INTRODUÇÃO
O trabalho é um recorte dos resultados de uma pesquisa de doutorado que analisou o contexto de formulação e implementação da política de reordenamento da Rede Municipal de Fortaleza nas escolas que ofertam ensino fundamental, entre 2019 e 2021 tendo como marco referencial o Ciclo de Políticas (Ball; Mainardes, 2011). Trata-se de um estudo de caráter exploratório (Gil, 2002), de abordagem qualitativa (Ghedim; Franco, 2011) e estudo de casos múltiplos (Yin, 2010). São apresentadas partes dos resultados da pesquisa de campo que se baseou em entrevistas semiestruturadas realizadas com 21 sujeitos. Para suporte às análises optou-se pela Análise de Discurso Crítica (ADC) de Fairclough (2001) observando os discursos a partir do diálogo entre políticas educacionais, afetividade como um dos aspectos da Estima de lugar e aprendizagem, expressa nas avaliações externas.
A pesquisa de campo abrangia quatro eixos: 1) Reordenamento como processo contínuo e complexo; 2) Reordenamento para garantia de direitos; 3) Reordenamento como gestão e 4) Reordenamento como Racionalidade Técnica/Especialização das escolas. Aqui são apresentados os resultados do terceiro eixo sob a ótica dos coordenadores pedagógicos e docentes, tendo como questões norteadoras: 1) Em que medida o reordenamento das escolas tem impactado nas subjetividades dos alunos? 2) Quais os efeitos dessa política na aprendizagem dos alunos e, sua relação com o rendimento escolar expressos nas avaliações em larga escala?
A partir da década de 1990, a educação brasileira é influenciada pelas orientações de organismos internacionais que tem como referência os pressupostos neoliberais associados à Nova Gestão Pública (Pereira, 1999). Um marco pode ser identificado na Conferência em Jomtien em 1990, e na Declaração Mundial de Educação para Todos, quando a escola passa a ocupar o foco das agendas educacionais em parte do mundo ocidental e tornam-se mais claras as relações entre o Estado, a sociedade civil, a educação e sua gestão descentralizadora (Vieira, 2009; Oliveira, 2015; Brasil, 1993).
Nos últimos anos, a atenção das políticas educacionais se dirige para as avaliações em larga escala, fortalecendo a postura do Estado-avaliador (Afonso, 1998; Dardot; Laval, 2016) e a criação de mecanismos de accountability. Como consequência prioriza indicadores de performance para medir a eficiência e efetividade dos serviços oferecidos pelas escolas e o que é mensurável se torna mais importante. Inserida nesse contexto de influência, a Rede Municipal de Fortaleza tem procurado reorganizar a oferta educacional e para tanto, se ampara no difuso conceito de “qualidade do ensino”, ao mesmo tempo que se esforça pela busca de equidade para atender uma metrópole com mais de 500.000 matrículas e desigualdades sociais extremas. Isso levou a gestão educacional do município a conceber e implementar um modelo de reordenamento de escolas, que se fundamenta, principalmente, na racionalidade técnica, com a especialização das escolas, segmentando a oferta do ensino fundamental em anos iniciais e anos finais em unidades distintas; reduzindo a oferta de educação de jovens e adultos com a criação de escolas-polos.
Este artigo objetiva refletir sobre os efeitos da política de reordenamento de escolas nas subjetividades e aprendizagens dos discentes em transição do 5º para o 6º ano do ensino fundamental e procura compreender como eles são afetados por esse modelo de especialização das escolas. Para tanto, recorre ao trabalho de Haesbaert (2020) para situar a escola enquanto território, Heller (1979) e Leite (2012) na discussão sobre afetividade e Silva e Bomfim (2019) para entender o significado do termo Estima de lugar.
