Ressonâncias
Era de manhã naquela escola quando chegamos. Tanta gente, alegrias de encontro em festa. Comes, bebes, abraços e fazeres lambuzando bocas e olhos. Saciamos fomes, sedes e desejos... Ao final uma roda se fez em meio ao refeitório, em alegres movimentos. Cirandamos.
E era uma tarde ensolarada, no centro da praça cercada por árvores e bambuzais, uma mesa oferecia cores, poemas, imagens; em volta dela, atabaques, jovens e crianças... Muitas crianças. A leitura de poemas entre os toques de tambor alargou o tempo, fez crescer a arena daquela pequena praça. Cirandamos.
E era uma noite, na sala de oficinas de um centro cultural, as pessoas sentaram-se comportadas. O silêncio foi quebrado com a leitura de poemas de poetas africanos... Lentamente as palavras ganharam força, e abriu-se um espaçotempo de disponibilidade para a escuta. Cirandamos.
E, em outra tarde, chegamos naquela escola. Tudo estava fora do lugar (ou exatamente em seu lugar): poucos jovens inscritos na oficina, parecia não haver fresta para que algo acontecesse. Na pequena biblioteca abrimos um espaço entre mesas e estantes. Devagar, entre a timidez e a vontade, pescaram-se preciosidades escondidas entre os muitos livros do acervo escolar: contos africanos encontraram poesias marginais em alegres composições fotográficas. Cirandamos.
E era meio da tarde da vez em quando nos encontramos com aquelas pessoas, num espaço da escola dantes de orações. Meninos e meninas cursando o ensino médio nos receberam desconfiados de que lhes proporíamos uma chatice de atividade escolar. Vieram com imagens estereotipadas de áfricas, sentaram-se com suas caras e bocas adolescentes, indolentes, até que se encontraram com os instrumentos. Sonoridades, pulsos, ritmos quebrando o gelo e esquentando o acontecimento em percussões... Outra ciranda fazendo-se no compasso das forças.
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Como criar uma atmosfera apta ao encontro e à criação coletiva? Como pensar os espaçostempos de uma oficina, de modo que o mais importante não seja o aprender algo, mas o deixar-se atravessar inesperadamente por forças que se reverberam em palavras, em sons, em imagens, em gestos, em movimentos? Escrevemos aqui a partir de oficinas realizadas do Núcleo de Leituras Fabulografias (ALB), ligado ao projeto de pesquisa “In-ventos por entre áfricas, literatura e imagens” . Entendemos as oficinas enquanto processos de invenção, como amálgamas criativos e proliferantes que não se repetem, espaçostempos do acontecimento. Interessa-nos, neste texto, pensar sobre o que acontece no meio, entre o movimento da proposta da oficina e o acontecimento daquilo que se constrói na relação das vozes, nas experimentações com as imagens, nas produções escritas, na pulsão que nos atravessa no exercício de dar-se a ver, ouvir, falar, sentir, criar.
O experimentar que buscamos realiza-se na composição com a palavra poética, com as imagens e também com pessoas, espaços, gestos, sons, tensões, experiências de vida... Esse movimento pressupõe atmosferas aptas ao encontro, sensíveis a um silêncio que ecoa sem lugar no mundo das palavras e nas imagens conhecidas. Um experimentar como desejo de sensibilidades, como arte de produzir convergências a pontos singulares e disjunções.
Ó cirandeiro, ó cirandeiro, ó
a pedra do teu anel
brilha mais do que o sol
Mandei fazer uma casa de farinha
bem maneirinha que o vento possa levar
passa sol, passa chuva e passa vento
só não passa o movimento
do cirandeiro a rodar
Essa ciranda não é minha só
ela é de todos nós, ela é de todos nós...1
O verso da ciranda nos convida a fazer uma casa de farinha para que passe um vento, para que gire a roda em movimentos constantes. Como fazer uma casa pueril por onde tudo passe? Como deixar passar, o sol, a chuva e o vento? Como abrir espaços para que passem as forças? Como afirmar o fluxo, o movimento, o imprevisível, o jogo, o acontecimento? A oficina como ciranda faz-se apta ao giro e à brincadeira séria de fazer parte. Na ciranda, constrói-se um movimento que contamina e envolve o corpo. O corpo do cirandeiro entra no ritmo ao ser atravessado pelo chamamento da roda. Nas nossas cirandas-oficinas nunca sabemos o que vem. Entre poemas impressos, livros, fotografias, objetos e instrumentos de percussão, o olhar dança, a mão escolhe, e as vozes vão se fazendo instrumentos de re-percussão daquilo que afeta os corpos e os sentidos. Faz-se a poesia: poesia das imagens, poesias das sonoridades, poesias dos escritos. Neste texto exploraremos três giros das nossas cirandas, os vídeo-poemas, as foto-poemas e os poemas-sons2. Nesse exercício, inventamos uma partitura dançante de fabulografias que organiza em cada bloco uma escrita centrada em atravessamentos e sensações. Vamos cirandar. Comemorar encontros de criação e experimentação em movimentos outros de com-possíveis gestos de escrita.
