Introdução
Durante as últimas duas décadas, um grande progresso foi feito para responder à questão sobre que grupos têm seu conhecimento socialmente legitimado nas escolas. (APPLE, 1997)
A racionalidade técnica está ligada aos princípios de controle e certeza. Seu interesse constitutivo de conhecimento reside em “controlar o mundo ambiental objetificado. (APPLE, apud GIROUX, 1986)
Essa percepção (em perspectiva pós-fundacional) permite reconhecer que o enfraquecimento do potencial político do significante “conhecimento escolar” não é apanágio das perspectivas essencialistas. Outros caminhos teóricos e/ou paradigmáticos que priorizam nos debates internos do campo do currículo as questões culturais o fixam intencionalmente no lugar da subalternidade. (GABRIEL et al., 2013)
As epígrafes escolhidas para abrir o texto são ilustrativas da provocação apresentada em seu título e traduz, em alguma medida, as reflexões mobilizadas no artigo. A proposta é problematizar, à luz das discussões nucleares desde a constituição do campo do currículo, questões relativas ao conhecimento, mais pontualmente, ao seu valor e funções nos processos de escolarização e formação humana. A escolha desses dois elementos levou em conta os diferentes sentidos assumidos no pensamento de pesquisadores em suas perspectivas teóricas.
Com esse pressuposto, apresentamos um conjunto de argumentos para reafirmar que cada perspectiva teórica mobilizada no campo do currículo, ao assumir conceitos distintos para conhecimento escolar, vai marcando neles determinadas potências em termos de atribuição de valor e funções e que essas marcações impactam tanto os movimentos internos da produção teórica do campo, como as formulações da política curricular e os contextos da prática.
Iniciamos a discussão com algumas questões clássicas e amplamente conhecidas no campo curricular, seja pela relevância do conteúdo, pela força teórica dos autores de sua criação ou pelo poder traduzido no tratamento teórico do problema do conhecimento escolar. São perguntas que se colocam desde a segunda metade do século XX, mobilizadoras de significativa parcela das discussões e da produção no campo do currículo. Elas tratam do problema do conhecimento, com a adjetivação escolar, em pelo menos quatro distintas perspectivas: da seleção do que conta como conhecimento; sobre quem define o que conta como conhecimento; o que constitui conhecimento e, ainda, sobre a potência do conhecimento nos percursos da formação humana. Como esse mote, apresentamos brevemente os contextos de emergência de tais questões e, na sequência, exploramos como valor e funções do conhecimento são entendidos pelas lentes de distintas perspectivas teóricas.
Contextos do debate curricular: clássicas questões sobre conhecimento escolar
Dentre as perguntas nucleares reiteradamente colocadas no debate do campo dos estudos curriculares, uma das mais intrigantes foi formulada ainda no final do século XIX, por Herbert Spencer (1820-1903) na obra Education intellectual, moral and phisical (1859), com um capítulo dedicado a discussão sobre ela, qual seja “qual é o conhecimento valioso?”. Em resposta, Herbert afirmou ser a ciência o conhecimento mais importante. Para reforçar tal entendimento defendeu que as atividades relativas aos aspectos periféricos da vida devem também ocupar um lugar secundário no currículo e aquelas atividades mais importantes na vida, devem ter o lugar mais importante em um curso de estudos.
Outra questão nuclear, uma espécie de reconstrução ou desdobramento da pergunta spenceriana, foi formulada mais recentemente por Apple (1982), em Ideologia e currículo e tratada também em outras obras suas. Apple pergunta, discute e defende o que considera tão ou mais importantes do que a análise sobre qual é o conhecimento socialmente mais valioso. Problematiza indagando de quem é o conhecimento mais valioso e, ainda, por que determinados conhecimentos são mais importantes que outros. Aliás, essa é a problematização central dos estudos da chamada Sociologia do Conhecimento no contexto da Nova Sociologia da Educação.