As motivações para este estudo partiram do reconhecimento da complexidade psicobiológica a qual a criança está imersa nesse momento de transição de um ano escolar para outro (5º para 6°) e pela discrepância entre a evolução dos resultados do 5º e do 9º ano do ensino fundamental, observados nas avaliações em larga escala, tanto nacional como estadual, no caso da rede municipal de Fortaleza. O estudo não pretende abranger o fenômeno na rede escolar como um todo, mas se ater a um evento específico, que diz respeito as escolas que foram afetadas por processos de reordenamento de oferta do ensino fundamental. Tanto que dirige as análises para os vínculos afetivos dos estudantes e professores com as escolas, por reconhecer a importância de se considerar as dimensões afetiva e cognitiva como indissociáveis na construção do sujeito, e que os lugares afetam os indivíduos, potencializando-os ou não (Bomfim; Souza, 2018). Considera-se, assim, a escola como lugar dotado de valor, e, portanto, seu reordenamento pode vir a apresentar efeitos não só na constituição do sujeito, como também, sobre a aprendizagem.
Essa reflexão é importante, principalmente, na atual conjuntura em que a sociedade conclama para uma educação de qualidade. Trata-se de romper os limites dos estudos de políticas educacionais separados de outros campos do conhecimento e olhar os atores educacionais como seres humanos em sua integralidade, com seus afetos e subjetividades. Segundo Chanlat (2007), é vê-lo como ser de pensamento e de palavra, enraizado no espaço e no tempo, ser de desejo e de pulsão, ser simbólico para quem a realidade deve ter um sentido. Para tanto, considera-se as percepções dos entrevistados que vivenciam a implementação dessa política no contexto da prática escolar. O artigo está dividido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira apresenta a metodologia do estudo; a segunda aborda as ideias neoliberais e o reordenamento de escolas; a terceira é dedicada a análise e discussões sobre os dados coletados.
METODOLOGIA
O estudo é de abordagem qualitativa (Ghedim; Franco, 2011), sendo uma pesquisa exploratória no que diz respeito aos seus objetivos (Gil, 2002), e um estudo de casos múltiplos (Yin, 2010). Fortaleza, capital do Ceará, possui 573 equipamentos municipais públicos organizados em seis distritos educacionais e 121 bairros. Desse total, 276 escolas ofertam educação em tempo parcial, com 96 atendendo os anos iniciais e finais do ensino fundamental, 133 apenas os anos iniciais, e 47 apenas os anos finais. O campo empírico escolhido para esta pesquisa corresponde a seis escolas públicas municipais de dois distritos educacionais. Dessas escolas, quatro passaram por reordenamento para atender apenas os anos iniciais ou anos finais do ensino fundamental e duas não foram reordenadas, mantendo a oferta do ensino fundamental completo. Foram entrevistados seis diretores, seis coordenadores pedagógicos e seis docentes. Para dar suporte às análises das entrevistas, optou-se pela Análise de Discurso Crítica (ADC) proposta por Fairclough (2001), uma concepção tridimensional da análise do discurso, constituída pelas seguintes extensões: texto, prática discursiva e prática social. Neste estudo são apresentados os resultados do eixo “Reordenamento como gestão” sob a ótica dos coordenadores pedagógicos e docentes.
IDEIAS NEOLIBERAIS E REORDENAMENTO DAS ESCOLAS
A rede municipal de Fortaleza vem passando por processos de reordenamento com motivações distintas. O primeiro foi realizado pela Secretaria de Educação do estado do Ceará entre 1995 e 2002, com a municipalização do ensino fundamental. Nesse período, os arranjos institucionais se organizam em torno de duas estratégias: a cessão de prédios para a Secretaria Municipal de Educação, que mantinha a oferta de ensino fundamental, com as turmas de ensino médio se mudando para uma escola estadual; ou diante da impossibilidade de cessão definitiva do prédio escolar, compartilhar a oferta estadual (ensino médio) e municipal (ensino fundamental) numa mesma escola. Essa alternativa, chamada de co-gestão, teve pouco tempo de duração, pela inviabilidade prática de uma gestão compartilhada entre os dois entes federados - estado e município (Soares; Vidal, 2022a; Soares; Vidal, 2022b).
