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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.14 no.1 Uberlândia ene./apr 2015  Epub 20-Mar-2024

https://doi.org/10.14393/che-v14n1-2015-4 

Dossiê: Colégio Pedro II - Lugar de Memória da Educação Brasileira

O CURRÍCULO DA DISCIPLINA HISTÓRIA NO COLÉGIO PEDRO II - IMPÉRIO

The curriculum of the History course at Colégio Pedro II - Empire

Beatriz Boclin Marques dos Santos1 

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II.

bmarquesdossantos@gmail.com

1Coordenadora do Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II. Rio de Janeiro, Brasil


Resumo

No presente trabalho apresentamos o resultado de uma pesquisa desenvolvida no Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM) que teve como objetivo compreender a constituição e as características do currículo da disciplina escolar História no Colégio Pedro II durante o Império, com base na análise dos programas de ensino e nos livros didáticos elaborados pelos professores catedráticos do Colégio. Iniciamos o estudo com uma breve introdução, no intuito de mostrar as mudanças na escrita da História ao longo do século XIX e apresentar a concepção da disciplina que predominou no período. O referencial teórico que tomamos como base para o estudo do currículo da disciplina História foram as concepções do teórico inglês Ivor Goodson sobre o currículo prescrito.

Palavras-chave: Colégio Pedro II; Ensino de História; Currículo

Abstract

We hereby present the results of a survey conducted at the Center for Documentation and Memory of Colégio Pedro II (NUDOM) that aimed to understand the formation and characteristics of the curriculum of History course at Colégio Pedro II during the imperial period, based on the analysis of teaching programs and textbooks prepared by the titular professors. The study starts with a brief introduction, in order to show the changes in History writing throughout the nineteenth century and to present the discipline design that prevailed in the period. The theoretical framework taken as a basis for the study of the History curriculum derives from the conceptions of British theoretician Ivor Goodson on the prescribed curriculum.

Keywords: Colégio Pedro II; History teaching; Curriculum

No século XIX ocorreu um importante momento de reflexão e mudanças sobre o significado do conceito de História. Nesse século, há uma passagem da concepção da História filosófica para a História fundamentada no método científico2.

Fica patente a relação “entre a especulação da filosofia da história e os procedimentos posteriores da disciplina histórica fundamentada pela tradição historicista” (GUIMARÃES, 2006, p. 68). Não se passa de uma para outra, embora isso tenha sido afirmado por historiadores da escola metódica alemã, como Meinecke (apud GUIMARÃES, 2006, p. 69). De acordo com os estudos atuais, o regime moderno que se desenvolve com base nos procedimentos científicos tem suas condições de possibilidade na Filosofia das Luzes, que tornou a História objeto de reflexão sistemática e passível de conhecimento racional (GUIMARÃES, 2006, p. 68).

Segundo François Hartog (2006), há uma tensão entre diferentes regimes de historicidade3. Até o século XVIII os estudos históricos faziam parte do mundo dos filósofos iluministas, e a História era concebida como uma história filosófica, como nos explica o autor: “Tem como primeiro traço o papel atribuído ao futuro: ela é futurocêntrica ou futurista, construída do ponto de vista do futuro. Declarada assunto do filósofo” (HARTOG, 2006, p. 19).

Hartog refere-se ao regime moderno de historicidade no qual a escrita preocupava-se com o sentido e o devir da razão histórica - portanto, com o futuro. A mudança principal está no novo regime de historicidade. Como consta da citação, o autor não vê ruptura entre a história filosófica e o regime moderno de historicidade.

A mudança na escrita da História aqui apontada, marcada pela passagem da visão filosófica para a perspectiva “romântica” da História, ocorre no mesmo momento em que a História estabelece-se como disciplina acadêmica. Ao longo do século XIX a História se “profissionalizava”, buscando constituir-se em ciência de modo a se consolidar como disciplina acadêmica no âmbito das universidades4. Historiadores da escola histórica alemã procuravam abandonar os elementos filosóficos iluministas que a caracterizavam até esse momento, e ela passava a ser concebida como uma ciência que trabalha o conhecimento científico do passado (GUIMARÃES, 2006, p.83).

No processo de afirmação como disciplina de conhecimento científico, a História tornava-se importante instrumento do Estado na construção do conceito de nação. Atendia, assim, ao movimento de pensar o Estado Nação, especialmente em um período de reconstrução do mapa político europeu após o período napoleônico, quando as questões nacionais (nacionalismo e identidade nacional) ganhavam espaço nos debates políticos e culturais. Desse modo, a História foi-se constituindo como disciplina de conhecimento científico, capaz, portanto, de explicar as mudanças decorrentes da ampliação da dimensão do mundo social e político, no que se convencionou chamar de História Universal: “reunião dos acontecimentos de todos os tempos e todas as nações” (HARTOG, 2006, p.19).