Uma terceira questão foi formulada e tratada por Michael Young com maior ênfase nas obras “O currículo do futuro, da nova sociologia da educação a uma teoria crítica do aprendizado” (2000) e “Conhecimento e currículo, do socioconstrutivismo ao realismo social na sociologia da educação” (2010). Nestes textos, Young retoma as perguntas de Spencer e Apple para colocar outras também nucleares, além de desenvolver e defender o conceito de conhecimento poderoso. Suas questões basilares são: quem e o que legitima o conhecimento? Quais os critérios para determinar o que constitui conhecimento? Assim como os demais, ele também responde, ao afirmar como conhecimento poderoso o especializado.
A essas clássicas indagações, agregamos outra formulada e defendida por pesquisadores das denominadas abordagens de recorte pós que, assim como as anteriores, vem provocando intenso debate e significativa produção científica. Como síntese, pode ser formulada nos seguintes termos: não seria o conhecimento escolar um objeto incontornável, um significante mobilizado e fixado como sentido de verdade no conjunto das lutas e estratégias discursivas?
Sobre este aspecto, Gabriel e outros (2013), ancorados em perspectiva teórica pós-fundacional, colocam o problema da definição do conhecimento afirmando que, em tempos de crise das instituições escolares, o desafio político consiste também no posicionamento teórico em relação às lutas hegemônicas pela significação de termos, como o de conhecimento escolar, na medida que são desestabilizados e recolocados no jogo político da definição.
O que nos parece radicalmente diferente e potente na postura teórica aqui defendida é que, ao contrário das perspectivas essencialistas, ela reconhece que não existem termos cujos significados tenham sido previamente fixados, pois compreende que as fixações de sentidos são resultantes de operações hegemônicas e acontecem em meio às permanentes lutas por significação. (GABRIEL et al., 2013, p. 88)
Gravitando em torno destas complexas e potentes questões que exploram valor e funções do conhecimento escolar como objetos de compreensão e/ou significação e que continuam mobilizando considerável parte da produção teórica desde a segunda metade do século XX, várias outras também têm sido objeto de discussão e aprofundamento por pesquisadores do campo.
Desde a efervescência do debate feito no contexto da chamada Nova Sociologia da Educação, conforme já referido, significativa parcela de questões emergiu, dentre as quais: i) a cruzada pela reconceitualização do campo, incluindo seus objetos e perspectivas teóricas de investigação (PINAR, 1999); ii) as questões do chamado currículo oculto e seus vínculos com o conceito de ideologia (APPLE, 1982; SANTOMÉ, 1991); iii) as discussões relacionadas com a chamada transposição didática e as disputas pela compreensão sobre as diferenças entre conhecimento científico e conhecimento escolar (CHEVALLARD, 1991); iv) os debates e formulações envolvendo a problemática das disciplinas escolares (GOODSON, 1995; 1997); v) os aspectos relacionados com produção, organização e distribuição do conhecimento envolvendo as categorias classe e poder (APPLE, 1982; 2008), além de várias outras.
Outro conjunto de questões envolvendo a problemática do valor e funções do conhecimento escolar têm emergido em contextos de discussão e produção curricular especialmente em zonas de confronto entre perspectivas consideradas conservadoras e neoconservadoras e as chamadas teorias críticas.
Favorecidas no pós Guerra Fria, pelo fortalecimento dos novos arranjos econômicos e sociais decorrentes do binômio regionalização-globalização, as forças neoconservadoras (APPLE, 2008), representadas predominantemente pelos organismos multilaterais, pelo estado quase-mercado, pelas novas redes de governança transnacionais (DALE, 2004; 2008; 2010; BALL, 2014) e pelos empresários da educação (FREITAS, 2012) e retomando princípios da tradição conservadora, passam a formular outras perguntas para o problema do valor e funções do conhecimento, com o propósito de afirmar/fixar o que ele deve ser, quem deve defini-lo como importante e o que ele deve conter. Nesse âmbito, aparece com força perguntas como: pode o conhecimento ser reconhecido como relevante sem que se converta, ele mesmo, em produto? O conhecimento tem valor em si, ou somente quando gera habilidade, capacidade ou competência para fazer algo?