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1º giro: Poemas-sons
Ler e dar a ler. A cada roda de criação, poemas, fotografias, vídeos, produzidos em outras rodas-oficinas, são oferecidos em uma mesa. Servimos de início um banquete de palavras e imagens3. As toalhas claras emolduram vívidas cores que ressoam das fotografias, das capas de livros, de objetos, de pulsantes textos em livros, fragmentos de poemas escritos à mão em outros encontros. Nas paredes projetam-se vídeos e no ar poemas sonoros preenchem o silêncio, por vezes, perturbador de um primeiro encontro.
Iniciamos sempre com um ritual de oferenda e um convite: alimente-se entre uma imagem outra, entre um som e um texto, entre uma imagem e uma voz e faça esta força crescer para os lados, faça-a virar sempre outra coisa... Acentuamos uma autoria fluida e coletiva que dá mais força às palavras e as imagens do que ao enunciador. O desejo é de deixá-las passar, ao vento, no movimento. Há papéis em branco e máquinas fotográficas que convidam a continuar o movimento...
Ler em alta voz e ouvir poemas ditos por outras vozes. Recitar, provocando ressonâncias em versos. Versar e doar versos. Encontrar pessoas, livros, imagens, vídeos, instrumentos musicais... Tocar, cheirar e provar palavras, imagens e sons. Entrar em uma atmosfera de degustação, contaminar-se pelo gesto criativo e perder-se em uma experiência de criação coletiva, gerando inesperados possíveis nas/pelas sonoridades da voz, passeando entre gestos provocados pelo olhar. O encontro e contaminação com as criações de outros tempos e espaços, dispara a produção de escritas e a recitações em spoken word, um modo de dar a ler em voz alta que se apropria da aleatoriedade e enfatiza as sensações dos participantes, proporcionando encontros sonoros para além da significação dos textos lidos. Encontros sonoros como fronteira, no entre:
Entre linguagem e estados de coisas é preciso haver alguma coisa que faça esta relação “acontecer”, se efetuar. Ou seja, se o sentido é a fronteira é porque é preciso que algo se passe entre as coisas e as palavras, para que elas colem umas às outras e façam uma determinada palavra fazer sentido no corpo de quem a diz, a escreve, a ouve ou a lê (MALUFE, 2011, p. 8-9).
Palavra prenhe de boca.
Tanto na leitura como na produção de imagens e textos, apostamos na fugacidade, na contingência e no acontecimento singular. Apostamos no caos, na imprevisibilidade e na surpresa dos encontros entre pessoas, entre versos, entre imagens.
Uma musicalidade singular assume a função de percussão. Fabulosons. Que forças ressoam ao repercutirmos percussões?
Desobedecer a linguagem na produção de sentidos outros, numa relação com as sonoridades, sentidos tomados com Deleuze como uma “tênue película no limite das coisas e das palavras” (1974, p. 34).
No documentário Cartas para Angola4, os poetas Allan da Rosa (Brasil) e Lukeny Bamba Fortunato (Angola) conversam em prosa poética por vídeos-cartas. “Temos um passado preto e vermelho”, afirma Lukeny, que propõe a recitação em spoken word como forma de resistência política.
Poetiza Allan: “Eh, Luanda. Aruanda”... “Nossas memórias sonoras são metralhadoras, câmeras, helicópteros rasgando a periferia, como as memórias sonoras da guerra, em Angola”...
Compor um desenho sonoro
soar diferentes matizes
de forças
ventar o (i)material
sons em cores, cores de sons
cintilam imagens,
ciranda cirandando:
lugares...
luandas
luares...
lares?
mares.
ires
e
vires...
A palavra deseja
que eu a seja.
A palavra falada, em prosa poética assumindo a força de vida que tem “um bebê, começando do zero”, nos diz Lukeny...
