INTRODUÇÃO
A partir da ampliação do tempo de acesso e utilização das redes sociais durante a pandemia de Covid-19, imediatamente houve também um aumento da disseminação de notícias falsas, as chamadas fakes news. Estas caracterizadas como notícias que propagam conteúdos não verdadeiros (Matos, 2020) ou mentiras, tendo a área da saúde e a ciência como as maiores vítimas.
Diversas notícias falsas em relação ao vírus SARS-CoV-2 dificultaram as medidas de proteção, especialmente nos anos de 2020 e 2021, pois de fato, se tratava de uma doença desconhecida. Entretanto, as medidas de isolamento e distanciamento social se mostravam positivas e, naquele momento, nenhum tratamento preventivo ou curativo estava disponível. A consequência mais preocupante que ocorre com a disseminação de notícias falsas constitui-se no desnorteamento populacional, acarretado pela incerteza de quais fontes podem ser confiáveis. Sendo assim, notícias verdadeiras adquirem e incorrem em menor impacto em vários núcleos sociais (Matos, 2020), especialmente àqueles mais fragilizados socialmente. Como a Covid-19 é uma doença pandêmica, diversos estudos acerca da imunização começaram a surgir, e, depois de muitos estudos, a primeira vacina havia sido criada para ser disponibilizada à população mundial. Era com certeza uma luz no fim do túnel! Contudo, durante a corrida para a elaboração da vacina, alguns medicamentos já conhecidos pela indústria farmacêutica foram colocados em teste, para serem utilizados no tratamento contra a Covid-19. Porém, as evidências sobre a eficácia do uso desses medicamentos foram insuficientes, sendo que a maioria das pesquisas sugeriram a inexistência de benefícios, pelo contrário, incorriam em efeitos colaterais danosos (Opas, 2023).
Mesmo assim, com o respaldo do governo, diversas campanhas foram feitas a favor do tratamento precoce e milhares de reais foram gastos na compra dos mesmos (Opas, 2023). Fatos que causaram certa confusão na população, pois as informações não foram divulgadas de forma concreta. Especialmente quando se envolve questões político-ideológicas e questões polêmicas, “[...] as emoções e as crenças pessoais têm grande impacto na formação da percepção que o indivíduo tem do mundo à sua volta” (Gomes, Penna, Arroio, 2020, p. 3).
A negação científica a respeito da vacina destaca-se, visto as proporções alcançadas em termos da recusa e da divulgação de notícias falsas, entretanto, apesar de toda desinformação e da resistência inicial, o Brasil que sempre foi exemplo em vacinação, ao final de 2022 alcançou a marca de 80% da população com esquema vacinal contra Covid-19 concluído, porém as taxas de vacinação estão em declínio acentuado quando se referem a outras doenças como, vacina contra difteria, tétano, coqueluche, sarampo e poliomielite (Opas, 2023). Motivos pelos quais consideramos essencial que tais temáticas sejam debatidas, especialmente na escola, onde a educação em ciências pode contribuir a fim de que os alunos saiam da fase escolar com conhecimentos básicos e essenciais relacionados à vacina e a sua importância para a sociedade, já que a escolha de não se vacinar pode afetar terceiros, trata-se de desenvolver o que Reiss (2022) denomina de educação vacinal (vaccine education em inglês). Portanto, temos como objetivo que os alunos compreendam que se trata de um tema de relevância coletiva e não individual. Sendo assim, se torna importante o envolvimento tanto dos profissionais da saúde, as instituições governamentais e de ensino, quanto pais e familiares em oferecer canais de comunicação que criem oportunidades de informações (Feijó, 2014). É neste sentido que as escolas são imprescindíveis neste processo de educação vacinal, assim como o currículo escolar necessita contemplar oportunidades de discussão acerca da temática.
Ao olharmos para o contexto escolar, no ensino de ciências e de biologia o livro didático é importante nos processos pedagógicos, como elemento norteador do planejamento, da preparação das aulas, além de ser um recurso amplamente utilizado por alunos e professores nas escolas brasileira (Rosa, Artuso, 2019). A utilização dos LD no espaço extraescolar, por meio da realização de tarefas, pesquisas ou atividades complementares às da sala de aula, além de fortalecer o trabalho do professor, se torna um recurso importante de pesquisa para os alunos e suas famílias (Rosa, Artuso, 2019).