Para Pacheco (2006), essas perguntas estão colocadas num contexto que inclui concepções conservadoras e neoconservadoras. Nelas o currículo é instrucional e legitimado pelos que partilham uma concepção de conhecimento como algo a ser transmitido, estando devidamente organizado num plano, curso ou programa, com a valorização da experiência de submissão de sujeitos às regras de uma disciplina escolar, de forma a torná-los o tipo de pessoas que se espera.
Enquadram-se, nessa perspectiva curricular, os defensores da escola centrada nos conteúdos, nas experiências dos estudantes, nos processos cognitivos de aprendizagem e nas necessidades da economia. Trata-se do currículo no sentido do desenvolvimento curricular, cuja construção começa com Franklin Bobbit (1876-1956) com a enunciação dos objetivos, segue mais tarde com Benjamin S. Bloom (1913-1999) com a tradução dos objetivos em taxonomias e persiste com Ralph Tyler (1902-1994) e Gerome Bruner (1915-2016) por meio da teoria de instrução, expressando-se hoje, com a noção de competência (PACHECO, 2006).
Contextualizadas as questões enunciadas como pano de fundo para pensar sobre valor e funções do conhecimento como pauta nuclear do campo desde sua constituição, passamos, na sequência, a apresentar e discutir marcações mobilizadas, impressas ou fixadas ao longo da história do campo curricular, pelas diferentes perspectivas teóricas. Nas amarrações finais do texto, reafirmamos como o conceito de conhecimento escolar, considerados os deslocamentos conceituais que os pesquisadores atribuem a ele em termos de valor e funções, vem sendo traduzido e mobilizado nos currículos em contextos escolares.
Valor e funções do conhecimento escolar: diferentes marcações em distintas perspectivas teóricas
Pacheco (2006) nos ajuda a olhar o movimento produzido por distintas concepções teóricas visando conformar, fixar e inclusive hegemonizar determinados valores e funções para o conhecimento escolar. Segundo ele, o conhecimento define e caracteriza o percurso constitutivo do currículo escolar. Desde a interrogação clássica de Spencer - qual é o conhecimento mais valioso? até aos dias de hoje, o conhecimento está em discussão, mais ainda quando os resultados escolares não correspondem às expectativas sociais, originando uma tensão entre defensores de perspectivas diferentes, ora centrados nos conteúdos e nos resultados, ora centrados na pessoa e sociedade/cultura.
Sobre este aspecto, Pacheco fornece uma pista interessante dentre várias outras possíveis para pensarmos os pontos de inflexão a partir dos quais cada perspectiva vai imprimindo distinta valoração e finalidade para o conhecimento escolar. Seguindo sua trilha, podemos afirmar que os desvios, curvas ou inclinações de perspectiva conceitual podem ter origem nos pontos que ele mesmo arrola, ou seja, na ênfase que cada concepção atribui como valor e funções para aspectos tais como conteúdos, resultados, sujeitos ou sociedade/cultura.
Nesse mesmo horizonte e na busca por interpretar as razões das diferenças de perspectiva entre distintas matrizes teóricas para este objeto, consideramos interessante incluir a valoração de outros marcos de referência, cujas raízes encontram seus fundamentos em bases de natureza epistêmica, ideológica, pedagógica e política, assumidas e defendidas por distintas escolas teóricas ao longo de seus percursos. Vejamos, então, como valor e funções do conhecimento escolar foram e seguem sendo mobilizados, fixados ou significados em cada uma das mais conhecidas abordagens.
