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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.78 Uberlândia set./dic 2022  Epub 29-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n78a2022-66274 

Dossiê "Educação, produção de subjetividade e cuidado de si: a atualidade de 'A hermenêutica do sujeito'"

Tessituras: entre A Hermenêutica do Sujeito e a Educação

Weaves: between Hermeneutics of the Subject and Education

Tesituras: entre la Hermenéutica del Sujeto y la Educación

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: maura@unisinos.br

**Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Faculdade de Educação (aposentado) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: alfredoveiganeto@gmail.com


Resumo

Celebrando os quarenta anos de A Hermenêutica do Sujeito - o curso ministrado por Michel Foucault no Collège de France, em 1982 -, este texto propõe-se a estabelecer conexões, gerais e específicas, entre aquele curso e a Educação. É feita uma discussão acerca da perspectiva analítica não metafísica adotada por Foucault, em contraste com o atual discurso pedagógico interpretativo dominante. São discutidos os sentidos que se pode dar a alguns insights daquele curso, em suas relações com a Educação contemporânea. Propondo-se uma diferenciação entre pedagogia e Pedagogia, destaca-se a função subjetivante das práticas pedagógicas na educação escolarizada. Argumenta-se em favor da ontologia histórica, em oposição à ontologia transcendental, e recorre-se ao conceito de frame, de modo a ressaltar sua importância e limitações em estudos como este. Discute-se a inversão moderna que colocou ênfase no preceito do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), deixando em segundo plano o preceito do “cuida de ti mesmo” (epiméleia heautoû), do que resultou a substituição do ideal antigo do sujeito das ações corretas pelo ideal moderno do sujeito dos saberes verdadeiros. Sugere-se que a Educação possa contribuir para suspender a anunciada morte do sujeito ou, pelo menos, mitigar os seus efeitos.

Palavras-chave: Foucault; Subjetivação; Pedagogia; Ontologia Histórica

Abstract

Celebrating the forty years of The Hermeneutics of the Subject - the course by Michel Foucault at the Collège de France, in 1982 -, this text proposes to establish connections, both general and specific, between that course and Education. A discussion is made about the non-metaphysical analytical perspective adopted by Foucault, in contrast to current dominant interpretive pedagogical discourses. The meanings that can be given to some insights from that course are discussed, in their relations with education. Proposing a differentiation between pedagogy and Pedagogy, the subjectivizing function of pedagogical practices in schools is highlighted. We argue in favor of historical ontology, as opposed to transcendental ontology, and we resort to the concept of frame, in order to emphasize its importance and limitations in foucauldian studies. We discuss the modern inversion that placed emphasis on the precept “know thyself” (gnôthi seautón), leaving in the background the precept “take care of yourself” (epiméleia heautoû), which resulted in the replacement of the ideal of the subject of correct actions by the modern ideal of the subject of true knowledge. We suggest that Education can contribute to suspend the announced death of the subject or, at least, mitigate its effects.

Keywords: Foucault; Subjectivizing; Pedagogy; Historical ontology

Resumen

Celebrando los cuarenta años de La Hermenéutica del Sujeto - curso por Michel Foucault en el Collège de France, en 1982 -, este texto se propone establecer conexiones generales y específicas, entre ese curso y la Educación. Se discute la perspectiva no-metafísica adoptada por Foucault, en contraste con el actual discurso pedagógico interpretativo dominante. Se problematizan los sentidos que se pueden dar a algunosinsigthsde aquel curso, en sus relaciones con la educación contemporánea. Se propone una diferenciación entre pedagogía y Pedagogía y se destaca la función de subjetivación de las prácticas pedagógicas en las escuelas. Se argumenta a favor de la ontología histórica, en oposición a la ontología transcendental, y se recurre al concepto deframe, para enfatizar su importancia y limitaciones en estudios foucaultianos. Se discute la idea moderna que puso énfasis en el precepto de “conócete a ti mismo” (gnôthi seautón), dejando en segundo plano el “cuida de ti mismo” (epiméleia heautoû), lo que derivó en la sustitución del ideal antiguo del sujeto de las acciones correctas, por el ideal moderno del sujeto del conocimiento verdadero. Se sugiere que la Educación puede contribuir a suspender la anunciada muerte del sujeto o, al menos, mitigar sus efectos.

Palabras clave: Foucault; Subjetivación; Pedagogia; Ontologia Histórica

Tessitura - s. f.: composição de tecido; textura; modo como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura.

(HOUAISS, 2009, verbete tessitura)

Introdução

Nunca será demais comemorarmos uma efeméride. No nosso caso, queremos comemorar os quarenta anos do curso A Hermenêutica do Sujeito, ministrado por Michel Foucault no Collège de France, nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1982. Merecidamente, muito já foi dito e escrito acerca e a partir daquele curso. Afinal, ali se encontra um conjunto extremamente rico e variado de lições sobre a função subjetivante desempenhada pelo cuidado de si - o cuidado que cada um pode ter consigo mesmo -, em jogo com o conhece-te a ti mesmo. E, ainda mais: ali existe uma enorme variedade de “assuntos”, insights brilhantes, múltiplas referências históricas e inovadoras discussões filosóficas e políticas. Nas palavras de Edgardo Castro, A Hermenêutica do Sujeito dedicou-se à “análise da formação da hermenêutica do sujeito e das práticas de si, desde a filosofia antiga até a época helenista e cristã” (CASTRO, 2011, p. 187). Tudo isso é do maior interesse para o nosso ofício de professores e professoras e, principalmente, para enfrentarmos os difíceis dias de hoje.

Como tem acontecido com a extensa obra de Michel Foucault, a cada ano são publicados novos textos, entrevistas e livros inéditos do filósofo. Além disso, sempre é possível buscar, a partir da sua imensa produção, outras leituras e elementos para repensarmos, ressignificarmos e problematizarmos o presente, de modo a ampliarmos as possibilidades para a análise social como, também, para nos defendermos de tudo aquilo que hoje nos incomoda, nos aflige e nos sufoca. E não só para nos defendermos, mas também para alimentarmos nossas resistências, e - para usar duas expressões foucaultianas - nossas “contracondutas” e as necessárias “pequenas revoltas diárias”. Nesse ponto, está aquela atitude que atende, sob medida, os desejos do próprio filósofo:

Escrever não me interessa senão na medida em que o escrever se incorpora à realidade de um combate, como um instrumento, de tática, de esclarecimento. Eu gostaria que meus livros fossem como bisturis, coquetéis molotov, ou minas, e que se carbonizassem depois do uso, quais fogos de artifício. (FOUCAULT, 2010, p. 725)

É nesse clima que o nosso objetivo principal, neste texto, é levarmos um pouco adiante a produtividade d’A Hermenêutica do Sujeito para a Educação, tanto num sentido amplo e bem geral - relacionando a atmosfera epistemológica do pensamento foucaultiano e tecendo-a com a Educação -, quanto num sentido mais específico - tecendo as possíveis relações entre algumas passagens pontuais daquele curso e as atuais práticas e teorizações pedagógicas. Quando nos referimos a “algumas passagens pontuais daquele curso”, queremos deixar claro, desde já, que nosso intuito não é sermos exaustivos e nem queremos entrar em pormenores. Nossa intenção é bem mais modesta: apenas discutimos a atmosfera de que se vale Foucault para respirar e pinçamos algumas ideias d’A Hermenêutica do Sujeito, de modo a costurar tudo isso com as práticas e teorizações contemporâneas no campo da Educação.

