Introdução
Este estudo tem como principal objetivo apresentar uma análise acerca dos discursos relativos à boa educação dos sujeitos infantis masculinos que foram enunciados em um manual pedagógico dedicado ao “descanço dos Mestres, e utilidade dos Discipulos”. O interesse por sua análise, justifica-se na medida que, nos finais do século XVIII, a circulação de impressos que direcionavam a aprendizagem da leitura, da escrita e da contagem, mas principalmente na instrução dos princípios da religião e da civilidade, ganhou centralidade na cultura impressa portuguesa.
Sendo assim, tomamos como principal fonte de análise a obra Nova escola de meninos. Na qual se propõem hum methodo facil para ensinar a lêr, escrever, e contar, com huma breve direção para a educação dos meninos. Ordenada para descanço dos Mestres, e utilidade dos Discipulos. Escrito pelo presbítero secular Manoel Dias de Sousa (1753-1827), o impresso teve uma única edição, publicada em Coimbra no ano de 1784. Como revela o título da obra, a intenção do autor era oferecer a Mestres e discípulos um eficiente, objetivo e simples método para a aprendizagem da leitura e escrita da língua portuguesa e das operações elementares da aritmética.
O pesquisador da História da Educação António Gomes Ferreira, em artigo intitulado Educação e Regras de convivência e de bom comportamento nos séculos XVII e XIX, destacou que o livro de Manoel Dias de Sousa nos remete a um universo escolarizado, que simultaneamente servia para a aprendizagem de crianças, como se fosse um guia de orientações metodológicas de professores. Ferreira ainda chamou a atenção para o fato de o manual trazer enunciados metódicos e práticos, “onde tudo passava a estar submetido a uma disciplina sujeita a regras inquestionáveis e a saberes dogmáticos expostos catequeticamente” (FERREIRA, 2009, p. 12). Consideramos, assim que o método apresentado por Sousa era, na verdade, uma compilação de preceitos e regras da língua portuguesa que já haviam sidos publicados anteriormente.1 De acordo com o autor do manual pedagógico
Não se pode negar, que o conhecimento das regras serve de grande adiantamento, e facilidade para bem escrever. Estas regras, ou respeitão á perfeição, ou ao acerto da escrita. As que respeitão á perfeição se reduzem ao conhecimento dos instrumentos, e adereços necessários para bem escrever, e do modo de talhar as letras (SOUSA, 1784, p. 137).
Por se tratar de uma organização didática, portanto um guia pedagógico, que pretendia oferecer “descanso aos Mestres”, pelo menos, aos menos habilidosos ou para aqueles que não tiveram acesso aos mais doutos escritores que se preocuparam com a educação da infância e sua possível contribuição à República, Sousa indicou as pretensões da publicação de seu manual:
Não pertendo nesta Escola dar instrucçoens, ou conselhos aos Mestres mais habeis, e experimentados do que eu; mas sómente desejo dar alguma luz aos que a não tivérem, e por esta causa deixão de se empregar na educação dos meninos, cousa tão importante ao bem da Republica,2 e deque tanto depende o futuro progresso não só de applicaçoens literarias, mas de qualquer outras assim politicas,3 como mecânicas (SOUSA, 1784, Prólogo).
Ao final de Nova escola de meninos, foi acrescido um capítulo intitulado Breve Direcção para a educação dos meninos, ao qual apresentava uma “Direcção para a educação da mocidade”, propondo que se utilizasse “o modo mais util de se portar com os meninos, de forma que se intimidem com máo modo, ou pancadas como todos os dias succede; nem menos com hum methodo demasiadamente brando mais se lisonjéem, que ensine” (SOUSA, 1784, Dedicatória). Tendo em vista, que estes preceitos de regulação e punição, propagados a um determinado público leitor, possuem a intenção de direcionar a conduta dos infantis masculino, é que propomos como chave de leitura teórica o conceito de governamentalidade.4 Tal categoria analítica nos possibilita a compreensão dos deslocamentos enunciativos operados pelo religioso Manoel de Sousa a fim de produzir uma população infantil masculina guiada pela ética religiosa-cristã e pela civilidade como modos específicos de vida.
Metodologicamente, preocupa-nos analisar a estrutura do discurso mobilizado pelo autor, compreendendo, para tanto, as construções/constituições que o mesmo emprega para o sujeito infantil. Ao entendermos que este discurso de governamento é influenciado pelo contexto político e social em que o seu autor está inserido, propomos a identificação e análise dos possíveis mecanismos de poder e de saber discursivamente aconselhados para administrar e supervisionar os infantis lusitanos.
Para melhor sistematização de análise deste texto dividimo-lo da maneira apresentada a seguir. Primeiro, destacamos descrições acerca do autor e do manual investigado. Após, conferimos, a partir da fundamentação teórica de Michel Foucault (2007), uma discussão em torno do conceito governamentalidade. Isso com a intenção de defender a tópica de que as regras para a boa educação de meninos postas pelo religioso Manoel de Sousa se constituem como um conjunto de ações, de domínio do Estado, capazes de gerenciar e governar uma população, neste caso os sujeitos infantis masculinos, capaz de atuar numa sociedade moderna. Realizamos um empreendimento metodológico de análise e descrição da obra citada, indicando como funcionaram determinados enunciados para a promoção de determinados modos de ver e dizer5 a infância masculina por meio de enunciados e normativas que indicam valores ético-religiosos, conservação da saúde e adiantamento nos estudos.