Sentidos atribuídos para conhecimento escolar em perspectivas de corte liberal
Correntes liberais com tradição conservadora e neoconservadora como perspectivas teóricas que mobilizam o campo dos estudos curriculares, atribuem valor ao conhecimento escolar essencialmente como conteúdos de reconstrução das experiências dos sujeitos, como matérias resultantes da transposição do conhecimento científico, técnico e moral e ainda, como ferramenta técnica e instrumental de aquisição de habilidades, capacidades e competências. Desde as primeiras formulações de autores que se destacaram na constituição do campo dos estudos curriculares como: Flanklin Bobbitt (1876-1956), Ralph Tyler, John Dewey (1859-1952), William Kilpatrick (1871-1965), Harold Rugg (1886-1960), Hilda Taba (1902-1967), R. Fleiming (1924-2017), William Burk Ragan (1896-1973), Edward August Krug (1911-1979), Lady Lina Traldi e outros - estes pontos foram sendo bem marcados.
Traldi (1977), na discussão que faz sobre mudanças no enfoque do currículo e tomando como base autores citados anteriormente, destaca aspectos sobre como o pensamento hegemônico entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, imprimia concepções de currículo e consequentemente valor e funções em relação ao conhecimento escolar. Dentre outros pontos, elenca:
[...] a matéria é o núcleo substantivo do currículo (p.16); [...] não aquilo que o indivíduo aprendeu, mas o que ele é capaz de fazer como conseqüência do que aprendeu (TRALDI, 1977, p. 18); [...] é uma sucessão de experiências escolares adequadas a produzir, de forma satisfatória, a contínua reconstrução da experiência; [...] o aprender fazendo (TRALDI, 1977, p. 32-33); aquele conjunto ou série de coisas que as crianças e os jovens devem experimentar a fim de desenvolver habilidades que o capacitem a decidir assuntos da vida adulta (TRALDI, 1977, p. 34); experiências por meio das quais as crianças atingem auto-realização, ao mesmo tempo em que aprendem a contribuir para a construção de melhores comunidades e uma América melhor para o futuro (TRALDI, 1977, p. 36); [...] são conceitos, habilidades e valores (TRALDI, 1977, p. 43).
A produção científica sobre currículo filiada às concepções dessas matrizes é caracterizada por duas fases. Na primeira, prevaleceu a perspectiva liberal conservadora (MCLAREN, 1977) que se mostrou hegemônica desde o início do século XX até o final dos anos 1960, quando foram intensificados os estudos sobre currículo a partir de bases do racionalismo científico, técnico e da eficiência social. Nela, o conhecimento escolar tinha como finalidade precípua melhorar a qualidade intelectual do comportamento humano e “contribuir para uma sociedade melhor” (TRALDI, 1977, p. 16). Ou como definiu Bobbitt, (2004, p. 43) “os fatos científicos, princípios e hábitos da mente, adquiridos satisfatoriamente, serão úteis para justificar o ensino de um ponto de vista puramente utilitário”.
A segunda fase, mais evidente a partir dos anos 1970, denominada por Apple (2008) de neoconservadora, é marcada, sem interrupção da primeira, especialmente por contextos políticos, tais como ascensão dos regimes autoritários nos países considerados periféricos, queda do muro de Berlim, globalização econômica, etc. Nessa fase, o movimento é pela hegemonização de uma concepção de currículo que mantém o foco na racionalidade técnica e científica, incluindo-se, entretanto, outras demandas como a busca por altas performances em termos de resultados escolares e alcance mínimo de padrões impostos externamente, seja pelo Estado ou por organismos internacionais.
Nesse contexto, o valor do conhecimento escolar está marcada-mente relacionado com aquisição de competências e habilidades em diferentes áreas da atividade humana, constituindo-se em ferramenta de preparação e qualificação dos indivíduos para acesso e atuação no mercado de trabalho, numa sociedade produtiva e tecnológica cuja referência maior é a liberdade competitiva. Nesse ambiente, o conhecimento em si torna-se pouco relevante se comparado ao conhecimento para fazer algo (MACEDO, 2016).