O segundo momento vai ser marcado pelas mudanças no modelo de gestão pública, com o advento do gerencialismo, da racionalidade técnica e do protagonismo das avaliações em larga escala. Esse novo reordenamento ocorre no interior da própria rede com a especialização das escolas e coincide com a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), em 2007. O município passa a ofertar matrículas em escolas que atendem somente os anos iniciais ou anos finais do ensino fundamental, reduzindo drasticamente a quantidade de escolas que ofertam o ensino fundamental completo (Soares, 2021). Ao implementar este modelo de reordenamento, o governo municipal tem como premissa a melhoria da qualidade do ensino, a partir do aperfeiçoamento da gestão dos processos educativos e do aumento dos resultados nas avaliações em larga escala, tentando também melhorar a eficiência e eficácia do gasto público e mantendo um foco maior nos procedimentos de ensino-aprendizagem.
Se em princípio, do ponto de vista do sistema de ensino, o aluno continua como matrícula da rede municipal, ocorre um movimento relevante, mas invisível aos olhos da gestão do sistema, que diz respeito aos territórios urbanos que abrigam as escolas reordenadas e as famílias que constituem esses microcosmos. Essas mudanças se dão no âmbito das subjetividades dos envolvidos, uma vez que a política de reordenamento de escolas induz a um processo de desterritorialização-reterritorialização de alunos, implicando em mobilidade espacial (SOARES; VIDAL, 2022a; SOARES, 2021).
Apesar de homens e mulheres serem capazes de reterritoriar-se é importante atentar para a questão que discute a distinção entre território como recurso e território como abrigo. Haesbaert (2020), ancorado no pensamento de Santos (2000), argumenta que neste os ‘atores hegemonizados’ usam como abrigo enquanto buscam continuamente adaptar-se ao meio local, ao passo que recriam estratégias que garantam suas sobrevivências nesses lugares. Naquele, os atores ‘hegemonizadores’ usam como recurso para atenderem e garantirem seus interesses particulares. Uma segunda questão diz respeito às duas formas de desterritorialização: a relativa e a absoluta. Aquela diz respeito ao socius, ao abandono de territórios criados na sociedade e à sua reterritorização. A desterritorialização absoluta refere-se ao próprio pensamento e à criação. Para criar algo novo é necessário romper com o território existente. Os dois processos se relacionam, pois um perpassa o outro e em ambos existem movimentos de reterritorização (Haesbaert, 2020). Nessa perspectiva, o território ou territórios (geográficos, sociológicos, afetivos) se apresentam como um lócus de constante disputa de poder, ou seja, não se trata de espaços neutros. Também é visto sob relação de dominação e apropriação sociedade-espaço que vai desde a dominação político-econômica (mais ‘concreta’ e ‘funcional’) à apropriação subjetiva (cultural/simbólica).
Embora essas apropriações sejam indissociáveis, cada grupo social pode fazer uso do território ou territorializar-se a partir de processos de caráter mais funcional ou mais simbólico, dependendo da dinâmica de poder e das estratégias que estão em jogo (Haesbaert, 2020). Assim, acredita-se que a relação que os atores educacionais mantêm com o ambiente escolar é física e simbólica. Logo, o processo de reordenamento engloba tanto aspectos de apropriação do espaço com finalidades mais funcionais - quando os gestores escolares mantêm as bases do reordenamento para responderem a exigências da gestão municipal e, portanto, tornarem seus sistemas educacionais mais eficientes e produtivos, quanto subjetivas - quando envolve aspectos, especialmente, relacionados à Estima de lugar (Silva; Bomfim, 2019). Essa estima se constrói socialmente sob base dialética, em que são articuladas a representação social do lugar, o nível de apropriação do espaço e o estabelecimento de vínculos afetivos, por exemplo, pertença e apego ao lugar. Essa construção apoia-se na avaliação 1) da qualidade de habitação e uso do ambiente; 2) na qualidade dos vínculos sociais de amizade e boa convivência 3) na imagem social do lugar perante a sociedade e 4) no nível de apropriação do espaço pelo indivíduo que o estima (Silva; Bomfim, 2019). Logo, a Estima de lugar está diretamente ligada aos laços afetivos.
