Introdução
É inegável a ocupação de vagas por estudantes surdos nas instituições de ensino superior, desde o reconhecimento da Lei de Libras (BRASIL, 2002) e das decorrentes políticas educacionais de caráter inclusivo que a sucederam, sobretudo as ações com foco na formação profissional em língua brasileira de sinais. Quadros e Stumpf (2014) destacam o surpreendente avanço de 705% de matrículas nas universidades, compreendendo um salto de 344, em 2002, para 2.428 estudantes surdos, em 2005, atribuindo-se o fato, em parte, à política de formação de profissionais bilíngues, que atendem à diretriz do Decreto Federal nº 5.626/2005, Art. 14. § 1º c) que aponta que as instituições federais de ensino devem garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação, nas atividades e nos conteúdos curriculares, promovendo o ensino da Língua Portuguesa, como segunda língua para pessoas surdas. Recentemente, a Lei 14.191/2020, que altera a Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), incluindo a modalidade de educação bilíngue de surdos, trata da garantia de atender às especificidades linguísticas dos estudantes surdos, por meio da formação de profissionais bilíngues e produção de materiais didáticos adequados.
As autoras destacam a importância da criação dos cursos de graduação em Letras Libras (Licenciatura e Bacharelado), na modalidade a distância, ação pioneira sob coordenação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que implantou polos de formação em 16 estados brasileiros, totalizando 767 licenciados e 312 bacharéis em Letras Libras, no ano de 2012, quando se formaram as primeiras turmas.
Em estudo mais recente publicado no “Panorama da Educação de Surdos no Brasil - Ensino Superior” (ESDRAS e GALASSO, 2017), que toma dados do Censo da Educação Superior/INEP, entre 2010 e 2015, foram observados 7.131 matriculados no ensino superior, sendo 75,36% deficientes auditivos[sic]1 23,14% surdos e 1,5% surdocegos. Os dados indicaram que 67,63% dos estudantes estão matriculados em universidades, sendo 3745 em números absolutos, no período. Mesmo não sendo objeto de atenção neste trabalho, é importante destacar que a expansão evidencia aumento em mais de 5 vezes o número de matriculados em cursos a distância, passando de 437, em 2010, para 2.630 em 2013. Os anos da queda, 28,32% e 24,24%, respectivamente em 2014 e 2015, marca o momento em que se inicia o processo de implantação de cursos de Letras Libras presenciais em inúmeros estados, por decorrência das ações do Plano Viver sem Limite (BRASIL, 2011)
Esse breve panorama da ampliação do acesso de estudantes surdos no ensino superior tem a intenção de situar o contexto deste estudo que contempla parte desse contingente de estudantes surdos que passaram a compor as turmas da licenciatura em Letras Libras, em uma universidade pública paranaense.
O artigo está organizado em três seções, além desta introdução, e tem o objetivo de apresentar reflexões teórico-metodológicas sobre o processo de letramentos bilíngues de estudantes surdos no ensino superior, a partir do estudo do gênero textual lendas brasileiras. Iniciamos o debate traçando apontamentos básicos acerca da situação de bilinguismo em contextos de minorias e a situação da pedagogia linguística subjacente à escolarização básica de surdos. Passamos, na seção seguinte, a apresentar alguns fundamentos e desafios envolvidos no processo de letramentos acadêmicos bilíngues para, por fim, apresentar alguns dos procedimentos metodológicos desenvolvidos nas práticas de letramento com acadêmicos surdos na licenciatura em Letras Libras.
Letramentos de surdos em contexto de minorias: apontamentos iniciais
Os estudantes surdos que chegam ao curso de licenciatura em Letras Libras apresentam um repertório cultural e de letramento bastante diversificado que acaba por refletir a qualidade de seu processo de escolarização na educação básica, determinado pela política educacional e pedagogia linguística adotada em seu município/estado de origem. Quando nos referimos à qualidade da pedagogia linguística dispensada, significa refletir sobre as concepções de linguagem e estratégias metodológicas envolvidas no ensino da leitura e escrita da língua materna na escola. A alfabetização é o momento crucial para o aprofundamento do abismo que separa crianças ouvintes (falantes nativos do português) das crianças surdas na escola.