Sublinhamos o fato de que, para uma leitura adequada e produtiva d’A Hermenêutica do Sujeito - bem como de tudo aquilo que Michel Foucault produziu - é absolutamente fundamental mergulharmos na epistemologia foucaultiana. Em outras palavras, saber onde e como se situa o pensamento do filósofo, com quem ele conversa e com quem ele não conversa, de quem e do que ele se aproxima ou se afasta. É claro que, em termos gerais, proceder assim é sempre necessário para qualquer leitura de qualquer autor. Nos casos de Foucault e suas possíveis relações com a Educação, tal necessidade parece ainda maior, pois aquilo que se pode chamar de pensamento pedagógico dominante e circulante entre nós está, em sua esmagadora maioria, comprometido com o idealismo e com as filosofias da representação; e é justamente para o idealismo e a representação que Michel Foucault dá as costas (VEIGA-NETO; LOPES, 2017). Tributário do platonismo e do neoplatonismo, do idealismo e das filosofias da representação, o pensamento pedagógico dominante está também carregado dos tópos e dos mitos judaico-cristãos que, uma vez naturalizados e tomados como verdades, impregnaram a Pedagogia desde os inícios da Modernidade (VEIGA-NETO, 2004). Foucault não se amarra em nada disso e é, até mesmo, um crítico mordaz a tudo isso.

Em suma, iniciamos as tessituras acima referidas discutindo a perspectiva analítica assumida por Michel Foucault, de modo a deixar mais clara a sua virada epistemológica; isso nos parece útil, principalmente para as pessoas menos familiarizadas com o pensamento do filósofo. Além do mais, estabeleceremos uma plataforma conceitual a partir da qual nos lançaremos à tarefa aqui proposta. Ambas - a perspectiva analítica e a plataforma conceitual - se reforçam mutuamente; no entanto, aqui serão rapidamente discutidas em separado, com vistas às pessoas menos familiarizadas com o pensamento de Foucault. As discussões a seguir acabaram imprimindo um caráter também metodológico a este texto.

Depois desta introdução, seguem quatro seções:

Uma perspectiva analítica

Uma plataforma conceitual

Mais algumas tessituras

Uma costura final

Uma perspectiva analítica

A perspectiva analítica à qual nos referimos envolve rápidas considerações acerca da posição intelectual assumida por Foucault, de modo a se compreender melhor o frame a partir e através do qual ele enxerga o mundo e, ao mesmo tempo, ele se situa no mundo. Dado que aqui discutiremos questões educacionais, tais considerações nos parecem importantes, na medida em que temos pela frente um pensamento desenquadrado, quando comparado ao discurso pedagógico interpretativo dominante que vem sendo praticamente hegemônico ao longo da Modernidade.

Estamos usando a expressão discurso interpretativo dominante da maneira como foi proposta e desenvolvida por Alain Touraine, para quem hoje e cada vez mais é preciso pensar de outros modos. Em suas palavras, atualmente o discurso interpretativo dominante “nada mais faz do que alargar o fosso que separa o mundo político e social do mundo intelectual” (TOURAINE, 2009, p. 13). No caso da Educação, por exemplo, o filósofo é agudo: o discurso interpretativo dominante preocupa-se “mais com a segurança pública do que com a possibilidade oferecida a cada criança de construir sua individualidade” (TOURAINE, 2009, p. 17). E mais:

existe um vazio teórico tão grande no domínio da Educação que é urgente contradizer tanto o discurso interpretativo dominante quanto examinar o mais concretamente possível o funcionamento interno de nosso sistema educativo, e em todos os estabelecimentos. (TOURAINE, 2009, p. 78-79)1

Além dessa expressão touraineana, estamos usando o conceito de frame (moldura) nos sentidos tematizados e relativizados por Judith Butler (2018). Indiretamente, também nos valemos das discussões de três autores nos quais se apoia Butler: Jacques Derrida (1975), Erving Goffman (1974) e Michel Callon (1998). Seguindo esses três autores, a relativização de que se ocupa Butler deriva das limitações impostas pela radical historicidade dos fenômenos sociais e das consequentes análises que se fazem sobre eles. Para ela, o enquadramento “não mantém nada integralmente em um lugar, mas ele mesmo se torna uma espécie de rompimento perpétuo, sujeito a uma lógica temporal de acordo com a qual ele se desloca de um lugar para outro” (BUTLER, 2018, p. 26).

Dessa instabilidade e imprevisibilidade vêm as próprias limitações do frame e sua vulnerabilidade, pois é essa “espécie de rompimento perpétuo” - derivado do caráter inarredavelmente temporal e contingencial das coisas enquadradas e daqueles que promovem o enquadramento - que permite a evasão e a fuga de tudo aquilo que parecia até então sólida e firmemente enquadrável.2 E, se parecia sólida e firmemente enquadrável é porque, assumindo implicitamente a doutrina dual platônica, o que se enquadrava era ingenuamente pensado como representações de “imagens” ideais e estáveis que estariam situadas fora deste mundo; estariam situadas fora da caverna. Se algo não parecia firme e claramente enquadrado, seria por uma “deficiência” daquele que enquadrava; seria por uma deficiência derivada deste nosso mundo de representações e sensibilidades, ambas sempre vistas como parciais e cópias imperfeitas. Nessa perspectiva, a solidez é entendida e aceita como um desiderato necessário, mesmo que impossível de alcançar, porque este nosso mundo é de carne e osso e, enquanto tal, tudo aqui é naturalmente imperfeito.

Mas, além desses “determinantes” de caráter temporal, há outra limitação do frame; ela é imanente ao frame porque deriva do próprio ato de enquadrar. Há, aqui, uma aproximação notável com a crítica da razão pura kantiana, quando aquele filósofo explica que chama de

transcendental todo o conhecimento que em geral se ocupa não tanto com os objetos, mas com nosso modo de conhecimento de objetos, na medida em que este deve ser possível a priori. Um sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia transcendental. (KANT, 1987, p. 26, grifo no original)

Sempre vemos através das lentes de que dispomos; são lentes que se formaram - se criaram e organizaram - ao longo das nossas próprias experiências já acontecidas. Nosso pensamento e aquilo que dizemos ser a realidade não são imagens especulares daquilo que existe lá fora.3

A imanência à qual nos referimos acima se manifesta como um transbordamento, um excesso, um a mais que não depende nem da vontade ou da atenção de quem enquadra e nem do tipo ou da disposição das coisas enquadradas. O excesso está para além do enquadrador e das coisas enquadradas; e, ao longo do processo de enquadramento, tal excesso até mesmo “transforma” o enquadrador e a coisa enquadrada. Há um algo que vem de dentro de quem enquadra. Há um algo nele que recebe e acolhe o que vem de fora. Há um algo que pode ser entendido como o conjunto das suas experiências anteriores e memórias acumuladas, sem as quais ele não enxergaria nem, muito menos, entenderia aquilo que ele mesmo está tentando enquadrar. Além disso, há também um algo que, num rebatimento imediato, vem de fora, vem da coisa enquadrada e entra no enquadrador, transformando-o e enriquecendo seu repertório experiencial. Em todo o enquadramento, há, de fato, um trânsito constante entre o dentro e o fora, entre o enquadrador e a paisagem enquadrada. Tal excesso implica o abandono de qualquer pretensa positividade com que os enquadramentos são tradicionalmente pensados.

