Introdução
O estilo filosófico inaugurado pela fenomenologia, que parte da proposta de se guiar pelas coisas mesmas (zu den Sachen selbst), esvaziadas de toda crença e pressuposição, e descrevê-las tais como aparecem, sem nada introduzir de estranho ao que se deixa perceber como dado, parece definir o projeto fenomenológico como o de uma tomada de posição radicalmente oposta à metafísica, entendida como estudo essencialmente destinado a ir além do que é efetivamente dado, sob o modo de juris da especulação racional. Paradoxalmente, porém, Husserl afirma em diversas ocasiões que a fenomenologia deve receber por razões intrínsecas essenciais o título de Filosofia Primeira. Título este que se liga historicamente à assim chamada metafísica e não raras vezes se confunde com ela.
O presente artigo, nesse sentido, dedica-se a discutir aquela ambição da fenomenologia husserliana de propor uma nova Filosofia Primeira2. A fenomenologia, como observa Ricoeur, é um vasto projeto que não se encerra em um autor ou em um número preciso de obras, mas, dentre os primeiros fenomenólogos (Pfander, Geiger, Scheler, Heidegger, Hartmann e Jaspers), Husserl é o único a acreditar que ela seja a philosophia prima, a ciência de todas as ciências3. Como veremos na sequência, é sob a influência dos neokantianos que o projeto fenomenológico é associado por Husserl à ideia de uma Erste Philosophie. Em que consiste essa associação? Evidentemente, nunca foi pretensão da fenomenologia restabelecer uma metafísica no sentido tradicional do termo. Sob esse aspecto, há certa dificuldade em pensar a exata acepção em que a fenomenologia pode aspirar, sem ambiguidades, ao antigo e venerável título de Filosofia Primeira, e com que legitimidade ela pode reivindicar essa posição, que parece pertencer por direito à metafísica.
Como se sabe, a fenomenologia husserliana sempre manteve firme oposição às teorias especulativas do passado. As Meditações Cartesianas, que são escritas em forma de meditação, de reflexão, e não de um tratado sistemático, deixam claro que o “tipo de comprovação da Fenomenologia, intuitivo, concreto e, além disso, apodítico, exclui toda aventura metafísica, todos os excessos especulativos.”4 Entretanto, este mesmo parágrafo da quinta meditação tem como objetivo apresentar resultados metafísicos da fenomenologia da intersubjetividade, o que significa que não há um abrupto abandono das chamadas “questões supremas e últimas”5 por parte da nova filosofia, como se a fenomenologia fosse uma espécie de neopositivismo e tivesse a pretensão de erradicar tais questões de seu campo como vazias, irracionais ou desprovidas de sentido.
Fink, que muito falou do spekulativ na fenomenologia, é quem lembra que esta não se esgota num simples método descritivo das essências, num simples criticismo, mas que se instala, de preferência, “no terreno das questões que toda a metafísica estabeleceu como sendo o seu.”6 Derrida, por sua vez, dirá em Margens da Filosofia: “Se a fenomenologia criticou a metafísica no seu ser foi apenas para a restaurar. Disse-lhe o seu ser para a despertar para a essência da sua tarefa, para a originalidade autêntica do seu intento.”7; e repetirá em La voix et le phénomène: “(...) trata-se de verificar que o recurso da crítica fenomenológica é o próprio projeto metafísico no seu acabamento histórico e na pureza apenas restaurada da sua origem.”8
Com efeito, os resultados que Husserl alcança nas Meditações são, ao mesmo tempo, tanto metafísicos no sentido habitual da palavra quanto anti-metafísicos, uma vez que a metafísica, na visão do filósofo, teria se deixado degenerar na sua trajetória, perdendo o espírito com que “foi originalmente instituída enquanto ‘Filosofia Primeira”.9 Este último conceito, que surge aqui em estreita conexão com o conceito de metafísica, parece ser definido como o aspecto positivo da metafísica, isto é, como o aspecto legitimamente filosófico do qual a metafísica desviou-se no curso de seu desenvolvimento histórico.
Mas não interessa, por hora, precisar que tipo de definições estão em jogo nessa caracterização. O que convém recordar no momento é que o conceito de Filosofia Primeira parece assinalar tanto um aspecto positivo de permanência na tradição quanto um aspecto negativo de ruptura com a mesma. Quanto ao primeiro, é certo que a fenomenologia não representa um brusco salto para fora da tradição filosófica, e que se liga a ela, à sua maneira, através do transcendental de Kant, do originário de Hume e, mais radicalmente ainda, através da dúvida e do cogito cartesianos10. Quanto ao segundo aspecto, é certo que ela radicaliza temas presentes nesses filósofos e confere a eles um significado original.
Assim, o que se pode dizer em atenção à oposição entre fenomenologia e metafísicas do passado é que Husserl introduz uma renovação no modo de tratamento dos mesmos temas, e que ele apresenta a fenomenologia como “uma outra Filosofia Primeira”, como ressalta Jean-Luc Marion. Mas o gesto inovador de Husserl, ao mesmo tempo, não exclui a antiguidade nem os horizontes fornecidos pela tradição metafísica. Assim, como Jan Patočka11 destaca, “a fenomenologia não é, por seu objeto, uma ciência nova, mas, ao contrário, é a mais antiga de todas, uma vez que sua preocupação fundamental coincide com aquela da filosofia que, enquanto ontologia, é a ciência primeira, a origem de todas as outras.”
Assim, fica claro que a determinação do estatuto da ideia de Erste Philosophie na fenomenologia husserliana tem, em primeiro lugar, de prestar contas ao conceito de metafísica tal como ele foi legado pela história. Prestação de contas que passa pela exigência de responder: o que significa falar ao mesmo tempo de uma continuidade e de um rompimento com os temas metafísicos? Que tipo de renovação a fenomenologia opera nesses temas, de modo a abordá-los de um ponto de vista original, sem que eles deixem, todavia, de ser metafísicos? Antes de entrar no mérito dessas questões, será preciso mapear as diversas ocorrências da ideia de Filosofia Primeira na obra husserliana e ver, com maior precisão, o sentido em que elas coincidem, assim como a medida em que se deixam interrogar pelos problemas aqui formulados.
I. Filosofia Primeira: uma breve Historiografia
A história do conceito de Filosofia Primeira na obra husserliana não se deixa resumir numa fórmula simples. Por assim dizer, ele acompanha os desdobramentos do projeto fenomenológico na série de figuras particulares que surgem ao longo dos anos, conforme a problemática de partida (ontologia, teoria do conhecimento, fenomenologia transcendental estática, fenomenologia genética, etc.), e parece traduzir diferentes momentos e diferentes significados da evolução do projeto.
É certo que Husserl já se referia à ideia de uma Erste Philosophie desde, pelo menos, a primeira década do século 20. Em 1906/07, ele deu o título de “Teoria do Conhecimento como Filosofia Primeira” ao quinto capítulo de suas preleções de Introdução à Lógica e à Teoria do Conhecimento12. Neste curso, Husserl identifica a crítica do conhecimento, realizada pela teoria gnosiológica, com uma Filosofia Primeira, concebida num sentido cartesiano, anterior às ciências.
A expressão não foi escolhida ocasionalmente, nem se trata de uma formulação acidental. Há bons motivos para se supor que Husserl tenha se inspirado em texto de Paul Natorp para decidir sobre o uso do termo. A saber, Natorp faz menção à ideia de proté philosophia no seu estudo crítico do tomo I das Investigações Lógicas, no qual compara a proposta kantiana (de resolver a ontologia tradicional numa analítica do intelecto puro) com a proposta da nova crítica da razão de Husserl, que tende à mesma resolução, e que merece em atenção a isso o nome que ela reclama de uma proté philosophia. Husserl parece ter acolhido a ideia de Natorp como uma verdadeira sugestão, pois reconhece em seguida que ele havia caracterizado magistralmente a situação da fenomenologia iniciante13. Portanto, não é fora de propósito supor que o autor das Investigações tivesse em mente aquela sugestão ao procurar o conceito mais adequado para definir sua teoria transcendental do conhecimento.
Estreitamente ligadas com o curso de 1906/07, estão as cinco lições d’A Ideia da Fenomenologia, ministradas em 1907. É provável que essas lições por pouco não receberam o título de Filosofia Primeira, já que o manuscrito original do texto contém na sua capa a referida expressão escrita de próprio punho por Husserl.
Do mesmo modo, Husserl diz em uma preleção de 1909 que a fenomenologia é “(…) a Filosofia Primeira no sentido mais rigoroso (...), aquela a partir da qual todas as outras ciências devem receber o esclarecimento último do sentido de suas realizações” e através da qual “todas as ciências tornar-se-ão filosofias, componentes e fundamentos de uma doutrina absoluta e abrangente do ser”14. O teor desta declaração, feita por um Husserl prestes a terminar os trabalhos da primeira década do século XX, permite vislumbrar que, ao longo daqueles anos, o filósofo já havia dado importantes passos na direção da fenomenologia transcendental da consciência pura, que seria plenamente desenvolvida em Ideias I, no chamado “giro idealista”. Nesse contexto, a ideia de Erste Philosophie estaria diretamente relacionada com a ideia da filosofia transcendental cuja possibilidade despontava no horizonte husserliano.
Com efeito, quatro anos mais tarde, nas Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica, de 1913, isso começa a ficar mais claro. O título faz alusão a duas ideias diretrizes que devem guiar o projeto fenomenológico: a (I) ideia da fenomenologia pura, que é a ciência dos vividos intencionais da consciência, e que é chamada a proceder como ciência absolutamente rigorosa, regida pelo método da Redução; e a (II) ideia da filosofia fenomenológica, enraizada na fenomenologia pura e que é a filosofia autêntica, destinada a fazer da fenomenologia uma filosofia propriamente dita, e não um simples método filosófico ou uma simples propedêutica às filosofias do futuro.
Tudo indica que a ideia da Filosofia Primeira responde exatamente ao segundo ideal, isto é, àquele da filosofia fenomenológica. Husserl, na introdução do livro, ao traçar o plano para a trilogia das Ideen, evoca nos seguintes termos a concepção de Filosofia Primeira:
Um terceiro e conclusivo livro será dedicado à ideia da filosofia. Ele deverá despertar a evidência de que a filosofia autêntica, cuja ideia consiste em realizar a ideia do conhecimento absoluto, está enraizada na fenomenologia pura, e em um sentido tão sério que o fundamento e a execução sistematicamente rigorosos desta primeira de todas as filosofias são a condição prévia indispensável para toda metafísica e qualquer outra filosofia - “que poderá se apresentar como ciência” (Grifo nosso)15.