Identificamos como principais aspectos desfavoráveis nesse processo a precária ou inexistente identificação linguística e cultural com pares surdos ou ouvintes sinalizadores, o que impede a aquisição da Libras como primeira língua, base para o aprendizado da escrita da segunda língua (L2), o português; práticas tradicionais de alfabetização centradas na ênfase ao código e memorização mecânica de letras/grafemas e sons/fonemas; professores não capacitados para a educação bilíngue, seja para a mediação do processo ensino-aprendizagem, seja para o ensino de português como L2 (FERNANDES, 2003, 2006, 2008 ; LODI, 2013; PEREIRA, 2014); a negação da pedagogia visual que considere o percurso de construção da visualidade dos sujeitos surdos, através dos signos visuais e sua língua visual, na aprendizagem e no currículo (CAMPELLO, 2008), invisibilizando a diferença linguística e cultural dos surdos em sala de aula.
É importante lembrar que, mesmo a despeito da garantia legal do direito à educação bilíngue para surdos em escolas inclusivas e em escolas bilíngues (BRASIL, 2002, 2014, 2015), o sistema educacional brasileiro apresenta uma estrutura ainda engessada em que domina a matrícula de surdos em turmas comuns da escola regular. Nesse contexto, se sabe, as aulas e as interações são faladas, os gêneros textuais trabalhados são orais e escritos. Resulta desse processo de monolinguismo em português a exclusão dos alunos surdos, seja pelo impedimento que a surdez impõe ao acesso à informação, à comunicação e ao currículo pela tradição oral-auditiva, seja pela falta de apoio e ações institucionais de inclusão que deem resposta às necessidades dos surdos que se referenciam na libras como principal língua de identificação cultural e de comunicação.
Estudiosos de bilinguismo em contextos de minorias (CAVALCANTI, 1999) analisam que as línguas que não gozam de prestígio e reconhecimento social, por serem faladas em contextos muito específicos e por não terem registro escrito (como é comum entre povos indígenas e também os surdos) são invisibilizadas e marginalizadas, resultando na produção de desigualdades de seus falantes. São chamados programas de bilinguismo de assimilação, já que a língua materna do aluno pode estar presente, mas por não ser valorizada como língua de mediação do currículo, passa a ser progressivamente substituída pelo português, à medida que a escolarização vá avançando (FERNANDES, CERETTA, 2009)
No caso do bilinguismo dos surdos são inúmeras as práticas em que a libras é assimilada pelo português nas escolas. Quando há a presença de intérpretes de língua de sinais (ILS) como apoio às aulas, o contexto de interação verbal acaba resumido ao profissional e ao aluno surdo; ele se torna a única pessoa que fala a língua, que conversa com o aluno, que responde as suas dúvidas, que percebe a sua exclusão e que cria vínculos afetivos e pedagógicos, muito mais potentes ao acolhimento do aluno surdo do que o professor regente da disciplina. No caso de todas as disciplinas e componentes curriculares em que a língua-meio de “instrução e avaliação” nas aulas é o português, não há o menor espaço para que a libras figure como língua de comunicação, expressão e mediação na construção do conhecimento, ou mesmo seja reconhecida como a língua fundadora da subjetividade/identidade dos surdos na constituição de sentidos sobre o mundo (FERNANDES, 2003).
Nesse cenário complexo de “bilinguismo” dos surdos brasileiros nas escolas, em que a Libras é invisibilizada como língua para o exercício dos direitos humanos, linguísticos e sociais, ampliamos nossa compreensão, defendendo a perspectiva dos “letramentos”, já que estão envolvidos nesse processo reflexões sobre ensino/aprendizagem de duas línguas em interação: um língua majoritária com privilégio social e a outra minoritária e subalternizada.