Sentidos atribuídos para o conhecimento escolar em perspectivas críticas
O desenvolvimento da corrente de estudos curriculares de tradição crítica, por sua vez, em contraposição ao empirismo e ao pragmatismo, orientada pelo pensamento progressista e/ou marxista, mobilizou o campo dos estudos curriculares na perspectiva de pensar o papel da educação na reprodução e transformação social. Tem se caracterizado por discutir as relações entre o currículo e as esferas econômica, política e ideológica da sociedade e atribuir valor ao conhecimento escolar para além de um conjunto ordenado de matérias resultantes do conhecimento científico e técnico. Nesse âmbito, o currículo é visto como espaço de defesa e luta no campo cultural e social. São representantes desta perspectiva, pesquisadores como Michael Apple, Michael Young e Henry A. Giroux, para citar alguns.
Michael Apple, por exemplo, tem como principal objeto de suas investigações a relação entre cultura e poder na educação. Com base nos elementos centrais da crítica marxista da sociedade elege como pressuposto de suas análises a relação entre economia, educação, ideologia e cultura e defende a existência de assimetrias entre modos como se organizam a economia e o currículo. Para ele “é a tensão entre a distribuição e a produção que determina parcialmente algumas das formas através das quais as escolas actuam para legitimar a distribuição económica e cultural existente” (APPLE, 1999, p. 11; 1982).
Com a finalidade de “explorar como a distribuição cultural e o poder econômico estão intimamente entrelaçados” (APPLE, 1982, p. 56), esse autor volta sua atenção para a discussão de temas tais como a relação entre Estado, escola e currículo, resistências e oposições que permeiam a prática escolar, o papel da cultura na definição dos saberes escolares válidos e na forma como esses contribuem para mudar ou reproduzir contextos sociais e a influência de raça, gênero e classe social, nas possibilidades de libertação ou discriminação presentes nos currículos escolares.
Na perspectiva de M. Apple, o valor do conhecimento escolar está inextricavelmente vinculado aos interesses particulares das classes e grupos dominantes, os quais se autorizam, pelo lugar social que ocupam, a prescrever quais conhecimentos são relevantes para o currículo. É, pois, nesse âmbito que se colocam as questões centrais de sua investigação, dentre as quais: qual conhecimento é considerado verdadeiro, ou seja, por que esse conhecimento e não outro? E ainda, quem define o que conta como conhecimento?
Pelas lentes dessa perspectiva, o currículo não pode ser compreendido e transformado sem que se considerem suas conexões com outros contextos onde operam dinâmicas relações de poder. Nesse sentido, valor e função do conhecimento escolar são delimitados mais por aspectos éticos e políticos e menos pelas formas de sua operacionalização. O potencial do conhecimento é relativo ao que ele representa em termos de (re)posicionamento dos sujeitos e dos coletivos nos contextos social, político e cultural.
Michael Young, outro expoente da perspectiva crítica, desde os anos 1970, dedica significativa parcela de suas investigações à questão do conhecimento escolar. Atualmente sua atenção tem se voltado na direção de firmar uma posição contrária à defesa de um currículo por resultados, instrumental e utilitarista, ressaltando insistentemente a necessidade de as escolas garantirem aos estudantes o acesso ao conhecimento especializado fornecendo parâmetros de compreensão de mundo, tarefa que ele define como sendo especificidade da escola.
Com base no questionamento, qual é o conhecimento mais importante a ser ensinado nas escolas?, Young (2011) argumenta que as recentes reformas de currículo estão levando a uma redução ou mesmo a um esvaziamento do conteúdo, especialmente para aqueles que já não estão tendo sucesso na escola, o que representa o perigo de se negligenciar a finalidade mais fundamental da educação escolar. Propõe, então, como postura radical, o desenvolvimento de uma abordagem curricular baseada no conhecimento e na disciplina e não baseada no aprendiz, como presume a ortodoxia atual na perspectiva de um currículo baseado em engajamento1.
Defende que enquanto os campos do conhecimento são a base sobre a qual desenvolvemos novos conhecimentos, as disciplinas são a base sobre a qual transmitimos conhecimento para as próximas gerações. Portanto, as disciplinas escolares são sempre contextualizadas a partir dos campos do conhecimento e, com suas fronteiras para separar aspectos do mundo que foram testados ao longo do tempo, “não só oferecem a base para analisar e fazer perguntas sobre o mundo, como também oferecem aos estudantes uma base social para um novo conjunto de identidades como aprendizes” (YOUNG, 2011, p. 617).