Notas sobre o autor e a obra
No Diccionario Bibliographico Portuguez, do biógrafo Inocêncio Francisco da Silva (1810-1876), Manuel Dias de Sousa foi descrito como “prespbytero secular, Bacharel em Canones6 pela Universidade de Coimbra, e Prior na egreja de Villa-nova de Monsarros” (SILVA, 1860, vol. V, p. 490). Apesar de constar no dicionário a naturalidade do padre Sousa, o mesmo não foi preciso com seu ano de nascimento. Todavia, uma pesquisa realizada mais recentemente pelo português Rolf Kemmler (2011) revela que o gramático religioso Sousa era natural da freguesia de Santa Maria do Souto de Sobradello, no arcebispado de Braga. Além disso, teria nascido no ano de 1753 e falecido no dia 21 de fevereiro de 1827 na cidade de Coimbra.
A partir de consulta aos catálogos das Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e da Biblioteca da Universidade Coimbra (BUC) localizamos Manoel de Sousa como autor das seguintes obras:
- Nova eschola de meninos, na qual se propõe um methodo facil para ensinar a ler, escrever e contar, com uma breve direcção para a educação dos meninos. Ordenada para descanço dos mestres, e utilidade dos discipulos. Coimbra, na Reg. Offic. da Univ. 1784;
- Grammatica portugueza, ordenada segundo a doutrina dos mais celebres grammaticos conhecidos, assim nacionaes como estrangeiros. Coimbra, na Imp. da Univ. 1804;
- Historia da creação do mundo, na qual pela ordem dos seis dias da creação se dá uma breve noticia dos elementos, da terra e seus mineraes, das plantas e animaes, e ultimamente do homem nos seus diversos estados. Coimbra, na Imp. da Univ. 1804.
A seguinte imagem é uma ilustração do frontispício da primeira edição da obra, cuja materialidade tem formato in 8º, 210 páginas nas dimensões 19,5cm x 14cm, possui encadernação inteira de pele e tem 11 ilustrações com estampas caligráficas.
De acordo com o Dicionário de Silva (1860, v. 5, p. 409) a obra Nova Escola de meninos era rara, ao menos em Lisboa, onde o biógrafo atestou não haver visto “d'ella até agora mais que dous ou tres exemplares”. Todavia, de acordo com Kemmler (2011, p. 78), Sousa havia pedido liberação para impressão de uma obra que compilava suas publicações anteriores e era integralmente dirigida à educação do povo português. Tratava-se da impressão de um manuscrito licenciado em 12 de setembro de 1805 que constava de métodos prático para ensinar a ler e escrever, com princípios de aritmética elementar acrescida de tabuadas, de um compêndio de história sagrada e de outro de moral celeste, extraído do Antigo Testamento.8
Apesar de “Nova Escola para meninos” ter tido uma única edição, cumpre afirmar que o conjunto enunciativo mobilizado pelo autor se assemelha aos manifestados em obras similares que circularam na Europa neste mesmo período, decorrentes das práticas partilhadas socialmente e dos saberes científicos divulgados à época. Manoel de Sousa afirma reiteradas vezes que seus aconselhamentos são advindos de sua experiência, bem como do seu conhecimento adquirido pela leitura dos “grandes autores”.9
A obra aqui analisada foi dividida em três partes, acrescida do último capítulo como mencionamos anteriormente. Na primeira parte o autor propõe o método de ensinar a ler “com brevidade e perfeição, no qual industriádo o principiante não cahirá em muitos erros, que por falta de ensino, se costumão dar na leitura, e na escrita”. Tal método proposto era acompanhado de uma “Instrucção Christã, e politica proporcionada á primeira infancia dos meninos, para nella se exercitarem a lêr, e juntamente se instruírem nos principios da Religião, e civilidade” (SOUSA, 1784, Dedicatória).
Na segunda parte da obra “se propõem as regras para escrever com perfeição, e acerto, tratando não só dos instrumentos, e adereços necessários para bem escrever, e do modo de talhar as letras, mas tambem das principais regras da Orthografia Portuguesa, e se oferecem estampados em boa letra os treslados necessários para os meninos terem hum bom principio de letras conforme aos preceitos que se dão” (SOUSA, 1784, Dedicatória).
A terceira, e última parte, é dedicada ao ensino dos princípios da Arithmetica, de tal modo que “qualquer que tenha aplicação os pode compreender para os ensinar; e em cada huma destas partes se mostra praticamente o moído como se hão de ensinar aos meninos, tudo com a melhor clareza que me foi possível” (SOUSA, 1784, Dedicatória).
Ainda que a obra tenha sido objetivamente direcionada à educação de meninos, seus enunciados também poderiam ser empregados ao ensino de meninas. O regime de educabilidade10 posto no século XVIII europeu,11 era normatizado pela figura de um educando ideal: uma criança, masculina, de segmentos da aristocracia ou da burguesia e, principalmente no caso português, fundamentada na religião católica. No entanto, é importante destacar, conforme Rogério Fernandes (1994, p. 22), que os discursos pedagógicos direcionados às meninas, “pelo menos entre as classes superiores”, deveria ter “duração assaz reduzida”. De acordo com o autor, esta redução da fase da infância às meninas se justificava pela intenção de casá-las o quanto antes. “O casamento, por sua vez, não tardava a transformar a menina em mãe”.12
O governo dos infantis
Governar os sujeitos infantis significa, sobretudo, conduzir a conduta, o corpo, a consciência e a alma das crianças, a partir de um regime de educabilidade, na intenção de integrá-las e ajustá-las às médias, padrões e comportamentos de uma cultura partilhada socialmente. A busca no século XVIII para inserir os infantis em uma certa normalização foi objeto de atenção de médicos, pedagogos e de religiosos, que pretendiam divulgar prescrições sobre mecanismos capazes de controlar os infantis dentro de um quadro social normativo.