É por isso que Butler chama nossa atenção para o fato de que, além do caráter radicalmente histórico e transitório do enquadramento, há de se considerar, também, que sempre existe algo de fora do frame, algo que torna

o próprio sentido de dentro possível, reconhecível. A moldura nunca determinou realmente, de forma precisa o que vemos, pensamos, reconhecemos e apreendemos. Algo ultrapassa a moldura que atrapalha nosso senso de realidade: em outras palavras, algo acontece que não se ajusta à nossa compreensão estabelecida das coisas. (BUTLER, 2018, p. 24)4

Podemos nos valer da argumentação detalhadamente desenvolvida por Butler acerca da potência e das limitações do enquadramento, para pensarmos sobre e com Foucault. Aliás, para pensarmos sobre e com qualquer outro autor ou qualquer outra coisa. Podemos nos entregar a uma digressão para dizer que aquilo que entendemos sobre esse ou aquele autor não é esse ou aquele autor em si, mas é o que desse ou daquele autor conseguimos ler e compreender, a partir dos encaixes possíveis com aquilo que já existia em nós, a partir das nossas experiências pregressas. Ele não se dá em si, nem para todos nem para qualquer um; somos sempre nós é que o fazemos se dar para nós ou em nós.

Mais especificamente, é claro que tudo isso também vale para pensarmos sobre as relações entre A Hermenêutica do Sujeito e a Educação. Tais entendimentos nos ajudam a compreender que, do abandono do necessitarismo e da assunção radical da contingência, resulta uma impermanência que põe por terra boa parte do otimismo, da positividade e das certezas que povoaram e ainda povoam o imaginário e as consequentes metanarrativas da Modernidade. Dentre tais metanarrativas, incluem-se aquelas articuladas em torno da Educação e que, de fato, estão no centro e na alma da Pedagogia.

Ora, vem daí que é preciso ter claro: pensar com Foucault5 implica dar as costas à solidez, à estabilidade e às certezas idealizadas pela Modernidade. Implica, também, colocar-se por fora do arco da doutrina dual platônica, nas formas pelas quais ela serviu de base e abrigo para as Filosofias da Representação (MACHADO, 2009), para pensar sobre a Educação e para a formulação das práticas e teorias pedagógicas, ao longo da Modernidade (VEIGA-NETO, 2004).

No âmbito d’A Hermenêutica do Sujeito, foi esse “colocar-se por fora” em relação ao platonismo que permitiu a Foucault, entre outras coisas, identificar o que ele chamou de “grande paradoxo do platonismo”. Como esse paradoxo tem importância para que se compreenda melhor onde se fincam as raízes remotas da cultura europeia6 e da própria Pedagogia (KOHAN, 2009), vejamos mais de perto em que ele consiste.

Nas palavras de Foucault, de um lado, o platonismo foi (nas origens da Idade Média) “o fermento, o solo, o clima, a paisagem de uma série de movimentos espirituais, em cujo cerne, sem dúvida, ou em cujo ápice, se quisermos, ocorreram todos os movimentos gnósticos” (FOUCAULT, 2004, p. 97). De outro lado, o platonismo foi,

constantemente também, o clima de desenvolvimento do que poderíamos chamar de “racionalidade”. [... Ele foi] o clima perpétuo do qual se desenvolveu um movimento de conhecimento, conhecimento puro sem condição de espiritualidade. (FOUCAULT, 2004, p. 97)

Lembremos que o platonismo pretende dispensar qualquer apelo a uma instância fora e acima da própria razão.7 Lembremos, ademais, que a espiritualidade - no sentido que está aqui sendo dado a essa palavra - não deve ser confundida com

religião, ou seja, é necessário distinguir muito bem espiritualidade e religião. É surpreendente constatar que a espiritualidade, o espiritualismo e a religião se misturam no espírito das pessoas numa salada notável, uma “marmelada”, uma confusão impossível. (FOUCAULT, 2018, p. 20)

No transcurso da citação acima, Foucault argumenta que, por se situarem em esferas diferentes, não faz sentido colocar a espiritualidade e a racionalidade em polos opostos,

posto que é próprio do platonismo, precisamente, mostrar de que modo todo o trabalho de si sobre si, todos os cuidados que se deve ter consigo mesmo se se quiser ter acesso à verdade consistem em conhecer-se, isso é, em conhecer a verdade. (FOUCAULT, 2004, p. 97)

Assim conclui Foucault: “conhecimento de si e conhecimento da verdade [...] vão, de certa forma, neles absorver e reabsorver as exigências da espiritualidade” (FOUCAULT, 2004, p. 98). Nessa conjunção, vale aqui a metáfora física da dobradiça: o platonismo - especialmente na sua reconfiguração como neoplatonismo, no alvorecer da Idade Média - funcionou como uma charneira, como uma dobradiça capaz de articular espiritualidade com racionalidade.

Para concluir esta seção, um último comentário. Se nos aproximarmos da paradigmatologia de Thomas Kuhn, pode-se dizer, então: pensar com Foucault - a partir dele, para além dele etc. - exige uma conversão paradigmática, tomando essa palavra no sentido fraco. Exige deixar de lado os modos de pensar sistemáticos e os edifícios teóricos aparentemente seguros que a Modernidade construiu no campo pedagógico - e não apenas aí, é claro. Exige abrir-se às infinitas possibilidades que uma perspectiva radicalmente histórica nos oferece. É tal radicalidade histórica que nos desafia e, ao mesmo tempo, nos afasta das filosofias sistemáticas e representacionais.