As práticas de letramento no ensino superior envolvem múltiplos desafios aos estudantes surdos que utilizam o português como segunda língua. É imediata e evidente a autopercepção da defasagem das competências e habilidades básicas requeridas à leitura e produção de textos acadêmicos pelas precárias experiências de letramento que os/as estudantes vivenciaram na educação básica. Ao ingressarem na graduação, são expostos a diversos gêneros (resumos, resenhas, artigos, capítulos de livros, relatórios...entre outros), que lhes causam grande estranhamento quanto aos aspectos discursivos e composicionais e, geralmente, aprofundam o sentimento de “incompetência” e fracasso em relação ao conhecimento do português. Paralelamente a essa experiência negativa, soma-se a ausência de repertório lexical em libras para sinais-termos equivalentes à linguagem científica específica das diferentes áreas de conhecimento do currículo, justamente pela falta de experiências educacionais em que a libras fosse a língua de registro da literatura, da divulgação científica, da filosofia, da legislação, ou seja, a língua de registro de gêneros secundários do discurso (BAKHTIN,1997), mais complexas em níveis de formalidade, léxico especializado e estilos composicionais, entre outros aspectos.
Ao defendermos práticas de letramentos bilingues no ensino superior, argumentamos sobre a necessidade de que libras e português constituam línguas de fronteira na mobilização das práticas de leitura e escrita de estudantes surdos, o que significa que a libras deve se constituir, também, objeto de estudo e de práticas verbais de uso e reflexão sobre a(s) língua(s). Isso demanda políticas institucionais de criação e composição de acervo de textos em videolibras (MARQUES, OLIVEIRA, 2012; FERNANDES E MEDEIROS, 2017) ou “Libras videossinalizada” (SILVA, 2019), para se referir ao repertório de textos sinalizados em vídeo como forma privilegiada de registro e da materialidade que compõe os gêneros textuais sinalizados.
Reiteramos nossas reflexões (FERNANDES, 2003, 2017) de que a apropriação da língua portuguesa escrita seja dependente da constituição de seu sentido na língua brasileira de sinais, a fim de que os processos de comparação, análise e reflexão linguística sejam mobilizados e aprendizes surdos compreendam diferenças entre ambas as línguas de fronteira que constituem sua identidade.
Letramento visual bilíngue: aspectos teórico metodológicos
As práticas de leitura e escrita do português decorrem da mediação de processos semióticos visuais na qual a libras é o sistema verbal privilegiado. A essa singularidade na apropriação da língua portuguesa denominamos de letramento visual bilíngue, ou seja, um processo que corresponde à realidade de sujeitos que falam uma língua não-alfabética como primeira língua (ou língua de referência) e dominam a leitura e escrita de uma segunda língua alfabética, sem necessariamente conhecer seu sistema fonológico (SANCHEZ, 2001; FERNANDES, 2003).
Significa dizer que, sem acesso aos aspectos fonológicos, os surdos tomam a língua escrita como um conjunto de signos visuais registrados no texto: para os surdos, aprender a escrita significa aprender a língua portuguesa. Escrita e língua fundem-se em um único conhecimento vivenciado por meio da leitura. Entendemos que esse processo assume uma dimensão ideogrâmica, ou seja, na leitura da “língua” as palavras correspondem a ideogramas, como no sistema de escrita chinês, em que a cada unidade gráfico-visual corresponde uma unidade semântica. A leitura do signo é realizada visualmente e não pela decomposição de unidades fonológicas (fonemas, sílabas...), como na escrita alfabética.
Do mesmo modo, defendemos a hipótese de que a leitura é realizada visualmente pelos surdos, sendo tecidas relações entre aspectos verbais (as palavras-ideogramas) e não-verbais (outros símbolos visuais), pela mediação da libras para a constituição das unidades de sentido do texto (FERNANDES, 2003, 2011, 2017).
É uma hipótese complexa da qual derivariam múltiplos desdobramentos, a fim de que a leitura ideogrâmica não se restrinja à mera memorização lexical mecânica, que impediria a compreensão do texto e da língua. A apreensão das unidades de sentido que compõem o discurso estaria condicionada à imersão em práticas sociais de leitura significativas, que demanda uma proposta curricular organizada de modo progressivo, por meio de sequencias didáticas apropriadas ao nível de proficiência do grupo.Vivenciar o uso de determinado gênero textual em libras e língua portuguesa, paralelamente, contribuirá para a melhor compreensão, reflexão e uso em ambas as línguas.