Para haver governo da infância, foi necessário cria-la como objeto de classificação e de diferenciação. [...] infância classificada em etapas, em processos, em condições determinadas, proposições de limites para o seu início e término, reunião de medidas igualitárias e, por consequência, hierárquicas - crianças sadias, doentes, delinquentes, exemplares, bons ou maus futuros cidadãos, crianças normais e anormais, infância coligida nas estratégias de governo, pois é preciso defender a infância, conceder a ela o que lhe é de direito - mas não tudo - educar a infância, tratar a infância, socializa-la, medicalizá-la, lança-la nas estatísticas de governos, enfim, fazer a infância existir (CARVALHO, 2015, p. 26-27).
Acerca da publicação de obras pedagógicas e de bons costumes publicadas em Portugal nos finais do século XVIII, constatamos que os ensinamentos sobre as condutas, sobre os modos de viver em sociedade e as maneiras de bem educar os filhos eram temáticas de interesse do público português, uma vez que foi publicado no período grande variedade deste tipo de manual. A leitura de tais manuais atendia aos interesses daqueles que se encontravam ávidos por um modelo de nobre europeu civilizado e que “vinha se afirmando como parte do processo de constituição de uma sociedade civil fundada sobre regras e mecanismos de controle”. Segundo a historiadora Thais Fonseca, os manuais sobre regras de comportamento eram voltados, em grande parte, para finalidades pedagógicas e dirigidas para a educação de crianças e jovens, particularidade que se seguiu tanto em Portugal, como no Brasil até o século XIX (FONSECA, 2009, p. 16-17).
No nosso específico caso, a análise dos discursos mobilizados pelo religioso Manoel de Sousa na obra Nova Escola de meninos permite identificar um conjunto normativo de regras pedagógicas que se compõem como reveladoras das atitudes perante a infância, que por sua vez são subjacentes ao contexto cultural de uma época. A concepção de educação, deste modo, estava relacionada a uma determinada ideia ou imagem que o autor fez às crianças, ou, notadamente aos meninos portugueses. Neste caso, a imagem do menino, elaborada pelo autor, pode ser entendida enquanto uma expectativa do que a sociedade projetou para este sujeito infantil, portanto a conformação e condução das condutas de um modelo ideal de sujeito moderno. Como enunciado no prólogo do manual:
Para remediar estes inconvenientes, quanto he da minha parte, he que me atrevo a publicar esta Escola, que compilei dos Authores que pude me conseguir, para uso de alguns meninos deque me encarreguei, e poderei encarregar, persuadindo-me, que em quanto outra pena mais doutam e pratica que a minha, não tomar esta empresa; não deixará de ser util para facilitar não sómente aos meninos a sua instrucção, mas ainda o trabalho dela a qualquer pessoa, que a caridade possa attrahir a este ministério (SOUSA, 1784, Prólogo).
Nesse sentido, o conceito de governamentalidade13se torna potente chave de leitura para compreender os deslocamentos enunciativos que direcionavam formas de conduzir as condutas dos sujeitos, neste caso dos sujeitos infantis - particularmente denominado por Manoel de Sousa de Meninos ou Mocidade. Consideraremos, especificamente nesta análise, o governamento (FOUCAULT, 2007) dos infantis como sendo todo o conjunto de saberes ordenados pelo religioso português, constituído para ser aplicado em escolas ou ministrado por Mestres ou Aios, adaptado por uma série de procedimentos pedagógicos, em que os meninos eram incitados a praticarem piedosamente suas reflexões, como formas específicas de poder. Este poder tem uma determinada população infantil (meninos e mocidade do Reino português) como alvo principal e, sobretudo, possuem técnicas e dispositivos disciplinadores. Tal aparato funciona como ferramentas de controle, as quais pretendiam incutir nos meninos a disciplina, o comportamento e a uma série de virtudes guiadas pela moral e pela fé cristã. Todavia, esperava-se que os meninos fossem consumidores/leitores dos aconselhamentos e ensinamentos de Sousa, garantindo instrumentos para que a própria população infantil também se autogovernasse. Para tanto, eram necessárias práticas de governo para que o sujeito guiasse e conduzisse sua própria conduta. Importante também destacar, a análise realizada pelo português Jorge Ramos do Ó (2009, p. 102) acerca do conceito de governamentalidade operado por Foucault. Dizia o filósofo francês que o “governo é o direito de dispor das coisas, daquelas de que tomamos conta para as conduzir a um fim conveniente” (FOUCAULT, 1978, p. 643). Todavia, Ramos do Ó, alerta para a distinção entre um governo soberano - que impõe seu poder por intermédio da lei e da ideia de existência de um bem comum - para um poder disciplinador, que propõe governar por meio da disposição das coisas, através de táticas de correção. De modo análogo, Michel Foucault identificou que a constituição do sujeito moderno, sobretudo após a epistéme clássica do modelo de governo soberano, produziu efeitos de minucioso controle sobre determinados tipos de sujeitos. Esse processo de controle tinha por objetivo promover uma sociedade com regras e proibições, com comportamentos definidos e legitimados. Assim, a sociedade moderna passou a ser cada vez mais normatizada, regulada por códigos (gestos, linguagens e práticas sociais de reconhecimento como saudações e utilização de utensílios no uso cotidiano) e limitada por interdições (negação de odores, ocultamento de partes do corpo, criação de tabus, invenções de atitudes consideradas incorretas, promoção de determinadas vergonhas) (RIPE; AMARAL, 2017, p. 110).