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2º giro: Foto-poemas
Se é pra dizer, eu escrevia, dentro do teu corpo este lugar, onde o sentido principia.
Luis Carlos Patraquim
As palavras dos poetas, em um fio quase invisível, tecem-se silenciosamente em um jogo que se faz entre escrever, escutar, lançar e colher. As palavras dos poetas entrelaçam-se nos gestos de arremessar e receber. Carlos Skliar, em seu livro Desobedecer a linguagem, diz da disposição à escuta, tão presente no fazer poético:
É bem conhecida aquela afirmação de Heidegger (2003, p. 126) a propósito de que “a poesia é escuta, durante a maior parte do tempo”. A disposição do poeta para escutar é particular, no sentido de que atende, não só ao que é dito ao redor, mas, também, a essa relação fugidia entre o som e o sentido. Ou, melhor dito, essa atenção sobre como soa aquilo que é pronunciado. O poeta, a poesia, é uma voz que escuta (SKLIAR, 2014, p. 24).
Para fazer ventar outras vozes-áfricas, colhemos poemas de países lusófonos: Moçambique, Angola, Cabo-verde, Guiné-Bissau. As palavras de Ana Paula Tavares, Mia Couto, Ondjaki, Luis Carlos Patraquim, José Craveirinha entre outros, abriram espaçostempos de escuta de uma língua portuguesa outra, de uma africanidade outra, de uma poética imersa nas dores de guerras, de segregações, de silenciamentos e encantamentos de áfricas tão pouco ouvidas aqui. Entre as suas palavras, percebemos traços comuns, reverberações de um poema em outro, em frases que se repetem como desejo de continuidades. Há um tempo sutil e potente que se costura entre os poemas, que principiam sentidos a cada volta que fazem sobre temas que sempre retornam.
A leitura e escuta dos poemas nas oficinas se dá entre as observações das fotografias - cartões-postais - dos ventos-áfricas que giram aqui. Fotografias criadas em outras oficinas a partir de objetos, performances, corpos, adereços, imagens, instrumentos oferecidos pelas pessoas ao lhes lançarmos a pergunta “Que áfricas ventam por você?”.
As máquinas fotográficas colocadas sobre as mesas convidam a um jogo de fotografar fotografias e fotografar palavras. Essas experimentações fotográficas são uma brincadeira de justapor fragmentos de poemas e de imagens. O livro, o poema e a fotografia perdem aí seu caráter de obra pronta. As páginas, nas fotografias, vão sendo recortadas e ilustradas a muitas mãos e a mesa se torna uma superfície de encontros e criação de foto-poemas, sempre contingentes. Abrem-se então novas continuidades, outros arremessos e outras formas de (a)colher a palavra. Principiam-se outros sentidos na justaposição entre corpo-fotografia e corpo-poema. Abre-se um entre-lugar, fissuras inesperadas que proliferam sentidos em deriva pelos rastros de imagens, pelos rastros de palavras.
Inventar com palavras e imagens uma língua outra, deixar caber nela o sem sentido, os sentidos em aberto, os sentidos à deriva... Deslocar a palavra de seu lugar original, configurar outros lugares para as palavras lidas no jogo de encená-las com imagens é uma forma de lidar com a linguagem sem a necessidade de contextualização e explicação. Desejase, com os poetas e com as fotografias, “escapar da ligeireza habitual das palavras, assim a linguagem se retira, escapole, coloca um limite na perda da estranheza, procura outras vozes, nos deixa calados e sem discurso algum sobre o silêncio” (SKLIAR, 2014, p. 28). A linguagem aqui é menos comunicação de um sentido pré-existente e mais imersão na dança sempre contingente e inusitada da criação. Por vezes turbilhonante, por outras ácida, mansa, desritmada, vazia, silenciosa...
Também as palavras tomam suas decisões, seu próprio rumo e realizam sua dança particular e, em algumas ocasiões, nos convidam a dançar com elas. São danças macabras ou danças puras, nunca se sabe. São serpentes a admirar e a temer. Ou paisagens à distância. Ou turbulências ou tremores no meio do corpo. E se desvanescem. Desvenescemo-nos. Qual o limite desse movimento das palavras? (SKLIAR, 2014, p.32).
Uma dança com as palavras, com as imagens, com gentes, um jogo de escutar, receber e lançar, um jogo de movimento que presenteia inusitados encontros. Não sabemos dos limites...