Pode-se recorrer novamente a Richard Rorty - em sua crítica ao pensamento sistemático moderno e à metafísica - para caracterizar A Hermenêutica do Sujeito como um longo mergulho num pensamento edificante, capaz de causar uma profunda “admiração por haver algo de novo debaixo do sol, algo que não é uma representação exata do que já ali estava” (RORTY, 1988, p. 286). Essa postura se alastra na obra de Foucault naquilo que, um pouco mais tarde, Rorty (1992) denominou atitude nietzschiana perante o conhecimento. Por fora da atitude cartesiana - base da razão formal - e da atitude hegeliana - base da razão histórica -, a atitude nietzschiana se descarta da razão transcendental que suportava as duas anteriores e se despede da noção de continuidade histórica. Despede-se, assim, de qualquer possibilidade de existir um fio condutor que, a partir de uma exterioridade, pudesse ligar epistemes diferentes. Consequentemente, a atitude nietzschiana dá as costas tanto a qualquer noção de origem germinal8 e pontual, quanto à noção de progresso que vá além daquilo que detectamos a posteriori e que batizamos como progresso.

Aliás, cumpre sublinhar: nessa questão, nem Foucault nem Rorty são de todo originais. Já na sua crítica ao Idealismo, Nietzsche dedica o aforismo 317, em Aurora, aos filósofos sistemáticos:

Atenção aos sistemáticos. Há uma comédia dos sistemáticos: querendo preencher o seu sistema e arredondar o horizonte que o envolve, tentam, à força, pôr em cena os seus pontos fracos no mesmo estilo que os pontos fortes - querem apresentar-se como naturezas acabadas, de uma força monolítica. (NIETZSCHE, 1983, p. 175)

Uma plataforma conceitual

Como já referimos, as rápidas discussões que seguem visam esclarecer os significados e sentidos que estamos atribuindo a algumas palavras e expressões básicas, para a melhor compreensão deste texto.9

Nossa plataforma conceitual escora-se em dois pontos iniciais. O primeiro ponto: a pedagogia e a Pedagogia. O segundo ponto: as más perguntas.

Para as pessoas mais presas ao pensamento de matriz exclusivamente pedagógica, esses dois pontos parecerão um tanto desenquadrados e artificiais, situados fora da curva onde, entre nós, se situa a maioria dos saberes pedagógicos. Em outras palavras, parecerão situados fora do arco epistêmico sob o qual se abrigam, entre nós e há muito tempo, os discursos técnicos, pedagógicos, políticos, culturais, éticos, filosóficos etc. sobre a Educação. Assim, reiteramos: tal desenquadramento é apenas aparente. Ele deriva do fato de que o frame foucaultiano - a janela pela qual Michel Foucault olha e nos convida a olhar para o mundo e a pensar sobre o mundo - tem pouco a ver com os frames que, na Modernidade, tornaram-se hegemônicos na análise social e muito principalmente na Pedagogia.

Passemos aos dois pontos de escoramento, então.

O primeiro ponto: a pedagogia e a Pedagogia

Ao grafarmos essa palavra de duas maneiras, queremos marcar uma diferença entre elas. É uma diferença necessária para pensarmos as relações entre A Hermenêutica do Sujeito e a Educação.

Com inicial minúscula - pedagogia -, estamos nos referindo a quaisquer práticas envolvidas com as ações de ensinar e aprender, num sentido bastante amplo, antigo e sem preocupações ou compromissos com alguma sistematização ou organização sobre o como, o para que, o por que, o que, o a quem etc. se ensina. No entanto, ao grafarmos Pedagogia - com inicial maiúscula - estamos nos referindo ao campo10 de práticas e saberes (organizados, sistematizados, institucionalizados, normatizados etc.) associados àquelas práticas, cujos objeto e objetivos principais gravitam em torno do ensinar e do aprender, de modo a trazer as crianças, os recém-chegados, os outros, os “estrangeiros” etc. para o interior de uma cultura que já estava aí. Nesse sentido - isso é, como conjunto de saberes organizados, sistematizados, institucionalizados, normatizados etc. -, a Pedagogia constituiu-se na Modernidade europeia de modo articulado com a secularização pós-medieval, com o vácuo deixado pelo declínio do poder pastoral e correspondente nascimento da governamentalidade, com a invenção da maquinaria escolar11 e com a invenção da infância e do sujeito.

Assim, o que faz toda diferença entre as duas grafias é a sistematização, a organização e a institucionalização desenvolvidas na Europa em meados do segundo milênio, cujo “efeito”, em termos foucaultianos, foi contribuir para a emergência12 da episteme da ordem e da representação. Pode-se dizer que a Pedagogia nasceu na e com a Modernidade europeia.13 Tal entendimento sobre a Pedagogia nos dispensa de a qualificarmos de moderna; nesse caso, usar o adjetivo seria um pleonasmo. Num jogo de palavras, talvez se possa dizer que Pedagogia designa a forma segundo a qual as práticas pedagógicas, em seu conjunto, são sistematizadas e colocadas em funcionamento na Modernidade.

O segundo ponto: as más perguntas

O segundo ponto de escoramento refere-se às más perguntas. Vale a pena recorrermos de novo ao Segundo Wittgenstein, quando ele argumenta a favor de uma terapia da linguagem e nos alerta para não deixarmos a linguagem sair de férias14. Segundo o filósofo austríaco, mesmo que se reconheçam os limites da linguagem, devemos cuidar para que ela sempre trabalhe a favor da adequação, coerência e máxima compreensão compartilhada (numa comunidade linguageira) sobre aquilo que pensamos e dizemos. Trata-se de uma terapia que implica evitar, dentre outras, uma pergunta de ordem filosófica assim formulada: “que é isso?”. Tal pergunta gera mal-entendidos aos quais denominamos problemas filosóficos15. Ao fim e ao cabo, tais problemas não estão do lado dos objetos sobre os quais filosofamos, mas estão em nós mesmos; estão na nossa ilusão representacionista da linguagem e na nossa má compreensão do que seja um problema não empírico.

Assim, ao não nos ocuparmos com as conhecidas e até surradas perguntas “que é mesmo a Pedagogia?”, “qual é o verdadeiro estatuto da Pedagogia?” ou “a Pedagogia é uma arte ou é uma ciência?”, damos as costas para qualquer preocupação com uma ontologia de cunho metafísico e demarcativo. Afinados com Michel Foucault, nós não embarcamos na metafísica; ao contrário - e para usar uma expressão cara a Ian Hacking -, assumimos uma ontologia histórica, conforme foi por ele proposto (HACKING, 2009). Assim, o que nos interessa são, digamos, perguntas funcionais: sobre o como da Pedagogia e o que ela faz, sobre o com que fins ela opera e o que dela resulta. É fácil ver, então, que nessa e em outras questões podemos nos colocar em sintonia com autores tão diferentes como foram Santo Agostinho, Ludwig Wittgenstein, Ian Hacking e Michel Foucault.

A ontologia histórica guarda aproximações interessantes com uma questão minuciosa e claramente discutida e problematizada n’A Hermenêutica do Sujeito. Trata-se da inversão que a Filosofia ocidental operou na primazia do preceito grego do “cuidado de si” (epiméleia heautoû) em favor do preceito do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón).