A concepção de “primeira de todas as filosofias”, aqui mencionada, está implícita no ideal de uma filosofia autêntica que teria como alvo a realização do saber absoluto. Como se sabe, este terceiro e conclusivo livro não saiu conforme planejado16, mas nem por isso a meta fora abandonada. Há bons motivos para se sustentar que o curso sobre Filosofia Primeira, ministrado em 1923/24, é o terceiro livro de Ideias que fora antes concebido para tratar da “ideia da Filosofia”. Com efeito, no § 62 do primeiro volume da célebre trilogia encontra-se um esboço daquilo que viria a ser, dez anos mais tarde, a “história crítica das ideias”, cuja exposição estava para ser feita - supunha-se - no terceiro volume (Ideen III), mas que só viria a aparecer, de fato, em 1923, na primeira parte do curso que recebe o mesmo nome: Erste Philosophie: kritische Ideengeschichte. Em 1913, Husserl limitou-se a adiantar os momentos centrais dessa história crítica:
(…) a fenomenologia é, por assim dizer, o anseio secreto de toda a filosofia moderna. Os esforços para chegar a ela ocorrem já na admiravelmente penetrante consideração fundamental de Descartes e depois novamente no psicologismo da escola lockiana, com Hume já quase adentrando seus domínios, embora com a vista ofuscada. O primeiro a enxergá-la mesmo foi Kant (…) por exemplo, a dedução transcendental da primeira edição da Crítica da Razão Pura já se move propriamente em solo fenomenológico (…). Com isso, estamos adiantando futuras exposições (do terceiro livro deste trabalho).17
No § 63, que se segue, Husserl fala ainda da legitimidade com que a fenomenologia pode reivindicar o venerável título de Filosofia Primeira:
Acrescente-se que - e isso é muito mais importante, porque se refere a princípios - a fenomenologia tem por essência de reivindicar o direito de ser filosofia “primeira” e de oferecer os meios para toda crítica da razão que se possa almejar, e que, por isso, ela requer a mais completa ausência de pressupostos e absoluta evidência reflexiva sobre si mesma. Sua essência própria é a realização da mais perfeita clareza sobre sua própria essência e, com isso, também sobre os princípios de seu método.18
Nossa historiografia do conceito deve incluir ainda a seguinte antecipação, feita em um artigo publicado em 1921, no qual Husserl refere-se à Filosofia Primeira como:
(…) ciência do método em geral, do conhecimento em geral e de possíveis metas do conhecimento, por exemplo, conhecimentos possíveis a partir dos quais todas as ciências a priori, as quais eliminaram contingências de todo tipo (também os a priori materiais e contingentes), resultam como desdobradas ramificações. Acima de todas as ciências se eleva a mathesis universalissima ... como uma matemática das operações cognoscitivas ... Esta lógica mais alta que brilhou com inteligibilidade absoluta. . . move-se em distintas formas de pura subjetividade e exige o estudo da plena subjetividade pura.19
Nas Conferências de Londres, por sua vez, ao tratar do método e da filosofia fenomenológicas, Husserl diz que a “fenomenologia transcendental (…) tem por resultado ser a ciência necessária do método e a filosofia ‘primeira.”20 No artigo escrito para a Enciclopédia Britânica, ao explicitar o projeto de uma psicologia fenomenológica, Husserl chamou a fenomenologia de Filosofia Primeira enquanto ciência que se ocupa da subjetividade transcendental possível em geral21.
Na Introdução à Filosofia, de 1922/23, uma colocação de cunho metodológico introduz de novo as mesmas diretrizes: a última reflexão a ser efetuada sobre a subjetividade transcendental, trazendo-a a uma clara doação de si mesma, só é possível pelo “método fenomenológico, que constitui então a fonte original de todos os métodos filosóficos. A primeira ciência a crescer nesse solo absoluto é a fenomenologia, logo, ela é a Filosofia Primeira em um sentido determinado e claro.”22
Como já dito, tudo isso viria culminar no curso de inverno de 1923/24 intitulado justamente “Filosofia Primeira: História Crítica das Ideias, volume I”, e “Teoria da Redução Fenomenológica, volume II”, publicados, respectivamente, como volumes VII e VIII da husserliana23. Na primeira parte do curso, devotada à justificação histórica da necessidade da fenomenologia, Husserl considera a história do pensamento ocidental sob o ponto de vista geral da “ideia de filosofia” que guiou os filósofos do passado, ideia que nasceu das reações de Sócrates e Platão ao ensino dos sofistas, que desembocou, enquanto ideia teleológica, na filosofia cartesiana da modernidade e, a partir daí, veio determinar teleologicamente todo o desenvolvimento ulterior da ciência. Segundo essa ideia diretriz socrático-platônica, diz Husserl, a filosofia deve constituir um conhecimento absolutamente fundado, e sua base vem de uma tripla remissão a si mesma (Selbst): (I) uma suprema e última tomada de consciência de si (Selbstbesinnung), (II) um supremo e último esforço de auto-compreensão (Selbstverständigung), (III) uma suprema e última autorresponsabilização (Selbstverantwortung)24.
Como foi adiantado nas Ideias, é através dessa tripla remissão que a fenomenologia, enquanto filosofia, alcança a “absoluta evidência reflexiva sobre si mesma” e converte-se em Filosofia Primeira. Para isso, ela exige “a mais completa ausência de pressupostos”, ou seja, ela exige a epoché e o método de Redução fenomenológica. Nesse registro, a segunda parte do curso, de 1924 (Erste Philosophie: Theorie der phänomenologischen Reduktion), é dedicada justamente à justificação teórica do método fenomenológico e à determinação das vias redutivas abertas por esse método.
As ocorrências do termo nas obras posteriores são bem tímidas, mas não menos importantes. Nas Meditações Cartesianas, a ideia de “Filosofia Primeira” é evocada uma única vez, escrita entre aspas e na forma de um imperativo: pelo prosseguimento das últimas reflexões, diz Husserl, “torna-se para mim evidente (...) que devo, desde o início, desenvolver uma Fenomenologia puramente eidética e que só nela se consuma e pode consumar a primeira realização de uma ciência filosófica - a de uma ‘Filosofia Primeira”25.
Isso posto, resta a pergunta: que avaliação, no fim das contas, pode ser feita dos resultados atingidos pelo projeto da Filosofia Primeira? Em suma, o que dizer da conclusão desse projeto? Aqui se delineia toda uma problemática. Landgrebe, no seu controverso artigo “A despedida de Husserl do cartesianismo”, discute o segundo tomo das preleções sobre Filosofia Primeira e defende que, em contraste com a primeira parte histórica, que alcançou, por fim, grande unidade interna, a segunda parte teria “todo o aspecto de um rascunho redigido de última hora”, de uma “improvisação”, não passando de uma “aventura experimental de pensamento” cujos resultados, sendo imprevisíveis, levariam Husserl a consequências completamente diferentes das que ele havia pretendido obter no início26.
Husserl, assim, teria se dado conta de que aquele caminho e aquela forma de justificativa não eram viáveis e, por isso, ele se veria no trabalho tardio da Krisis compelido a enveredar por um caminho completamente diverso. Langrebe, apesar de tecer elogios ao texto como aquele em que Husserl mais teria submetido a uma criteriosa avaliação crítica as suas próprias posições, considera, por outro lado, que a história de sua composição não é mais do que a história de um fracasso (eines Scheiterns). Com relação ao uso da expressão “Filosofia Primeira”, Landgrebe pôs ênfase no fato de que o título, na sequência das obras posteriores, foi aos poucos retirado de cena, mencionado apenas en passant, raras vezes e entre aspas. Sua suposição é que a expressão mais geral “filosofia transcendental” tomou o seu lugar, e que Husserl, além disso, teria abandonado aquela ideia diretriz como impraticável27.
Para Landgrebe, o referido abandono equivale também a uma despedida (Abschied) do cartesianismo, pois Husserl teria sido compelido a deixar para trás a via de justificação pelo fundamento arquimédico de Descartes. Isso porque o filósofo francês, “desde seu ponto de partida, só pôde chegar a resultados igualmente seguros a partir da doutrina das ideias inatas e garantir o rigor delas, do mesmo modo, através da existência de Deus” - uma via de argumentação metafísica que está definitivamente fechada para Husserl.28
É claro que a leitura - polêmica - de Landgrebe não é unânime entre os intérpretes e foi contestada por diversos autores, entre eles: Arion Kelkel, biógrafo de Husserl que traduziu para o francês e prefaciou os dois tomos de Erste Philosophie, e o filósofo Luis Villoro, que escreveu uma excelente resenha bibliográfica do segundo volume, sem contar a reserva por parte dos autores que pesquisam o momento especificamente “cartesiano” da fenomenologia de Husserl e defendem a continuidade da presença, mesmo implícita, da mão de Descartes no estudo fenomenológico da experiência transcendental, realizado na Krisis. Assim, a suposta “despedida” de Husserl do cartesianismo é uma questão ainda em aberto.
Do que resulta que o discurso sobre o “fracasso” e a “desistência” do projeto da Filosofia Primeira, e sua suposta impraticabilidade, é algo que está ainda para ser debatido, tendo em vista as perspectivas acima que merecem ser levadas em consideração. O que dizer das possibilidades de retomada e re-fundação da Filosofia Primeira no interior do projeto fenomenológico? Em que medida esta se deixa comparar com a Filosofia Primeira tradicional, e que papel será cumprido por ela na história da fenomenologia? São questões que não podem ser omitidas do estudo que se segue.
Teoria gnosiológica; doutrina rigorosa do esclarecimento último do sentido das realizações científicas; doutrina absoluta e abrangente do ser; condição prévia indispensável para a metafísica e para qualquer outra filosofia que pretenda se apresentar como ciência; crítica da razão; ciência necessária do método em geral; mathesis universalíssima; ciência da subjetividade transcendental em geral; fonte original de todos os métodos filosóficos: como se articulam todos esses títulos que a Filosofia Primeira recebe? Em que sentido ela é designada por diferentes nomes, sem perder o sentido de unidade que Husserl parece lhe conferir? Daremo-nos por satisfeitos se o nosso artigo puder contribuir com algo no esclarecimento dessas questões.
II. A Teoria do Conhecimento como Filosofia Primeira
Para começar, deve ser dito que o projeto de uma Filosofia Primeira identifica-se com o de uma Teoria do Conhecimento (Erkenntnistheorie) primeira que possui por aptidão a vocação de organizar o quadro universal das ciências caracterizadas como segundas, elevando-se acima delas e, ao mesmo tempo, as coroando como ciências definitivamente fundamentadas sob princípios certos e absolutos. Nesse sentido, não é muito diferente do que acontece na Metafísica de Aristóteles, no contexto em que surge a ideia da πρώτη φιλοσοφία, assim como nos Principios da Filosofia de Descartes, no contexto em que o projeto da Prima Philosophia é apresentado em relação esquemática com a hierarquia das ciências29.
Na sinopse escrita para as Meditações Cartesianas, Husserl lança um programa semelhante, recorrendo à metáfora dos ramos que remete, por sua vez, à imagem da árvore do conhecimento:
A formação sistemática da Fenomenologia apriorística encerra em si, enquanto seus ramos, todas as ciências apriorísticas numa fundamentação absoluta. Ela preenche a ideia de uma Ontologia Universal, ao mesmo tempo formal e material (uma Filosofia Primeira) ou, coisa que vem a dar no mesmo, de uma Doutrina da Ciência completa, radicalmente fundamentada.30
Essa ramificação das ciências a partir de um tronco original, e sua organização em escala ascendente, são processos que respeitam o princípio da doação dos objetos. Sabe-se que, na história da fenomenologia, desde as Investigações Lógicas, o princípio de Husserl - de reconhecer o direito originário de tudo aquilo que é dado ao eu na intuição imediata - levou-o ao “reconhecimento do direito originário do ser-dado de objetividades ideais”, que incluem “objetividades de toda espécie”, “objetos eidéticos”, “essências conceituais”, “legalidades eidéticas”, e a consequência óbvia que se segue disso é “a possibilidade universal das ciências de essências que se referem a objetividades de todas as categorias objetivas, quaisquer que sejam as espécies, e a exigência de elaborar sistematicamente ontologias formais e materiais.”31.