Os livros didáticos encontram-se em processo de renovação desde 2022 na educação básica, consequência da reestruturação para o Novo Ensino Médio, especialmente por conta inclusão dos projetos integradores1 como componente do trabalho a ser desenvolvido na área de ciências da natureza e suas tecnologias, de modo a contemplar a interdisciplinaridade. Trata-se de uma nova estrutura proposta para o ensino médio em fase implantação, apesar das críticas acerca do favorecimento de uma formação profissional neoliberal em detrimento de uma formação para a cidadania (Selles, Oliveira, 2023). Ao considerar o contexto atual de pós-pandemia e vacinação, mudanças em curso no novo ensino médio e a importância do livro didático para a educação em ciências, nos questionarmos: como o tema vacinas vêm sendo proposto nos novos livros didáticos dos projetos integradores da área de ciências da natureza? Para tanto, o objetivo geral deste estudo é investigar como o tema vacinas é abordado nos livros didáticos de ciências da natureza do ensino médio, disponíveis online, no âmbito do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) 2021.
Ao considerar a importância dos conhecimentos sobre vacinas e da própria vacinação para o indivíduo e para a sociedade, o ensino sobre vacinas nas escolas se torna essencial. O assunto envolve a coletividade e, portanto, os alunos devem compreender que a recusa pode não só os afetar, como afetar familiares, amigos e desconhecidos, que por motivos adversos não puderam se vacinar. Feijó (2014) salienta que a imunização na adolescência representa um grande desafio em todos os níveis: individual, familiar e social. Os jovens precisam compreender, que o acontecimento de uma doença (por falta de imunização) pode impossibilitar uma atividade importante no curto prazo como festas, viagens e até acarretar situações mais graves (Feijó, 2014).
A educação vacinal é tema de discussão da educação em saúde que deve ser voltada para a formação cidadã com a finalidade de transformação social dos indivíduos envolvidos, como afirmam Venturi et al. (2022). Neste sentido, concordamos que a ES deve priorizar o desenvolvimento de conhecimentos capazes de ajudar os sujeitos a poder, e saber escolher, de forma livre as suas atitudes e comportamentos (Venturi, 2018).
Por este motivo, entendemos que o LD pode ser uma ferramenta que dê suporte às atividades do professor no ensino de biologia, especialmente acerca da temática vacinas. Assim, considerando as mudanças no ensino médio em decorrência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), faz-se importante analisar como este importante tema vem sendo abordado nos novos livros didáticos que estão disponíveis nas escolas. Na próxima seção esclarecemos os caminhos metodológicos desta investigação.
CAMINHOS DA PESQUISA
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, apresentando traços da pesquisa descritiva documental, caracterizando os LD como documentos analisados. Minayo (2010) assegura que a pesquisa qualitativa tem fundamento teórico, e permite descobrir processos sociais ainda pouco conhecidos em relação a grupos particulares, possibilita o desenvolvimento de novas abordagens, revisão e reformulação de novos conceitos e categorias durante a investigação, objetivando-se compreender, nesse estudo, o fenômeno educacional e curricular proposto pelos livros analisados.
A coleta de dados foi realizada por meio de fragmentos textuais e imagens de livros didáticos selecionados, que foram expostos à análise de conteúdo (Bardin, 2011) com critérios préestabelecidos. A análise de conteúdo foi utilizada, seguindo os princípios de análise temática, discutida por Minayo (2010). A análise temática se constitui ao descobrir os fundamentos de sentido que integram uma comunicação (Minayo, 2010). De forma atualizada, Bardin (2011) propõem que o conteúdo seja analisado por meio de três etapas que foram executadas neste estudo: a) pré-análise, na qual houve a exploração inicial do material, ou seja, foi realizada uma análise prévia dos materiais; b) análise e tratamento dos resultados obtidos, momento de análise detalhada e conforme critérios preestabelecidos; e c) interpretação dos resultados encontrados nos LD, quando refletimos sobre os conteúdos e abordagens acerca da temática vacinas.