Por afetividade entende-se a interrelação do sujeito com o outro e com o mundo. É uma parte essencial do indivíduo e envolve, ao mesmo tempo, sentimentos, afetos e emoções. Na relação do homem com o mundo o conjunto desses fenômenos afetivos estão presentes de forma contínua, concreta e abstrata. A depender da função psíquica, no diálogo entre o que está interno e o que está externo implicará em reações boas ou ruins. Nesse contexto, cada sujeito é afetado de forma diferente, uma vez que ele é singular (Heller, 1979; Leite, 2012; Gomes Coelho; Coelho, 2020). O processo de transferência dos estudantes, nas escolas que vivenciam o reordenamento envolve aspectos subjetivos tais como sentimentos, ideologias e construção de identidades. Assim, o trabalho levou em conta os discursos dos envolvidos a partir da pesquisa de campo e que terão seus desdobramentos abordados a seguir.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
O reordenamento visando a especialização das escolas ocorre a partir de agosto de 2013 e é um processo que continua, embora em menor proporção. A motivação deste modelo é manter o “foco” no aluno, com vistas à melhoria nos resultados de desempenho e na gestão dos processos educativos e esse é um dos fundamentos que justifica a decisão de fragmentar o ensino fundamental.
As entrevistas com os coordenadores escolares e professores revelam que tais mudanças na organização da oferta escolar produzem impactos nas subjetividades dos discentes, associados a um processo de desterritorialização-re-territorialização, que se torna complexo para todos, uma vez que esses sujeitos possuem uma trajetória escolar na instituição que está sendo objeto das modificações. Na fala de uma professora fica evidente os aspectos relacionados à afetividade e à Estima de lugar, tais como o nível de apropriação do espaço, a pertença e apego: “a gente deixou a escola, o convívio com os colegas [...] a gente sente muita falta [...]. O advérbio “muita” demonstra o quanto foi sofrido o processo de reconstrução dos “territórios” nessa mobilidade.
Os docentes citam vínculos de amizade “forte” entre escola e comunidade local, incluindo os alunos, que se rompem diante das transferências. Uma professora afirma que os alunos “criavam aquele vínculo forte com a escola. Eles ficavam, iam crescendo, iam se adaptando, e dificilmente, eles trocavam de escolas, porque eles queriam estar naquele ambiente que já era conhecido”. Ou seja, o uso do território como abrigo. As percepções dos docentes permitem inferir duas problemáticas na implementação dessa política: a primeira diz respeito às mudanças psicológicas, biológicas e sociais que estão envolvidas na mobilidade e transferência desses alunos, uma vez que coincide com a transição do 5º para o 6º ano e a segunda, a constatação de que a escola é um ambiente permeado de afetividades.
Para Cassoni (2017) a complexidade dessa transição está em coincidir com a adolescência inicial que é o período de mudanças relevantes em todos os domínios da vida da criança. Ela afirma que a transição do primeiro para o segundo ciclo do ensino fundamental, em si, já impõe mudanças para a criança, pois inclui a passagem de uma organização de componentes curriculares integrados para outro mais compartimentalizado. Implica, também, em mudança de papel - aluno dos anos iniciais para aluno dos anos finais do ensino fundamental - e de contexto, de um sistema integrado com um professor para um modelo com vários professores. No caso dos alunos atingidos pelo reordenamento das escolas, ocorre ainda, a mudança de escola, muitas vezes, de bairro, novos trajetos e transporte escolar, dentre outras. A relação entre discentes e docentes se torna mais impessoal, com menos chance de formação de vínculos e a rede social até então formada entre os colegas de turma pode ser afetada (Cassoni, 2017). Destaca-se ainda o fato que mesmo tendo em vista que a afetividade pode influenciar o cotidiano escolar, nem sempre são considerados nos objetivos de aprendizagem por parte dos docentes (Pacheco; Rosa; Darroz, 2023).
Cassoni (2017), amparada nos estudos longitudinais de Lanson e Marcotte (2012), afirma que durante a transição entre 5º e 6º ano há aumento de suporte dos amigos e diminuição do apoio dos pais e professores. Essa diminuição do suporte dos adultos seria responsável por um aumento de sintomas depressivos no curso da transição, ainda que essa relação pareça ser bidirecional. Junto a essas alterações, a mudança de escola, que antes representava porto seguro para esses sujeitos, passa a ser um lugar que eles precisam deixar para trás. Essas crianças são levadas a reconstruir seus territórios (nova sala de aula, nova escola) e, mesmo que a mobilização espacial se dê para o mesmo bairro (alguns vão para escolas vizinhas), a mudança de escola significa “recriar o futuro”.