Ao longo desse processo de disciplinarização, a História apresentava-se interligada à questão nacional, cabendo-lhe contribuir para a construção do conceito de nação ao revelar o passado dos Estados que se formavam. Segundo Guimarães (2006, p.73), “a História inscreve-se por isso num conjunto amplo de iniciativas do Estado Moderno, que para afirmar seu poder deve agora recorrer prioritariamente à força da pena e não mais das armas”.

Nesse sentido, torna-se importante destacar que a estruturação da História como disciplina acadêmica ocorre concomitantemente ao desenvolvimento de uma História como disciplina escolar:

A segunda metade do século XIX viu nascer uma disciplina que se constituiu ao mesmo tempo em ciência e como objeto ensinável e, também, objeto a ensinar... Mutilante porque História de referência e História escolar fazem parte de um sistema produzido pelos homens de uma mesma época. Dissociá-los parece ahistórico. (ALLIEU, 1995, p. 124 apud MONTEIRO, 2002, p. 91).

Pode-se perceber que a constituição da História ensinada ocorria sustentada pelas bases da História acadêmica, de modo a apresentar “relações complexas entre si para legitimação e atualização”. A História sofre “constrangimentos didáticos e axiológicos” (MONTEIRO, 2002, p. 90-111) para se configurar como uma disciplina escolar de modo a atender a uma finalidade educativa. A autora destaca, ainda, a importância de se utilizar, como fonte de pesquisa sobre o assunto, os livros didáticos e os programas de ensino no intuito de compreender esse “constrangimento” que faz passar a História, expressão de um saber acadêmico, para uma configuração de saber escolar.

A distinção entre História acadêmica e História escolar tem como princípio, neste trabalho, a concepção de saber escolar. Os autores que dialogam com esse conceito veem o professor em sala de aula como o autor de um texto muito particular, resultado dos saberes postos em jogo na sua tarefa docente e de um processo de mediação didática (LOPES, 2002) de modo a tornar o conteúdo do programa compreensível para o aluno:

A recomposição efetuada para fins educativos cria, de acordo com Verret e Chevalard, um saber despersonalizado, que atende a uma programabilidade, que está ali para ser tornado público, que passa por uma dessincretização em relação ao seu contexto de origem e precisa ser submetido a um controle social da aprendizagem. Estes são aspectos a serem observados como elementos para caracterização do saber escolar... admitindo sua especificidade e diferenciação face ao saber acadêmico e reconhecendo neste saber uma elaboração realizada no contexto educativo por meio de um processo de didatização. (MONTEIRO, 2002, p. 111-112).

Nesse período, a escrita da História caracterizava-se pela chamada História Narrativa ou História dos Acontecimentos, caracterizada por colocar em primeiro plano os indivíduos e os acontecimentos e por explicar a evolução do processo histórico dentro de uma cronologia, isto é, colocando os fatos na ordem de ocorrência:

Ao longo de todo o século XIX, enquanto se profissionalizava e ambicionava se apresentar como uma ciência (baseada no modelo das ciências da natureza), a História apoiou-se sobre e colocou em prática um tempo histórico - linear cumulativo e irreversível - correspondendo a uma história política, na qual os príncipes são substituídos por nações como atores da história, e onde o progresso vinha substituir a salvação. (HARTOG, 2006, p. 17).

A consolidação do Estado Nacional brasileiro, na primeira metade do século XIX, desenvolve-se nesse contexto. A construção do sentimento de nação brasileira fazia parte do projeto civilizatório do governo imperial. Era preciso construir a História do Brasil após a sua independência, conhecer a nação, o seu passado colonial, para construir a identidade nacional brasileira. O Estado Monárquico, juntamente com a elite de intelectuais brasileiros, dedicou-se a forjar a identidade nacional dos brasileiros mediante os recursos da educação e da cultura.

Nessa perspectiva, os historiadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (doravante IHGB) tiveram um papel fundamental ao historiar a nação para os brasileiros por meio do estudo do seu passado colonial. Para desenvolver o trabalho de construir uma História do Brasil, os intelectuais historiadores utilizaram-se da concepção de história que se constituía na Europa naquele momento. A escrita da História fundamentada em uma história universal, mestra da vida5, ligada às tradições iluministas, de cunho científico, atendeu ao contexto de pesquisar o passado colonial e de valorizar a realidade brasileira sem deixar de declarar o pertencimento do Brasil à civilização ocidental - como se pode verificar na obra História Geral do Brasil (VARNHAGEN, 1854), primeiro modelo para a elaboração de livros didáticos.