A primeira etapa (prévia à análise de conteúdo) consistiu na seleção dos livros didáticos (LD) a serem analisados. Tendo em vista a mudança de LD do novo ensino médio por meio do PNLD 2021. As coleções foram disponibilizadas de forma integralmente online por meio do guia digital do PNLD 2021. De acordo com o guia, 11 coleções dos livros denominados projetos integradores do componente curricular de ciências da natureza e suas tecnologias foram fornecidos para as escolas, para que os professores pudessem escolher o material didático mais adequado à realidade da escola e dos estudantes. Portanto, foram selecionados estes 11 LD para análise (Tabela 1), totalizando os livros da área disponíveis no guia.
Título da coleção PNLD 2021 | Editora | Autores | Código2 |
---|---|---|---|
+Ação na escola e na comunidade | FTD | Tronolone (2020) | +AEC |
De olho no futuro | Ática | Mendonça (2020) | DOF |
Identidade em ação | Moderna | Lopes et al. (2020) | IA |
Moderna em projetos: ciências da natureza e suas tecnologias | Moderna | Carnevalle (2020) | MP |
Conhecer e transformar | Editora do Brasil | Artacho et al. (2020) | CT |
Integração e protagonismo | Editora do Brasil | Waldhelm et al. (2020) | IP |
Práticas na escola | Moderna | Bacich e Holanda (2020) | PE |
Vamos juntos profe! | Saraiva | São Pedro, Schechtmann e Mattos (2020) | VJP |
Jovem protagonista | SM | Souza et al. (2020) | JP |
Ser protagonista | SM | Bezerra (2020) | SP |
#Novo ensino médio | Scipione | Pugliese (2020) | #NEM |
Fonte: os autores, 2023.
Na segunda etapa, foi realizada uma leitura exploratória (já etapa da análise de conteúdo) para compreender inicialmente como a temática sobre vacinas aparecia nos LD. Na sequência, estabelecemos os critérios de análise, cuja construção foi baseada nos estudos de Lohmann e Venturi (2022). Após a leitura dos trabalhos, novas interpretações e reelaborações foram estabelecidas, como terceira etapa, para constituição prévia dos critérios a seguir:
a) local de inserção do conteúdo: verifica os tópicos em que o tema aparece e a quantidade de páginas associadas ao conteúdo;
b) linguagem utilizada no texto: analisa se o LD utiliza uma linguagem clara, objetiva, traz informações científicas coerentes e se o texto e as imagens se relacionam;
c) imagens: analisa a qualidade das imagens, se possui infográficos, esquemas, figuras, ilustrações e se estão em conexão com o texto;
d) conteúdos: analisa quais conteúdos são abordados como: contexto histórico, funcionamento biológico, relação com doenças, fabricação de vacinas, fake news, movimento antivacinas, vacinas e atuação profissional, dentre outros;
e) vacina e sociedade: analisa como as vacinas estão sendo apresentadas nos LD, buscando compreender se são estabelecidas relações com cotidiano, com a vivência e realidade social do aluno, bem como com as questões sociais envolvidas na vacinação;
f) tipos de atividades e exercícios do livro didático: essas atividades são contextualizadas e promovem reflexão acerca do tema para a vida dos indivíduos e os impactos para a sociedade como um todo. Existe estímulos ou propostas para o aluno estabelecer contato com a sua situação vacinal e de sua família, há alguma orientação que instigue a aproximação com a realidade local;
g) pesquisa em fontes confiáveis: analisa se o livro didático incentiva o uso de outros meios de busca sobre o tema vacinas, como: vídeos, artigos científicos, filmes, livros especializados, dentre outras fontes confiáveis de consulta;
h) orientações ao docente: analisa como as vacinas são apresentadas nessa categoria do livro do professor.
Na sequência apresentamos os resultados acompanhados de nossas análises, interpretações e discussões fundamentadas na literatura, decorrentes do desenho metodológico explicitado.