Mas algo que não pode deixar de ser observado é que a proposta de Husserl de organização da hierarquia das ciências, sob a tutela da ideia da Filosofia Primeira, repete, a seu modo, o mesmo esforço antes empreendido por Aristóteles e Descartes, principalmente, no que se diz respeito ao projeto de uma Mathesis universalis. Jean-Luc Marion fez notar que o esquema cartesiano das três ciências principais: metafísica, matemática e física, “reproduz o tópico das mesmas três ciências principais segundo Aristóteles”32, que expõe no livro E da Metafísica o objeto próprio a cada uma delas: a ciência física considera as coisas em movimento afetadas de matéria e não eternas; a ciência matemática considera as coisas imóveis, mas não separadas, porque abstraídas da matéria; a ciência metafísica ou teológica considera coisas separadas e imóveis, portanto, eternas e desprovidas de matéria. Esta última é caracterizada como Filosofia Primeira. A relação entre os tópicos aristotélico e cartesiano é assim confirmado:
Aristóteles não submete as matemáticas somente particulares (geometria, aritmética, etc.) à ciência teológica; ele considera nada menos que uma matemática universalmente comum a todas, καθόλου πασών κοινή, logo, uma ciência universal da quantidade e da medida que, sem se confundir com elas, precede e torna possível as ciências comumente ditas matemáticas. Ora, semelhante ciência meta-matemática, em Aristóteles, se antecipa à Mathesis universalis da Regula IV, ao menos nisto que concerne ao parâmetro da medida - aquele da ordem que é própria à empresa cartesiana.33
O que Husserl tem em vista é o ideal cartesiano de uma ciência universal absolutamente fundada e justificada que seja capaz de satisfazer a ideia da filosofia como unidade universal das ciências. O projeto de uma Mathesis universalis cartesiana é assumido explicitamente aqui. No entanto, apesar do texto das Cartesianische Meditationen conter inequívoca referência às Meditationes de Prima Philosophia, o texto mais visado por Husserl ao propor uma nova Mathesis é o texto das Regulæ ad directionem ingenii, obra inacabada de Descartes na qual o filósofo francês define a Mathesis a partir de sua função metodológica de fixação do critério da evidência como regra da verdade34.
No entanto, esse conceito é assim definido para logo em seguida desaparecer de cena, estando ausente das preocupações e dos temas explícitos das obras publicadas posteriormente por Descartes. Dentre as várias explicações para isso, diz Gilles Olivo, uma é a possibilidade de que o projeto matésico sofrera depois, nas obras acabadas, uma atenuação e uma subordinação ao projeto metafísico das Meditationes35. Para o autor, Husserl teria recusado essa subordinação. Olivo constata que o filósofo alemão não se limita a assumir a visada cartesiana tal como ele a lê nas Meditationes, ele a interpreta a seu modo e decide “unificar a diversidade temática e cronológica dos textos cartesianos em nome de um projeto que lhes seria comum, ao ponto de ler o desígnio disso nas Regulæ e sua realização nas Meditationes (...)”36. É provável, portanto, que Husserl estabeleceu uma relação entre as duas obras através do élan proporcionado pela ideia da Mathesis, que haveria de se consumar como Prima Philosophia.
Assim, o cenário em que surge a ideia de uma Filosofia Primeira na obra de Husserl, como vimos, as lições de Introdução à Lógica e à Teoria do Conhecimento, de 1906/07, é um cenário marcado particularmente pela retomada da Mathesis universalis, que consiste não apenas na unidade universal das ciências, mas na tarefa de hierarquização das disciplinas científicas, ao qual corresponde uma demarcação sistemática do território de cada ciência e do tipo de objeto pertencente por essência a cada uma delas. Conforme indicado pelo título das lições, essa atividade de definição e demarcação gira em torno dos conceitos de Lógica (Logik) e de Teoria do Conhecimento (Erkenntnistheorie), que o curso tem por objetivo apresentar aos ouvintes/leitores sob a forma de uma introdução (Einleitung)37.
Mas o que nos ocorre de imediato, falando do conceito de demarcação, é a figura contemporânea do “critério de cientificidade” e a ideia de uma “filosofia da ciência”, que seria a disciplina filosófica especial que assume a tarefa de estabelecer esse critério, explicitando o traço demarcatório que define as ciências como ciências. O problema é que a fenomenologia não é comumente associada a esta tradição chamada de “filosofia da ciência”, na qual figuram nomes como Popper, Hempel, Khun, Lakatos, dentre outros. Não obstante, há por outro lado autores que, pensando a adequação da fenomenologia ao debate filosófico contemporâneo, defenderam a pertinência de se fazer a relação acima, provando que os interesses husserlianos não eram alheios à proposta de uma filosofia da ciência, principalmente, no que diz respeito às disciplinas formais.38
Colocaram o acento esses intérpretes que, na primeira versão formulada por Husserl, a fenomenologia está próxima de uma Wissenschaftlehre, uma doutrina ou teoria das ciências. No seu livro “A cientificidade na Fenomenologia de Husserl”, Sacrini parte de comentadores como Gurwitsch e Hardy e busca mostrar que a questão das ciências ocupa na obra de Husserl dois lugares preeminentes: “a cientificidade se deixa entender tanto como um tema privilegiado das análises fenomenológicas quanto como uma característica dessas análises”39.
Pelo lado do tema, Husserl insiste em frisar que a fenomenologia tem como uma de suas tarefas fundamentais propiciar um tipo especial de fundamentação do conhecimento científico. Deve-se entender por “especial” que se trata aqui de um tipo de fundamentação que somente a filosofia na atitude fenomenológica pode oferecer, diferente da fundamentação de caráter epistemológico que o método científico é capaz de providenciar por si mesmo40. Ocupando-se disso, o projeto da Wissenschaftlehre demonstra sua aptidão para organizar a hierarquia das disciplinas científicas segundo o aspecto cognoscitivo-fenomenológico de cada objeto nelas investigado, e ele quer posicionar-se contra a organização meramente empirista/positivista desse quadro e contra a μετάβασις εἰς ἄλλο γένος cometida pelas filosofias naturalistas em geral e, em particular, pelo psicologismo41.
Deve ser observado, porém, que Husserl não contesta a psicologia enquanto descrição factual científico-explicativa de empiricidades (e o ponto central de sua crítica está neste “enquanto”), mas na sua pretensão de constituir o fundamento da lógica pura, e dar um significado psicológico às leis lógicas. Quase se pode dizer que aquilo que Husserl rejeita no psicologismo é sua pretensão de estabelecer-se como “Filosofia Primeira”, ultrapassando o campo que pertence à psicologia, “ciência do psíquico” por definição, e tomando o lugar da filosofia na justificação última do sentido do conhecimento.
Mas que tipo de introdução Husserl faz da Teoria do Conhecimento que permite defini-la como uma Filosofia Primeira? Nos termos em que Husserl se exprime, ela parece ser definida como primeira por conta de sua referência (Beziehung) a todas as outras ciências e por causa do papel de avaliação definitiva que ela cumpre junto às disciplinas e conhecimentos científicos, que lhe estão subordinados:
A teoria do conhecimento é a disciplina que tem como objetivo auxiliar as ciências a avaliar seu conteúdo final de conhecimento, e auxiliar todo conhecimento científico a chegar a uma fundamentação e a uma conclusão definitiva. No entanto, ela se refere a todas as ciências por intermédio da Ontologia Formal, da Ontologia Real e da Lógica Normativa, ela está primariamente relacionada a essas disciplinas lógicas como suas subalternas. E, através destas últimas, ela está relacionada a todas as outras disciplinas e conhecimentos científicos. Sobretudo, está ela diretamente referida à Mathesis Formal, e, simultaneamente, aos respectivos ensinamentos da Noética.42
A Erkenntnistheorie é a ciência crítica do conhecimento que tem a função de esclarecer: a (1) possibilidade, o (2) sentido e a (3) essência do conhecimento objetivo por parte da subjetividade cognoscente43. Como se vê, ela mantém uma relação assimétrica com todas as outras ciências, referindo-se a elas unilateralmente, sem que elas tenham de referir-se de volta. Elas não precisam referir-se em retorno, com efeito, porque as ciências são operatórias e se contentam com a quase-claridade (quasi-klarheit) das operações de explicação, dedução e demonstração, e não com a completa claridade do sentido e com as condições últimas de possibilidade exigidas pela consideração gnosiológica.
A avaliação (Auswertung) deve comportar aqui o sentido de explicitar. Avaliar é explicitar o valor (Wert) de evidência, de verdade, de conhecimento, que reside no interior daquilo que é avaliado. A remissão avaliadora da Teoria do Conhecimento seria assim a explicitação dos fundamentos do saber científico. A ação de explicitar, por sua vez, pressupõe a existência de algo implícito, de algo que repousa na obscuridade e que precisa ser elucidado, isto é, ser trazido à luz, à completa evidência.
E quando é dito que a Erkenntnistheorie se relaciona igualmente com a Noética, para além da Mathesis formal, entende-se que ela complementa o estudo das condições objetivas de conhecimento com o estudo das condições subjetivas, assumindo na sua consideração a máxima universalidade.44 O capítulo quatro, intitulado “Noética como teoria de justificação do conhecimento”, introduz o nome da disciplina científica especificamente designada para o estudo das condições subjetivas: a Noética, que deve compor uma parte central do projeto fenomenológico. No § 27, Husserl chama as condições noéticas de tomadas de posição intelectivas (intellektiven Stellungnahmen) e aponta a necessidade de existir uma nova disciplina que se ocupe da explicitação fenomenológica dessas tomadas de posição. Essa disciplina se concentrará em todas as ciências igualmente, investigará todos os atos cognoscitivos que exigem justificação.
É então que, no § 31, depois de explicitar a diferença entre lógica matemática e lógica filosófica, entre filosofia e ciências da natureza, Husserl mostra como a filosofia se estabelece acima de todas as demais ciências45, sob a condição de não tomar nenhum conhecimento como dado, como pressuposto, e através de uma orientação de pensamento completamente antinatural, que lhe é proporcionada pela Redução fenomenológica. É desse modo que Husserl pode identificar Erkenntnistheorie e Erste Philosophie:
Torna-se claro que a filosofia, ou melhor, a “Filosofia Primeira”, no sentido autêntico, está igualmente relacionada a todos os campos do conhecimento e a todas as teorias e ciências naturais a serem neles estabelecidas. Ela é a ciência dos princípios, nomeadamente, a ciência do esclarecimento último, da conclusão última, todos entendidos no sentido da universalidade principial. Ela não intervém em campo algum do conhecimento, mas mesmo assim diz respeito à sua “crítica”, ao esclarecimento do seu sentido, de modo oniabrangente, uma vez que ela concerne, em princípio, a todas as etapas metódicas e a todos os atos de pensamento que reivindicam legitimidade conforme a essência de sua operação.46
A função prescrita à Teoria do Conhecimento, como primeira, não é a de uma intervenção nos campos científicos, mas a de operar uma crítica que tem sobre eles uma absoluta precedência:
A Filosofia Primeira, ou, o que é o mesmo, a crítica da razão teórica, a “Teoria do Conhecimento”, não prova individualmente os conceitos básicos, princípios e teorias presentes na ciência atual, ela não executa in concreto, por assim dizer, o passo a passo do necessário esclarecimento e da determinação final do sentido. Mas, em exaustiva universalidade, ela fornece tudo o que torna essa realização possível. E ela ganha essa universalidade exaustiva com base em uma exposição completa e em um esclarecimento crítico-gnosiológico de todas as “formas de pensamento”, ou seja, de todas as categorias e axiomas formais que se desdobram em teorias matemáticas nas disciplinas naturais matemáticas, e com base, da mesma maneira, no pleno esclarecimento correspondente às formas metafísicas, isto é, às categorias reais subjacentes a toda concepção de natureza e a toda determinação natural. E, finalmente, com base no esclarecimento de todas as categorias noéticas (caso queiramos admitir esta expressão, que é inteligível sem maiores dificuldades).47
Pode-se sustentar então que há uma Lógica Primeira que inscreve no seu domínio todas as formas lógicas possíveis (lógica formal, lógica dos significados, lógica normativa, apofântica, matemática, teoria das multiplicidades, etc.). Ela é determinada como uma Mathesis universalis e é dirigida para o lado objetivo das ciências concebido como sistema de todos os sistemas possíveis de encadeamento ordenado de proposições. Do mesmo modo, deve haver uma Filosofia Primeira capaz de inscrever no seu domínio todas as formas cognoscitivas possíveis (tanto lógicas quanto noéticas, tanto empíricas quanto transcendentais). Ela deve ser determinada como uma Mathesis filosófica universalíssima dirigida para o lado subjetivo do conhecimento (não só do saber científico, mas de todo saber possível) concebido como forma transcendental da subjetividade, única que dá sentido e valor de objetividade ao conhecimento enquanto conhecimento de mundo.