Considerando que nos diferentes gêneros textuais a presença de recursos semióticos visuais pode combinar linguagem verbal e não-verbal em diferentes níveis de composição, cabe ao professor selecionar gêneros mais visuais nos grupos com menor experiência e conhecimento da língua portuguesa, já que serão essas as referências imagéticas que constituirão o ponto de partida para a leitura e incursão no universo polissêmico da escrita pelos surdos (FERNANDES, 2003).
A partir das ideias da concepção dialógica de linguagem debatidas pelos estudiosos do Círculo de Bakhtin, tomamos a categoria da verbovisualidade para fundamentar essa discussão do letramento visual bilíngue pelos surdos. Dentre os diversos conceitos/categorias que podem ser utilizados para a leitura e interpretação do visual no texto, Beth Brait (2013) destaca a constitutiva relação verbo-visual [sic] entre a dimensão linguística - oral ou escrita - e a imagem nas formas de produção de sentido e efeitos de sentido de textos:
[...] a dimensão verbo-visual de um enunciado, de um texto, ou seja, dimensão em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham papel constitutivo na produção de sentidos, de efeitos de sentido, não podendo ser separadas, sob pena de amputarmos uma parte do plano de expressão e, consequentemente, a compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado, uma vez que ele se dá a ver/ler, simultaneamente (BRAIT, 2013, p.2)
Brait toma o pensamento bakhtiniano e refaz o percurso de suas contribuições para uma teoria geral da linguagem, buscando destacar as possíveis referências ao visual (a imagem, a palavra, do desenho, da pintura, do gesto significante...) em obras que mobilizam as contribuições do Círculo, especialmente ligadas ao estudo das artes visuais:
que procura explicar o verbal e o visual casados, articulados num único enunciado, o que pode acontecer na arte ou fora dela, e que tem gradações, pendendo mais para o verbal ou mais para o visual, mas organizados num único plano de expressão, numa combinatória de materialidades, numa expressão material estruturada (BRAIT, 2013, p.50)
Sua discussão dessa combinatória de materialidades organizadas num único plano de expressão nos interessa significativamente, ao tomarmos a libras, uma língua visual-espacial como signo verbal constitutivo do conteúdo semiótico e ideológico que alimenta a formação da consciência surda. Por um lado, há uma aplicabilidade do verbo-visual como categoria que constitui a enunciação nas manifestações de artefatos culturais produzidos pelos surdos em gêneros sinalizados emergentes no teatro, na poesia, na videografia. As formas verbo-visuais dos enunciados que se prestam a ser vistos/lidos, trazem destaque à libras como signo verbal que assume centralidade no letramento visual bilíngue de interlocutores surdos, aliados a outras semioses visuais não-verbais.
Por outro lado, a argumentação de que há relação constitutiva entre sequências verbais e sequências visuais, que definem o enunciado como um todo verbo-visual, nos permite, também, aproximações com o princípio ideogrâmico visual no processo de leitura pelos surdos. Vale lembrar que desvendar a semiose visual presente no texto demanda “ler” sinais imagéticos para além das palavras, que revelam pistas da autoria, do contexto de produção, da intenção do texto, do gênero e suporte em que o texto circula. O desafio é oportunizar experiências em que essas materialidades visuais verbais e não-verbais sejam apreendidas como uma totalidade de sentido, e não de forma fragmentada. Para a sistematização dos estudos linguísticos em segunda língua, propõe-se a produção das lendas brasileiras no suporte de videorregistro, fomentando práticas de letramento em libras.
Diante dessa base de pressupostos que buscam evidenciar a centralidade que a enunciação verbo-visual assume no processo de letramento visual bilíngue, sendo a libras a língua de referência nas experiências de leitura e escrita da língua portuguesa, passemos a debater alguns encaminhamentos metodológicos envolvidos.