Como explica Foucault, o cuidado de si não é uma simples preocupação estética ou hedonista de cada um consigo mesmo. Muito mais, a epiméleia é

uma atitude - para consigo, para com os outros, para com o mundo. [...] a epiméleia heautoû é também uma certa forma de atenção, uma certa forma de colocar o olhar sobre o mundo. Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar, que se o conduza do exterior [...], dos outros, do mundo etc. para “si mesmo”. (FOUCAULT, 2004, p. 14)

A epiméleia não se reduz, entretanto, a uma simples atitude ou predisposição; ela “designa sempre algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos” (FOUCAULT, 2004, p. 14-15). Tais ações de si para consigo são as bem conhecidas práticas que “são, na sua maioria, exercícios, cujo destino (na história da cultura, da filosofia, da moral, da espiritualidade ocidental) será bem longo” (FOUCAULT, 2004, p. 15)16.

A partir principalmente de Defradas (1954), Foucault argumentou que a inversão moderna da primazia acima referida resultou do desconhecimento de que o princípio délfico do “conhece-te” foi pensado e recomendado como um moderador prudencial das pretensões e paixões humanas, e não como uma condição desejável de que cada um saiba clara, definitiva e profundamente tudo sobre si mesmo.

Mais algumas tessituras

Para começar esta seção, prestemos atenção para algumas passagens presentes já na primeira aula17 d’A Hermenêutica do Sujeito, quando Foucault narra o interesse que, pela primeira vez, Sócrates mostrou claramente por belo Alcebíades. Dirigindo a palavra ao discípulo, Sócrates lhe propôs a pergunta que era clássica na educação grega: “supondo que tivesses que escolher entre morrer hoje ou continuar a levar uma vida sem nenhum brilho, o que preferirias?” (FOUCAULT, 2004, p. 43). A resposta de Alcebíades foi: “preferiria morrer hoje, a levar uma vida que não me trouxesse mais do que já tenho” (FOUCAULT, 2004, p. 43). Isso foi assim porque Alcebíades era muito rico, formoso, vaidoso e assediado por muitos. Essa teria sido a primeira vez que Sócrates demonstrou seu interesse pelo discípulo e dirigiu-lhe diretamente a palavra. Afinal, Alcebíades estava agora envelhecendo e, pelos costumes da época, logo passaria da idade aceita para ser assediado pelo mestre. A beleza de Alcebíades está se acabando e ele quer muito mais do que se aproveitar dela. Agora, ele

quer voltar-se para o povo, quer tomar nas mãos os destinos da cidade, quer governar os outros. Em suma [ele] é alguém que quer transformar seu status privilegiado, sua primazia estatutária, em ação política, em governo efetivo dele próprio sobre os outros. (FOUCAULT, 2004, p. 44)

Se, até então, Alcebíades tinha se valido da sua beleza e da sua riqueza, agora se opera nele uma virada: “Alcebíades se volta para o governo dos outros (após o éros, a pólis, a cidade)” (FOUCAULT, 2004, p. 44).

É justamente a partir daí que Sócrates se sente autorizado, pelo deus que o conduz, a conversar com o discípulo. E é nesse ponto que Sócrates é instado a “transformar o privilégio de status, a primazia estatutária, em ação de governo dos outros” (FOUCAULT, 2004, p. 44). Para começar, Sócrates mostra que Alcebíades não teve boa educação e, assim, não foi ensinado a governar, nem a si mesmo nem aos outros: “queres entrar na vida política, queres tomar nas mãos o destino da cidade, mas não tens a mesma riqueza que teus rivais e não tens, principalmente, a mesma educação. É preciso que reflitas um pouco sobre ti mesmo, que conheças a ti mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 46). Aí já aparece o gnôthi seautón, como um “conselho de prudência: olha um pouco o que és em face daqueles que queres afrontar e então descobrirás tua inferioridade” (FOUCAULT, 2004, p. 46).

Nessa famosa passagem e agora em termos atuais, em termos da Pedagogia, denota-se a recomendação no sentido de que, ao mestre, não cabe agir sempre, saturada e continuamente sobre o aluno; o mestre deve adequar sua ação docente aos momentos propícios para executá-la. Saber quando se dão tais momentos é uma qualidade do mestre, faz parte da sua sabedoria como mestre que é ou deve ser. Só depois disso é que o mestre se lançará à tarefa de ensinar. Em palavras atuais, pode-se dizer que saber o escopo e principalmente o timing de suas ações docentes é um dever do mestre.

A partir desse episódio entre Sócrates e Alcebíades, Foucault desdobra outras situações semelhantes. Entre elas, destacamos o encontro entre Sócrates e Cármides, um outro jovem que está entrando mais a fundo no mundo da política. Ele já participava do Conselho; era prudente, equilibrado e até respeitado, mas muito tímido. É aí que Sócrates lhe diz: “mas afinal é preciso dar um pouco de atenção a ti mesmo; aplica teu espírito sobre ti, toma consciência das qualidades que possuis, e poderás assim participar da vida política” (FOUCAULT, 2004, p. 46). O conselho do mestre é noûn prósekhe, isso é, aplica teu espírito sobre ti mesmo.

Encaminhando-se para o final dessa aula de 6 de janeiro, Foucault levanta duas perguntas.

A primeira pergunta é: “qual é pois o eu de que é preciso cuidar quando se diz que é preciso cuidar de si mesmo?” (FOUCAULT, 2004, p. 50). A pergunta não se reduz aos limites gerais do humano, de uma suposta natureza humana da qual todos faríamos parte, mas se trata de uma pergunta “muito mais precisa, muito mais difícil, muito mais interessante, [que] é a seguinte: deves ocupar-te contigo; mas o que é este si mesmo (autò tò autó), pois que é contigo mesmo que deves ocupar-te?” (FOUCAULT, 2004, p. 50). Hoje chamamos de sujeito esse “si profundo”, “reflexivo” na forma em que nos situamos, desde que submetidos aos processos de subjetivação. Reitera Foucault: “o que é esse sujeito, que ponto é esse em cuja direção deve orientar-se a atividade reflexiva, a atividade refletida, esta atividade que retorna do indivíduo para ele mesmo? O que é este eu?” (FOUCAULT, 2004, p. 50).

A segunda pergunta é:

de que modo o cuidado de si, quando o desenvolvemos como convém, quando o levamos a sério, pode nos conduzir, e conduzir Alcebíades ao que ele quer, isso é, a conhecer a tékhne18de que precisa para governar os outros, a arte que lhe permitirá bem governar? (FOUCAULT, ano, p. 50)

O que aí está em jogo é “a necessidade de fornecer a esse ‘si mesmo’- na expressão ‘cuidar de si mesmo’ - uma definição capaz de implicar, abrir ou dar acesso ao saber necessário para um bom governo” (FOUCAULT, ano, p. 50). Para dizer de outra maneira, quem é e onde está esse eu com o qual eu devo me ocupar para bem me governar e, a partir daí, governar os outros? Como sublinha Foucault, no final daquela aula, esta é a “questão que, afinal, é portadora da primeira emergência na filosofia antiga da questão do ‘cuidar de si mesmo’” (FOUCAULT, ano, p. 51).