III. A Filosofia Fenomenológica e a questão da origem
Depois de 1913, Husserl deixou de ver sua filosofia como uma Teoria do Conhecimento e assumiu uma posição crítica com relação à filosofia moderna em geral e à orientação gnosiológica adotada de início pela fenomenologia, por causa das lacunas que nesta restavam quanto ao problema da intersubjetividade e da subjetividade transcendental. Husserl tornou-se também crítico do modelo de ciência dos neokantianos de Marburgo, para quem a função da filosofia deveria ser descrita como “científico-lógica”, e funcionar como um teste e uma certificação dos resultados alcançados nas teorias científicas, tendo em vista a justificação final delas48.
Ora, diz Husserl, esse modelo não seria uma “Filosofia Primeira”, mas antes uma “filosofia última”, que, como a Coruja de Minerva, citada por Hegel, só chegaria tarde demais, depois que todo o trabalho das ciências estivesse pronto. Se ela for verdadeiramente “Filosofia Primeira”, sua função deve comportar, pelo contrário, o sentido de uma fundamentação que precede a pesquisa científica. “Tratar-se-ia primordialmente não de uma justificação final no estilo neokantiano, mas antes da avaliação de um conhecimento ultimamente fundamentado.49”
Essa ciência filosófica primeira só adquire um significado mais preciso após a virada transcendental de Husserl nas Ideias. Em célebre artigo que trata das diferenças entre fenomenologia e criticismo neokantiano, Fink salientou50 que a démarche das Investigações Lógicas, que se constitui como um “correlativismo rigoroso”, uma atitude “objetiva face a face às formações lógicas e um retorno subjetivo aos vividos, nos quais são dados os objetos temáticos da lógica pura, conteria, na obscuridade de sua fundação metodológica”, as motivações que guiariam Husserl à formulação do método de “Redução fenomenológica”, assim como à descoberta da subjetividade transcendental proporcionada por esse método. Só aí é que o intuito filosófico de Husserl chegaria à plena consciência de si mesmo.
Sabe-se que o desvio de Husserl do “criticismo” sofreu uma recepção crítica do lado dos neokantianos. Zocher e Kreis, por exemplo, acusaram a fenomenologia de ter recaído no dogmatismo pré-kantiano, quer dizer, numa espécie de intuicionismo e ontologismo dogmático. Fink, com o fim de responder a essa acusação, escreve que toda crítica pressupõe, no mínimo, uma compreensão preliminar do objeto criticado por ele mesmo e em si mesmo, e que a crítica “criticista” não satisfaz, absolutamente, esse requisito, já que não se instalou na atitude fenomenológica para fazê-lo. A questão é que o conteúdo essencial da fenomenologia dificilmente pode ser apreendido de fora, de um ponto de vista “mundano”, sem praticar a Redução.
Na discussão com a crítica contemporânea da filosofia de Husserl, Fink ressalta que a “questão fundamental da fenomenologia, pela qual ela renova (...) numerosos problemas tradicionais, e que manifesta sua oposição radical ao criticismo, pode ser formulada como a questão da origem do mundo.”, ou seja, “a eterna questão humana sobre a origem (Anbeginn), para a qual mitos, religiões, teologias e especulações filosóficas tentaram fornecer uma resposta, cada um deles à sua maneira.”51
É ao explicitar essa questão que a fenomenologia é capaz de resolver a tensão que existe entre a sua tendência minimalista, de proceder como ciência de rigor, e a sua tendência maximalista, de propor-se como uma meta-ciência destinada a estabelecer os princípios fundamentais do conhecimento e, com eles, fixar o critério de cientificidade das ciências. Com efeito, parece haver uma contradição entre essas duas inclinações do projeto fenomenológico. Alves levanta o problema nos seguintes termos:
Se aquilo que funciona como mola propulsora de todo o caminho de pensamento da fenomenologia, e subsume todas as suas temáticas particulares, é a questão da intencionalidade da consciência e o interesse por uma exploração sistemática das vivências intencionais sob todos os seus modos, como, então, a fenomenologia pode elevar-se à dignidade de uma ciência primeira e universal, já que, desde a partida, a limitação do seu horizonte temático condena-a “a desenvolver-se sob a forma de uma simples investigação sobre a essência da consciência?” Ela já não estaria confinada a um campo restrito de objetos - o campo da consciência?52 “Não entrará esta sua limitação temática inicial em flagrante contradição com as suas intenções derradeiras?”53
Alves adianta, em resposta, que o que se põe em destaque na referida delimitação não é a questão fundamental da fenomenologia, mas apenas o seu tema reitor. Se é verdade que a fenomenologia circunscreve um domínio próprio ao tematizar a intencionalidade das vivências, é certo também que ela não deve ser apreciada apenas em função disso, pois o tema reitor pressupõe uma questão de fundo. Tão-logo seja feita a distinção entre tema diretor e problemática fundadora, perceber-se-á que, numa filosofia, esses dois momentos não coincidem exatamente. No caso da fenomenologia, isto é nítido: o tema da intencionalidade nunca será compreendido em toda sua amplitude se for amputado “do movimento que o constitui a partir da posição da questão fundamental.”54
Para Alves, a questão que a fenomenologia põe como fundamental identifica-se com a “exigência mais basilar de todo o pensamento filosófico e científico (...), a exigência de um conhecimento absolutamente válido e definitivo daquilo que é objetivamente.”55 Trata-se, nesse sentido, de uma motivação colhida na gênese do pensar racional, nem mais nem menos do que aquilo que o pensar filosófico e científico pretendeu alcançar desde sempre, na pluralidade de suas figuras históricas de concretização. Só que a fenomenologia não experimenta o ideal fundador do pensar filosófico na forma ingênua de uma tarefa que está sempre em progresso no interior das disciplinas particulares, com o acúmulo histórico dos saberes positivos. O que a fenomenologia introduz de novidade é que ela pretende superar tal ingenuidade, e converter radicalmente aquela exigência numa questão prévia a ser examinada nas condições mesmas de sua possibilidade.
E ela se inscreve na perseguição desse ideal não como uma filosofia segunda, como herdeira, simplesmente, de um legado consumado e transmitido pela tradição. Pelo contrário, a fenomenologia requer a Aufhebung em relação à atitude mundana natural56, isto é, a Redução fenomenológica, que permite instaurar um corte em relação à totalidade do saber constituído para inaugurar um conhecimento original e primeiro, fundado na nova experiência transcendental, que se oferece ao mesmo tempo como uma “reabertura e um retorno às fontes primordiais de todo o pensar filosófico e científico.”57
Imbuída do espírito da Aufhebung, a ambição da fenomenologia apresentada nas Ideias I é levar adiante o projeto descritivo dos neokantianos acrescentando a este o radicalismo cartesiano das Meditationes, instalar-se na perspectiva pura da consciência transcendental e fazer a descrição concreta de seus modos. A Filosofia fenomenológica é, sob um primeiro aspecto, “uma ciência omni-englobante que se relaciona com todos os fenômenos temáticos das outras ciências (mundanas), uma meta-ciência instaurada pela passagem da atitude ontológica ingênua (orientada sobre os objetos mundanos) para a atitude transcendental, fenomenológica ou reflexiva.”58 Sua reflexão é dirigida à consciência pura, descrita como irreal e considerada em suas diferentes modalidades de orientação intencional, voltada para os objetos.
Sob um segundo aspecto, é uma ciência eidética dos fenômenos transcendentalmente purificados, que, longe de se perder na multiplicidade dos vividos singulares da consciência, trata de descobrir nesta as estruturas essenciais de doação e constituição, os tipos estruturais da correlação intencional, os modos “pelos quais uma consciência se relaciona às diversas categorias de objetos.”59
Para Pradelle, a definição da fenomenologia transcendental deixa-se enquadrar na conjunção destes traços: “(I) conhecimento eidético do irreal (Wesenserkenntnis von Irrealem) e (II) ciência eidética das estruturas do campo irreal da consciência pura.” Sobre o método, por sua vez, deve-se dizer que tem um triplo aspecto: (I) redução fenomenológica de todo ente transcendente; (II) reflexão transcendental sobre os vividos; (III) intuição eidética de suas estruturas. A reflexão transcendental tem um primado sobre tudo isso, pois, se é verdade que o papel da intuição eidética é desvelar as estruturas intencionais da consciência pura, o papel que cabe à reflexão, efetuada em regime de Redução, é controlar o acesso a essa região de irrealidades; e a ideação, enquanto modo de elucidação metódica, deve exercer-se numa zona de apoditicidade “preliminarmente descoberta pela redução e pela reflexão.”60
Os passos da Redução, por sua vez, que começa pela Epoché, comporta diferentes significados, mas traz sempre a ideia de recondução. A recondução dos dados transcendentes contingentes ao dado com evidência apodítica (significado gnosiológico); a recondução do ser relativo ao absoluto (significado ontológico); a recondução do mundo como suma de realidades à sua origem constituinte e à sua fonte de sentido (significado semiológico-fenomenológico); a do eu perdido nos objetos ao eu consciente de seu próprio sentido (significado existencial); a da vida orientada a valores relativos à vida orientada ao valor absoluto (significado axiológico). “Todos esses passos, de tão diversa índole, quedam unificados no trânsito do mundo natural à subjetividade transcendental.”61
IV. A consciência dos horizontes
O problema da origem do mundo tem como um de seus momentos essenciais a pergunta pela unidade de todos os fenômenos. A fórmula descritiva que melhor exprime essa “unidade” do mundo, na fenomenologia, encontra-se no título “horizonte” que Husserl emprega para designar a totalidade das implicações intencionais62. Assim o transcendentalismo husserliano, logo no início da análise intencional, depara-se com a tarefa de colocar em evidência as implicações intencionais que, de modo implícito, estão contidas em toda consciência de alguma coisa.
