1 Introdução
Este artigo reflete sobre Artes como campo de saber legitimado (ou não) na universidade, particularmente no âmbito da formação inicial de pedagogos, e a repercussão dessa formação no trabalho docente nas escolas de Educação Básica. No contexto da análise da formação inicial desses pedagogos, o texto focaliza especificamente a educação estética1 e os saberes em Artes proclamados e exercidos no desenrolar do currículo do curso de Pedagogia, enfatizando a potência das ações integradas entre os elementos do tripé universitário - ensino, pesquisa e extensão - nesse processo educativo.
Sabendo-se que o ensino de Artes é legalmente obrigatório na Educação Básica desde 1971 (LDB nº 5692/71) no Brasil, questiona-se sobre os níveis de priorização do campo de saber artístico nos currículos dos cursos de Pedagogia, bem como se busca explicitar os processos de consagração ou não do ensino de Artes nesses currículos. A Universidade Estadual do Ceará - UECE - é apreendida como espaço em foco para as análises a respeito da formação docente no referido curso. Em especial, o curso de Pedagogia da Faculdade de Educação de Itapipoca-CE- FACEDI/UECE - foi o lócus principal da pesquisa. Além deste campus, a UECE também oferta o curso presencialmente em mais seis faculdades de Educação, situadas nas diversas cidades de microrregiões do Estado2. A formação do pedagogo foi aqui delimitada pelo fato de ser este profissional o que, majoritariamente, atua com ensino de Artes nas séries iniciais da Educação Básica (Educação Infantil e Ensino Fundamental até o quinto ano). Com isso, sua formação precisa estar sustentada em fortes bases estéticas e saberes artísticos para que o mesmo tenha possibilidades de atuar de modo mais consistente no trabalho com Artes. Essas reflexões estão guiadas pela noção de campo de Bourdieu (2006; 2004; 1983), bem como pela sua ideia de consagração desse campo como um processo construído relacionalmente.
Para Bourdieu (2004), todo estudo ou pesquisa situa-se num campo, ao mesmo tempo científico e político. Por que estudar educação estética no âmbito universitário? Que contribuições essa reflexão pode trazer de substancial para o referido campo? Compreender os porquês desta delimitação analítica é fundamental para se ter claro o sentido e o contexto do objeto de análise e das implicações de professores universitários e de pesquisadores em relação ao tema em foco. A auto-reflexão na pesquisa é uma condição para a ruptura epistemológica com os discursos instituídos, os dogmas, as teorias consagradas, como, por exemplo, a lógica de que os saberes artísticos são secundários na educação formal. Estes se constituem em meio às relações de poder que permeiam a sociedade e se dispõem a determinar escolhas, comportamentos, pensamentos e modos de agir dos agentes.
Nessa perspectiva, a problematização contida neste texto refere-se aos aspectos curriculares vinculados aos saberes em Artes, prescritos e exercidos na UECE - no âmbito do tripé universitário, mais particularmente nos currículos dos cursos de Pedagogia nas sete unidades de ensino da referida instituição que oferecem esse curso presencialmente.
2 O campo da arte na formação do pedagogo e seu ensino na escola
“E existe formação estética (através da arte) na Universidade?”. Foi com este questionamento que um colega, professor da universidade em que trabalhamos, em tom de ironia nos surpreendeu ao nos ouvir falar sobre um estudo desenvolvido por nós sobre este assunto. Enunciado que revela tanto uma denúncia da suposta ausência deste saber na Universidade (fora dos cursos específicos em arte) como nos instiga a querer construir outra realidade onde o agente observador não sinta a necessidade de fazer pergunta dessa natureza. Utopia? Não só. Vontade de realização. Se a educação estética pela arte nos exige uma razão prática, é preciso produzi-la. Nesse sentido, pensá-la é (também, juntamente) fazê-la. E por que não fazê-la dentro da universidade em seus diversos espaços? Por que não possibilitar seu trânsito entre o ensino, a pesquisa e a extensão como canais de circulação do sangue estético-formativo nas veias das pessoas?