“A educação dos bons costumes deve principiar desde o berço”: análise dos enunciados imperativos
Tendo em vista que o século XVIII europeu elencou a infância como uma problemática central para a sociedade, cuja proteção e cuidados deveriam estar a cargo dos pais e mestres, a obra Nova Escola de meninos é um exemplo de impresso que alertou a responsabilização da família no processo de criação dos infantis. Sousa manifestava e culpabilizava os pais pelas negligências de não educar os filhos, “os pais não tem couza mais importante, nem de maior consequencia, do que a educação de seus filhos, pois são responsáveis de todos os pecados, que os filhos cometem por falta de educação” (SOUSA, 1784, p. 190).
A incitação à culpabilidade e ao medo incutida aos genitores foi um enunciado recorrente nos tratados e manuais direcionados aos cuidados dos infantis. Uma vez que caberia aos pais a responsabilidade de justificar, ainda que espiritualmente, os erros cometidos,
vós haveis de dar rigoroza conta a Deos das desordens, vícios que vossos filhos tivestes em os educar. Não perdoeis pois diligencia alguma para dar huma boa educação a vossos filhos, e dai por bem empregada toda a despeza que por respeito dela fizer les: vós não lhe podeis deixar huma mais rica herança (SOUSA, 1784, p. 190).
Manifestou o autor a impossibilidade de negar a importância da boa educação e seus efeitos para a mocidade, tendo em vista que dela “depende ordinariamente a disgraça ou a felicidade desta vida, e da eterna” (SOUSA, 1784, p. 189). A própria experiência de Sousa atestava que “poucos filhos se acharão disgraçados, que não deváo huma parte das suas disgraças á sua má educação, e muitos se acharão condemnados, que devem o seu funesto destino á falta de huma boa educação” (SOUSA, 1784, p. 189).
Por se tratar de uma narrativa produzida por um padre, é justificável que enunciados religiosos fossem os elementos mais destacados para a imitação dos infantis. Ao longo de todo o manual pedagógico, Sousa não poupou oportunidades de manifestar seu apreço aos preceitos católicos como forma de guiar a conduta dos meninos. Exemplo disso, quando o autor critica aqueles que ignoram e denigrem os costumes cristãos, afirmando que a “ignorância tem sido sempre o manancial donde brotão a corrupção dos costumes, as liberdades, e as superstições; e a experiência tem mostrado que os ignorantes da Religião, e dos seus estudos, são os que se tem atrevido a quererem denegrir a sua magestoza, e soberana face” (SOUSA, 1784, p. 189). Em outro excerto, enunciou que não haveria “couza mais facil, do que inspirar nos coraçoens ainda tenros, os sentimentos de piedade, e de temor de Deos, o horror do pecado, e o amor da virtude, se os meninos beberem com o leite estes principios de Religião, nenhum natural há que se não dobre” (SOUSA, 1784, p. 190).
A educação foi percebida pelo autor como a ação de modelar uma criança, “desde o berço”, por meio dos costumes civis e dos preceitos cristão-católicos, sobretudo, para evitar que o infantil se inclinasse aos vícios. Nesse sentido, a educação deveria superar a ausência de razão, uma vez que pretendia “suprir esta falta [ignorância] em que nascemos, e deve ensinar a domar as paixoens, antes que chegue a idade de as temer” (SOUSA, 1784, p. 189). Destacou, ainda, a necessidade de “cultivar, e formar a mocidade assim nas ciências, como nos costumes, e ensinar-lhe a cumprir as obrigaçoens da vida civil, e Christã” (SOUSA, 1784, p. 190).
Todavia, Sousa não acreditava na impossibilidade de uma criança, mesmo as mais indóceis, se tornarem educadas e modeladas nos bons costumes. Discorreu que
Aos gênios indóceis não he infrutuosa a educação, pois não há natural tão grosseiro, e tão bruto, que se não possa polir, e que em fim se não adoce, se com tempo se põem nisto todo o cuidado: os moços são cera branda, em que se imprimem todas as figuras, que querem; e o cuidados, e indústria que se emprega na educação, nunca fica sem fruto (SOUSA, 1784, p. 190).
A imagem dos infantis associada às “folhas em branco”, às “tábulas rasas” ou às “ceras brandas” foi uma constante desde o século XVII para exprimir a natureza manipulável das crianças. Ainda que John Locke, em Alguns Pensamentos sobre a Educação (1690 [2012]) reconheça que os limites para alcançar a educação sobre o espírito, personalidade e conduta humanos sejam externos à ação educativa, não podemos negar que sua hipótese inicial parte da premissa que a criança foi considerada “como uma página em branco ou como bocado de cera que podia formar e moldar ao meu gosto” (LOCKE, 2012, p. 386).
De modo semelhante, ao tratar da boa educação dos meninos, o presbítero Sousa afirmava que o processo educativo se dava através da formulação de quatro importantes aspectos, sejam eles relativos aos domínios do tempo, do cuidado, do gênio e dos métodos aplicados. Em suma, afirmava que a “piedade domestica os gênios mais indômitos”, possibilitando que a criança pudesse “sentir o gosto da virtude”, e, consequentemente poder-se-ia “lhes ensinarão[em] as ciências, e [as] bellas Artes”. Porém, era “necessario tempo, cuidado, genio, e metodo para educar a mocidade” (SOUSA, 1784, p. 190).