Considerado concretamente, dizemos que o horizonte é um simples componente da percepção visual. Do mesmo modo como há linhas dispostas em vertical, de baixo para cima, existem linhas “deitadas” ou dispostas na horizontal, a ligar duas extremidades num mesmo plano. No espaço aberto, a linha horizontal possui formato côncavo e parece unir a terra ao céu, ou o mar ao céu, sendo o “lugar” onde o sol nasce e se põe. O eu é o ponto-zero de orientação em torno do qual o horizonte deixa-se captar na forma de polos e de direções possíveis do olhar. O horizonte inscreve o todo do olhar num quadro sinóptico planificador, no qual a consciência se vê situada na superfície da terra a enxergar centrifugamente as coisas distribuídas em torno, em coordenadas de latitude e longitude, estando no mesmo nível que elas, e por elas circundada, como no centro de uma cúpula. O horizonte configura tanto o limite do alcance visual quanto a sua possibilidade. O olhar não pode estender-se para além do horizonte, que é como uma parede, mas ele encontra neste mesmo limite a abertura para uma infinidade de “mirantes” ou postos de observação possíveis.
Não se deve esquecer que os horizontes comportam também realidades que nos envolvem, nos ultrapassam e se estendem pelo desconhecido e indeterminado. Mas a ideia de horizonte pode ser tomada igualmente em sentido metafórico ou como figura de linguagem a partir do seu sentido originariamente espacial. Assim, ela se deixa associar também com a ideia de contexto, de conjuntura, de panorama, ou cenário, paisagem, ou palco onde as coisas no mundo são e acontecem. Guardadas as devidas proporções, pode-se falar legitimamente então de horizonte histórico, de horizonte cultural, horizonte intersubjetivo, etc.
A consideração fenomenológica vê na ideia de horizonte não um simples componente a mais da abertura visual, como outros, e sim uma estrutura fundamental que organiza a correlação entre consciência e objeto63. O caso mais ilustrativo de tal correlação é o da percepção visual, por isso, Husserl recorre com maior frequência a esta para exemplificá-lo. Podemos dizer que o horizonte, em tal percepção, é o espaço de jogo entre a presença e a ausência das coisas percebidas. O objeto visto, ao mesmo tempo, está presente em parte e ausente em parte; nele, a presença e a ausência são parciais, são unilaterais, acham-se numa constante dinâmica e numa mútua implicação intencional. Chamamos de presença a face do objeto que se mostra diretamente, a parte dele que é fixada pelo olhar atual, e que aparece em perfil, em relevo. Toda vez que o olhar se fixa num objeto, ele o capta por um lado apenas, enquanto os outros lados saem de cena. A ausência designa justamente essas faces não vistas do objeto: elas jazem como que nas sombras, ficam por detrás daquilo que é percebido atualmente.
A análise que Husserl faz dos horizontes fenomenológicos articula alguns conceitos fundamentais que funcionam como descritores:
(I) O primeiro deles é a estrutura forma-fundo. A face do objeto que se oferece ao olhar é a forma que se destaca de um plano-de-fundo, ela é o que se faz presente sob um fundo de ausências. Cabe observar que presença e ausência são momentos solidários da percepção, e nunca se separam. A forma, como presença, é o esboço do objeto que entra em cena enquanto o fundo é o que recua; a forma é a face que é captada pela visão atual enquanto as faces de fundo resvalam para trás, sendo apenas entrevistas, pressupostas. Tudo isso, porém, é um jogo que se passa no tempo, pois a visão está dirigida sobre o objeto dinamicamente, assumindo diferentes pontos de vista que se seguem articuladamente uns dos outros. Assim, o objeto se mostra como um núcleo multifacetado no interior do qual as múltiplas facetas revezam-se continuamente, indo do fundo à forma e da forma ao fundo, à medida que as perspectivas mudam.
(II) Os pontos de vista podem ser multiplicados indefinidamente sem que nenhum deles esgote as possibilidades de apreensão, dando a coisa por completo. O conceito de inesgotabilidade entra como um componente essencial desse estado-de-coisas. A visão percorre a superfície que reveste o objeto indo de uma parte à outra sem que nenhuma parte onde o olhar está atualmente pousado exiba o objeto integralmente, mas apenas pelo lado mais próximo. A fisionomia do objeto muda, conforme mudam as direções do olhar. É por isso que uma mesa circular, vista perpendicularmente, aparece sob o aspecto de uma elipse, e só se mostra perfeitamente redonda vista pelo lado de cima. É por isso também que um cubo se apresenta primeiramente aos olhos sob o aspecto de uma pirâmide, já que podemos apreender apenas três faces de uma só vez, e o cubo só é conhecido como cubo depois que sabemos que ele tem seis faces. E isso persiste indefinidamente, pois as perspectivas que apresentam o cubo podem multiplicar-se sempre mais e mais.
(III) A estrutura forma-fundo admite uma descrição também através do par de conceitos atual-potencial64. A forma que se destaca do fundo é a face que se atualiza, enquanto o fundo é o inatual. Mas este inatual pode a qualquer momento atualizar-se, a depender desta ou daquela nova orientação do olhar. Assim o inatual é uma potência, a ausência é uma potencialidade que irá cedo ou tarde presentificar-se, na continuidade da visão. Toda figura atual possui em torno de si um halo de inatualidades e cada um dos elementos desse espectro é capaz de destacar-se do meio dos outros e deixar-se abordar diretamente pelo olhar, cuja atenção é convidada a dirigir-se para ele.
(IV) O jogo de revezamento contínuo entre forma-fundo, atual-potencial, pode ser descrito igualmente como um jogo de sombra e luz. Sombreamento, adumbramento, talvez sejam os melhores termos em português para traduzir o conceito husserliano de Abschattung. A direção do olhar admite a comparação com a de um holofote que projeta sua luz sobre a face atualmente percebida. Na medida em que ela focaliza uma silhueta do objeto, iluminando-a, as partes de fundo repousam na obscuridade, traçando entre o centro e o plano-de-fundo visual uma série de encenações entre claro e escuro.
(V) O horizonte de captação visual do objeto está integrado num horizonte mais vasto que é o da captação intersensorial total, pois o mesmo objeto visualizado pode ser também tocado, apalpado, ouvido, sentido como fenômeno do olfato ou do paladar. Se a unidade do objeto se dá sob o modo de uma síntese da multiplicidade sensível, deve-se dizer que tal unidade sintética pressupõe já uma unidade do próprio horizonte intersensorial em que ela se inscreve, e que o horizonte é uma estrutura prévia à da síntese e constitui, como tal, a condição de sua possibilidade.
(VI) A forma fundamental dessa síntese - diz Husserl - é a identificação65. Falamos que é a estrutura da consciência mesma que efetua a ligação sintética entre as aparições lacunares do objeto que fluem no tempo, que identifica-o como uma forma concordante, como uma unidade ideal-idêntica no meio da multiplicidade de aspectos, de modos de apresentação, com que ele é dado. A síntese é chamada síntese de identificação, é ela que resolve a tensão entre a infinidade das aparências e a identidade ideal da coisa que aparece como única, ela é que produz a unidade que reúne e abrange a multiplicidade.
Mas há gradações do preencher dinamizado no tempo. Com efeito, os atos admitem diferenças para mais ou para menos no percurso do intencionar até o recobrir preenchente. No limite da diferença para mais encontra-se a confirmação plena. No limite da diferença para menos encontra-se a decepção plena. Na confirmação plena, todas as intuições preenchedoras são unânimes em apresentar o objeto tal como ele foi visado ao nível do pensamento. Na decepção plena, todas as intuições preenchedoras convergem na direção de um objeto completamente diferente daquele visado pela significação. Mas a plenitude de um lado e a nulidade de outro não são as únicas possibilidades. Entre os dois extremos repousam certas gradações de confirmação e de decepção.
Deve ser explicado, portanto, que existem graus de identificação e diferenciação, estas podem ser totais (na confirmação e decepção plenas) ou apenas parciais. A identificação parcial ocorre quando o preenchimento corrobora apenas em parte a significação de início visada, e a rasura pode obrigar a uma revisão: a coisa preenchida é apenas parcialmente o que eu julguei que fosse. A diferenciação parcial ocorre quando parte da coisa concorda com a significação visada, e outra parte apresenta disparidades que a contradizem, mas a parte constatada é suficiente para manter intacta a identidade entre intuição e significação.
Quando a comprovação na síntese tende a ser maior do que a decepção, a crença na coisa preenchida é motivada e, portanto, robustecida; quando o conflito tende a ser maior, a crença é desmotivada e, portanto, enfraquecida. A identificação possui uma prioridade em relação à diferenciação porque mesmo as diferenças são “identificadas” como “diferenças” e são distinguidas como tais das intuições confirmadoras. Logo, a estrutura predicativa da diferenciação regida pela identidade é A não é B e sim C, na qual a diferença é estabelecida a partir da tripla identificação de A como A, B como B (ou B como indeterminado), e de C como C.
(VII) O horizonte se divide em horizonte interno e horizonte externo. O interno se refere ao mesmo objeto que tem como horizonte uma multiplicidade de aparições por perfil; o externo se refere aos outros objetos que compõem o cenário de fundo e que aparecem ao mesmo tempo perfilando-se nos bastidores da aparição que ocupa a linha de frente. Abertas ao infinito, as determinações do mesmo objeto podem progredir indefinidamente no horizonte interno, uma vez percebidas na continuidade temporal. Cada apreensão lacunar do objeto, ao se preencher num ponto atual do tempo, deixa por detrás possibilidades vazias potenciais que podem atualizar-se, sem nunca chegarem a se completar por inteiro. O horizonte externo, por sua vez, “aberto e infinito, é composto de objetos (Objekt) co-dados, logo, trata-se de um horizonte em segundo grau, referido àquele do primeiro grau, e que o implica.”66
(VIII) Do mesmo modo como o horizonte é um horizonte de retenção dos pontos de vista já dados, como um cometa que arrasta consigo sua cauda, ele é também um horizonte de antecipação dos pontos de vista futuros. Embora sejam diferentes em relação ao objeto de experiência atual, os objetos co-dados são sempre semelhantes a ele segundo esta ou aquela típica, pois são todos co-pertencentes ao único horizonte espaço-temporal que os abrange, possuindo propriedades, relações e características comuns. É então que Husserl fala que a experiência de cada elemento que integra esse horizonte pode ser antecipada por analogia. Trata-se de uma “indução” originária que pertence por essência a toda experiência, que não deve ser confundida com um raciocínio lógico, pois ela é pré-reflexiva e precede toda atividade do juízo. A “indução” originária (...) consiste num modo de “intencionalidade” que visa por antecipação para além do núcleo dado67. No horizonte interno, o lado atual patente antecipa os lados inatuais latentes, de modo que a consciência sempre prevê determinações no curso concordante das aparições. A “concordância” do objeto consigo mesmo traz a significação de que as orientações futuras são sistematicamente prefiguradas na orientação presente. Os lados do objeto dispõem-se ao olhar como se cumprissem uma agenda figurativa previamente traçada, eles dimensionam e distribuem suas partes no espaço de modo concordante-coerente, como se contracenassem juntos o mesmo ato, previamente ensaiado. O objeto é de determinada típica e, uma vez preenchido, confirma-se na sua tipicidade.
(IX) As antecipações são visadas no vazio, mas o vazio está sempre teleologicamente orientado em função de um preenchimento possível. Daí que o horizonte é uma estrutura que admite uma descrição governada pelo conceito de preenchimento (Erfüllung).
(X) Quando se trata de percepção de coisa, então é inerente à sua essência ser percepção perfilante, e mesmo Deus, o sujeito do conhecimento absolutamente perfeito, perceberia a coisa pelos perfis dela dispostos em horizonte. Seria um contrassenso e um erro de princípio, que violaria a diferença eidética entre transcendente e imanente, pensar que Deus possuiria a percepção integral de uma suposta coisa-em-si não perfilada na sua auto-doação68.