A arte, este campo de saber e modo de expressão humana se manifesta em atos criativos de caráter estético que se constrói pela dilatação da percepção e pelo exercício da imaginação materializado em objetos artísticos. Arte é, pois, uma composição estética que pode se configurar por meio das linguagens musical, teatral, dançante, literária, pictórica, visual, cinematográfica.
O campo artístico se delineia social e historicamente, considerando o campo esse “[...] universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas” (BOURDIEU, 2004, p.20). Esse campo constitui-se um dos mais privilegiados no que diz respeito ao favorecimento de experimentações estéticas, por ter como matéria-prima a dimensão criativa aliada intimamente à dimensão lúdica das pessoas. A produção e a fruição artísticas permitem a expansão imaginativa materializadas num objeto ou obra de arte e nesse processo desenvolve-se o senso estético em meio a um processo educativo contínuo.
A educação estética se caracteriza, assim, como um processo de ampliação perceptiva das pessoas sobre as coisas e sobre si mesmas. Refere-se também a um processo de expansão do repertório pessoal através de experiências estéticas, no qual a arte possa ser um canal. Duarte-Junior (2010, p.74) expõe uma interessante explicação sobre a referida noção:
[...] deve-se entender a educação estética exatamente como o processo de auxiliar o desenvolvimento da percepção poética. Um processo pelo qual se busca levar os educandos a desenvolver em si o estado poético, a conseguir equilibrar as duas formas fundamentais de relacionamento humano com a realidade: a estética (ou poética) e a prática (ou prosaica). Para tal trabalho, as artes são, com efeito, convocadas como instrumento educacional; porém, a educação estética não se restringe ao seu emprego. Tudo aquilo que ajude a refinar nossa sensibilidade, a acurar nossos sentidos, pode se tornar parceiro em tal jornada [...]. (DUARTE-JUNIOR, 2010, p.74)
Duarte-Junior faz referência a dois modos de relacionamento humano com o mundo: o poético e o prosaico. Estes são elementos que contribuem para a ampliação da percepção humana nos aspectos estético e prático, respectivamente (DUARTE-JUNIOR, p. 74). Particularmente, a percepção estética apreende o sentido das coisas nas suas dimensões expressivas, sendo que essas expressividades constituem-se como aparências que são “[...] portadoras simbólicas de sentimentos humanos, como capazes de espelhar e revelar certas emoções, certas intensidades de vibração de nossa vida diante da vastidão do real” (DUARTE-JUNIOR, 2010, p. 75).
Aprofundar o campo de saber estético no âmbito da formação de pedagogos torna-se, pois, imprescindível à expansão da percepção e da sensibilidade humana. Essa formação não é importante apenas pelas crescentes demandas de suprir a carência por professores de Artes nas escolas, mas transcende esta questão, propondo a ampliação do horizonte formativo desse profissional.
Essa formação pode se exercer numa teia onde os trabalhos de professores, que têm acesso às experiências formativas estéticas, tenderão a repercutir nas vidas de seus educandos, quando da atuação destes na Educação Básica, possibilitando o crescimento de espaços de experimentação estética, seja ela por via da apreciação, da criação ou da análise de obras artísticas. Essa perspectiva se direciona a uma gradual transformação cultural, ampliando assim, o repertório cultural das pessoas e criando um estado social estético, para utilizar aqui os termos de Schiller (2011) e fazer referência ao seu grandioso (e romântico) desejo de ver a humanidade assim constituída.