Os cuidados relativos ao corpo dos infantis foi um dos principais temas que Sousa ocupou no seu manual. Descrevendo prescrições práticas, médicas e espirituais para que os pais ou mestres tivessem com as crianças. Por exemplo, um dos primeiros ordenamentos se referia aos regimes alimentares e restrições físicas indicadas, tanto às gestantes, como às crianças pequenas. Dizia o autor:
Estando ainda os meninos no ventre materno, devem os Pais ter cuidados, em que as mãis comão couzas nocivas á sua saude, e por consequência á do feto; nem lhes devem consentir contradanças, carreiras, saltos, ou andar a cavalo, e em seje com bestas bravas, e todos os excessos que arriscão a vida do feto (SOUSA, 1784, p. 191).
Em se tratando dos principais alimentos a serem administrados às crianças, o religioso Sousa conferiu severas moderações e interdições, principalmente aos doces e bebidas alcóolicas. Baseado na teoria médica dos humores, o autor alertava sobre os riscos que certos alimentos poderiam causar ao corpo e aos ânimos dos infantis. Como se pode observar no seguinte excerto:
O alimento que devem usar as creanças depois da creação, seja ordinario, simples, e de facil digestão, fugindo dos guizados com temperos altos; dos salgados, e dos cheios de adubos, de que resulta muita acrimonia no sangue, da qual abundão as creanças, e augmentarlha, he arruinar-lhe a saude. E como tãobem a cólera exceda nas primeiras idades, deve-lhes prohibir as bebidas quentes, como o vinho, agoa ardente, e outras semelhantes: também se lhes deve prohibir o doce, porque dele resultão máos humores; e não he conveniente acostuma-los a comidas muito saborozas, e picantes, para que ao depois não achem insípidos os ordinários, e naturais alimentos, que são os mais convenientes, e os mais agradáveis a quem não tem o gosto estragado com o uso dos guizados (SOUSA, 1784, p. 191).
Da mesma forma, foi rigoroso ao especificar o número de refeições diárias e indicar um método demasiadamente simples para saciá-las quando ficarem queixosas de fome.
Não se permita ás crianças o muito comer, nem mais vezes do que quatro ao dia, e quando peção de comer fora das horas ordinárias, não se-lhes dê couza, que lizongerando o gosto, as incite a comer sem necessidade; pois muitas vezes o pedem sómente por apetite: pode dar-se-lhes huma fatia de pão grosseiro, e duro, porque se verdadeiramente tiverem fome não deixarão de o comer, e se a não tiverem he melhor que não comão (SOUSA, 1784, p. 192).
De forma sintética, os alimentos mais indicados eram os “laticionios, e as frutas, he o mais proprio e saudável alimento na primeira, e segunda idade, evitando com tudo o abuso das frutas, ou pelo excesso, ou por não estarem perfeitamente maduras” (SOUSA, 1784, p. 191). Sousa ainda fez destaque para os possíveis perigos de se ingerir água quando a criança estivesse demasiadamente esgotada por motivos de exercícios físicos. Dizia o autor que a “bebida dos meninos deve ser agoa pura, a qual lhes he muito util e por isso só selhes deve permitir, mas ainda incita-los a bebe-la principalmente no verão”. Todavia, o consumo deveria ser com cautela, para que “não bebão estando fastigados sem primeiro descansarem; porque do contrario se originão obstrucçoens, debilidades do estomago, e fermentos febris como ensina a experiencia” (SOUSA, 1784, p. 192).
Duas preocupações espirituais deveriam estar a cargo dos pais. Tratar-se-iam dos sacramentos religiosos destinados ao nascimento dos meninos, e nos infortúnios casos de óbitos prematuros.
Sousa afirmou que logo
Nascido o filho procure o Pai, que lhe seja administrado o Sacramento do Baptismo o mais breve, que puder. Em quanto á creação, he melhor, e mais conforme á natureza, que o filho seja alimentado pela própria Mãi, quando esta tenha impedimento, he preciso procurar huma ama com boa saude, com leite, e bom gênio, afável, amorosa, e cuidadosa de satisfazer a sua obrigação. Devem-se prohibir os alimentos nocivos á saude, os enfados, e a comunicação com seu marido (SOUSA, 1784, p. 191).
Sobre a insistente preocupação de Sousa com o sacramento do batismo, Fernandes (1994, p. 224) acenou que a educação ético-religiosa era, naquele momento, colocada em primeiro plano. Segundo o próprio Ferreira, as “águas lustrais não eram, porém, anteparo bastante contra a corrupção a que estava exposto o ser humano. Carecia-se, por isso, do adminículo de uma sólida e precoce formação”. Assim, no discurso do presbítero foram imperativos os enunciados de que a educação dos bons costumes principiava desde o berço, sendo “muito importante inspirar quanto for possível aos meninos, logo desde a primeira idade a excellencia da virtude, e a fealdade dos vícios” (SOUSA, 1784, p. 193).