RESULTADOS, ANÁLISES E DISCUSSÕES
A análise dos resultados é exibida de acordo com os critérios indicados previamente, sobre os quais consolidamos um diálogo com outros autores, visando debater e desenvolver compreensões em razão dos objetivos deste estudo. Iniciamos esta análise apontando que a maioria dos livros, 9 entre 11, apresentaram o conteúdo sobre vacinas, em maior ou menor grau, sendo que apenas os livros PE e SP não abordaram o tema, o que é bastante preocupante, visto que se trata de um tema importante para a sociedade. Sintetizamos os resultados do critério inserção do conteúdo na Tabela 2, na qual se percebe que os livros tratam do tema em diversos projetos semelhantes, principalmente nos que abordam fake news. A partir desta perspectiva percebemos que os livros criaram sua própria teia de assuntos sobre o tema.
Coleção PNLD |
Código | Qtd. pág. | Localização - Projetos | Conteúdo Presente |
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+Ação na escola e na comunidade |
+AEC | 11 | 4 - Fake news: como identificá-las e combatê-las; | Fake news; movimento antivacinas; imunidade coletiva; orientações didáticas ao docente |
De olho no futuro | DOF | 18 | 3 - Saúde: Efeitos da (des)informação | Fake news; febre amarela; revolta da vacina; confiança na segurança das vacinas; campanha de conscientização; orientações didáticas ao docente |
Identidade em ação | IA | 27 | 3 - Saúde e aquecimento global: como as mídias informam ou desinformam |
Importância da eletricidade para a conservação de vacinas; Fake news; caminhos da pesquisa; revolta da vacina; história da vacina; autismo e vacinação; orientações didáticas ao docente |
Moderna em projetos: ciências da natureza e suas tecnologias | MP | 37 | 3 - Epidemias: desafio da saúde pública |
Boletim informativo; revolta da vacina; calendário de vacinação; doenças negligenciadas; coberturas vacinais; controle de epidemias; fake news orientações didáticas ao docente |
Conhecer e transformar | CT | 18 | 3 - A Comunicação científica na era da internet |
O movimento antivacinas; fake news; orientações didáticas ao docente |
Integração e protagonismo | IP | 5 | 3 - Como me vejo, como me veem: o corpo na mídia (trata como tema secundário) |
Fake news; orientações didáticas ao docente |
Práticas na escola | PE | 2 | Aparece nas habilidades da BNCC |
Não há conteúdos detalhados sobre as vacinas |
Vamos juntos profe! | VJP | 40 | 3 - Consequências das fake news sobre a saúde pública no Brasil | Fake news; revolta da vacina; funcionamento biológico no organismo; carteira de vacinação; programa nacional de imunização; campanhas de vacinação; fake news; orientações didáticas ao docente |
Coleção PNLD |
Código | Qtd. pág. | Localização - Projetos | Conteúdo Presente |
Jovem protagonista | JP | 23 | 3 - Mitos da ciência: Fake science Orientações didáticas ao docente |
Fake science; movimento antivacinas; orientações didáticas ao docente |
Ser protagonista | SP | 1 | Aparece nas habilidades da BNCC |
Não há conteúdos detalhados sobre as vacinas |
#Novo ensino médio |
#NEM | 8 | 3 - Quem escreveu tudo que está na internet? | Fake news |
6 - A tecnologia e seus Desafios Orientações didáticas ao docente |
Alumínio presente nas vacinas causa autismo; vacina tríplice viral não causa autismo Orientações didáticas ao docente |
Fonte: os autores, 2023.
O livro de projetos integradores de ciências da natureza irá compreender o desenvolvimento de projetos interdisciplinares das matérias de biologia, física e química, portanto, considerando uma situação complexa, nos indagamos como o tema será trabalhado, por quais professores e como será a interdisciplinaridade pretendida. Na Tabela 2 é possível perceber os conteúdos de cada livro e que muitos trabalham apenas sob a ótica de fake news, não abordando ou correlacionado outros conteúdos das disciplinas citadas anteriormente.