O Colégio Pedro II representou o espaço estratégico onde ocorreu esse processo de disciplinarização da História - aqui, disciplinarização remete à construção científica da História, ou seja, ao lugar onde ocorreu o processo de produção de uma História escolar, ao serem criados espaços e tempos para o ensino da História de forma articulada à construção de uma história científica que, no caso brasileiro, tinha como lócus privilegiado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro6, onde foi pensada e escrita a História articulada com a construção da identidade nacional. Faziam parte das duas instituições - o Colégio Pedro II e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - os intelectuais encarregados de escrever e ensinar a História no Brasil, em uma articulação singular entre a História acadêmica e a História escolar, como veremos mais adiante.

O Ensino de História no Colégio Pedro II

O ensino da História no Brasil está intimamente relacionado ao Colégio Pedro II, instituição criada como estabelecimento oficial do ensino secundário para atender às necessidades de formação de uma elite social para a qual o projeto civilizatório do Império era especialmente dirigido7. Para corresponder às diretrizes desse projeto político e cultural do Estado Monárquico, os jovens da elite brasileira deveriam receber orientação pedagógica inspirada nos modelos europeus, o que correspondia a uma educação tradicional humanística, de caráter acadêmico e de inspiração erudita (ANDRADE, 1999).

A disciplina História teria um importante papel na consolidação do Estado Nacional: o de contribuir para forjar a nacionalidade brasileira. Nesse sentido, construir uma História Nacional era fundamental ao processo de formação de uma identidade brasileira. Tornava-se necessário, portanto, estudar o Brasil, conhecer a gênese desta nação, “fazê-lo conhecido para dentro e para fora” (GUIMARÃES, 2006, p. 71).

A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) também se insere nesse contexto. Seus historiadores deveriam produzir uma historiografia que iria contribuir para a definição do conceito de nação brasileira e para a construção da identidade nacional:

Assim, é no bojo do processo de consolidação do Estado Nacional que se viabiliza um projeto de pensar a história brasileira de forma sistematizada. A criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) vem apontar em direção à materialização deste empreendimento, que mantém profundas, relações com a proposta ideológica em curso. Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a “Nação Brasileira”, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das “Nações”, de acordo com os novos princípios organizadores da vida social do século XIX. (GUIMARÃES, 1988, p. 2).

Por conseguinte, coube ao IHGB a missão de pensar e escrever a história nacional, como consta dos Estatutos da Instituição:

Coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Império do Brasil, e assim também promover o conhecimento destes dois ramos filológicos, por meio do ensino público escrever uma história nacional única do Brasil [...] e não deixar mais ao gênio especulador dos estrangeiros a tarefa de escrever nossa história8.

Constituía-se, assim, uma escrita da história acadêmica que serviu de base para uma História ensinada, por meio dos compêndios didáticos elaborados pelos professores catedráticos do Colégio Pedro II. Para Andrade (2007, p. 219), “o lugar institucional da produção histórica é o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o lugar da produção didática é o Colégio Pedro II”.

Pode-se perceber que o processo de construção de uma produção didática para a disciplina História acontecia no Brasil no âmbito de duas instituições criadas na esfera do Estado - mais precisamente da Monarquia -, uma vez que ambas estavam sob a proteção direta do Imperador D. Pedro II9. Desse modo, a disciplina História desenvolveu-se em circunstâncias muito peculiares, em espaços circunscritos a uma elite intelectual e sob a influência do Estado Imperial, empenhado na elaboração de uma escrita da história nacional e no ensino desta no âmbito escolar:

Enquanto na Europa o processo de escrita e disciplinarização da história estava-se efetuando fundamentalmente no espaço universitário, entre nós esta tarefa ficará ainda zelosamente preservada dentro dos muros da academia de tipo ilustrado, de acesso restrito, regulamentado por critérios que passam necessariamente pela teia das relações sociais e pessoais. Como traços marcantes desta história nacional em construção, teremos o papel do Estado Nacional como eixo central a partir do qual se lê a história do Brasil, produzida nos círculos restritos da elite letrada imperial (GUIMARÃES, 1988, p.60).

