa docência capturada pelo desejo de ir além do que está posto como verdade, cede espaços de abertura ao outro, rompendo, gradativamente, com a frequência de passividade, egoísmo e alienação. Mas isso requer um lento processo de amadurecimento e transformação.
Num devir-rata, aprendemos a manter nossas singularidades, mesmo sendo limitadas pela suportabilidade de um corpo. Poupemo-nos para não adoecer. Um tempo de resguardo para a luta de todo o dia. E, por um modo animal-estar, seria possível alcançar zonas de indiscernibilidade (Deleuze, 1997), um lugar comum disforme que apresente nossa potência em ato? Superamos, assim, os impasses imobilizadores de nossas ações e abandonamos algumas compreensões, como das moralidades que insistem em dividir o mundo entre bem e mal. O corpo docente acaba sofrendo ao adequar-se a ações éticas pautadas nesta dualidade. Não se trata de negar a doença, mas atrapalhar a oportunidade de ela paralisar. A literatura aparece como saúde (Deleuze, 1997), ao acionar um povo que salta de uma enunciação radiofônica coletiva e invoca sua força para agitarse sob qualquer dominação causadora de efeitos de estagnação em nosso ato pedagógico e que possamos falar em nome da intensidade.
No entanto, chegamos à tese (Schwantz, 2019) de que a condição de existência de um estilo docente se determina a partir das formas e das forças com que se exerce a profissão. Quanto mais relações estabelecidas por um professor ou uma professora (entre seres, matérias, objetos, campos de conhecimentos) para ensinar, mais aumentará a capacidade de afeto e potência desta docência. O estilo animal, apresentado nesta investigação, surge por meio de seus componentes, evidenciando a necessidade de retomada da potência ativa e afirmativa da vida docente. As escrileituras apareceram como um empreendimento possível para afetar a circunstância criadora, tanto existencial quanto pedagógica, ao pensar estilo(s) que favoreça(m) o aumento desta atividade vital. Não se trata de uma solução que conseguirá sanar todos os problemas da formação e da prática docente, mas aposta numa ação mais micro, desde as experimentações realizadas em pesquisa, ensino e extensão. E, juntamente a elas, vimos, ainda, a necessidade de manter a qualidade da educação e a valorização do profissional para que possa reinventar novos estilos, que tenha a oportunidade para se qualificar em espaços adequados para o estudo, a escrita e a produção de saberes. Com a atenção de um inseto, a coragem de uma amazona, o coração de uma ursa e a ambição de uma rata, seguimos perseguindo novas perspectivas para nossa profissão.