Produção e compreensão textual: as lendas brasileiras como objeto de aprendizagem
Buscamos fazer da disciplina de “Produção de Compreensão textual em Libras”, que integra o currículo do curso de Licenciatura em Letras Libras da instituição um espaço sobre usos e reflexões da libras e da língua portuguesa. A experiência foi desenvolvida nos anos de 2016 e 2017 com turmas mistas de surdos e ouvintes bilíngues, com o objetivo de estudar alguns recursos de coesão que compõem a textualidade em libras e língua portuguesa escrita, ampliando a capacidade de leitura e compreensão de textos escritos e sinalizados.
A partir do gênero textual “lendas brasileiras”, com referência ao livro do folclorista Luiz da Câmara Cascudo (2000) que reúne vinte e uma histórias coletadas da tradição oral dos povos do norte a sul do país, selecionamos dez lendas2 de cada uma das regiões brasileiras para estudo. Os textos foram adaptados da fonte original e inseridas imagens e glossário de regionalismos, além de um roteiro de leitura (figura 1).
A metodologia de trabalho adotada no decurso da disciplina baseia-se na concepção de letramento visual bilíngue, já debatida na seção anterior. Foram eleitos os principais procedimentos metodológicos desenvolvidos para a apresentação nesta seção, organizados em três etapas: a primeira tinha como foco conhecer características culturais regionais e aspectos composicionais e discursivos do gênero lenda brasileira; em seguida, a leitura das lendas em língua portuguesa e estudos conceituais e aplicados sobre recursos de textualidade, com ênfase em mecanismos básicos de coesão referencial no português escrito (KOCH, 1994).
A primeira etapa do trabalho, os estudantes realizaram pesquisa da cultura das regiões de origem das lendas, como fase preparatória para apresentação do videorregistro da lenda, proposto como produto final da disciplina. Geralmente, a pesquisa dos/as estudantes foi realizada com apoio de mapas, imagens, vídeos, dicionários de libras digitais em circulação na internet e registrados em vídeo (Figura 1). Ainda, nesse momento, aspectos relativos à composição do gênero, que prioriza a narrativa como tipologia textual, associando fatos reais, históricos a elementos fantásticos e sobrenaturais foram estudados.
Para as práticas de leitura em português como segunda língua, utilizamos um roteiro de leitura como ferramenta metodológica para orientar a atenção para três camadas de conhecimentos presentes no texto: (i) os elementos intertextuais que compreendem o conhecimento prévio mobilizado na leitura, a partir da relação com outros textos lidos ou requeridos na compreensão do texto atual; os (ii) elementos paratextuais que compõem características composicionais do gênero registradas por aspectos gráficos da linguagem não-verbal como imagens, logotipos, ícones, índices, gráficos, estratégias de destaque e organização do texto como tamanho, cor e disposição das fontes (cor, negrito, itálico...), a diagramação (caixa de textos, balões, esquemas, linha fina, verso ou prosa, tópicos, colunas...) ; e os (iii) elementos textuais, ou o texto/linguagem verbal, propriamente ditos.
O roteiro de leitura é disponibilizado aos estudantes sob a forma de perguntas orientadoras do « olhar » para determinados aspectos do texto, com a mediação sinalizada em libras pelo professor. A estratégia impede a mera decodificação, direcionando a leitura para aspectos intertextuais (conhecimentos externos ao texto) e paratextuais (conhecimentos externos e internos ao texto) que operam na compreensão global do texto, em detrimento exclusivamente do código escrito. Especificamente, no caso dos surdos, o reduzido repertório de vocabulário em português, geralmente é um aspecto limitador da leitura. Kleiman (1998) adverte que a leitura se torna difícil quando não há o reconhecimento instantâneo de palavras, como no caso de leitores iniciantes que demoram tanto em decifrar um termo desconhecido que, ao terminar de decifrá-lo, podem ter esquecido o que leram (memória de curto tempo). Assim, segunda a autora, o leitor “não chega a perceber o bosque (o texto) por causa das árvores (as palavras)” (1998, p.140).