É nesse contexto de dúvidas que emerge a segunda problemática que é a escola como ambiente afetivo. Ela surge nos depoimentos de alguns professores e coordenadores pedagógicos das seis escolas que passaram pelo reordenamento e daqueles que atuam nas escolas que não passaram. Em suas reflexões os sujeitos pesquisados apontam que o reordenamento é uma decisão positiva em relação ao trabalho pedagógico, uma vez que a falta de estrutura física adequada nas escolas e carência de profissionais para auxiliar os alunos de faixas etárias distintas, se torna um problema para o andamento das atividades letivas. Uma das docentes afirma que “era muito difícil ter meninos pequenos misturado com alunos de fundamental II no recreio”. Contudo, os próprios sujeitos reconhecem que a escola não é só a dimensão pedagógica, mas outros aspectos como os vínculos afetivos que são construídos desde os anos iniciais do ensino fundamental: “[...] ele já criou aquele vínculo com aqueles amigos. Querem ir até o final com os amigos. Então, eu acho que o reordenamento para criança não é bom”. De fato, o tratamento do ambiente não deve desvincular o investimento afetivo e as relações subjetivas que são compartilhadas nesse lugar (Feitosa et al., 2018).
Essa situação explicita tensões que ocorrem entre os interesses da escola e a necessidade dos alunos. Uma das professoras reconhece que antes do reordenamento “era mais trabalhoso para escola”, e com poucos recursos materiais e financeiros se tornava inviável atender toda a demanda do ensino fundamental, por isso “ela terminou se especializando” em apenas um dos segmentos. Ao ser enfatizado que “ela terminou se especializando”, é possível deduzir que houve predomínio e preocupação com a excelência dos métodos, bem como, uma busca por meios mais racionais com vista à uma solução para se atingir os objetivos determinados que, no caso, são os resultados de desempenho das escolas. Nessa perspectiva, o reordenamento das escolas se apresenta como uma ‘questão técnica’ sob o princípio do ‘menor esforço’ para se obter resultado ótimo em comparação com os meios a serem aplicados (Carvalho, 2009; Lima, 1994). No entanto, ao analisar os efeitos dessa política na aprendizagem dos alunos e, consequentemente, no rendimento escolar expresso nas avaliações em larga escala, as visões dos atores educacionais divergem entre si. Há aqueles que defendem que o reordenamento induz a melhores resultados nas avaliações; outros concordam que ele leva a bons resultados, mas não melhora a qualidade da educação e um terceiro grupo que argumenta que ofertar todos os anos do ensino fundamental contribui para melhorar os resultados da escola nas avaliações e na qualidade da educação.
Para os docentes e coordenadores pedagógicos que defendem a última alternativa, o fato de o aluno frequentar a mesma escola desde os anos iniciais permite o acompanhamento durante todo o ensino fundamental. Para eles, não fragmentar a oferta desta etapa da educação básica torna o trabalho pedagógico mais produtivo e eficaz, uma vez que é possível criar laços afetivos e fortalecer referências positivas nos alunos. Além do mais, para este grupo de docentes quando se recebe a criança no início do processo é possível identificar suas dificuldades e ajudá-la na superação no decorrer dos anos. A maioria dos entrevistados acredita que o acompanhamento do aluno, no momento de transição do 5º para o 6º ano, aumenta o nível de aprendizagem, e, consequentemente, os resultados nas avaliações externas. Uma das coordenadoras argumenta que a transição do aluno para o 6° ano numa escola nova, leva-o a necessidade de refazer vínculos emocionais e afetivos no novo ambiente, enquanto a continuidade na mesma escola permite que ela viva todas as mudanças típicas da transição dos anos iniciais para os finais do ensino fundamental, sem o agravante da mudança do ambiente afetivo e do território. Ela se refere a Estima de lugar, expresso nos vínculos afetivos, como condição relevante para aprendizagem do aluno.