Essa transformação cultural almejada requer um contínuo e rigoroso trabalho educativo, tanto dos próprios professores como, por consequência, das crianças e adolescentes. Educação apreendida como processo de construção, de apropriação de conhecimentos exercidos em meio às relações sociais pedagógicas envolvendo o ensino e a aprendizagem concomitantemente. Constitui-se como um exercício histórico de mobilização de saberes, pois as ações educativas se exercem num continuum no decorrer das vivências cotidianas dos indivíduos. As mesmas podem se realizar em diversos espaços e de diversas formas, não somente em instituições de ensino formais, apesar de que são nestas instituições que as intenções pedagógicas são mais explícitas e direcionadoras de processos educativos. De acordo com Catani (2012), em Bourdieu, ação educativa é socialização, que ajuda a construir os processos transformadores das pessoas. Não é mera transmissão de saber, apesar de que as escolas, muitas vezes, exercem ações de legitimação de valores hegemônicos, numa lógica de transmissão de saberes homogêneos, deixando de lado as diferenças de gênero, classe social, etnia, entre outros. No caso da Arte-educação, que compõe o campo de saber que aqui nos interessa diretamente, tanto é disciplina curricular em diversos currículos de Pedagogia, como é componente curricular obrigatório nas escolas, seja ele oferecido em forma de disciplina ou em forma de outras atividades/projetos escolares.
Arte-educação - educação através da arte - é um termo controverso e que criou várias vertentes de conceituação e de intervenções ao longo da história3. Apreender uma ou mais concepções de arte-educação requer uma assimilação histórica de construção desse conceito e de suas experimentações formativas cotidianas em espaços educativos diversos, o que não daria para abranger discursivamente, nos limites do presente texto4. Para uma explicitação de ideias a esse respeito, apresentam-se duas perspectivas com o intuito de se compreender o campo da arte-educação. A primeira, apontada por Coelho (2012, p. 67), que explica:
Há, no campo da arte-educação, duas filosofias predominantes. Uma se apresenta como “educação para a arte”, orientada para o produto (no ensino superior, voltada para as “belas artes”) e outra, a “educação através da arte”, centrada na criança ou no estudante (e que no ensino superior tem por foco programas de formação de professores). Os programas de arte-educação centrados na criança não menosprezam as artes, mas encaram-nas em sua relação com a criança e no conjunto do currículo escolar. (COELHO 2012, p. 67)
No sentido da Arte-educação como potencializadora da formação estética, Duarte-Junior (2011, p. 73) justifica a necessidade e a relevância deste campo de conhecimento:
A finalidade da arte-educação deve ser, sempre, o desenvolvimento de uma consciência estética. E consciência estética, aí, significa muito mais do que a simples apreciação da arte. Ela compreende justamente uma atitude mais harmoniosa e equilibrada perante o mundo, em que os sentimentos, a imaginação e a razão se integram; em que os sentidos e valores dados à vida são assumidos no agir cotidiano. (DUARTE-JUNIOR, 2011, p. 73)
Nesse argumento, percebe-se a grandiosidade formativa que há numa perspectiva de se abraçar um processo de educação estética, tanto na formação de professores como de crianças e adolescentes. Duarte-Junior (2011, p. 65) reforça sua defesa da Arte-educação como premissa essencial para a formação humana integral:
[...] a revalorização da beleza e da imaginação encontrou, na arte e no brinquedo, dois aliados poderosos. Por que não se educar as novas gerações evitando-se os erros que viemos cometendo? Por que não se entender a educação, ela mesma, como algo lúdico e estético? Por que, em vez de fundá-la na transmissão de conhecimentos apenas racionais, não fundá-la na criação de sentidos considerando-se a situação existencial concreta dos educandos? Por que não uma arte-educação? (DUARTE-JUNIOR, 2011, p. 65)
Historicamente, observa-se certa desvalorização das Artes nos currículos escolares e universitários, tanto pela pouca oferta de cursos específicos em Artes, como pela quase ausência deste campo de conhecimento nos currículos de outros cursos, particularmente no de licenciatura em Pedagogia. O campo de saber artístico vem sendo, por sua vez, incorporado às discussões e pautas de reivindicações, compondo mais intensamente o atual cenário de debates em eventos nacionais diversos5.