Escapar pelas frestas das palavras prontas apagando-as, deixando rastros mortos prenhes de sentidos, com eles traçar veios, vias, rios e deixar escoar linhas outras. Mãos em alegre poetagem enviam frutos recombinados em cores. Algo de ausente atormenta. Vento em movimento. Tormenta. Expira. Ausenta. Como fazer vazar a voz de um silenciamento secular? Para ecoar um silêncio bastou-nos gritamos para cá dentro, num gritar profundo. Somos a seca de um país onde a fome mata e a ignorância cega. Por baixo do asfalto tem tanta história. Faz-se o som do silêncio, no movimento calmo e contínuo das águas claras. Só tambor ecoando como canção de força. Chega pra lá rapaz isso não e coisa do demônio não? Não! Um peixe agoniza no estremecer da página nua. É tarde de outono, tambor ao longe, vento bate no meu rosto... Arfar de palavras, farfalhar palavras, as asas. Leve, leva sons, imagens, tons...5
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3º giro: Vídeo-poemas
Nas oficinas o material des-dobra-se em criações, com-posições. Temos captações em vídeos... Na reunião do Coletivo Fabulografias surge um novo movimento: que tal vídeo-poemas? Nas invenções em fotos já não era possível registrar aquilo que nos encantava no movimento sonoro das experimentações, dos poemas-sons... E temos músicos no grupo... E eis que surgem as composições musicais nas relações com as imagens... E temos gente que gosta de ler em voz alta... E eis que se organizam gravações e mixagens dos textos produzidos... E temos cantadoras cujas vozes encarnam ritmos e sentimentos que nos atravessam de outras formas o corpo... Elas poderiam ficar para sempre em CD e filmagens... Em vídeos e em gravações de áudio re-constrói-se aquilo que nos envolvia sonoramente nas oficinas. E há tantas imagens sem movimento que poderiam dançar em outras cirandas... A partir de ideias em fotografia e em poema, passamos a ter ideias em “cinema”6.
Eu me criei numa região no sertão do Maranhão [...], onde eu realmente eu tive muitos mestres. Mas eu me lembro principalmente de três, que foram a minha mãe, meu pai e o senhor Emiliano, que era um negro retinto que vivia pelo sertão. Ele não tinha uma casa. A casa de todo mundo era a casa dele. [...] muitas histórias, para se repoderar da sua. A minha mãe, primeiramente eu quero louvar e agradecer. [...] o que ela deixou, serviu pra eu me calar sim em muitos momentos, [...] porque ela me ensinou que a gente tem que ouvir muito e falar pouco [...]. O meu pai me deixou o ensinamento da alegria, que ele era um cantante natural. [...] Ele me ensinou a dançar. [...] A minha primeira memória musical é do meu pai cantando, [...] me colocando em cima dos seus pés dele para dançar comigo. E do senhor Emiliano, que foi esse senhor, esse caminhante que ninguém sabia de onde vinha, não tinha parentes naquela roça, naquele sertão. No entanto, ele passava pela casa de todo mundo (Depoimento da artista Nil Sena, 2010).
Um giro de saia combina-se com um toque do canto ou do batuque. Escrevemos agora desses acontecimentos, da poética das sínteses disjuntivas que constroem um fabular a partir dos nossos tantos registros. Nos vídeo-poemas, a potência do acontecimento se redobra. Com Vilela e Bárcena (2006, p. 16), sabemos: “Dizer o acontecimento é nomear o que ocorre como dobra do real, como interrupção ou descontinuidade. É pensar o inesperado. Dizer, nomear, pensar o acontecimento é, num sentido amplo, ensaiar o nome de uma irrupção, de uma fratura no real.”
Que fraturas no real damos a ver e ouvir nos vídeo-poemas? Os vídeos se construíram, em um primeiro momento, a partir de uma combinação som-imagem. A sonoridade guiava uma composição: um batuque, uma melodia, um texto falado, conduzia o que se mostrava em fotos ou filmagens. Não no sentido de ilustrar, mas em uma dança de forças, em um movimento de síntese muitas vezes disjuntivo7.
As produções atravessavam as pessoas que tinham contato com o material. Outros saberes e outras sensações foram experimentadas. Os filmes eram fabulações de um a três minutos. A pergunta maior do projeto, Que áfricas ventam por você?, nos animava e anima a buscar aquilo que vaza, que extrapola, que ressoa... Na pesquisa, o desejo maior era de encontrar maneiras de criar com imagens e palavras... O desejo era de compor com multiplicidades que nos atravessam, nos atravessamentos entre arte, educação e pesquisa.