Cabe notar que há um conceito operatório que atravessa todos os momentos do horizonte listados acima e que pode ser extraído deles como um descritor fundamental que permite a sua articulação num único quadro descritivo. Trata-se do conceito de preenchimento (Erfüllung). Na relação entre forma e fundo, e entre atual e potencial, subsiste sempre um preencher, uma transição do vazio ao cheio. A saber, a forma é a intenção que se preenche, enquanto que o fundo é composto de intenções vazias potencialmente dispostas a um preenchimento possível. A inesgotabilidade da percepção, por vez, pressupõe um perpétuo preenchimento que nunca se exaure. No jogo de sombra e luminosidade, por seu turno, deve-se chamar de luz a clareza de uma intuição preenchida, e de obscuridade uma intenção não-preenchida. Não é preciso dizer que o mesmo vale para os demais momentos do horizonte: o intersensorial, o interno, o externo, a síntese de identificação, a antecipação, etc.
O que o conceito de preenchimento tem de especial? De onde vem sua aplicação universal na descrição dos horizontes? Na verdade, a estrutura da Erfüllung já havia sido o alvo principal de várias considerações fenomenológicas: ela começa a ser estudada na obra husserliana na análise do fenômeno da linguagem, passa pela consideração dos atos intencionais e culmina na caracterização fenomenológica da evidência, todas feitas na obra inaugural das Investigações Lógicas.
(I) Na análise da linguagem, Husserl distingue entre expressão (aparição meramente física da palavra na fala ou na escrita), atos doadores de sentido (intenções que conferem significado à expressão), e atos preenchedores de sentido (intenções que colocam o sujeito da fala ou da escrita em presença da coisa mesma visada na expressão). Ele mostra que a passagem da expressão animada de sentido ao ato intuitivo consiste justamente num preenchimento da significação, que é de início vazia, e só se consuma na referência ao dado objetivo.
(II) Na consideração dos atos intencionais, Husserl distingue entre atos que respondem pela pura doação de sentido e atos intuitivamente concordantes que respondem pelo preenchimento de significação. No preenchimento, a coisa é dada em em carne e osso, e a consciência entra com ela numa relação face a face, por assim dizer. A presença do objeto está ao alcance da consciência; o objeto está, por assim dizer, ao pé do ato intuitivo, que o atinge.
(III) Na caracterização fenomenológica da evidência, feita em particular na sexta investigação lógica, Husserl define a evidência nos termos de um preenchimento intuitivo de uma intenção vazia. Há quatro significados básicos de evidência na sua correlação com o conceito de verdade como “adequação”: completa correspondência do significado e do dado como tal; a ideia da absoluta adequação como tal; o objeto dado à maneira do significado ao nível do pensamento; a correção da intenção e do juízo como relação estabelecida entre intenção vazia e estado-de-coisas efetivamente preenchido. Assim, convém lembrar que a evidência, definida como “vivência” da verdade, deve ser descrita em conexão com a noção de adæquatio, e que a adequação é um ideal, uma meta, que equivale ao ideal da verdade como “correspondência entre o intelecto e a coisa”69. Lembrando-se, porém, que esse ideal pode preencher-se apenas parcialmente no curso do tempo ou pode sofrer uma decepção, e que ele é uma meta que reside sempre no infinito, como uma ideia no sentido kantiano.
V. Filosofia Primeira: a História Crítica das ideias
Sabe-se que Husserl nos anos finais de sua carreira debruçou-se cada vez mais sobre os problemas filosóficos da história, como o atestam o curso sobre Filosofia Primeira e o último escrito publicado em vida do filósofo sobre A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental.
Falando da fenomenologia como uma teoria transcendental da história, Landgrebe fez notar que o princípio metódico que guiou as leituras recentes da fenomenologia husserliana, que é o de partir “da obra tardia e dos manuscritos do último período a fim de compreender os trabalhos anteriores como sendo etapas conducentes aos últimos resultados”, revelou-se bastante fecundo, pois permitiu mostrar “que o desenvolvimento do pensamento husserliano não conhece nenhuma ruptura, mas, pelo contrário, ele corresponde a uma intenção diretriz presente desde o começo, intenção que, todavia, devia desdobrar-se progressivamente para clarificar o que ele visava inicialmente.”70
Observava Landgrebe, de resto, que uma tal situação “corresponde inteiramente à concepção husserliana da intencionalidade e à relação entre intenção e preenchimento como passagem da obscuridade à claridade.”71 Como vimos, a noção de preenchimento constitui um descritivo fundamental na analítica intencional dos horizontes. Pode-se supor então, sem riscos de errar de muito longe o alvo, que a análise da intencionalidade estava desde o começo vocacionada a converter-se num estudo da história e a abrir novos horizontes de pesquisa intencional que são justamente os horizontes históricos. Uma vez abertos, esses novos horizontes permitiriam lançar luz sobre o caminho já percorrido e fornecer à fenomenologia os meios de uma reflexão radical e última sobre seu próprio sentido72.
É fato que a preocupação com as questões da história não aparece somente na “última fase do pensamento husserliano”, como julgaram, por exemplo, Ricoeur73 e outros intérpretes. Em 1906/07, apresentando a Teoria do Conhecimento como uma Filosofia Primeira, Husserl já falava de uma teleologia da história, ao mostrar que o ceticismo dogmático, que surge com os sofistas, já continha o ceticismo crítico como um momento implícito, ainda não esclarecido, e que ambos os tipos de ceticismo viriam desempenhar teleologicamente o papel histórico tanto de precursores quanto de iniciadores da Teoria do Conhecimento. Veja-se:
Mas nós percebemos a função teleológica desse ceticismo dogmático na história da filosofia como preparação para o ceticismo crítico, ou seja, o ceticismo que constitui o necessário começo da teoria do conhecimento e que determina seu fundamento. Em todo ceticismo dogmático, o momento crítico está implícito (isso é dizer muito), mas trata-se de um momento que não chegou ainda à pureza do esclarecimento.74
O ceticismo é visto como o primeiro a desvelar a imperfeição da ingenuidade75. Percebe-se assim que um tipo de leitura estruturalista do desenvolvimento da fenomenologia se corrobora e mostra toda sua fecundidade como chave de interpretação, levando-se em conta não só essa passagem, mas o § 62 de Ideias I, já citado aqui, que anunciava o terceiro livro das Ideen como obra reservada à tarefa de tratar das antecipações históricas da fenomenologia, que seriam encontradas no radicalismo de Descartes, no psicologismo de Locke e Hume e na filosofia transcendental de Kant. O terceiro livro não saiu conforme prometido, mas essa lacuna seria preenchida pela parte I das lições sobre Filosofia Primeira, de que nos ocuparemos agora.
O que é particularmente notável na abordagem histórica de Husserl é que a história é vista pela ótica de uma teleologia da razão. É a razão que se esforça para chegar a si mesma e do seu movimento histórico desdobram-se as figuras particulares da ciência europeia. A operação dessa razão é desde o início caracterizada pela intencionalidade, que abre os horizontes possíveis de consciência e nos quais se estabelece a relação entre intenção e preenchimento e o caráter dinâmico dessa relação, em que a intenção vazia tende ao preenchimento. A história do pensamento é vista assim como o itinerário teleológico da razão, que se orienta em direção à meta infinita, e nisto se constitui ao mesmo tempo como “o sujeito, a lei e o fim da história.”76 A filosofia husserliana aproxima-se então das concepções clássicas dos filósofos do idealismo alemão, e os problemas da razão são apresentados como os mais altos da fenomenologia.
Se no interesse estritamente gnosiológico da fenomenologia pura a análise intencional guia-se pela ideia dos horizontes, em que a intenção de significado tende à intuição doadora que preenche o sentido e torna possível a evidência como consciência da “presença do objeto ele mesmo” (Selbsthabe), no interesse pela história, que caracteriza a filosofia fenomenológica, a análise intencional guia-se pela ideia dos horizontes da razão histórica que tende a metas racionais, a ideais colocados no infinito, que preenchem o seu próprio sentido enquanto razão. Se no interesse gnosiológico, como vimos, o objetivo é esclarecer o sentido, a essência e a possibilidade do conhecimento, no intuito de justificá-lo como conhecimento objetivo de mundo, no interesse histórico a fenomenologia realiza a mais radical autorreflexão (converte-se numa fenomenologia da fenomenologia) e seu objetivo é esclarecer o sentido, a essência e a possibilidade do próprio projeto de uma filosofia fenomenológica, no intento de justificar a necessidade de seu surgimento histórico.
O objetivo é situar na história da filosofia o motivo transcendental aberto pela fenomenologia. Assim, o contexto da história crítica das ideias não se identifica com o de um empirismo, na visão do qual a história seria concebida como uma acumulação de fatos objetivos que avançam linearmente numa sucessão de causa e efeito, nem com o de um idealismo, na visão do qual a história seria considerada a realização do espírito (Geist) do mundo. O contexto apropriado da história crítica das ideias é, antes, o de uma história “eidética” que se deixa descrever a partir de seus “momentos exemplares, dos momentos paradigmáticos cruciais, que formam pontos de inflexão no desenvolvimento do pensamento filosófico.”77
Eis uma síntese dos momentos da história da filosofia que Husserl elege como cruciais, na medida em que antecipam de algum modo o projeto da fenomenologia: Sócrates é descrito como um reformador da moral que soube submeter sua própria vida a uma radical autorreflexão e a um exame crítico pelo qual ele descobre o princípio da justificação racional do conhecimento. Platão, visto como um continuador do princípio socrático, é descrito como fundador da ideia da ciência e, portanto, da ideia teleológica da filosofia. A Aristóteles, por sua vez, é reconhecido o protagonismo na criação de uma ciência da subjetividade, ao traçar os primeiros esboços de uma psicologia. Na modernidade, Descartes é descrito como o promotor de uma virada fundamental na história da filosofia, ao descobrir o ego cogito e, com ele, o campo infinito da subjetividade transcendental. A obra de Hume é vista como os primeiros esboços de uma egologia (uma ciência dos puros dados de consciência). Por fim, Kant é considerado por Husserl como o primeiro filósofo a se mover efetivamente no solo recém-descoberto da atitude fenomenológica, embora faça isto de maneira ainda ingênua.78
Rudolf Boehm, em texto que trata da fenomenologia da história, observa que tanto a fenomenologia pura quanto a filosofia fenomenológica da história se ocupam de “puros fenômenos”. A fenomenologia pura é definida como uma “filosofia que buscaria seus princípios exclusivamente nos fenômenos eles-mesmos, estabelecidos pela via de uma redução fenomenológica transcendental.”79 O “fenômeno” é o dado para-nós que se opõe à “coisa-em-si”. Diferente da concepção tradicional, o método da fenomenologia pura recusa admitir a posição de “coisas-em-si” em face das quais os “fenômenos” deveriam ser avaliados como verdadeiros segundo sua adequação maior ou menor a elas. Numa palavra, o seu método furta-se à decisão de submeter os fenômenos a um juízo baseado nalgum critério superior de verdade, concebido previamente, e se nega ao mesmo tempo a ter os fenômenos na conta de algo “subjetivo, em vista do qual seria preciso estabelecer a relação à objetividade, tal como ela é em si.”80
Enquanto fenomenologia pura, a filosofia husserliana ver-se-ia justificada apenas pelos resultados certos e úteis obtidos nas Ideias I, num procedimento legítimo de estudo de tais e tais temas e problemas de interesse geral. O principal desafio a ser enfrentado é como conseguir elucidar os fenômenos puros que compõem a totalidade de um mundo fenomenal sem fazer qualquer remissão a algum mundo verdadeiro para além daquilo que aparece, e se manter numa consideração puramente fenomenológica, em que se concebe os dados em seu caráter puro como aquilo que não se empresta a nenhum tipo de abordagem a não ser o fenomenológico.