Em meio a tudo isso, o campo referido é legalmente obrigatório no currículo, apesar de não estar especificado na atual LDB (Lei nº 9.394/96) se esta obrigatoriedade precisa ser em todos os anos da Educação Básica. O texto legal apenas diz que deve ser oferecida nesta etapa de ensino. Com isso, muitos sistemas de ensino implementam a referida Lei apenas no limite da obrigatoriedade, não priorizando ou ampliando esta área de conhecimento. Além disso, em geral, nas escolas observadas no Estado do Ceará e que também representa uma tendência nacional, o tempo curricular destinado semanalmente a ela é muito restrito, aliado à falta de professores devidamente qualificados para a demanda6.
De acordo com dados do Núcleo de Assessoria Pedagógica da Secretaria de Educação de um município cearense7, na programação curricular de cada escola, em 20098, o ensino de Artes era oferecido do 1º ao 9º ano como disciplina de Arte-educação em apenas uma aula semanal, com cerca de 50 minutos cada. Sendo que essa tendência vem se mantendo ao longo dos anos. Isso denuncia objetivamente o campo das relações de força em que os diferentes saberes curriculares se movem, pois, por exemplo, a matemática e o português são tidos como os mais importantes campos de conhecimentos e precisam ocupar o maior espaço possível nos currículos escolares. Ora, numa sociedade da informação, da racionalidade, da tecnologia, marcada pela lógica tecnicista, produtivista e consumista, quem vai questionar isso? Essa verdade foi historicamente consagrada no âmbito das relações societárias de poder, apesar de que, nos últimos anos, o movimento de educadores, especificamente de arte-educadores e de artistas vem promovendo debates a favor da ampliação da arte como conhecimento curricular nas escolas. E esse movimento vem gerando frutos importantes como o crescimento de cursos de licenciaturas em diferentes linguagens artísticas no Brasil9, além de uma maior atenção dada à arte na escola.
Em 2008, por exemplo, foi instituída a Lei nº 11.769/08 que torna a música conteúdo obrigatório nos currículos escolares. Isso, por conseguinte, vem gerando uma demanda por professores que dominem esta linguagem artística para atuarem na Educação Básica, o que é algo positivo, posto que esforços no campo das políticas educacionais são mobilizados para a efetivação desta Lei. Com isso, mais uma vez nos remetemos a Bourdieu, quando ressalta que todo campo “é um campo de forças e um campo de lutas”, seja para conservar ou para transformar tal campo de forças (2004, p. 22-23). Desse modo, o campo do ensino de Artes é bastante representativo desse “campo de forças e de lutas”, traduzindo-se em espaço de contínua construção política, artística e científica.
O campo artístico - e, também o seu ensino - segundo o próprio Bourdieu, além de possuir uma autonomia relativa (característica própria de cada campo), se constrói pelo fato de haver artistas e suas obras objetivamente situadas e inter-relacionadas:
A autonomia relativa do campo artístico como espaço de relações objectivas em referência aos quais se acha objectivamente definida a relação entre cada agente e a sua própria obra, passada ou presente, é o que confere à história da arte a sua autonomia relativa e, portanto, a sua lógica original. Para explicar o facto de a arte parecer encontrar nela própria o princípio e a norma de sua transformação - como se a história estivesse no interior do sistema e como se o devir das formas de representação ou de expressão nada mais fizesse além de exprimir a lógica interna do sistema - não há necessidade de hipostasiar, como frequentemente se faz, as leis desta evolução; se existe uma história propriamente artística, é, além do mais, porque os artistas e os seus produtos se acham objectivamente situados, pela sua pertença ao campo artístico, em relação aos outros artistas e aos seus produtos e porque as rupturas mais propriamente estéticas com uma tradição artística tem sempre algo que ver com a posição relativa, naquele campo, dos que defendem esta tradição e dos que se esforçam por quebrá-la (BOURDIEU, 1983, p. 73).