Colocando-se em defesa do conhecimento especializado e disciplinar, o pesquisador argumenta que é o mais próximo que se chegou até agora na tentativa de explicar o mundo natural e social. Ao adquirirem conhecimentos das disciplinas os estudantes estariam ingressando “naquelas comunidades de especialistas, cada uma com suas diferentes histórias, tradições e modos de trabalhar” (YOUNG, 2011, p. 617). Afirma ainda que o que a sociedade faz com o conhecimento não responde apenas a questões de ideologia e interesses, mas também as de objetividade e fidedignidade características que são próprias do conhecimento.
Defende que a função específica da educação é a promoção do desenvolvimento intelectual dos estudantes (YOUNG, 2011), sendo esta também a finalidade do conhecimento escolar e, por extensão, do currículo. Logo, as perguntas principais ao se pensar e ao se definir o currículo escolar, são: o que deve ser ensinado às crianças e aos jovens na escola? Qual conhecimento é o mais relevante? Em resposta a estas perguntas defende e apresenta o que denomina de conhecimento poderoso como sendo o conhecimento especializado.
Na perspectiva desse autor, a finalidade do currículo é a seleção do conhecimento poderoso, ou seja, aquele que permite aos alunos compreenderem o mundo em que vivem. O valor do conhecimento escolar selecionado no currículo reside na possibilidade de conduzir as crianças e os jovens (ao menos intelectualmente) para além de suas circunstâncias locais e particulares. “Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixá-los sempre na mesma condição” (YOUNG, 2007, p. 1297).
Nas suas análises, Young apresenta duas premissas básicas de um currículo que incorpore o conhecimento poderoso. A primeira é que ele esteja concentrado no conhecimento que os jovens não têm acesso em casa. No conhecimento distinto da experiência pessoal deles e, essencialmente, naquele que possa desafiar essa experiência. A segunda define como centralidade do currículo escolar o conhecimento especializado, oriundo dos campos do conhecimento ou das disciplinas. Assim, o valor e as funções do conhecimento escolar estariam delimitados por essas duas premissas básicas que respondem às perguntas: qual o papel da escola e do currículo? e qual conhecimento deve compor os currículos e ser ensinados nas escolas?
Tal como Apple e Young, na fase inicial de sua produção, H. Giroux centrou-se na crítica às perspectivas empíricas e técnicas da educação e do currículo. Em sua análise considera que tais perspectivas, ao tomarem como centralidade os critérios de eficiência e racionalidade burocrática, secundarizam propositalmente dimensões históricas, éticas e políticas da vida social, opções que repercutem diretamente na construção do currículo e nas escolhas em relação ao conhecimento. É, sobretudo, no conceito de resistência que Giroux vai buscar as bases para desenvolver sua teorização sobre currículo na defesa da escola como lugar de “contestação e luta; […] lugar de conhecimento que emancipa; […] lugar de possibilidades; […] é, portanto, espaço para o desenvolvimento de pedagogias radicais” (1986, p. 156).
Giroux (1986) adverte sobre a tarefa de os professores analisarem o conhecimento escolar como parte de um universo maior de conhecimento e tentar determinar em que grau ele reflete interesses de classe e desvelar os princípios ideológicos imbricados na estrutura do conhecimento de sala de aula. Para ele, conhecimento constitui pré-condição para toda a liberdade de pensamento, ou seja, no espaço mental e na reflexão residem as possibilidades de ver além dos constructos arbitrários de uma sociedade. Em termos gerais o autor afirma o conhecimento escolar, em seu valor e funções, na medida de seu poder em auxiliar os estudantes a desenvolverem consciência crítica e política.
Nos desdobramentos posteriores de seu trabalho, especialmente quando se dedica a discutir o currículo como política cultural, H. Giroux segue acentuando o valor do conhecimento tanto como possibilidade de converter-se em crítica social conectada às relações de poder, como em linguagem que reconheça a legitimação de formas mais subjetivas da vida social. Ou seja, como um discurso que considere as particularidades sociais e históricas constitutivas das formas e limites culturais que dão significado a vida dos estudantes e outros aprendizes.