Ainda que, no final do século XVIII, as elevadas taxas de mortalidade infantil começassem a apresentar um lento declínio,14 o perigo iminente de morte assombrava as famílias portuguesas. Todavia, a culpabilização dos pais negligentes nos tratos com as crianças advinha de duas preocupações. A primeira, obviamente, era referente aos cuidados relativos à conservação da saúde, portanto de ordem médica. A segunda, e, talvez considerada a falta mais grave, estava associada ao domínio espiritual. Sobretudo, pelo fato de que o tema da morte e do morrer eram constantes no pensamento português de Antigo Regime,15 de tal modo que a possiblidade de perder a salvação eterna atormentava a maior parte dos grupos sociais.16 Essas duas preocupações foram alertadas por Sousa, quando afirmou que
Se o filho tem alguma enfermidade no corpo logo se excitão grandes cuidados nos Pais, e prontamente lhe procuras os remedios: se vém que o filho está em perigo de acabar a vida temporal, augmentão-se os cuidados; se faleceo sentem amargozas penas. Mas nem cuida-los, nem penas algumas padecem quando o filho cahe na terrível disgraça de ter a alma enferma com a malignidade da culpa, e em risco de perder a vida eterna (SOUSA, 1784, p. 200).
Outros aspectos exemplificados por Sousa, e que são condizentes aos cuidados com o corpo dos meninos, são as prescrições acerca do sono, do vestuário, dos banhos e das medicalizações que ocorrem quando os infantis adoecem. Sobre o descanso dos infantis era aconselhado que fossem “cedo a dormir, para cedo se levantarem”. Tal recomendação tinha por interesse “não só para beneficio da saude, mas tambem para que fiquem habituados neste método”, pois “de sorte que ao depois não gastem a maior parte da noite em jogos, danças e outros divertimentos, estragando-se ao sono no tempo do dia” (SOUSA, 1784, p. 192). Contudo, um rígido procedimento deveria ser adotado para o momento de dormir, tanto no que se referia a quantidade de tempo, como inclusão de sonos sem conforto e por vezes o costume de ficar de vigia.
He muito util acostumar as creanças a cama dura, e pouco delicada, para que ao depois por falta de boa cama, não deixem em tempo algum de dormir e reparar com o descanso do sono a fadiga dos trabalhos a que todos estamos sugeitos. Para descansar e restaurar as forças basta dormir, ainda que seja sobre a terra dura, e quem estiver acostumado, a hum leito brando, não poderá descansar, nem dormir sem essa cõmodidade. O sono he muito proprio do temperamento dos meninos, e contribue muito para a sua boa nutrição; e assim na sua primeira idade não somente se lhe deve permitir, mas ainda procurar que durmão largo tempo. He verdade que he muito conveniente, costumar pouco a pouco, os meninos a madrugarem, e a não perderem a melhor parte do dia dormindo, o que se consegue costumando-os a deitar mais cedo (SOUSA, 1784, p. 192).
Sousa advertiu para que os vestuários das crianças fossem “largos, e que se vistão sem violência; pois aquelles que são demaziadamente apertados cauzão muitas vezes grande damno á saude porque estreitando o peito impedem a perfeita distribuição do alimento, e a circulação do sangue com notável detrimento na formatura e nutrição do corpo” (SOUSA, 1784, p. 192). Porém, as maiores preocupações estavam relacionadas com as mudanças de temperaturas, com os banhos e com as exposições às situações adversas. Por exemplo, quando Sousa prescreve que permitisse “aos meninos, que sem reparo, sahião algumas vezes ao sol, e á chuva, ao vento, e á neve”, contudo que se tivesse“grande cuidado, que nunca passem de hum extremo a outro, como do fogo ao frio, ou chuva, e da calma á frescura, e do exercício violento a beber agua fria: também he muito importante, depois que elles já andam desembaraçadamente, costuma-los a correr por algum espaço para fortificarem com o exercício” (SOUSA, 1784, p. 193).
Igualmente subordinado aos preceitos corpóreos estavam os enunciados que inibiam os cuidados em excessos e a medicalização dos pueris, “deve-se evitar o excessivo cuidado que alguns Pais tem a respeito da saude dos filhos, fazendo-lhes tomar remedios preservativos das enfermidades, que se costumão padecer nas primeiras idades”, tampouco não deveriam “chamar logo o Medico, se o filho tem huma leve dor de cabeça”. Tais excessos poderiam ser motivo de doenças mais graves ou, então, “arruinar a saude e força dos filhos”, de modo a “evitar a creação delicada, que faz os mesmos fracos, froxos, e moles” (SOUSA, 1784, p. 193).
Os imperativos ético-religiosos exigiam igualmente vigilância dos pais e mestres e deveriam estar presentes na vida cotidiana dos meninos. Trata-se, pois, de algumas recomendações convenientes ao bem do espírito, de modo a respeitar os bons costumes dos meninos. De acordo com o religioso Sousa, a “educação dos bons costumes deve principiar desde o berço, e he muito importante inspirar quanto for possível aos meninos, logo desde a primeira idade a excellencia da virtude, e a fealdade dos vícios” (SOUSA, 1784, p. 193). Era importante que os pais dominassem as primeiras inclinações viciosas das crianças,17 possibilitando, assim que não se habituem, porque “depois de radicados nesses costumes, são dificultozas de vencer, e são sempre origens de muitas desordens, e desgostosos não só para elles [as próprias crianças], se não tãobem para seus Pais, e para toda a Republica” (SOUSA, 1784, p. 193).