Para Bourdieu, os agentes, ao mesmo tempo em que são produzidos num contexto sócio-histórico, também produzem esse contexto; eles exercem sua capacidade de inventar, de criar, em meio à sua autonomia relativa. Do mesmo modo, o campo da Arte-educação, seja na escola, seja na universidade, se constrói pelo fato de haver arte-educadores situados e interrelacionados nesse dado contexto.
3 O espaço das Artes nos currículos e a potência do tripé universitário para a ampliação desse espaço
O currículo é linguagem, assim ele também é elemento que produz cultura, não apenas a reflete e reproduz e, nessa perspectiva, defende-se que é preciso se evitar determinismos.
O entendimento do currículo como prática de significação, como criação ou enunciação de sentidos, torna inóqua distinções como currículo formal, vivido, oculto. Qualquer manifestação do currículo, qualquer episódio curricular, é a mesma coisa: a produção de sentidos. Seja escrito, falado, velado, o currículo é um texto que tenta direcionar o ‘leitor’, mas que o faz apenas parcialmente (LOPES & MACEDO, 2011, p.42).
A elaboração de um currículo, seja ele de cursos de graduação, seja de Educação Básica, compõe-se de uma dinâmica processual de negociações, agenciamentos e, consequentemente, de relações de poder. É uma produção cultural por se inserir na luta “[...] pelos diferentes significados que conferimos ao mundo. O currículo não é um produto de uma luta fora da escola para significar o conhecimento legítimo, não é uma parte legitimada da cultura que é transportada para a escola, mas é a própria luta pela produção do significado” (LOPES & MACEDO, 2011, p.93). O currículo, como produção cultural, é um dispositivo produtor de sentidos pela ação e interação dos agentes.
As atuais legislações educacionais10 instituem uma multiplicidade de componentes curriculares envolvendo o ensino, a pesquisa e a extensão no âmbito do Ensino Superior. Em tais legislações, aponta-se a necessidade da indissociabilidade entre essas três instâncias como ação imprescindível ao processo de formação profissional, pois, esse tripé universitário, quando bem articulado,
[...] conduz a mudanças significativas nos processos de ensino e de aprendizagem, fundamentando didática e pedagogicamente a formação profissional, e estudantes e professores constituem-se, efetivamente, em sujeitos do ato de aprender, de ensinar e de formar profissionais e cidadãos. [...] A pesquisa e a extensão, em interação com o ensino, com a universidade e com a sociedade, possibilitam a relação entre teoria e prática, a democratização do saber acadêmico e o retorno desse saber à universidade, testado e reelaborado (DIAS, 2009, p.39-40).
A extensão e a pesquisa universitárias tendem a mobilizar saberes e aprendizagens diversas e até diferenciadas do que comumente é feito nas atividades de ensino em sala de aula, pois, nelas há uma inclinação maior para as realizações de intercâmbio com outros agentes e instituições fora da universidade, bem como para a criação e a formação artística, política etc. Com isso, vê-se o quanto as ações integradas entre pesquisa, extensão e ensino são essenciais, pois ampliam as possibilidades formativas dos estudantes e tendem, assim, a gerar um processo de educação integral, o que abrange também a educação estética. E, para os pedagogos, esta educação integral precisa ser assegurada, pois estes irão exercer ações pedagógicas diversas e precisam adquirir um amplo e denso repertório de saberes.
Saberes que abrangem uma formação estética de pedagogos estão prescritos nas citadas Diretrizes Curriculares Nacionais (2006; 2015) e isso representa uma possibilidade interessante do ponto de vista da existência de um aparato legal que estimule a composição dos currículos de formação de pedagogos nessa direção, apesar de que uma prescrição não tem um poder mágico de efetivação de uma proposta formativa, se diferentes agentes não tomarem a iniciativa de implementá-la.