Nesta primeira aula e nas subsequentes, Foucault segue explicando como funcionavam ou deveriam funcionar as práticas gregas antigas, no que concerne às relações entre os mestres e seus discípulos: assediar (sexualmente) e ensinar. Para Sócrates, era imperioso que os jovens fossem preparados para o exercício da política, e não abandonados, pelos adultos, à própria sorte; isso exigia um cuidado e uma condução permanente, por parte dos mestres, numa combinação equilibrada entre o assédio e o ensino. O imperativo do “ocupa-te contigo mesmo” (epiméleia heautoû) era vital para que os jovens superassem sua ignorância, não só sobre as coisas do mundo como, também e principalmente, superassem sua ignorância acerca do fato de que ignoravam. Para o filósofo, essa dupla e superposta ignorância era incompatível com o exercício do governo de si e dos outros. Ele lamenta profundamente que Alcebíades tivesse essa dupla ignorância: “ao mesmo tempo, das coisas que se deveria saber e ignorância de si mesmo, enquanto sequer se sabe que se as ignora” (FOUCAULT, 2004, p. 57). Aí está o grande mal: ignorância que se ignora. A pior ignorância é a daquele que ignora que é ignorante - uma ignorância de (digamos) segunda ordem. Afastar-se de tal ignorância que se ignora a si mesma, atribuir destacada importância ao poder político e cultivar a pedagogia... eis o grande tripé quase sempre presente nos diálogos socráticos.

Aí existem duas faces: “neste desnível entre o ‘aprender’ que seria a consequência esperada, a consequência habitual de semelhante raciocínio, e o imperativo ‘ocupar-te contigo’” (FOUCAULT, 2004, p. 58). É preciso ver a diferença “entre a pedagogia compreendida como aprendizagem e uma outra forma de cultura, de paideia [...], que gira em torno do que se poderia chamar de cultura de si, formação de si” (FOUCAULT, 2004, p. 58). Para Foucault, essas duas faces estabelecem um jogo mútuo, uma combinação entre filosofia e espiritualidade, na Antiguidade.

A espiritualidade envolvia exercício mentais e físicos que já eram conhecidos e exercidos muito antes do mundo socrático. Meditação, respiração controlada, contenção dos impulsos, frugalidade, retiros para pensar sobre si mesmo (anakhóresis) e enfrentamento à dor são alguns exemplos de exercícios espirituais. O que Sócrates fez foi incorporá-los e reuni-los como caminhos para a efetivação do epiméleia heautoû.

Esse ocupar-se de si mesmo, cuidar de si mesmo não é, nunca pode ser, uma ação de um indivíduo sozinho com ele mesmo; mas deve ser, sim, uma ação que se dá com a ajuda de um mestre. Foucault explica que “diferentemente do médico ou do pai de família, [o mestre] não cuida nem do corpo nem dos bens” (FOUCAULT, 2004, p. 73). Mas, também, “diferentemente do professor, ele não cuida de ensinar aptidões e capacidades a quem ele guia, não procura ensiná-los a falar nem a prevalecer sobre os outros etc.” (FOUCAULT, 2004, p. 73). Para Sócrates, “o mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio” (FOUCAULT, 2004, p. 73-74).

A essa altura, podemos fazer um rápido entreato, para tecer tudo o que foi dito nesta seção com algumas práticas ou, pelo menos, alguns imperativos presentes no campo da Pedagogia. Mesmo que, aparentemente, algumas práticas possam se assemelhar bastante entre si, é preciso estarmos sempre atentos para detectarmos se elas atendem aos mesmos fins ou objetivos. Isso significa problematizar não só o que e como é feito, mas também por que e com que fins isso ou aquilo é feito. Assim, por exemplo, os exercícios de abstinência praticados pelos estoicos e pelos epicuristas são, na superfície, os mesmos praticados pelos cristãos, muito mais tarde. Mas, ao atenderem a objetivos distintos, a rigor tais exercícios não são os mesmos. Entre os gregos antigos, aqueles exercícios visavam o preparar-se para eventuais dificuldades futuras; entre os cristãos, visavam e ainda visam exercitar a renúncia e o fortalecimento das virtudes da alma19 (GROS, 2004).

Neste entreato, uma segunda questão que nos parece digna de comentário é o duplo papel que, hoje, cabe aos docentes. Sem aquela separação preconizada por Sócrates, cada docente deve reunir, em si mesmo, as funções de professor e de mestre. Espera-se que ele (ou ela) ensine o que hoje se chama “conteúdos curriculares”, aptidões e capacidades e, além disso, cuide da formação da “alma” de seus alunos e alunas, em termos éticos, do caráter e do autoconhecimento de cada um.

Encerrando este entreato, levemos adiante as práticas de si.

Na aula do dia 20 de janeiro de 1982, Foucault mostra que, com o passar da idade de cada um, aquelas práticas vão acentuando a sua função. O foco do problema desvia-se da “cura” daquela ignorância de segunda ordem - a ignorância de que ignora - para uma prática de si que deverá se tornar “cada vez mais uma atividade crítica em relação a si mesmo, ao seu mundo cultural, à vida dos outros” (FOUCAULT, 2004, p. 114). As ações pedagógicas envolvidas nessa modulação deverão privilegiar a prática da crítica, tratar a crítica como um elemento formador. No período helenístico e romano, trata-se de uma formação que “é essencialmente vinculada à preparação do indivíduo, preparação porém não para uma determinada forma de profissão ou de atividade social” (FOUCAULT, 2004, p. 115). Mas que preparação é essa? Trata-se “independentemente de qualquer especificação profissional, de formá-lo para que possa suportar, como convém, todos os eventuais acidentes, todos os infortúnios possíveis, todas as desgraças e todos os revezes que possam atingi-lo” (AUTOR, ano, p. xx). A essa armadura protetora a ser ensinada e trabalhada pedagogicamente, os gregos chamavam de paraskheué, que Sêneca traduziu como instructio. Tal tipo de instrução não se dirige a demandas sociais ou práticas, seja no mundo do trabalho, seja no mundo das atividades em geral; muito menos e, ao mesmo tempo, muito mais do que isso, trata-se de instrução difusa e preparatória para o enfrentamento dos dissabores e das dificuldades da vida.

Reparemos na distância abissal entre a paraskheué e certas práticas educacionais de hoje, bastante comuns tanto nas famílias de classe média quanto nas escolas principalmente privadas do Ensino Fundamental. Como detalhadamente descreveu e argumentou Isabela Dutra Correa da Silva, está crescentemente sendo “produzida uma infância de direito e uma infância protagonista” (SILVA, 2018, p. 8). A partir das suas observações dos cotidianos escolares na cidade de Porto Alegre e da análise cuidadosa de leis, programas e documentos governamentais - no Brasil e no período compreendido entre os anos de 1959 e 2014 -, aquela autora valeu-se dos Estudos Foucaultianos e recorreu ao conceito de infantocracia. Assim ela conceituou o uso que está dando ao neologismo: “chamo de infantocracia o regime de governamento que os sujeitos infantis exercem sobre os adultos” (SILVA, 2018, p. 16).