Exemplo de prática combatida e que era contrária aos bons costumes e aos princípios da religião católica era a masturbação. Distinto de outros manuais setecentista, Nova Escola de meninos interditou claramente o onanismo masculino, acusando-o como uma inclinação viciosa. Decerto é que o interdito pretendia proibir todo e qualquer tipo de ação, palavras ou gestos considerados desonestos e que conduziriam o menino ao pecado. Sobre essa interdição Sousa alertava para possíveis sanções espirituais, pois
Tãobem ponha grande cuidado em que não se entregue ao vicio da incontinência: nesta matéria não lhe passe pela mais leve falta contra a castidade; pois o vicio contrario he hum contagio tão terrivel, que se logo se não atalha, vem a contaminar-se hum mancebo tão lastimosamente, que depois de arruinar a fazenda, e talvez o brio, e a saude, poem em grande risco a vida eterna da sua alma (SOUSA, 1784, p. 202).
Dias de Sousa dedicou relativa atenção aos comentários sobre o choro infantil e as possíveis recomendações aos adultos perante estas práticas. Os meninos “costumão elles muitas vezes chorar para se fazerem obedecer, ainda antes de saberem fallar”, querendo através do “choro, e gritos, já que não podem por outros meios, obrar tudo quanto lhes vem á fantazia, e sujeitarem inteiramente ao seu apetite as pessoas que cuidão da sua educação” (SOUSA, 1784, p. 193). Nestes casos, os pais deveriam estar atentos e promoverem reprimendas sempre que necessário, pois “cresce com o tempo esta paixão, e ao depois querem submeter a sua vontade”. Assim quando as crianças chorassem “por efeito de hum gênio pertinás, e apetitoso, fazer-lhes reprimir totalmente as lagrimas”, tratando-as “com severidade, e se esta não bastar, com castigo” (SOUSA, 1784, p. 194).
O autor destacou a importância de os pais rejeitarem a satisfação dos desejos que as crianças têm por coisas desnecessárias, bem como interditá-las qualquer tipo de “desejo ardente de alcançar”. Reafirma, para tanto, que “de nenhuma sorte se lhe deve permitir que declarem, que apetecem esta, ou aquelas iguarias para o sustento, esse, ou aquelle copo para beber agoa, essa, ou aquela figura, ou cor de vestido, nem outros semelhantes apetites, e se devem ir acostumando desde os primeiros annos, a não pedirem aquillo que não tem motivo justo” (SOUSA, 1784, p. 194). Tais recomendações tinham por intenção alertar que os meninos não adquirissem o hábito de “terem vontade própria, e de cederem facilmente á obediência de seus Pais, e mais superiores, e executando todas as suas acçoens conforme á direção, preceitos, e vontade de quem os dirige” (SOUSA, 1784, p. 195).
Dias de Sousa acreditava haver dois mecanismos de repreensão e punição aos meninos, neste caso, uma educação severa ou branda. Primeiramente, “nunca se deve[ria] praticar o rigor sem se terem primeiro aplicado todos os meios, ou remedios suaves para conseguir o bom ensino de hum filho” (SOUSA, 1784, p. 200). Toda admoestação deveria ser moderada e “regulada pela prudencia”, bem como “em tempo oportuno, para que seja proveitosa”. Alertava também aos pais que se evitassem praticar castigos “aos filhos estando preocupados de paixão, ou cólera” (SOUSA, 1784, p. 201).
Vários foram os dispositivos e estratégias para disciplinar a criança, para condicionar a obediência. O manual tinha essa característica de fazer com que os adultos inculcassem nas crianças determinados hábitos. Tais hábitos estavam ligados à naturalização da subordinação, da obediência e do respeito a todos, principalmente aos pais. Garantia o autor que “o melhor methodo para conseguir a emenda he usar das razões mais fortes para persuadir”, procurando “o modo mais eficaz para conseguir o dezejado fruto da emenda, e da rectidão dos costumes” (SOUSA, 1784, p. 201).
A privação dos prazeres e gostos foi outro discurso de punição muito presente neste manual, uma vez que para “conseguir a emenda [...] he muito proveitoso negar-lhes os seus apetites, tanto de comer, como do vestir, e prohibir-lhes os divertimentos”. Em outros casos, bastaria os pais “negar-lhes as demonstrações do amor, para logo se emendarem: a outros finalmente basta que o Pai lhe mostre hum modo severo para se absterem do delito” (SOUSA, 1784, p. 201).
Ainda que Sousa reprovasse a atuação severa e imprudente de alguns, não negava que quando tais repreensões por “meios suáveis se não pode conseguir o proveito que se intenta, he então preciso usar de pancadas, e procurar o mesmo effeito por meio do rigor” (SOUSA, 1784, p. 202). Exemplificou o autor ao destacar que havendo
hum moço com huma natureza rebelde, áspera e teimosa, que não quer abraçar o bem, nem obedecer aos preceitos, deve-se com castigo mais forte obrigar a deixar a rebeldia antes que se confirme na absoluta ousadia, e na insolente teima. Não imponha o Pai muitos preceitos aos filhos, e muito menos os obrigue a executar preceitos imprudentes, e árduos; mas procure que sejão cumpridos todos os preceitos que der a seus filhos (SOUSA, 1784, p. 202).
Em última análise, vale destacar que aos pais e mestres caberiam vários alertas, como o prejuízo que o excesso de zelo, amor e afeto poderia causar à educação. Nesse sentido, eram inúmeras as normatizações das condutas e na mesma proporção os indicativos de como e em quais casos deveriam ocorrer as severas punições. É possível inferir, então, o quão significativo deveria ser a probabilidade de crianças apresentarem comportamentos considerados adversos. Todo o esforço educativo para o ensino de um filho - que não eliminava a punição, os castigos e as privações - visava à ética-cristã, ou seja, a condução de condutas virtuosas e a rejeição de se inclinar aos vícios.