Dentre as referidas legislações que tratam mais diretamente da inserção das Artes nos currículos escolares, a mais recente é a Lei nº 13.278/2016 que fixa as diretrizes e bases da educação nacional, referente ao ensino da arte envolvendo todas as linguagens (Teatro, Dança, Artes Visuais e Música). Há ainda a Lei nº 11.789/08 que institui a obrigatoriedade da inserção do ensino de Música nas escolas; junte-se a elas, a atual LDB (Lei nº 9.394/96); os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental - PCN Artes (1997); as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2012); As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (2012). Atualmente, temos também a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2018), que assinala saberes em Artes no currículo da Educação Básica.
O enunciado do Artigo 26 da atual LDB11, por exemplo, infelizmente, por não especificar a possibilidade de ampliação e aprofundamento do ensino de Artes nas escolas em todas as etapas e anos de ensino, libera-as para legitimar a falta de prioridade sobre esse campo de conhecimento na Educação Básica. E, ante essa falta de prioridade, cabe questionar sobre o lugar das Artes no currículo escolar, bem como no currículo do Curso de Pedagogia: “[...] de onde vem o poder de consagrar [...]”? Quem atribui importância ou “reputação” a elas? (BOURDIEU, 2006, p. 23-25).
Temos dito que qualquer organização curricular é permeada de relações de poder na definição de seus saberes. E o que fazem as reputações é, segundo Bourdieu, “[...] o campo da produção como sistema das relações objetivas entre esses agentes ou instituições e espaço das lutas pelo monopólio do poder de consagração em que, continuamente, se engendram o valor das obras e a crença neste valor” (IDEM, p. 25). As relações de poder que permeiam a elaboração curricular nas escolas e nas universidades, geralmente, impõem ao saber artístico um lugar de pouco destaque ou de desprestígio (como já exposto), salvo em momentos contingenciais, como datas comemorativas ou alguns eventos institucionais como forma de enfeitar ou alegrar o evento: “Todo conhecimento depende da significação e esta, por sua vez, depende de relações de poder. Não há conhecimento fora desses processos”. (SILVA, 2007, p.149). Prova concreta disso é o já observado tempo semanal reduzido, destinado ao ensino de Artes na carga horária dos estudantes da Educação Básica12.
Já na Universidade em análise, a instituição da disciplina Arte-educação, por exemplo, nos currículos dos cursos de Pedagogia, compôs um recente jogo de forças que envolveram a necessidade de apropriação das determinações legais, postas nas atuais Diretrizes Nacionais para os Cursos de Pedagogia. Aqui se leva em consideração a problematização feita por Ferraço (2008) onde destaca que uma prescrição curricular não quer dizer, necessariamente, que a mesma esteja sendo concreta e cotidianamente efetivada. Os componentes curriculares elencados nos cursos de Pedagogia da instituição em foco expõem intenções de educação estética, apesar de que, além do fato de existirem algumas prescrições curriculares - sejam obrigatórias ou optativas - as mesmas não garantem uma ação efetiva e contínua de priorização do saber estético-artístico na formação dos pedagogos, se os responsáveis por essa formação (instituições e professores formadores) não se dispuserem a valorizar e exercer efetivamente tal campo de saber. Como exemplo de uma possível valorização do campo de saber artístico, temos o crescente aumento do número de projetos de extensão em Artes, bem como do desenvolvimento de pesquisas e institucionalização de disciplinas obrigatórias e optativas nos currículos de Pedagogia da UECE (2008; 2013), tanto por conta de exigências legais, como do movimento de arte-educadores nessas últimas décadas.
4 Arte a passos largos no exercício do tripé universitário
Exercer arte no currículo de Pedagogia requer ousadia, manifestada num esforço de criação de um projeto pedagógico que a apreenda como um saber dotado de forte potência para desenvolver-se transversalmente, tanto no âmbito dos saberes disciplinares, como no processo de integração entre ensino, pesquisa e extensão. O currículo desse curso tem (em âmbito nacional) uma especificidade que alguns chamam de generalista e isso tanto pode ampliar as possibilidades formativas do pedagogo como pode tender para a superficialidade. Entretanto, quando um currículo de formação de professores se propõe a integrar ensino, pesquisa e extensão, as possibilidades de garantia de uma aprendizagem interdisciplinar e mais consistente aumentam, pois há uma mobilização de agentes e de práticas no exercício cotidiano deste currículo. Nessa mobilização, a parceria entre professores para o fomento e a execução de projetos interligados é essencial. Estimular estudos e experimentações em arte, ampliar os espaços de diálogos e manter certa insistência na defesa das Artes no espaço universitário é também fundamental para fortalecer e aprofundar esse campo de conhecimento (MORAES, 2016).