É relevante evidenciar que todos os livros analisados são manuais do professor, consequentemente, alguns critérios aqui analisados são pertencentes a assuntos específicos para professores, motivo pelo qual os alunos não têm acesso. O manual do professor é caracterizado por conter orientações didáticas ao docente, atividades complementares e relação do conteúdo com a BNCC.
No primeiro item verificamos o local de inserção do conteúdo, ou seja, onde o tema aparece e a quantidade de páginas associadas ao conteúdo. No entanto, os livros PE e SP não apresentaram o tema vacina nos seus conteúdos. Acerca da linguagem utilizada no texto, observamos uma variedade de fontes de informação científica, além do texto apresentar o conteúdo de forma atrativa utilizando imagens, infográficos, exercícios e textos escritos por outros autores, como textos de divulgação científica (DC), a exemplo do texto “Fake news agravam surtos de doenças no país”:
“Vacina contra sarampo causa autismo” é uma das mais de 400 fake news relacionados à saúde que circulam nas redes. O Brasil enfrenta uma epidemia de notícias falsas amplamente disseminadas nas redes sociais. [...] As fake news estão sendo apontadas pelo Ministério de Saúde como um dos motivos da queda dos números relacionados à imunização no país. De acordo com a coordenadora de mídias sociais do MS, Ana Miguel, 89% das notícias falsas ligadas à saúde atacam a credibilidade das vacinas. [...] (Carnevalle, 2020, p. 80.)
Ao analisar a qualidade das imagens, observamos que estas possuem um papel de protagonismo na construção e comunicação das ideias científicas, pois auxiliam na compreensão e aprendizagem dos conhecimentos, além de facilitar a compreensão, complementam as informações do texto, auxiliam de forma estética, permitem pausas para reflexões e discussões durante a leitura (Tomio et al., 2013). Os livros VJP e +AEC trouxeram os melhores desempenhos na questão de imagens, conforme Figura 1 que chama atenção para o PNI e Figura 2 que explica esquematicamente como ocorre a disseminação de doenças em grupos vacinados e não vacinados.
Em relação aos conteúdos tratados nos livros, foi possível observar que oito dos livros analisados trabalharam o tema vacinas por meio das fake news, utilizando o tema para detectar possíveis notícias falsas. Os conteúdos foram fake news, o contexto histórico das vacinas, o funcionamento biológico, e sobre a importância das campanhas de vacinação. Entretanto, VJP foi o único livro que abordou sobre o Programa Nacional de Imunização (PNI), um marco importante para o nosso país, já que é através dele que recebemos as vacinas de forma gratuita, assim como toda a parte logística de vacinação no país. O livro IA faz uma contextualização histórica sobre a origem da vacina e sobre os movimentos antivacinas que sempre se fizeram presentes, como observamos no trecho a seguir:
Origem da Vacina Moderna
O princípio da vacinação é apresentar para o corpo uma versão comparativamente inofensiva ou atenuada de um organismo que causa doenças perigosas, como vírus e bactérias, que chamamos de patógenos. A ideia já era aplicada há mais de 500 anos na China, onde restos de feridas de varíola eram secos ao sol. [...] Esse método foi aperfeiçoado por volta de 1780 pelo médico britânico Edward Jenner (1749-1823), que descobriu que o vírus da varíola de vacas causava uma infecção inofensiva em seres humanos, mas que os protegia da varíola humana. [...] Apesar da proteção contra uma das infecções que mais matou na história da humanidade, desde aquela época, a vacinação já causava protestos. (Lopes et al., 2020, p. 92.)
Ao analisar outros trabalhos disponíveis sobre o tema vacinas, encontramos o estudo de Soares e Marques (2018) que, de modo geral, notaram que todos os LD analisados contemplam o conteúdo vacinas, encontrado em capítulos pontuais; a vacinação é descrita como a principal ação preventiva destinada à população em geral. No trabalho de Abe (2020) constatou-se que os 12 livros didáticos analisados, destinados à disciplina de ciências do ensino médio, retratam a temática vacinação por meio de uma abordagem biológica como prevenção de doenças virais.