A filosofia fenomenológica é semelhantemente orientada na direção dos fenômenos transcendentalmente purificados. Que fenômenos são estes? Boehm expõe a tese de que um fenômeno puro tal como ele é exigido para fundar uma verdadeira filosofia fenomenológica é justamente aquele da história, e este não se furta ao método de redução transcendental, isto é, a realidade histórica deve ser submetida igualmente a uma Redução fenomenológica.81 A aplicação do método de redução à história converte-a num fenômeno puro. Quatro momentos caracterizam essa redução: “o retorno à consciência, o retorno ao presente absoluto, o retorno à concepção pura e o retorno ao invariante essencial.”82 O conjunto dessas características tem como consequência que: a realidade histórica não passa de um correlato intencional; de que ela é dada no presente com suas respectivas retenções do passado; de que a redução pela epoché dos fatos históricos “é acompanhada de uma redução eidética que não admite a evidência de nenhum fato singular senão a título de momento estrutural de um invariante essencial.”83
O que essas etapas da Redução histórica exigem, por conseguinte, é (1) a colocação entre parênteses das interpretações usuais dos fatos objetivos da história enraizadas na atitude natural; (2) descrever em seguida a ideia-conteúdo dos maiores pontos de virada na história a partir de um ponto de vista filosófico situado no presente; (3) “reduzir a história das ideias às interconexões fundamentais entre seus momentos mais significativos, e desencobrir ao mesmo tempo a unidade de motivação que viveu em todo filósofo no momento mesmo em que ele quis tornar-se autêntico filósofo.”84
Conforme notado por Boehm, Husserl havia advertido na Krisis, o seu último escrito, que a descrição histórica feita pela fenomenologia tem o caráter de um “poema”, de um “romance”85, e que essa construção poética da história - logo, não correspondente aos fatos objetivos tais como efetivamente ocorreram - tem como finalidade elevar a fenomenologia a uma última tomada de consciência de si, a uma última autocompreensão e a um efetivo esclarecimento de seu sentido. Tendo em conta que a fenomenologia, convertida em filosofia da história, ocupa-se de fenômenos puros transcendentalmente reduzidos e sua descrição histórica é construída ao modo de um romance, pode-se dizer que a filosofia fenomenológica se constitui como uma metafísica da aparência. Boehm faz lembrar então o que dizia Lambert - o inventor do termo fenomenologia - a propósito disso:
Com efeito, nós não temos simplesmente que opor o verdadeiro ao falso, mas em nosso conhecimento encontra-se uma coisa intermediária que nós chamamos aparência (...) E uma teoria da aparência e de sua influência sobre a exatidão e a inexatidão do conhecimento humano constitui então essa parte da ciência fundamental que nós chamamos fenomenologia.86
Poder-se-ia propor então que um dos sentidos em que a fenomenologia se afasta do cartesianismo é o de assumir a aparência enquanto tal sem a preocupação com a questão da verdade-falsidade alusiva a alguma exterioridade para além daquilo que aparece. A filosofia de Descartes, apesar de descobrir a nova dimensão do ego transcendental, move-se ainda no quadro de oposição entre verdadeiro e falso, ao passo que a fenomenologia abandona esse quadro para assumir o fenômeno enquanto fenômeno, sem remissão a uma suposta coisa-em-si a que ele teria de corresponder numa adequação maior ou menor, e constitui-se enquanto uma ciência da aparência que sonda o universo dos fenômenos na sua fenomenalidade (nos modos de manifestação possíveis para uma consciência pura) e verifica estruturas de essência que regem o aparecimento, ou seja, os horizontes de implicação intencional, uma vez submetidos a uma descrição eidética pura.
Pradelle nos esclarece, quanto a isso, que “(...) o objeto próprio de Descartes não é de nenhum modo descrever as modalidades concretas da relação intencional (...)”, embora o filósofo francês tenha descoberto, de fato, a dimensão da consciência pura, ele não faz da mesma, em absoluto, “um campo descritivo”, não desenvolve “o programa de uma descrição eidética das diversas modalidades da consciência”, não procede minimamente nas atividades de análise intencional das visadas objetivantes que tais modalidades contêm nem na “elucidação da constituição transcendental dos diversos tipos de objetos possíveis.”87
Torna-se nítido assim que o afastamento de Husserl do cartesianismo se funda numa simples distinção entre os programas. Enquanto que o projeto de Descartes parte do estabelecimento da certeza apodítica, da elucidação da essência do eu descoberto no cogito, e da fundação posterior do conjunto dos conhecimentos, o projeto da fenomenologia, por seu turno, definir-se-á antes pelo plano de elucidação da constituição transcendental dos objetos a partir da consciência pura.
VI. Filosofia Primeira e a teoria da Redução fenomenológica
A tarefa que se põe a segunda parte de Erste Philosophie é a de fazer uma exposição crítica da teoria da Redução fenomenológica. Husserl está preocupado em esclarecer o sentido derradeiro e a justificação última da fenomenologia. Serão necessárias para tanto novas meditationes de prima philosophia em uma perspectiva ultimamente radical e universal. A questão que de uma parte à outra domina esse projeto é a de estabelecer o começo da fenomenologia, é assim que o capítulo primeiro introduz a motivação do filósofo que começa na situação absoluta e o segundo capítulo, por sua vez, trata da ideia da evidência apodítica e da problemática do começo.
O ponta-pé inicial é dado sob um paradigma e sob os auspícios de um princípio condutor visto como seguro. O modelo que Husserl insiste em tomar é o do fundamentum absolutum et inconcussum de Descartes. A ciência primeira deve adotar como ponto de partida a evidência consistente e irremovível do ego cogito, a única que resiste ao teste da apoditicidade, e dela derivar e justificar cada um dos passos subsequentes, firmemente alicerçados no seu solo. Trata-se, portanto, da mesma ciência que Descartes projetou concretizar, mas que, no seu esforço, acabou perdendo de vista, deixando de efetuar a redução fenomenológica ao ego transcendental como a dimensão exclusiva da justificação última e absoluta.88
O modelo tem um significado histórico e é visto de uma perspectiva teleológica. Husserl reconhece nos escritos cartesianos o primeiro despontar da filosofia transcendental, mas considerando-o uma verdade ainda em germe e in statu nascendi. É essa filosofia justamente que precisa ser amadurecida, e para tanto faz-se necessário determinar o sentido da descoberta cartesiana do ego cogito, que constitui a forma fundamental do verdadeiro começo da filosofia. O que Husserl exige do filósofo que começa é levar adiante a explicitação dessa forma fundamental até às últimas consequências. Explicitação que só pode ser efetuada por uma ciência arqueológica das fontes originárias (Urquellenwissenschaft) de todo conhecimento.89
O caminho se abre para o campo transcendental da consciência através da Redução, que foi apresentada em Ideias I como uma questão de nossa total liberdade, e isso significa que o exercício do método redutivo é resultado de uma livre decisão do filósofo que começa, e que essa atitude não precisa mais ser justificada por nenhuma necessidade anterior a ela. A situação motivacional do filósofo que começa é a de uma inteira liberdade, uma liberdade não condicionada mas intencional, ou seja, um livre gesto de resolução caracterizado teleologicamente como “uma liberdade para ...”: uma liberdade que é ao mesmo tempo uma vocação para decidir ser um autêntico filósofo e, como tal, superar a condição de ingenuidade em que todo filósofo se vê no solo da atitude natural. Como diz Landgrebe, é aqui que se torna concreta a passagem do princípio cartesiano do “eu sou” para o “eu, enquanto filósofo que começa”.90
A filiação ao mundo própria da atitude natural é a de uma vida que se contenta em alcançar suas metas, e parecem-lhe suficientes as obviedades do dia a dia que inscrevem cada situação particular numa atmosfera de sentido próxima e familiar. O mesmo vale para as ciências especiais, que partem ingenuamente do mundo como um dado, como um pressuposto, e extraem desse terreno o quadro de interesses gerais no interior do qual formulam seu questionário científico, e perseguem suas metas apenas na medida do que parece necessário para a resolução de dificuldades metodológicas dependentes de alguma problemática específica. Evidentemente, o filósofo que começa não pode retirar dessa atitude ingênua da vida natural nenhum modelo para sua decisão. A atitude filosófica que ele assume é de fato antinatural, e consiste na pura auto-reflexão sobre o “eu sou” levada aos limites transcendentais de sua vida egológica.
Assim, a motivação do filósofo que começa reside nele mesmo, e é um empenho que compromete toda sua vida na realização de uma crítica universal conforme o ideal de um conhecimento absolutamente fundamentado. O conhecimento é ao mesmo tempo um engajamento existencial e, como tal, ultrapassa a atitude simplesmente teorética e exige uma decisão pela verdade axiológica e pela verdade prática, pelo avanço em direção ao bem, ao belo e ao verdadeiro. Trata-se de um ideal indeclinável, a que o filósofo não pode se demitir, se quiser ser um autêntico filósofo e viver uma vida na absoluta autenticidade do valor. É neste ínterim que Husserl fala da autorresponsabilização do filósofo que começa, e de seu compromisso ético com o restante dos homens. O filósofo que começa é um funcionário da humanidade.
A tarefa que se impõe como primeira, em vista da decisão originária do filósofo, é a “de colocar em jogo as meditações sobre o método possível (...)”91, pois só assim a ideia de início vazia da filosofia autêntica do começo deve encontrar aos poucos seu preenchimento. Fica estabelecido então o papel fundamental desempenhado pela Redução fenomenológica, e as meditações passam a mover-se no terreno das questões metodológicas de princípio.
A via redutiva cartesiana é apresentada como uma primeira forma de acesso à subjetividade transcendental que parte da crítica da experiência mundana. A crítica cumpre a função de verificar e mostrar o caráter provisório, inadequado, contingente e sempre passível de correção próprio de toda experiência. Ela conduz assim à suspensão (epoché) de toda posição de existência e inexistência do mundo e tem a função de revelar a esfera apodítica, antes oculta, da subjetividade pura. Mas essa primeira via leva à pergunta sobre a apoditicidade do próprio ego cogito, surgindo assim a necessidade de distinguir no seio da via cartesiana entre uma “Redução transcendental”, que descobre a esfera da subjetividade pura, e uma “Redução apodítica”, que efetua a crítica dessa subjetividade recém revelada.
Se a própria posição de existência do cogito deve ser submetida à crítica, isso não traz como consequência a obrigação de abandoná-la como o princípio de todos os princípios? Husserl não discute esta última dificuldade e, passando-a por alto, desenvolve pela primeira vez em seus escritos outras vias alternativas à via cartesiana, talvez com o intuito de solucionar aquele impasse (é uma hipótese que está ainda para ser provada). Assim, a ideia do método da Redução que entra em cena nas meditações sobre Filosofia Primeira deixa-se pluralizar numa diversidade de vias redutivas possíveis, para além da via cartesiana seguida desde o livro de Ideias I.