Dentro desta perspectiva para a formação dos pedagogos, as universidades poderão garantir uma base de fundamentação artística dos pedagogos fazendo valer suas prescrições legais13 como o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Concretamente, como viabilizar este princípio? Em que ações, tempos e espaços o tripé universitário poderia se sustentar para se desenvolver no cotidiano da instituição? Há recursos humanos e financeiros suficientes para tal investida? Sabe-se que no plano das ideias, tal princípio de indissociabilidade é muito complexo e potente; no plano concreto do dia a dia da universidade, esta proposta pode ser realizada na articulação entre, por exemplo, professores e agentes externos à comunidade para a realização de ações pedagógicas em conjunto; entre professores coordenadores de grupos de pesquisa e de grupos de extensão, para favorecer a troca de saberes e o intercâmbio entre os estudantes componentes de cada um desses grupos; dentre tantas outras atividades possíveis de serem criativamente elaboradas e executadas.
O princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão reflete um conceito de qualidade do trabalho acadêmico que favorece a aproximação entre universidade e sociedade, a autorreflexão crítica, a emancipação teórica e prática dos estudantes e o significado social do trabalho acadêmico.
A concretização desse princípio supõe a realização de projetos coletivos de trabalho que se referenciem no planejamento de ações institucionais e nos interesses da maioria da sociedade (ANDES, 2013, p.50).
Compromisso cotidiano, investimentos na universidade pública e diálogo entre diferentes agentes que compõem a universidade são exigências fundamentais para a viabilização de ações integradas entre o ensino, a pesquisa e a extensão, sob pena de continuarmos com a histórica predominância do ensino como praticamente a única instância de fomento à formação profissional e pessoal de professores. Nessa direção, concordamos com a assertiva que diz: “[...] compreender as atividades de extensão e de pesquisa como expedientes vitais aos processos de ensino e de aprendizagem na graduação requer proposta de formação fortemente articulada à vivência do real e imersa na própria realidade, fundada em uma relação dialética entre teoria e prática”. (DIAS, 2009, p.06).
É com esta orientação que juntamos esforços para desenvolver ações pedagógicas no âmbito do curso de Pedagogia envolvendo os três elementos do tripé universitário. Por exemplo, quando desenvolvemos uma disciplina de Arte-educação, planejamos algumas das aulas em forma de aula-oficina, onde um grupo artístico de Extensão foi convidado para fazer parte; ou ainda quando organizamos eventos anuais - o “Contos e Cantos ao Redor do Fogo”14, por exemplo - e todos os estudantes e professores foram e são convidados tanto para coordenar atividades como para elaborar produções artísticas para expor no dia do evento15.
No referente à articulação entre ensino e pesquisa, podemos citar o componente curricular denominado “Pesquisa e Prática Pedagógica - PPP” (UECE/FACEDI, 2013). Esta é uma disciplina que é oferecida semestralmente e que tem a intenção de articular saberes de diferentes disciplinas durante o semestre e também envolver práticas de pesquisas empíricas sobre temas relacionados ao campo da Pedagogia.