Pareceu-nos chegada a hora de fazermos um vídeo que contasse do projeto como um todo, que desse a ver um pouco daquilo que experimentávamos nas oficinas. Mas como fazer um making-of de algo que não desejávamos capturado, engessado; ao contrário, queríamos potente como aquilo que provocava a irrupção?8
Da mesma forma como as criações e experimentações poéticas foram acontecendo, os vídeos têm a ver com uma seleção quase aleatória de forças que serão novamente recombinadas.
Sobreposições de imagens, com e sem movimento, participam de uma ciranda tecida com sons gravados de outros tempos e pessoas. Assim como o nosso coletivo borra a autoria das imagens, dos poemas, os vídeos trançam e entrelaçam múltiplas intensividades do projeto.
Fabular por entre ventos áfricas. Fabular por entre ventos alegres e tristes que vazam. Encontrar novos modos de encontrar e criar com imagens e palavras. Que áfricas ventam por você? Que áfricas ventam nas escolas, nos grupos artísticos, nas ruas, nas universidades? Como compor com as multiplicidades afro-brasileiras que nos atravessam? Um fabular de áfricas em que potencializam-se encontros e criações com poemas, fotografias e vídeos, com artistas, grupos de cultura popular, estudantes, professores e pesquisadores em experimentações coletivas. Aproximações entre arte, educação e pesquisa. Chamamos pelas áfricas que perpassam pessoas, áfricas que são imaginadas a partir dos frágeis indícios que nos restaram. Áfricas fabuladas no interior de um silêncio que paira na cidade. Como ecoar vida desde dentro desse silêncio oco?9
No último projeto em vídeo do nosso coletivo, intitulado Fabulografias10, o pensamento se constrói pelo viés da poesia falada. Trata-se de um grito, o grito calado, o berro calado, o som do tambor, os silêncios. Trata-se também de proliferar sensações que marcam o corpo, a pele... O corpo e suas múltiplas marcas.
No compasso deste cirandar de encontros e criações, a pulsão poética se faz como desejo de ruptura dos modos habituais de lidar com o tema das africanidades. Busca-se um dizer menos centrado na informação, opinião, argumentação e afirmações verdadeiras. Na negociação comunicativa (SKLIAR, 2014, p. 35), que muito se afirma nos espaços educacionais e midiáticos, reconhece-se sempre a presença de “sujeitos específicos - donos de uma identidade nítida - e cujo único propósito e destino é o de dialogar, compartilhar, convergir e consensuar” (SKLIAR, 2014, p. 35). Nesta lógica, o estranhamento, a intranquilidade, a turbulência, as tensões que envolvem as diferenças, a exclusão, o silenciamento, a segregação e as violências, são amansados por discursos que desejam um destino certo: a convergência do sentido e a fixação identitária.
Busca-se, nas rodas deste cirandar - entre imagens, palavras e sons - a oblíqua incerteza poética, o atravessamento improvável de vozes, a gagueira diante do insuportável, o estranhamento frente às palavras gastas. Deseja-se a linguagem líquida, mole, fluida que nasce da tímida voz que escuta forças inauditas. Desequilibra-se a ideia da linguagem centrada no sujeito, presa a uma autoria única. Rompe-se com a ideia de criação e criador, abrem-se espaços a in-ventos coletivos. Rasura-se a certeza de que a linguagem expressa identidades essenciais. Deseja-se uma linguagem possibilite atravessamentos de fluxos vários, singularidades móveis a dançar. “Uma linguagem que não seja de ninguém em particular e de qualquer um e de cada um em especial” (SKLIAR, 2014, p. 32). É que a poesia está exatamente ligada à ruptura e é no ritmo das múltiplas vozes que se faz uma positividade encantatória (LOPES, 2003, p. 38-40), que entendemos poética. Uma poética que é força política, quando afirma a emergência do novo e do imprevisível, quando acolhe linhas dissonantes de sentido e faz crescer forças em deriva.
Para Carlos Skliar, o espaço para uma política e poética, que se desvie do desejo de unicidade do sentido e do controle comunicativo da linguagem, é aquele “no qual a fumaceira criativa dos acontecimentos não se dissipa, mas é compartilhada, disposta em comum” (SKLIAR, 2014, p. 37). O movimento das nossas produções, tão rizomático (DELEUZE; GUATTARI, 1995), faz-se em giros, em muitas rodas. E na ciranda do fazer em oficinas, a ciranda não é só nossa. Essa ciranda do Fabulografias, ela é de todos nós, ela é de todos nós...