Os entrevistados evidenciam dois aspectos relevantes no processo de reordenamento das escolas: o acompanhamento como um continuum ao longo do ensino fundamental e o fortalecimento dos laços afetivos entre escola e família. Embora a afetividade seja destacada como uma questão importante para os alunos, suas famílias e os atores escolares, parecem ter sido esquecidos quando se concebeu o reordenamento das escolas e fragmentação da oferta do ensino fundamental. O vínculo que o aluno constrói com a escola é relevante para a aprendizagem e, para a qualidade das relações estabelecidas entre ele e os professores; e segundo uma docente, contribui para a aprendizagem e qualidade do ensino. Silva e Fornasier (2023) enfatizam a importância do complexo afetivo para o desenvolvimento pessoal e social das crianças. A esse respeito uma coordenadora pedagógica afirma que quando a escola é responsável pelo aluno durante toda a etapa educacional, ela ganha tempo para trabalhar os aspectos pedagógicos e o aluno cria vínculos mais fortes com o ambiente escolar. Assim, quando a escola oferece o ensino fundamental completo, é possível desenvolver um trabalho em um formato de espiral, tornando o ensino mais complexo.
Feitosa et al. (2018) apoiados em autores da psicologia ambiental chamam atenção para a interação indivíduo-ambiente que está relacionado à conversão do espaço físico em espaço significativo para o indivíduo, e nessa perspectiva o ambiente passa a ser um território emocional. Os autores acrescentam que a afetividade revela quando os indivíduos agem e se posicionam no espaço. O sujeito identifica-se com o ambiente, dando origem aos laços afetivos que as pessoas criam com os lugares, e por isso, necessitam estarem próximas a ele, à medida que estes lugares apresentam recursos físicos, biológicos e emocionais. Uma coordenadora corrobora esse pensamento e acrescenta que uma escola que oferta o ensino fundamental completo, além da construção dos vínculos afetivos, tem mais possibilidades de trabalhar os valores e o caráter. Para ela quando uma criança se sente bem em um ambiente, se sente amado, acolhido, protegido, ela dará o melhor de si na instituição. Em sua concepção, é diferente o trabalho da escola que inicia a formação integral de uma criança dos anos iniciais, de uma criança a partir do 6º ano, pois, além da cultura organizacional de cada escola, há também as comparações que, incialmente, torna-se um obstáculo para o “novo” professor. Com a concepção de pessoa em desenvolvimento, Cassoni (2017) sugere uma transição ecológica e mais saudável, pautada no apoio de pessoas significativas para lidar com as mudanças em curso, além de considerar a perspectiva da criança, como participante ativa em todo o processo. A pesquisadora afirma que a forma como a criança lida com os desafios da transição se relaciona ao modo como ela percebe os microssistemas em que está inserida (escola, família e pares) e como ela se percebe nesses contextos.
Quanto aos componentes curriculares, a docente de uma escola que oferta o ensino fundamental completo ressalta que os alunos que ela recebe nas turmas de 6º ano, vindo de outras instituições, apresentam níveis diferentes, se comparados aos alunos que cursam o 5º ano na escola em que trabalha. É possível perceber certa discordância e consternação dessa professora no que tange à transferência de alunos causada pelo reordenamento da rede de ensino. No seu entendimento, quando a escola recebe esse aluno “vindo quebrado” de uma escola dos anos iniciais, sua aprendizagem fica a desejar. A expressão “vindo quebrado” transmite a ideia de fragmentação do processo de aprendizagem do aluno que fica evidente na transição de 5º para 6º ano proporcionada pelo reordenamento da rede física escolar. Isso, provavelmente se dá porque conforme Cassoni (2017) apoiada em Elias (1989) essa transição pode não ser fácil para todas as crianças, uma vez que é vista em uma perspectiva de transição de vida, que exige um conjunto de demandas por parte do aluno e esforço adaptativo em diferentes domínios como: 1) ajustar-se às mudanças nas definições de papéis e comportamentos esperados; 2) realocar-se nas redes sociais; 3) reorganizar seus recursos pessoais e desenvolver uma reavaliação cognitiva do seu próprio mundo cotidiano e ações previstas; 4) lidar com o stress associado às incertezas da situação.