Sem dúvida, pela ótica da perspectiva crítica, a potência do conhecimento escolar é explorada com forte intensidade teórica. Em evidente contraposição às racionalidades técnicas e instrumentais, esta abordagem assume a responsabilidade epistêmica e política de aprofundamento do conceito sem descuidar-se de revelar suas conexões com outros setores da sociedade, da cultura e da vida, incluídas as contradições históricas.
Sentidos atribuídos para conhecimento escolar em perspectivas de corte pós-estrutural
Pelas lentes das abordagens de recorte pós, nomeadamente as pós-estruturalistas e pós-fundacionais, a problemática da significação de valor e funções para conhecimento escolar é compreendida em perspectivas notadamente distintas das demais concepções. Nesse âmbito, as questões colocadas por seus pesquisadores mobilizam-se em favor da desestabilização e desconstrução de referenciais que até então vêm fundamentando conceitos como verdade, ciência, conhecimento, currículo e inclusive conhecimento escolar - formulações caras às clássicas teorias estruturalistas essencialistas.
Para Lopes (2013), se são questionadas as noções de verdade e de certeza, a própria noção de conhecimento a ser ensinado é questionada e os embates em torno do que ensinar na escola assumem outros contornos. São cada vez mais explicitados os conflitos relacionados com o que se entende por conhecimento, pois esse passa a ser compreendido como resultado de lutas por significação, em processos discursivos não estáveis.
O movimento de desconstrução dos referenciais considerados clássicos no campo do currículo pode ser traduzido pelo entendimento do que compõe, em termos teóricos, a formulação de um emergente e consistente repertório, cuja inspiração encontra potência nas tessituras da chamada virada linguística, no âmbito da filosofia (RORTY, 1980; HABERMAS, 2002) e nos trabalhos de reconhecidos nomes como Michel Foucault, Jacques Derrida, Félix Guatarri, Stuart Hall, Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Norman Fairclough, além de vários outros.
Nesse contexto, estão (re)colocadas as grandes questões que envolvem a problemática do conhecimento, pautadas desde as filosofias mais clássicas que atravessaram toda a modernidade, mas que agora são tratadas com outras lentes epistemológicas.
No que se refere mais diretamente ao problema do conhecimento escolar em termos de valor e funções, alguns pontos parecem bem marcados por estas perspectivas, especialmente por autores mais ligados aos problemas relacionados com currículo e políticas educacionais. Na tentativa de uma síntese possível, reunimos seus principais pontos de defesa em alguns pontos explorados a seguir.
É corrente em trabalhos com abordagens de recorte pós, a afirmação de recusa da existência de “um conhecimento prévio, o qual esteja em algum lugar do universo pronto para ser capturado e aplicado como verdade” (LATHER, 1993 p. 680). Na teoria do discurso, por exemplo, representantes como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe rejeitam a possibilidade de qualquer fechamento de sentido social ou racionalidade fixada sobre bases de uma verdade indiscutível ou como conteúdo universal a ser conhecido. Nesse sentido, qualquer valor ou função atribuído para conhecimento escolar limita-se a precariedade, provisoriedade e incompletude de sua própria formulação discursiva.
Por esta mesma ótica, é possível pensar o conhecimento escolar “como um objeto incontornável como é qualquer outro conceito” (GABRIEL et al.; 2013) e, portanto, pensá-lo sem as amarras dos fixados estatutos da universalidade, da objetividade, da validade, da neutralidade e da classificação por importância e função. É deslocá-lo de fronteiras abrindo outras possibilidades de significação sempre provisórias e contingentes. É entender a produção do conceito ou sua definição como parte das lutas sociais e históricas por hegemonização de determinados sentidos em meio aos jogos e estratégias de linguagem.