Diante das novas demandas da sociedade tecnológica, torna-se essencial relacionar temas que envolvam a sociedade, motivo pelo qual estruturamos o critério vacina e sociedade. De modo geral, todos os livros analisados tratam o tema vacinas com discussões que envolvem a sociedade e a utilização da internet, em especial a relação entre fakes news e movimentos antivacinas, como no exemplo da Figura 3.
É extremamente importante essa abordagem, pois os alunos podem compreender os impactos que acarretam para toda a sociedade, em temas que envolvem a coletividade. No entanto, poucos livros fizeram uma abordagem imunológica do tema, explicando como as vacinas funcionam no nosso organismo, tampouco abordaram a história da ciência e produção de vacinas, ou seja, o contexto histórico também ficou de lado em algumas obras. É indispensável os LD abordarem uma linha histórica sobre as vacinas, pois pode ser utilizado como instrumento informativo na prevenção de doenças que ocorreram e/ou ocorrem ao redor do mundo em diferentes momentos ao longo da existência da humanidade (Soares, Marques, 2018). Além de promover um processo de compreensão sobre como a ciência atua para a produção de novas vacinas, conforme discute Reiss (2022) em seu estudo ao afirmar que o tema da vacinação oferece uma ótima maneira de ajudar os alunos a compreenderem melhor os aspectos da natureza da ciência, como ela é realizada e o fato de que, embora confiável, é um conhecimento humano, que se encontra sempre aberto à revisão.
São motivos que nos conduzem à defesa de que as obras devem incentivar uma conexão e contextualização entre o saber científico e os conhecimentos prévios dos alunos, sendo que o professor precisa atuar como mediador reflexivo no processo de ensino e aprendizagem (Soares, Marques, 2018). Sendo assim, não houve muitas questões direcionadas para o contexto local em que os estudantes se encontram e poucas informações sobre o órgão responsável por disponibilizar vacinas para a população. Isto é importante, tendo em vista que essas informações podem fortalecer ações sociais em pessoas que estão em processo de formação, promovendo competências para o cuidado com a saúde do corpo (Soares, Marques, 2018).
Buscamos analisar como as vacinas estão sendo apresentadas nos LD e compreender se são estabelecidas relações com cotidiano, com a vivência e realidade social do aluno, bem como com as questões sociais envolvidas na vacinação. De forma geral, observamos que as obras IA, #NEM, JP, MP e CT expõem os riscos ocasionados pelas fake news em relação à não vacinação e os impactos decorrentes na sociedade. Destacamos que VJP, além dos riscos ocasionados pelas fake news em relação à não vacinação, trata também da importância do PNI para a saúde pública. Este livro também discute que o PNI é um programa de reconhecimento mundial. Já o livro DOF traz um contexto histórico nacional, com a revolta da vacina e sobre o surto de febre amarela que ocorreu em 2016, que desencadeou diversas fake news.
Para evitar esse processo de desinformação, os livros precisam apresentar um contexto histórico sobre o tema, para que os alunos assimilem a relevância do assunto para a saúde da população e para que doenças que já são consideradas erradicadas não tornem a aparecer (Soares, Marques, 2018). Quando comparamos nossos resultados aos resultados do trabalho de Abe (2020), encontramos grande diferença de abordagem: os 12 livros analisados por ela apresentam abordagem preventiva de doenças virais. No entanto, nos livros que analisamos, encontramos abordagem informativa que busca fazer reflexões principalmente relacionadas às fake news, o que consideramos avanços consideráveis à educação em saúde, geralmente biomédica (Venturi, Mohr, 2021). No entanto, a pesquisadora também encontrou temas como campanhas de vacinação, descoberta da vacina, revolta da vacina e campanhas antivacinas (Abe, 2020), além de conteúdos e temáticas também encontrados em nossos resultados.
No critério relacionado ao tipo de atividades sobre vacinas nos LD, analisamos se essas atividades são contextualizadas e promovem reflexão acerca do tema para a vida dos indivíduos e os impactos para a sociedade como um todo. Analisamos se existem estímulos ou propostas para o aluno estabelecer contato com a sua situação vacinal e de sua família e se há alguma orientação que instigue a aproximação com a realidade local. De certo modo, os livros trouxeram atividades de pesquisa, reflexivas, que englobavam a sociedade local e a realidade dos alunos, conforme ilustrase na Figura 4.