Cabe frisar que, ao tentar especializar as escolas, o modelo de reordenamento implementado no município faz com que gestores e professores que acompanhavam o aluno nos anos iniciais não vejam o resultado do seu trabalho, o que, de certa forma, tira suas responsabilidades pelas etapas seguintes, incluindo não só a aprendizagem, mas a formação integral do indivíduo. Segundo Tucker (2019), os melhores educadores sempre se preocuparam em mais do que ensinar a ler e a escrever, com o tipo de pessoa que seus alunos virão a ser - não apenas inteligentes e competentes, mas também empáticos, tolerantes, atenciosos, compassivos, trabalhadores, decentes, generosos e confiantes na busca de seus objetivos - pessoas que fazem a coisa certa quando ninguém está olhando.
Nessa perspectiva, faz-se importante, neste momento, pensar na transição das crianças a partir do entendimento da pessoa em desenvolvimento (Cassoni, 2017), postura que nas políticas educacionais pressupõe a compreensão de que o ser humano é composto de razão e emoção. E segundo Leite (2012) baseada em Damásio (2001), é entender a máxima: existo e sinto, logo penso. Nesse sentido, Carvalho (2013) defende o afastamento da racionalidade vinculada aos pressupostos de produtividade e eficiência econômica que esteja longe dos objetivos e funções sociais da escola. Logo, os meios e os fins devem considerar o sujeito, nesse caso toda a comunidade escolar que está envolvida nesse processo.
Conforme os entrevistados, o reordenamento das escolas insere-se no contexto das novas práticas gerenciais que passaram a ser adotadas na educação municipal, e que trouxe efeitos administrativos positivos para as instituições. No entanto, ao considerar que o primeiro ciclo do reordenamento realizado está concluído, uma vez que os alunos que foram transferidos para cursarem os anos iniciais em outra instituição estão de volta às escolas dos anos finais do ensino fundamental, verificou-se que a eficácia, referente à aprendizagem dos alunos, diverge, em parte, da eficiência dos processos de gestão. Três dos sujeitos pesquisados não concordam que o reordenamento das escolas contribuiu para a melhoria da qualidade da educação. Empiricamente, respondem que há uma melhora nos resultados das avaliações em larga escala, por permitir que as escolas ponham um foco maior na gestão dos processos pedagógicos, porém atribuem a qualidade da educação uma abrangência maior que envolve valores, afetividade e formação de caráter.
Ao desvincular o reordenamento das escolas da qualidade da educação, mas vinculá-lo aos resultados obtidos nas avaliações em larga escala, abre espaço para reflexão sobre até que ponto a ênfase das intervenções na aprendizagem do aluno se assemelha ao que Ball, Maguire e Braun (2016) chamam de ‘ensino estratégico’ e ‘aprendizagem estratégica’, tendo pouco espaço para uma ‘aprendizagem profunda’. Ou seja, o ensino e a aprendizagem são fortemente influenciados pelas exigências dos resultados nas avaliações numa construção de conhecimento de curto prazo e ‘aprendizagem de superfície’. Preocupando-se com uma ‘aprendizagem mais profunda’, uma das professoras entrevistadas volta-se para o lugar do processo de ensino e aprendizagem. Segundo ela, os bons resultados da escola se dão porque oferta todos os anos do ensino fundamental, por isso, as crianças do 2º, 5º e 9º anos sempre estão “nos melhores lugares” nas avaliações em larga escala. Nessa escola, conforme o discurso da professora, há ênfase no processo, desde os anos iniciais.
No que se refere à qualidade da educação e avaliação, constatou-se paradoxos que contradizem e coexistem em vários níveis dos discursos e “põem em xeque” o sentido de qualidade do ensino, os elementos que estão envolvidos no processo de aprendizagem e qual o lugar dos valores morais e éticos. Observou-se, também, nos discursos dos entrevistados, as contradições vivenciadas pelas escolas reordenadas e pelas escolas que ofertam o ensino fundamental completo, no que diz respeito à organização do trabalho pedagógico. Enquanto naquelas, o reordenamento das escolas permite aos gestores organizarem um modelo de ensino que é direcionado à aprendizagem para os resultados e, por isso, mais focado nos conteúdos dos componentes curriculares, nestas é possível organizar outro modelo que vai além do rearranjo formal da escola, com acompanhamento do processo e criação de laços afetivos mais profundos.