Considerações Finais
O regime de educabilidade disposto na sociedade europeia moderna, colocava a figura do mestre e da escola como “lugares de honra” no processo educativo e de transformação moral e social das crianças. Sustentados por um discurso de racionalidade e cientificidade, tais pedagogos, instituições escolares e corretivas modernas utilizavam estratégias de coerção subjetiva para atingir um corpo infantil civilizado (dócil, obediente, piedoso). Nesse sentido, a governamentabilidade é o exercício permanente de adequação dos comportamentos, das condutas sociais e das aptidões físicas, elaborado por meio de um modo “econômico” (aqui estamos retomando a ideia inicial do texto que indica se tratar de um manual pedagógico dedicado ao “descanço dos Mestres, e utilidade dos Discipulos”), para educar (operar e refrear) os corpos infantis.
No final do século XVIII, a publicação de impressos voltados à educação de crianças e jovens ganhou relativa evidência no cenário tipográfico português. Tratava-se de um movimento de regeneração, cujo domínio da educação deixava de ser privilégio de uma única ordem religiosa, concebendo outras instituições para a produção e divulgação de saberes pedagógicos. Não foram poucas as editorações que pretendiam divulgar ou traduzir regras e normativas para a população lusitana. Como afirmou Carlota Boto, “o século XVIII delineou a ação de seus letrados de maneira a lhes conferir a missão de esboçar - à luz dos interesses do Estado - seus prospectos e visões de mundo” (BOTO, 2017, p. 34). Nesse sentido, é possível afirmar que os intelectuais da Pedagogia foram organizadores da educação de seu tempo.
Foi nessa conjuntura social e cultural que, no final do Setecentos, o presbítero secular Manoel Dias de Sousa publicou o manual pedagógico Nova Escola de meninos. Ao que tudo indica, Sousa, assim como outros escritores portugueses do setecentos, foi tributário e compilador de muitas ideias da pedagogia de John Locke. Notadamente a boa educação de um filho deveria ser guiada pela razão e, como aponta Sousa, acrescida dos valores éticos-cristãos, portanto, fundada na obediência e na negação dos vícios que poderiam conduzir os meninos aos pecados. Assim como Locke, Sousa acentuava a ideia da necessidade de se habituar as crianças a conviverem com a presença do desagrado físico - moldando-as em uma rotina favorável ao desconforto e à dureza, do mesmo modo que as afugentando da proximidade do conforto e do prazer das delícias -, uma forma indispensável para a constituição do caráter.
As reflexões sobre o manual Nova Escola de menino, ainda que aqui tenham sido apresentadas de modo sistemático, reconheceram e problematizaram importantes aspectos que o escrito ocupou na cultura portuguesa no século XVIII. De certo modo, esse manual contribuiu para o que a historiadora Ana Cristina Araújo (2003, p. 09) indicou ser uma forma de “explicar as reviravoltas operadas na hierarquia de saberes, gostos e aptidões das elites cultivadas de Setecentos”. Vimos que diversos textos foram validados, indicados ou adaptados por Sousa, estabelecendo, no seu manual, um modelo de governamento sobre as condutas dos Meninos (infantis), que constituiu um conjunto de cuidados relativos ao corpo dos infantis. Conferindo, assim, às crianças severas recomendações de moderação e interdição, com a intenção tanto de fortifica-las, como de inibir as naturais disposições aos vícios. Como se pode verificar no excerto que Sousa constata os princípios da boa educação:
Ainda que o principal fim da educação de hum menino, he adornar de virtudes a alma, tambem deve atender a quanto pode augmentar o vigor do corpo, e conservar-lhe a saude, o que não só he meio para os adiantamentos nos estudos das ciências, e nos empregos da Republica, mas tambem parte, ou condição da perfeita felicidade humana, podemos ter nesta vida (SOUSA, 1784, p. 191).
Os imperativos ético-religiosos igualmente se propunham a educar os filhos nos bons costumes cristãos, de modo que a vigilância e a punição foram elementos estrategicamente enunciados. Nestes casos, pais e mestres deveriam estar atentos para inibir toda inclinação por meio dos mecanismos da repreensão e do castigo, a fim de inculcar nos meninos a subordinação e a obediência.
Em síntese, cumpre firmar que o manual Nova Escola de meninos desempenhou importante papel no processo discursivo de constituição de sujeitos masculinos nos finais do século XVIII em Portugal, alertando aos pais e mestres sobre o combate dos pecados aos infantis. Sousa afirmou, enfaticamente, aos responsáveis pela boa educação dos meninos, a necessidade de as crianças serem reguladas pelos “dictames da razão, e da prudencia, e fundada nas maximas da virtude”, pois do contrários os pais poderiam causar “grandes encargos da sua consciencia, e os graves damnos de seus filhos, e os prejuízos da sua caza, e da Republica”. Por fim, Sousa advertiu que seria infrutuoso todo esforço e dedicação na educação dos filhos sem o auxílio de uma consciência cristã, “todo o trabalho, e deligencia humana he frustrados, se lhe falta a benção graciosa do Creador, a quem deve toda a virtude, e toda a ciência, a assim devem primeiro que todo implorar o seu auxilio” (SOUSA, 1784, p. 200).