Torna-se essencial que os LD incentivem o uso de fontes confiáveis, tanto no seu corpo, como nas pesquisas sugeridas presentes nas atividades. Portanto, avaliamos se os LD incentivam a pesquisa em fontes confiáveis e verificamos que eles trazem esse incentivo, a exemplo da Figura 5. De modo geral, seis dos livros didáticos analisados incentivam a pesquisa além da sala de aula, trazendo sites, vídeo, atividades, artigos científicos, imagens, filmes. Assim, pode auxiliar com o processo de alfabetização científica e midiática dos indivíduos, colaborando para uma formação de cidadãos reflexivos e críticos, que possam lutar contra esse movimento negacionista e na recuperação da confiança do mundo baseada em fatos (Bartelmebs, Venturi, Souza, 2021).
Por fim, consideramos importante verificar se os livros auxiliavam os docentes por meio de orientações para que assim possam realizar as atividades, todos os livros trouxeram orientações ao docente para trabalhar o tema vacinas, como realizar as atividades, as pesquisas e incentivá-los a buscar outras fontes. Entretanto, todos os LD literalmente passam uma receita pronta para os professores seguirem, e isso pode resultar na utilização do LD como único material didático para guiar o trabalho em sala, e muitas vezes, esse material não compreende todos os conteúdos ou possui informações descontextualizadas, além de não apresentar conteúdos importantes sobre imunologia, como já destacamos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como mencionamos na introdução, nossas inquietações e indagações eram em relação a como o tema vacinas é proposto nos novos livros didáticos dos projetos integradores da área de ciências da natureza e suas tecnologias, no novo ensino médio. De maneira geral, a inserção do conteúdo vacinas foi efetivo, os livros utilizaram informações de fontes confiáveis, não havendo erros conceituais. A linguagem utilizada nos textos é bastante clara, objetiva e ilustrativa. Na maioria dos casos a pesquisa foi incentivada, principalmente no âmbito das fake news, algo que possui extrema relevância no contexto atual, quando lidamos com notícias falsas, inclusive sobre vacinas, devido à pandemia e ao aumento na utilização de tecnologias de informação. Os livros apresentaram informações científicas coerentes o que pode auxiliar no processo de alfabetização científica e educação vacinal.
Em dois livros não houve qualquer assunto relacionado às vacinas, estando presente apenas nas habilidades da BNCC, que são apresentadas no início do livro. Entretanto, as abordagens presentes nos demais livros foram interessantes, contextualizadas e interdisciplinares, objetivando que os alunos compreendessem e refletissem sobre o tema proposto.
Apenas dois livros tratam sobre o funcionamento biológico das vacinas, um tema de extrema relevância. Precisamos compreender que o que mais causa receio na população é justamente não compreender a fabricação e o modo de ação das vacinas em termos imunológicos. Portanto, este conteúdo deveria ser o pilar da abordagem em todas as obras didáticas.
Outro ponto a destacar é que apenas um livro apresentou o PNI, um programa que disponibiliza as campanhas de vacinação e organiza todas as estratégias de vacinação, ou seja, tratase de uma política pública importante. A carteira de vacinação foi apresentada em apenas dois livros, sendo um resultado que consideramos alarmante, pois muitos alunos nem sabem sobre sua existência e muito menos se estão em dia com as vacinas.
As imagens quando presentes estão sempre em relação com o texto que as acompanha, sendo bastante utilizadas para repostar as questões de fake news, apresentar campanhas de vacinação, gráficos sobre a situação de determinadas doenças. Geralmente, as imagens possuem fonte, bem como os fragmentos de artigos científicos, matérias de jornais e revistas também; a maioria dos LD além de apresentar as fontes de onde foram retirados os conteúdos, disponibilizou fontes adicionais de pesquisa, como: filmes, artigos científicos, matérias de jornais e revistas e sites de órgãos públicos.