Essa observação é totalmente pertinente à reflexão que fazemos quando estudantes surdos se deparam com um texto escrito que se revela como uma grande carta enigmática, um conjunto de códigos indecifráveis por falta de conhecimento prévio (lexical, sintático, semântico, discursivo). A mediação do professor bilíngue na condução de hipóteses de leitura, contribui à superação dessa dificuldade inicial, demandando a adoção de uma pedagogia visual (CAMPELLO, 2008), com uma ação didática que conduz o olhar para unidades verbo-visuais que controem o sentido do texto. Como já afirmado, a enunciação verbo-visual materializada pelas sequencias verbais e não-verbais presentes no texto compõem uma materialidade única que se reveste de sentido no plano da leitura.
Inicialmente, a leitura é realizada coletivamente, com projeção do texto na tela, complementada por anotações de palavras-chave, destaques e sinonímias no quadro, além de destaques em aspas, grifos e negritos no texto, organização de parágrafos são elementos paratextuais importantes para a leitura e compreensão. Na leitura em grupo renovam-se dúvidas e debates sobre palavras e expressões não contempladas no glossário do texto, além de reflexões sobre construção frasal, uso de tempos verbais narrativos, e palavras gramaticais e sua função na coesão textual (pronomes, preposições, conjunções, advérbios e locuções adverbiais, entre as mais questionadas).
Como o estudo de elementos de coesão referencial foi o alvo de aprendizagem na disciplina, nos dedicamos a sistematização desses aspectos em quadros e tabelas, além de exercícios de leitura e produção escrita. A partir da « metáfora dos laços » foram sistemaatizadas algumas palavras/expressões que operam como elementos « costuram » as partes do texto (palavras, orações e parágrafos), produzindo uma unidade coesa de partes ligadas entre si. Nos textos, foram enfatizados os termos e expressões responsáveis pela referência anafórica e catafórica, destacando relações entre dois termos nas frases e orações, no momento da leitura coletiva do texto (Figura 5).
Importante reafirmar que esse tipo de encaminhamento metodológico busca destacar a experiência visual na interação verbal, enfatizando o que é central é o que é periférico na leitura, na seleção hierárquica de conhecimentos sociais, linguísticos e discursivos para a compreensão global do texto. A utilização de destaques de vocabulário, o usos de flechas e esquemas para demarcar visualmente relações internas ao texto, por exemplo, são alguns recursos visuais de mediação no roteiro de leitura (Figura 5).
Finalizado o estudo do texto em português, seus aspectos estruturais e discursivos que determinam a composição do gênero lenda brasileira, além da sistematização de alguns marcadores de coesão referencial, passamos à leitura do texto em libras e à análise comparativa dessas relações em uma língua visual-espacial. As práticas de letramento visual bilíngues vivenciadas ao longo do semestre oportunizaram reflexões sobre a transposição dos elementos composicionais e discursivos da lenda brasileira escrita para o gênero sinalizado. Destacamos, nessa fase, a criação de sinais-termo para regionalismos e personagens, além da necessidade de desenvolvermos estudos das formas de referenciação nominal em narrativas em língua brasileira de sinais, pela demonstração e sistematização de elementos que constroem o espaço mental em narrativas sinalizadas.
Para o estudo da análise de referenciação nominal em Libras, apoiamo-nos na pesquisa de Bolgueroni (2013), em que a autora defende que a organização das relações gramaticais e discursivas estão fortemente demarcadas pela organização espacial em discursos sinalizados. Utilizando os modelos de ponto de referência de Lidell (2003), ela explica que a construção de narrativas sinalizadas se estrutura a partir da integração de dois espaços mentais, ao longo da narrativa: o espaço real, decorrente da conceitualização do ambiente, e do espaço do evento em que os elementos da história (personagens) são inseridos.