Para essa autora, temos aí um processo de subjetivação que transita numa via de mão dupla. Pelo lado da criança, há uma “vontade de poder” sobre os adultos, uma vontade de poder até mesmo livrar-se deles e dos constrangimentos que eles lhes impõem. Pelo lado dos adultos, há uma outorga até incentivada e alegre do poder à criança, cujo motor é uma certa desobrigação e comodidade por parte dos adultos, frente aos esforços necessários para proceder à educação de suas crianças. Indo além, ela relacionou a infantocracia à racionalidade da governamentalidade neoliberal, sempre cuidando para não assumir qualquer juízo de valor, fosse sobre suas observações empíricas e as conexões que estabelecia com os Estudos Foucaultianos, fosse sobre suas próprias propostas teóricas.

Vejamos um outro exemplo, também atual: no âmbito da formação pós-graduada, como são ou devem ser as relações entre, de um lado, os pós-graduandos e as pós-graduandas e, de outro lado, seus orientadores e suas orientadoras. Voltemos às palavras de Foucault, na aula do dia 13 de janeiro, quando ele alerta para a diferença entre a pedagogia como aprendizagem e “uma outra forma de cultura, de paideia [...], que gira em torno do que se poderia chamar de cultura de si, formação de si” (FOUCAULT, 2004, p. 58.). Como já referimos, a aprendizagem de conteúdos específicos e a imersão na paideia são coisas diferentes e estabelecem uma combinação que, na Antiguidade, era entendida como um jogo entre a filosofia e a espiritualidade. Os conteúdos e a paideia são as duas faces de um jogo mútuo, de uma prática com a qual todos devem estar envolvidos.

Além de focar as atividades nos conteúdos específicos e nas práticas de cada pesquisa, espera-se que a orientação se ocupe tanto do éthos do meio acadêmico e profissional onde acontecem tais práticas pós-graduadas, quanto da tékhne própria às áreas em que orientandos e orientandas atuam durante sua formação e até mesmo atuarão mais tarde. Em outras palavras, é desejável que todos se ocupem de saberes que vão muito além dos conteúdos e competências explicitamente previstos nos respectivos currículos. Esse “muito além” implica conhecer e incorporar as políticas e os modos de vida vigentes no trabalho que escolheram e, entre outras coisas, possam “competir, ao menos como iguais, com seus rivais” (FOUCAULT, 2004, p. 47).20

E mais: como Sócrates argumentou, a tékhne deve estender-se para além dos objetivos profissionais, presentes e futuros. Deve tratar, também, da ética nas relações que o indivíduo estabelece consigo mesmo e nas relações dele com as esferas mais amplas da sociedade, aí incluídos seus familiares, colegas, profissionais, subalternos, superiores etc. Essa posição socrática está muito adequadamente expressa por Françoise Waquet, quando ela argumenta que a função do mestre é “ajudar os discípulos a se tornarem eles mesmos” (WAQUET, 2010, p. 264).

Seja como for e guardadas todas as diferenças entre a atmosfera, os valores e as práticas pedagógicas atuais, em comparação com tudo o que está exposto e discutido logo acima, é possível notar, ainda hoje, certa permanência de alguns daqueles procedimentos recomendados e defendidos por Sócrates. Tal situação fica bem mais clara se juntarmos, ao curso A Hermenêutica do Sujeito, mais duas publicações correlatas e deveras interessantes. A primeira delas é do próprio Michel Foucault - Les techniques de soi (FOUCAULT, 2001). A segunda é de Jorge Larrosa - Tecnologias do eu e Educação (LARROSA, 1994). Cumpre citar, aqui, aquelas principais tecnologias - entendidas como conjunto de técnicas, procedimentos sistemáticos, exercícios, métodos etc. - mobilizadas pela Pedagogia: as histórias de vida, o ver-se, o narrar-se, o julgar-se, o dominar-se, o desprender-se de si mesmo etc. Correntes no cotidiano das práticas escolares modernas, tais tecnologias acabam dando, como efeito, a fabricação do sujeito moderno, esse ente que passou a ser entendido, pelas Ciências Humanas, como um duplo empírico transcendental.

Mas é preciso uma precaução. É preciso termos em mente e sempre levarmos em conta que, se na Antiguidade o destaque era dado ao “cuida de ti mesmo” - ao epiméleia heautoû -, agora na Modernidade, o destaque passou para o “conhece-te a ti mesmo” - ao gnôthi seautón. Como argumenta Frédéric Gros, foi a partir dessa “relação inversa de subordinação entre cuidado de si e conhecimento de si” (GROS, 2004, p. 634) que Foucault formulou a tese: “o sujeito da ação reta, na Antiguidade, foi substituído, no Ocidente moderno, pelo sujeito do conhecimento verdadeiro” (GROS, 2004, p. 634).

Uma costura final

Ao procedermos às revisões finais deste texto, nos demos conta de que, desde o seu desenvolvimento inicial, o que escrevemos e argumentamos tinha, além de uma função heurística, elementos sempre muito comprometidos com A Hermenêutica do Sujeito e derivados desse curso. E talvez nem pudesse ser de outra maneira. Esse foi o caso, por exemplo, das discussões a respeito do caráter radicalmente histórico da perspectiva foucaultiana; também a respeito dos processos de subjetivação e do sujeito como uma invenção da Modernidade ocidental etc. Assim, uma leitura atenta poderá revelar que se deu - como sempre se dá - uma certa “circularidade”, uma interpenetração, uma retroalimentação, uma interdependência entre nós (os observadores), a moldura (o frame que construímos) e as paisagens (que íamos vislumbrando e descrevendo). Deu-se uma interpenetração triangular, na qual tudo estava ligado a tudo e tudo estava comprometido com tudo.

Nunca será demais insistirmos: dado o caráter necessariamente histórico de tudo isso - e, portanto, sempre contingente -, a instabilidade é imanente aos processos envolvidos com o enquadramento que se pode fazer e que procuramos fazer, quando combinamos passagens d’A Hermenêutica do Sujeito com a Educação, tecendo aproximações e ressonâncias entre ambos. Nessa instabilidade decorrente das contingências, nos vêm à mente as passagens finais de As palavras e as coisas, quando Foucault, a partir de Nietzsche, prenunciou a morte do sujeito. Carregadas de um tom profético, as palavras de Foucault foram: “O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia do nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. [...] Então, se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia” (FOUCAULT, 1992a, p. 404).

O quanto podemos recorrer a A Hermenêutica do Sujeito para tentar suspender a morte do sujeito - ou, pelo menos, retardá-la - é uma questão importante e sempre aberta, para cujo encaminhamento poderemos contar com a Educação. Ela poderá continuar funcionando tal qual uma usina, capaz de colocar em movimento novos processos de subjetivação.