O tema foi bastante relacionado com a sociedade, tendo em vista as fakes news, que ganharam destaque na abordagem dos livros, visto que acarretam problemas coletivos e que precisam ser trabalhados e desenvolvidos em prol de um processo de alfabetização científica e midiática (Venturi et al., 2022), além de permitirem a contextualização com assuntos acessados em seu cotidiano. Alguns livros estimulam maior interação entre estudantes e família, incentivando que os alunos conheçam a própria situação vacinal, como também de sua família, criando uma relação com o cotidiano e com o local onde vivem e interatuam os alunos.
Em se tratando de abordagem de educação em saúde (ES), de modo geral, podemos observar potencialidades para uma abordagem sob uma perspectiva pedagógica, pois buscam a promoção do conhecimento por meio da pesquisa, da reflexão e do desenvolvimento do pensamento autônomo, visando à construção de conhecimentos sobre saúde (Venturi, 2018). Perspectiva que contribui para a formação cidadã, para que assim haja uma transformação social dos indivíduos envolvidos no processo, lembrando que a ES deve ser capaz de ajudar os indivíduos em suas escolhas, de modo responsável, esclarecida e justa acerca de suas atitudes e comportamentos que impactam na saúde coletiva (Venturi, 2018), além de compreender as consequências para a sociedade. No entanto, não se pode abdicar do conhecimento científico acerca dos processos biológicos e de funcionamento das vacinas, como fazem alguns livros.
Desenvolver o conteúdo dessa maneira contribui para o processo de alfabetização científica, pois auxilia na formação para a cidadania por meio do entendimento da realidade social, possibilitando a atuação na sociedade (Mohr et al., 2019). Consequentemente, os alunos poderão perceber que os variados temas estão entrelaçados com a realidade e que se modificam por meio dela, além de compreenderem os conceitos biológicos, de modo que eles estejam habilitados (ou formados) para utilizar estes conhecimentos no seu cotidiano, inclusive em interação com mídias e tecnologias digitais.
Deste modo, acreditamos que algumas adequações poderiam ser repensadas, como a inserção de conteúdos imunológicos, o PNI, a carteira de vacinação, a fabricação desses imunizantes e suas relações com a produção do conhecimento científico. Tudo isso para o esclarecimento de questões que podem gerar dificuldades no futuro. Não significa criticar a educação científica proposta pelos autores dos LD, mas indicar subsídios para aprimorar e enriquecer o ensino de ciências, em especial a educação sobre vacinas nas escolas. Ademais, consideramos importante destacar a forma coerente como se apresentam os conteúdos em VJP, MP e IA, que se mostram excelentes obras em que pese a temática envolvendo as vacinas, pois demonstram-se completas e contextualizadas. Já os livros SP e PE, pensando-se em uma educação vacinal, devem ser rejeitados pelos docentes, haja vista deficiências quando o conteúdo/temática é a vacina.
Por fim, entendemos o complexo processo nos bastidores da elaboração e distribuição dos livros didáticos do PNLD e que estes não prescindem do seguimento de critérios preestabelecidos em edital - que talvez devessem ser revistos. No entanto, esperamos com este estudo encorajar autores e professores a repensarem a importância de uma educação sobre vacinas, ou educação vacinal. Sabemos que esta não deve presumir que simplesmente ensinar mais conteúdos científicos sobre vacinas fará com que as pessoas as aceitem com maior facilidade, adotando comportamentos pró-vacinas (Venturi, Mohr, 2021).
Entretanto, precisamos reconhecer que há evidências de que conhecimentos sobre a natureza da ciência e uma visão mais madura de como mitigar divergências científicas estão relacionadas positivamente com a aceitação de temas polêmicos e controversos como evolução, mudanças climáticas e vacinas (Wesiberg et al., 2021). Portanto, a pesquisa em educação em ciências nos permite esperançar dias melhores e, para tanto, necessitamos de valorização da educação, da formação de professores, da elaboração de materiais didáticos e da autonomia docente, rejeitadas nos últimos anos juntamente com a pesquisa científica nacional.