Husserl não determinou precisamente qual o número exato das vias alternativas, mas o texto de Filosofia Primeira autoriza falar de uma Redução psicológico-fenomenológica, de uma Redução ontológica, de uma Redução ética, de uma Redução crítica das ciências positivas, de uma Redução comparativa entre o interesse mítico-prático e o interesse teorético; o texto posterior das Meditações Cartesianas autoriza falar de uma Redução à intersubjetividade transcendental; ao passo que o último trabalho da Krisis autoriza falar de uma via redutiva que parte do mundo da vida (Lebenswelt).
Cada uma delas é uma filosofia do começo possível e toma como ponto de partida um caminho diferente de condução à subjetividade transcendental: a Redução psicológico-fenomenológica parte de uma simples reflexão considerada como uma tomada de consciência natural de si. A reflexão regata o eu de sua absorção no mundo e torna patente uma subjetividade antes latente. “Ela converte em tema a atividade oculta da subjetividade e mostra o mundo como seu correlato.”92 A Redução psicológico-fenomenológica pode ser interessada ou não interessada. A atitude interessada é a mesma que Ideias I já descrevia como atitude teórica, valorativa e prática; a atitude desinteressada é aquela do eu que assume em face de tais atitudes o ponto de vista do espectador desinteressado de si mesmo, que suspende todo juízo e se desconecta de toda posição de existência ou inexistência do mundo. O que ela ganha em relação à via cartesiana é uma nova forma de vida que deita raízes numa decisão voluntária. Essa via não precisa passar pela crítica da experiência mundana, por isso, ela é diferente da Redução transcendental.
A Redução à intersubjetividade transcendental, desenvolvida sistematicamente na quinta meditação cartesiana, conduz à monadologia ou à subjetividade intermonádica, antecipada por Leibniz em uma descoberta genial93, e visa resolver, entre outras coisas, o problema do solipsismo. Os apêndices de Filosofia Primeira apresentam o esboço de outras vias possíveis: (I) uma que chega à fenomenologia mediante uma “ontologia universal e absoluta” a partir das ontologias positivas regionais. (II) Outra que procede pela crítica das ciências positivas. (III) Uma terceira que parte do despertar da consciência ética e epistemológica que pode ser motivada por uma crítica das ciências. (IV) Uma outra ainda que parte do contraste entre a concepção do mundo mítico-prática e a concepção própria do interesse teórico.94
VII. Filosofia Primeira, Filosofias Segundas e a Fenomenologia Transcendental
Um olhar de conjunto lançado sobre todo o caminho percorrido até aqui leva-nos a algumas considerações que podem ser introduzidas a título de conclusão. Parece que a tese mais plausível que admite ser sustentada com relação ao estatuto da ideia de Filosofia Primeira na fenomenologia de Husserl é a de que se trata não propriamente de uma ideia diretriz, no mesmo sentido da ideia de uma fenomenologia pura ou de uma filosofia fenomenológica, mas antes de uma ideia posta a meio caminho entre as duas ideias diretrizes com a incumbência de fazer as conciliações e intermediações entre elas. A ideia de primeira traduz a seu modo uma espécie de ponte conceitual-programática que cumpre a função de relacionar a fenomenologia pura à filosofia fenomenológica.
A relação que deve ser conciliada e intermediada é a que existe entre o primeiro em relação a nós (o πρότερος πρός ἡμας) e o primeiro por natureza (o πρότερος τῇ φύσει). Para Husserl, o primeiro em relação a nós é a consciência natural, ao passo que o primeiro por natureza é a consciência fenomenológica conquistada na recondução do mundo às formas constitutivas da experiência transcendental.95
Como vimos, a fenomenologia, após a virada transcendental, é uma Filosofia Primeira não num sentido cronológico em que um primeiro antecede um último, ela é “primeira”, sobretudo, no sentido gramatical, ou seja, ela direciona seu olhar para a perspectiva de primeira pessoa da consciência experiencial e enfatiza que todo conhecimento é algo que pertence por essência às estruturas da experiência96. Seu radicalismo consiste em recuar do mundo dado de antemão até a primeira instância da subjetividade, portadora de todo conhecimento e única que torna possível essa doação.
Mas, de novo pelo conceito de Filosofia Primeira, essa perspectiva de primeira pessoa não está isolada e alienada do mundo, ela está ligada à história da filosofia, na medida em que permite fundar uma filosofia e encontrar seu espaço na hierarquia das ciências históricas. Parece-nos plausível, portanto, que a ideia de Filosofia Primeira se inscreve no projeto da fenomenologia numa duplicidade de sentido. Ela se identifica tanto com o projeto da fenomenologia pura - que tende ao radicalismo último da fenomenologia transcendental - quanto com o projeto da filosofia fenomenológica - que esforça-se por assumir o seu lugar apropriado na história da filosofia, na forma de uma continuidade teleológica com a tradição e na forma de um momento inaugural e inovador nessa tradição, que, na visão de Husserl, decidirá os seus rumos futuros.
(I) No primeiro sentido assinalado a Filosofia Primeira, identificada com a fenomenologia transcendental pura, exprime o princípio fundamental da legitimação absoluta (absolute Rechtfertigung) que só admite sua obtenção através de um conhecimento transcendental de si (transzendentale Selbsterkenntnis) desvelado como a fonte originária de todo conhecimento. A segunda meditação cartesiana prescreve que tal justificação deve ser realizada numa evidência pura e deve operar em dois níveis: o primeiro sendo aquele da análise fenomenológica descritiva do “império da experiência transcendental de si”, e o segundo sendo aquele da “crítica da experiência transcendental e do conhecimento transcendental em geral”. O primeiro nível procede numa certa ingenuidade, embora transcendental, ao passo que o segundo nível, descendo até às camadas mais profundas da subjetividade, cumpre a função de superar pela crítica a ingenuidade.
O filósofo Alexandre Schnell fez notar que a análise descritiva do primeiro nível, apesar de desvelar as estruturas eidéticas que o ego experiencia em si mesmo numa constante concordância, e explicitar os ingredientes reais da esfera imanente da consciência, nem por isso é capaz de descer até às camadas definitivamente legitimadoras da experiência transcendental, pelo fato de operar ingenuamente e sem nenhuma crítica. A análise se mostra insuficiente quando se trata de explicitar as camadas ultimamente constitutivas dos fenômenos imanentes. Schnell, mostrando que essa investigação é completada pelo segundo nível da crítica transcendental, defende a interpretação de que ela “deve se efetuar procedendo a ‘reduções desmantelantes’ (Abbauredktionen) e a ‘construções fenomenológicas’ que pertencem à esfera pré-fenomenal ou ‘pré-imanente’ da consciência (...).”97
A passagem do primeiro ao segundo nível pode ser descrita como a passagem de um trabalho de desconstrução até um trabalho de construção fenomenológica. Schnell assinala que o primeiro, através de uma redução desmantelante, afasta os obstáculos que escondem a atividade transcendental da consciência, enquanto que o segundo se inscreve num quadro positivo de construção, que não é nem especulativo nem metafísico, mas guiado fenomenologicamente pelos dados98. As principais referências a essa construção nos escritos de Husserl podem ser encontradas nos parágrafos 59 e 64 da quinta meditação, dedicada ao problema da intersubjetividade, mas nem por isso “construção” deixa de ser um conceito problemático, não explicitado suficientemente na obra husserliana. Para mais detalhes, devemos reportar o leitor aos próprios textos de Schnell.
(II) No segundo sentido assinalado a Filosofia Primeira, identificada com a filosofia fenomenológica historicamente estabelecida, exprime uma relação com a metafísica entendida como o conjunto das filosofias segundas. Isso traz solução para uma dificuldade: caracterizar a fenomenologia como estudo de possibilidades puras de essência parece inibir nela qualquer aptidão para dar conta do problema do mundo factual. A princípio, parece impossível que a fenomenologia, enquanto ontologia universal, seja capaz de fornecer uma cabal justificação ao fato do mundo (deste mundo efetivo) a partir de uma pura lei de essência, justamente porque não há redução possível do fato ao a priori. Com efeito, repugna à realidade factual, como possibilidade atualizada, ser convertida num puro eidos e ver-se justificada através de uma pura consideração de essência. Assim, uma ontologia universal, conformada unicamente ao estudo de aprioricidades puras, tem de silenciar diante do fato de que este mundo é (justamente este e nenhum outro) e permanecer indiferente ao reino das facticidades atualizadas aqui e agora, uma vez que não há justificação possível para elas. Aqui a pergunta de Leibniz: “por que o ser e não antes o nada?” é modificada para: “por que este mundo e não outro mundo igualmente possível?” A Filosofia Primeira encontrar-se-ia assim diante de uma irredutível e ineliminável irracionalidade, e não será permitido a ela recorrer a nenhum princípio de razão suficiente dado para além do mundo.
Husserl observa assim que o problema da irracionalidade do fato transcendental conduz a uma metafísica num novo sentido. A pretensão do filósofo não era reduzir a filosofia à teoria do conhecimento ou à crítica da razão, e muito menos reduzi-la à fenomenologia transcendental. Se a filosofia, enquanto ciência, mantém seu direito próprio, e abraça as ontologias formais e materiais na ciência eidética da consciência transcendental pura e seus correlatos, isso não significa que ela decida fechá-las dentro de si mesma nem acabe por trancar, em definitivo, as portas de saída. Pelo contrário, o papel da filosofia transcendental é tornar possível uma ciência metafísica cujo objeto não é mais as puras possibilidades ideais consideradas no seu eidos, mas o universo inteiro dos fatos. Assim, a metafísica é definida por Husserl como a ciência própria da realidade, desde que seja uma disciplina honestamente científica, e receba seus fundamentos da ciência eidética fenomenológica.99
Husserl reconhece como verdadeira a antiga doutrina ontológica de que o conhecimento das possibilidades tem uma absoluta precedência sobre o conhecimento das atualidades, mas ele põe a condição de que essa precedência seja compreendida e utilizada nos seus devidos termos.100 Do que se segue que a metafísica, que se ocupa do factual, deve ser fundada pela ciência especial da consciência, do mesmo modo como todas as facticidades coisais, em última instância, encontram sua completa racionalidade no reino do eidético ou do a priori. A ciência das puras possibilidades ideais, desvelada nas Meditações como egologia, deve preceder a ciência das atualidades, pois esta última só se torna efetivamente científica ao fazer recurso à primeira, evocada ali pelo nome de ciência dos princípios fundamentais.101
O resultado paradoxal que se segue disso é que a fenomenologia transcendental, chamada de ontologia universal, de eidética ou de lógica do ser, constitui-se como Filosofia Primeira; ao passo que a metafísica, designada de filosofia empírica do factual, constitui-se como Filosofia Segunda. A metafísica (que abrange o conjunto das ciências positivas dos fatos) é vista assim como a ciência-limite, para além dela não faz sentido interrogar nenhum outro campo do conhecimento. As ciências metafísicas brotam do tronco da interpretação fenomenológica, na medida em que o “universo do mundo”, o “tema universal das ciências positivas”, adquire uma interpretação fenomenológica, e isso por três meios: (I) “mediante a interpretação suprema do ser objetivo (Sein) explorado nessas ciências como um fato”; (II) “mediante a interpretação que se agrega a essas ciências na aplicação da fenomenologia eidética”; (III) “mediante a contemplação universal, também requerida nesta fenomenologia, de todas as regiões da objetividade (Objektivität) em relação à comunidade universal dos sujeitos transcendentais.”102