As escolas pesquisadas que ofertam ensino fundamental completo, conforme as análises dos discursos dos entrevistados, parecem aproximar seu trabalho de gestão e pedagógico da integração da racionalidade instrumental/técnica da racionalidade substantiva, uma vez que estabelecem um acompanhamento do processo de aprendizagem das crianças do 5º para 6º ano, embora haja um forte direcionamento e monitoramento do pedagógico nos anos avaliados (2º, 5º e 9º anos) com vistas a apresentar resultados nas avaliações. Dessa forma, há que se pensar sobre a verdadeira função da escola, qual sua finalidade e qual o significado de qualidade.
As análises demonstram que, ao fragmentar a oferta, a transição dos alunos entre 5º e 6º anos fica fragilizada, pois há uma ruptura causada pela desterritorialização. Desse modo, enfatizase a importância de se considerar a Estima de lugar nessa política que poderá vir a ser um potencializador da aprendizagem. Destaca-se que nas escolas que ofertam todo o ensino fundamental, de acordo com os depoimentos, a transição entre 5º e 6º anos é feita com diálogo e acolhimento, ou seja, é posto em prática uma transição mais ecológica. No que diz respeito aos resultados, mesmo sem os entrevistados enfatizarem tal fato, essas unidades de ensino apresentam maiores evoluções do Indice de Desenvolvimento da Educação Básica, desde 2013, se comparadas às escolas que foram reordenadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho buscou refletir sobre os efeitos da política de reordenamento de escolas nas subjetividades e aprendizagens dos alunos em transição do 5º para o 6º ano. Por meio de um diálogo entre políticas educacionais e dimensões subjetivas procurou-se construir uma tessitura que explicasse possíveis nexos entre uma e outra. Para isso, recorreu-se aos conceitos de Estima de lugar e desterritorialização, que vem a ter consequências sobre a aprendizagem e resultados nas avaliações em larga escala. De cunho mais voltado para a dimensão pedagógica, procurou-se vislumbrar que o processo de reordenamento das escolas pode se fundamentar em um ‘ensino estratégico’ e uma ‘aprendizagem estratégica’ com vista aos resultados nas avaliações, mas que gera, como consequência, a desresponsabilização das escolas pelo resultado final do aluno, em decorrência, justamente, da fragmentação.
A transferência de alunos do 5º ano de uma escola para o 6º ano de outra fragiliza os vínculos afetivos entre educandos e escola, pois há uma ruptura causada pela desterritorialização. Devido à Estima de lugar, demanda tempo para os alunos retomarem o sentido de pertencimento e irmandade em torno do novo território, o que pode vir a afetar a aprendizagem e o rendimento escolar deles. Portanto, essa transição merece atenção e acompanhamento por parte dos profissionais da educação, de modo a atenuar os impactos negativos nas subjetividades dos alunos. No intuito de minimizar esses efeitos sugere-se uma transição ecológica e mais saudável pautada no apoio de pessoas significativas para lidar com as mudanças, além de diálogo, acompanhamento e acolhimento antes e depois da transição, que pode ser realizado pela escola. Diálogos, com visitas dos professores aos alunos do 5º ano a serem transferidos e vice-versa, também ajudam na construção de uma afetividade futura. A escola é o lugar de formação humana e o mínimo que pode ser feito nesse momento é pensar como essa transferência de alunos pode ocorrer com menos impactos possíveis.
A pesquisa se deu em apenas seis escolas e seus profissionais que passaram pelo reordenamento. Portanto, faz-se necessário ampliar as investigações para os alunos e os pais que vivenciaram o processo de reordenamento. Sem exaurir as discussões em torno da temática, conclui-se reafirmando a importância de investigar questões pouco problematizadas por pesquisadores e/ou formuladores de políticas educacionais, como as subjetividades, valores e projetos educacionais que estão por trás desse novo pragmatismo.