São argumentos que convidam a pensar o valor de um determinado conhecimento escolar como constitutivo do próprio movimento por sua fixação, produzido por sucessivas tentativas de hegemonização de sentido e traduzindo-se como verdade. Esta alternativa de fechamento de sentido permite compreender o valor de um conteúdo de conhecimento escolar como relativo ao seu poder provisório e contingente de manter-se como importante.
Outro ponto de defesa tomado notadamente pelas abordagens de recorte pós, é que o conhecimento escolar, como qualquer outro conceito, constitui significante vazio preenchido como discurso e conectado às estratégias de poder (LACLAU, 1996). A ideia de significante vazio tratada especialmente por Laclau (1996, 2000), é mobilizada em diferentes trabalhos de pesquisadores do campo do currículo, tanto para desestabilizar conceitos e definições estruturalistas essencialistas como para afirmar que um conteúdo de conhecimento é sempre uma tentativa de preenchimento de sentido particular por cortes ou fechamentos que impedem o fluxo para outras possibilidades de significação. São estratégias discursivas mobilizadas no âmbito dos interesses de poder, para completar ou preencher, com certo sentido, um conteúdo inexistente - vazio.
Amarrações finais
Para fechamento do texto a questão lançada em seu título: estará morto o conhecimento poderoso? é retomada para explorarmos possíveis traduções e mobilizações em contextos de escola, especialmente as relacionadas com atribuição de valor e funções para o conhecimento escolar, consideradas as distintas compreensões marcadas pelas perspectivas teóricas, conforme enunciado anteriormente.
No contexto da prática escolar, o currículo é um território fortemente mediatizado por outros contextos, tais como os de produção de textos curriculares produzidos em diferentes instâncias, pelos contextos cultural, econômico e político. No que se refere ao modo como os sujeitos operam com o conceito de conhecimento escolar os movimentos são relativamente semelhantes, ou seja, os sujeitos formulam seus significantes conceituais e operam à luz de suas próprias experiências, mediatizados pelas influências de outros significantes produzidos tanto discursivamente em outros contextos por meio de processos epistêmico-políticos que se (re)constroem o tempo todo. Operam como disputas por hegemonia de sentido, mas também pelas condições objetivas derivadas de suas experiências de vida e trabalho nos contextos escolares.
Assim, os sujeitos da prática operam com o conceito de conhecimento escolar atribuindo valores e funções, em acordo com um conjunto de circunstâncias que são mobilizadas em razão de conceitos apreendidos em suas trajetórias de formação e demais experiências pessoais e profissionais; demandas discursivas colocadas nos textos curriculares em diferentes escalas dos sistemas; demandas colocadas por materiais didáticos de sua área de formação; demandas discursivas derivadas da produção científica do campo do currículo; influências conceituais circulantes em ambientes como mass mídia e redes sociais, entre outros. No contexto da prática, implicam ainda definições construídas nos ambientes das diferentes áreas ou disciplinas científicas.
Por esta perspectiva, arriscamos afirmar que no interstício entre um conhecimento morto e um conhecimento escolar poderoso, há incontáveis possibilidades de valoração como fixação de sentidos. Essas possibilidades estão associadas ao modo como os sujeitos operam nos processos de significação e fechamento de seus conceitos.
Assim, é comum, por exemplo, encontrarmos professores que, na docência, tratam os conteúdos de conhecimento explorando sua dimensão técnica e científica, outros a dimensão política com suas contradições, outros o abordam sob a perspectiva cultural ou histórica, outros creditam ênfase nas suas formas e funções de operação e uso, enfim, uma constelação de possibilidades de compreensão e atribuição de valor e funções.
Estes distintos modos de operar não se resumem, como poderia parecer, a escolhas ou enfoques metodológicos, mas a modos particulares de conceber e lidar com esse conceito, em correlações de forças que disputam e mobilizam as diferentes abordagens, com seus respectivos repertórios teóricos, potenciais de vários outros instrumentos discursivos, além, é claro, do potencial singular de cada sujeito na relação que este estabelece com as mais variadas formas de apropriação e significação.