Todas essas propostas estão em execução, não sem dificuldades, pois a lógica curricular posta hoje, principalmente a partir das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Pedagogia (2006), requer uma atitude interdisciplinar, além de abertura ao diálogo e também muita criatividade e disposição para o trabalho coletivo. A quase ausência desse perfil no corpo de professores representa, pois, uma barreira para a realização dessas propostas. Mas é importante destacar que as intenções de integração existem, ao menos na disposição de alguns professores e estudantes para fazer valer o princípio da indissociabilidade dos elementos do tripé universitário. E é com esse esforço de criar ações que integrem o ensino, a pesquisa e a extensão universitária que buscamos exercer nosso trabalho pedagógico cotidianamente, tentando ainda contagiar mais pessoas nesse empreendimento educativo.
Considerações finais
Problematizar sobre a formação estética e artística na universidade é refletir sobre a relevância destes campos de conhecimento no currículo e também perceber as relações de poder que permeiam suas afirmações ou negações nas instituições educativas.
Dada a diversidade de agentes e de contextos, é importante ter em vista que não há projeto curricular emancipatório único. Com isso, concordamos com LOPES & MACEDO (2011, p. 183) quando afirmam que uma proposta de currículo, não é algo dado, mas algo que requer construção coletiva, pois ela não está pronta, mas vai se constituindo por meio de lutas (culturais e políticas), sendo que a diferença e os processos de identificação precisam ser entendidos como elementos centrais.
Acreditamos que currículo não é mera prescrição onde a própria formação de professores, muitas vezes, é permeada por essa lógica de prescrições ou receitas a serem seguidas. Concordamos, pois, com Ferraço (2008), que expõe a necessidade de considerarmos a diversidade de possibilidades presentes no cotidiano escolar como elementos formativos e interventivos. Com essa perspectiva, o mesmo sugere que focalizemos os agentes que compõem a instituição educativa em sua dimensão interrelacional, dentro do contexto sociocultural em que esta se situa. Ele defende a valorização das histórias de vida desses agentes que se exercem de modo entrelaçado e com variados sentidos. Essas histórias constituem o cotidiano institucional, criando saberesfazeres - para trazer o termo que Ferraço se utiliza (2008) - e aprofundando os sentidos que cada um atribui a esse cotidiano.
A contribuição das ideias de Bourdieu (2006; 2004; 1983) nas presentes reflexões são de grande relevância para se pensar os processos constitutivos dos currículos universitários e escolares por considerá-los imersos em uma dada realidade sócio-histórica, sendo esta permeada por relações sociais de poder. Bourdieu considera ainda que a atuação de diferentes agentes em inter-relação possibilitam mudanças na sociedade, sejam elas nos valores e atitudes das pessoas, sejam nas estruturas institucionais e sociais mais amplas.
Priorizar o ensino de Artes requer dos professores formadores - universitários - e escolares, muita discussão, luta coletiva e a compreensão de que a produção de conhecimento artístico tende a gerar a ampliação da criatividade, da sensibilidade estética, da atuação ética, crítica e propositiva. Quem vai dizer, com isso, que as Artes não são importantes na formação humana e, principalmente, na formação profissional dos educadores?
Acredita-se que a arte pode permear as demais disciplinas além de ter um espaço disciplinar específico nos currículos. Para tanto, é necessário retomar o diálogo interdisciplinar tão em voga nos últimos anos, atrelando-o ao processo de formação e de prática docente. Nos processos de revisão e implementação curricular dos projetos pedagógicos de cursos de Pedagogia da UECE, vimos observando que há um esforço de ampliação do diálogo e de criações de ações integradas de docentes. Isso representa importante mudança de atitude que tende a favorecer as propostas de formação de pedagogos. Em especial, no campo da arte-educação, propomos e observamos também a expansão de componentes curriculares favorecedores deste saber - como atividades de ensino, de pesquisa e de extensão.
É preciso, pois, ter consciência de que essa perspectiva de valorização e expansão do campo das Artes no currículo é algo desafiador e requer muita energia científica, política, relacional e, principalmente, criativa. Mas, é importante também crer que essas mudanças são bastante possíveis e necessárias, pois como, acertadamente diz o poeta: “A arte existe porque viver não basta” (Ferreira Gullar).