Bolgueroni (2013) demonstra a importância da relação língua/gesto na configuração do espaço e sinalização como chave interpretativa da organização e funcionamento gramatical e discursivo da libras. As estratégias principais para estruturar a referenciação em narrativas sinalizadas são o uso do espaço sub-rogado (figura 4), ou seja, parte do corpo do sinalizador é utilizada para designar uma entidade no espaço do evento e o uso do espaço token (figura 5), em que o espaço à frente do corpo do sinalizador é utilizado para referenciar as entidades pertencentes ao espaço do evento
Por fim, no último momento do trabalho, apropriadas noções básicas de mecanismos de referenciação em português, passamos ao estudo da tradução cultural da lenda para a versão sinalizada, com videorregistro em libras.
O recontar as lendas brasileiras, atentando-se à organização do espaço mental da narrativa sinalizada exigiu vários procedimentos prévios: a divisão da narrativa em episódios, o levantamento de estratégias em libras para introduzir e retomar personagens (sinais lexicais, gestos de apontamento, pantomimas, marcas posturais) e a análise de elementos de referenciação (token e sub-rogados)
O roteiro disponibilizado para a produção da versão final da lenda sinalizada em vídeo-libras contemplou a organização da apresentação em quatro aspectos: aspectos históricos e culturais da lenda ; glossário; lenda sinalizada e análise linguística das estratégias de referenciação aplicadas na narrativa sinalizada (espaço token e sub-rogado) .
Os aspectos metodológicos envolvidos na produção de gêneros textuais sinalizados não serão tratados neste artigo, mas têm sido objeto de reflexão em outros trabalhos, uma vez que textos sinalizados registrados no suporte vídeo devem ser analisados à luz do arcabouço teórico que explica as atividades comunicativas, como manifestações de gêneros textuais e fenômenos históricos vinculados à vida cultural e social (MEDEIROS E FERNANDES, 2020a; FERNANDES E MEDEIROS, 2020b).
Considerações Finais
Consideramos o trabalho com as lendas brasileiras uma possibilidade que ilustra o processo de construção de letramentos bilíngues no ensino superior. É fundamental que as atividades de uso e reflexão linguísticas e metalinguísticas ocorram em ambas as línguas de identificação cultural para mobilizar a produção, compreensão e socialização de conhecimento no ambiente acadêmico. A escolha e sequência de gêneros textuais que serão objeto de estudo deverão ser motivadas pelas singularidades e níveis de habilidades e competências dos estudantes na escrita e na leitura, além dos objetivos da disciplina e do plano curricular do curso. Ter em mente, todavia, que a criação e composição de acervos de materiais e tecnologias em língua de sinais, disponíveis ao conjunto dos estudantes e público surdo em geral, é uma das mais significativas ações para a promoção de uma cultura letrada bilíngue e o objetivo maior que nos mobiliza à ação político-pedagógica em contextos de bilinguismo de minorias.
Partindo da premissa que Libras e língua portuguesa constituem línguas de fronteira, em articulação permanente nas interações verbais em que estão envolvidas pessoas surdas, o artigo buscou apresentar reflexões teórico-metodológicas sobre o processo de letramentos bilíngues de estudantes surdos no ensino superior.
O processo de estudo das lendas brasileiras que ilustrou este estudo buscou problematizar que, mesmo no ensino superior, as práticas de leitura e escrita que tem o português acadêmico como alvo devem percorrer um caminho paralelo ao processo de letramento em libras, buscando visibilizá-la, qualificá-la e difundi-la como língua de cultura. As práticas de letramento em ambas as línguas caminham paralelamente e estão intrinsicamente articuladas nos processos de apropriação, produção e socialização do conhecimento acadêmico de estudantes que, via de regra, sofrerarm práticas de exclusão e marginalização na educação básica, decorrentes da invisibilização de sua diferença linguística. .
As diretrizes teórico-metodológicas que apresentamos ao debate, neste estudo, reafirmam a perspectiva de que a apropriação do português como segunda língua deve ser orientada por práticas de letramentos bilíngues. Essas práticas pressupõem a centralidade da libras na mediação do ensino e aprendizagem da segunda língua, o destaque à enunciação verbo-visual na seleção de textos para a leitura, como também na produção de gêneros textuais sinalizados, além da necessária criação de acervo com tipologia e gêneros variados em videorregistro em libras que potencializem a constituição de uma cultura letrada bilíngue no ambiente universitário.