Numa leitura deleuziana, Roger Pol-Droit perguntou e imediatamente respondeu a si mesmo e a nós: “o que significa, efetivamente, a ‘morte do homem’? Uma mudança na configuração saber-poder. O horizonte da Idade Clássica é Deus, o indefinido, e não o homem, que só foi concebido a partir de suas limitações, de sua decadência etc.” (POL-DROIT, 2006, p. 32). As ressonâncias entre esse entendimento de Pol-Droit e a virada da Medievalidade para a Modernidade - insistimos: uma virada com a qual a Pedagogia esteve intimamente envolvida - são mais do que evidentes. Assim continua aquele autor:

se essa figura do homem já se desvanece, como a de Deus desvaneceu-se, é porque o humano se encontra, desde já, confrontado e combinado com outras forças do de-fora. A vida abre-se para o código genético, o trabalho para a informática, a linguagem para os agenciamentos da literatura moderna. (POL-DROIT, 2006, p. 32)

Tudo isso, para concluir que

esta morte do homem não é triste. “Retenhamos nossas lágrimas”, dizia Foucault. E não há contradição com o engajamento político: a morte do homem libera, no humano, forças de vida que aí estavam aprisionadas pela figura transitória do homem. Nietzsche, falando do super-homem, nunca disse outra coisa. Nem Foucault. (POL-DROIT, 2006, p. 33)

Enfim, da leitura e da releitura atenta d’A Hermenêutica do Sujeito talvez se possa retirar a energia e a sabedoria, capazes de nos animarem e nos ensinarem a continuar fazendo da Educação uma fonte de enfrentamento diante das ondas que, na orla do mar, insistem em desvanecer nosso rosto na areia.

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1Um detalhe importante: ao Alain Touraine (ano, p. xx) se referir a “examinar o mais concretamente possível o funcionamento interno de nosso sistema educativo”, nota-se mais uma aproximação entre aquele filósofo e Michel Foucault, ambos fortemente interessados em ancorar histórica, contigencial, social e culturalmente suas filosofias e, assim, desdobrar suas análises e críticas a partir das práticas que, afinal, são exclusivamente “deste mundo”.

2A essas alturas, não há como esquecermos da metáfora sobre a liquidez, proposta e desenvolvida por Zygmunt Bauman (2001). Não apenas o que está emoldurado ou enquadrado está sempre se evadindo porque é líquido e sempre transitório como a própria moldura, o observador e a sua ação de enquadrar também estão em permanente mutação. Nada é estável, nada é fixo.

3Lembremos o entendimento longa e cuidadosamente argumentado e desenvolvido por Richard Rorty, em A Filosofia e o espelho da Natureza (RORTY, 1988).

4Numa evocação literária, lembremos o quanto de filosofia e sensibilidade existe no poema 283, de Alberto Caeiro, o heterônimo de Fernando Pessoa: “O Universo não é uma ideia minha. / A minha ideia de Universo é que é uma ideia minha. / A noite não anoitece pelos meus olhos, / A minha ideia da Noite é que anoitece pelos meus olhos.” (PESSOA, 1986, p. 172, poema 283).

5Mas, certamente, não apenas com Foucault! (MACHADO, 2009).

6Como logo veremos, aí incluída a virada do imperativo subjetivante do “cuidado de si” em favor do “conhece-te a ti mesmo”, pormenorizadamente tematizada n’A Hermenêutica do Sujeito.

7A releitura e ampliação do platonismo — procedida inicialmente por Plotino e principalmente por Tito Flávio Clemente (Clemente de Alexandria), nos séculos II e III d. C. — deu origem ao que hoje se chama de neoplatonismo. Ele consistiu, principalmente, num esforço para juntar a teologia com a filosofia, estabelecendo-se numa forma de teologia filosófica, cujo objetivo principal foi dar um conteúdo de racionalidade e credibilidade à fé cristã primitiva. Nas palavras de Werner Jaeger, “foi essa união de ambos os mundos em um único indivíduo [Clemente de Alexandria] que produziu a síntese, muito complexa, do pensamento grego e cristão” (JAEGER, 2017, p. 55-56).

8É importante ter sempre em mente a diferença nietzschiana, assumida por Foucault, entre Ursprung — numa tradução livre, do alemão para o português: origem germinal — e Herkunft — também numa tradução livre, do alemão para o português: ascendência (FOUCAULT, 1992).

9Mesmo aceitando o finitismo semântico de Mary Hesse (1974) — para quem qualquer linguagem é sempre incompleta e, por isso, é impossível fixar em definitivo as conotações e denotações das palavras e dos discursos que as proferem —, seguimos o Segundo Wittgenstein para fazer uma diferenciação entre significado (Bedeutung) e sentido (Sinn) (WITTGENSTEIN, 1979). O significado (Bedeutung) refere-se aos usos das palavras, nas suas correspondências (nunca estritas, é claro) com as coisas, para designar coisas. O sentido (Sinn) refere-se ao estado das coisas ou a uma situação possível, “uma combinação de objetos que pode ou não se dar, conforme a proposição seja verdadeira ou falsa. A proposição mostra seu sentido” (GLOCK, 1998, p. 332).

10Usamos a palavra campo no sentido estabelecido por Pierre Bourdieu (1983).

11Para detalhes a respeito do conceito de maquinaria escolar numa perspectiva foucaultiana, vide (dentre outros): Varela e Álvarez-Uría (1992) e Bujes (2002).

12No vocabulário da genealogia nietzschiana: Entstehung.

13Para uma discussão detalhada sobre essa questão, vide (dentre outros): Narodowski (2001) e Veiga-Neto (2004).

14Nas palavras do filósofo: “os problemas filosóficos nascem quando a linguagem entra em férias” (WITTGENSTEIN, 1979, p. 26, aforismo 38).

15Nesse contexto, é bem conhecida a pergunta de Santo Agostinho, nas Confissões (XI/14): “Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quærat scio; si quærenti explicare velim, nescio. (Que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei)” (WITTGENSTEIN, 1979, p. 49, § 89).

16Voltaremos a esta questão mais adiante.

17Segunda Hora da aula do dia 6 de janeiro de 1982 (FOUCAULT, 2004, p. 35-54).

18Como explica Martin Heidegger, os gregos designavam por tékhne “uma forma de saber. Ela não significa o trabalho e a fabricação. Mas saber quer dizer: ter em vista desde o início o que está em jogo na produção de uma imagem de uma obra. Arte é tékhne , mas não técnica” (HEIDEGGER, 1983, p. 84).

19E, com isso, habilitar-se para alcançar os céus.

20Ao falar em “competir, ao menos como iguais, com seus rivais”, Foucault parece recorrer, mesmo que inadvertidamente, ao topos da competição, absolutamente central na sua tematização sobre o neoliberalismo, no curso Nascimento da Biopolítica, ministrado também no Collège de France, em 1978-1979 (FOUCAULT, 2008).

Recebido: 08 de Julho de 2022; Aceito: 13 de Dezembro de 2022

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