Cabe também destacar a relação que se estabeleceu entre o Estado e os intelectuais ao longo do período imperial, fazendo com que as escolhas tanto para os trabalhos desenvolvidos no IHGB quanto para o magistério no Colégio Pedro II estivessem diretamente relacionadas aos interesses do Imperador. Segundo o historiador Manoel Salgado Guimarães, essa aproximação entre o Estado e os intelectuais responsáveis pela escrita da História levou muitos deles a também ensiná-la:

[...] empenhados na tarefa de escrita da história nacional o Estado e a Monarquia. Tradição portuguesa, mantida deste lado do Atlântico, de intensas relações entre o Estado e o intelectual: são os cargos públicos e as bolsas concedidas pelo próprio imperador que frequentemente viabilizam, materialmente, o trabalho intelectual. (GUIMARÃES, 1988, p. 7)

O ensino de História do Colégio Pedro II foi, portanto, construído e referendado pelos historiadores do IHGB, que orientavam o conhecimento histórico a ser lecionado. A tradição historiográfica iluminista marcada pela abordagem linear e pela chamada história mestra da vida, no sentido de “ensinamento de que pode se revestir uma dada experiência histórica” (GUIMARÃES, 1988, p. 14), caracterizavam os trabalhos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Em 1840 o IHGB promoveu um concurso para seleção do melhor plano de escrita da História do Brasil, o que representou a primeira iniciativa concreta de sistematização de uma História do Brasil a ser ensinada. O vencedor - o alemão Karl Philipp von Martius - detalhou, em seu texto historiográfico, os conhecimentos fundamentais que deveriam constar de um programa de História que visasse contribuir para a construção de uma identidade nacional:

Esta identidade estaria assegurada, no seu entender, se o historiador fosse capaz de mostrar a missão específica reservada ao Brasil enquanto Nação: realizar a ideia da mescla das três raças, lançando os alicerces para a construção do nosso mito da democracia racial. (GUIMARÃES, 1988, p. 12).

Desde o primeiro regulamento do Colégio Pedro II (o de número 8, datado de 31 de janeiro de 1838, que continha o primeiro estatuto do Colégio), a História fazia parte do plano de estudos como disciplina escolar obrigatória. Esse documento, elaborado pelo Ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos, incluía a estrutura organizacional e os fundamentos filosóficos do Colégio.

O regulamento estabelecia que a duração do curso inicial no Colégio seria de oito anos10, com estrutura seriada e sequencial e séries identificadas como aulas, em um sistema decrescente pelo qual o curso iniciava-se na oitava aula. A disciplina História era ministrada a partir da sexta aula (correspondendo ao terceiro ano do curso), tendo continuidade nas quinta, quarta, terceira, segunda e primeira aula, sendo, portanto, considerada uma matéria de peso em um currículo que primava pela formação clássica e erudita.

O Ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos dispensava especial cuidado à escolha dos professores e do material a ser utilizado pelos alunos, tomando a si a responsabilidade pela escolha dos compêndios - como eram conhecidos os livros didáticos da época. Os primeiros compêndios por ele indicados e aprovados foram os manuais franceses de Cayx e Poisson (História Antiga) e os de Rozoir e Dumont (História Romana), primeiramente importados e mais tarde traduzidos pelo primeiro professor catedrático do Colégio Pedro II, José Justiniano da Rocha11. Nesses primeiros anos do curso, História e Geografia compunham uma mesma cadeira. Enquanto a Geografia era ensinada nas oitava, sétima e sexta aulas (nesta última também acompanhada por dois tempos de História), a História fazia parte de praticamente todo o curso, com carga bem mais elevada do que a Geografia.

O método simultâneo - estudo concomitante de várias matérias distribuídas pelos anos do curso - constituiu-se em novidade no Brasil, substituindo o sistema de aulas avulsas, como constata Penna (2008, p. 60):

O Colégio Pedro II, ao contrário do sistema de cadeiras avulsas, adotava o que poderia ser chamado de um currículo seriado e multidisciplinar. Esta mudança foi tão radical que houve dificuldade de adaptação tanto por parte do país quanto dos professores e este nível de instrução chegou a mudar de nome de aulas menores para instrução secundária.

No final do Regulamento no 8 há um “mapa das lições” que devem acontecer em cada semana nas diversas aulas do colégio, e a que se referem as tabelas de que trata o art.11712. Esse mapa reproduz a grade curricular inicial para a escola, ou o primeiro currículo prescrito no Brasil, uma vez que lista todas as matérias lecionadas, os respectivos tempos semanais e a carga horária total do curso. Vale destacar a prevalência do ensino das humanidades, cabendo às aulas de Latim a maior carga horária semanal (50 tempos), seguidas do Grego (18 tempos), da Retórica e Poética (20 tempos), da Filosofia (20 tempos), da História (12 tempos) e da Geografia (11 tempos). As disciplinas que compõem as chamadas Ciências da Natureza aparecem em um segundo bloco, com a Matemática subdividida em Aritmética, Geometria, Álgebra e Trigonometria/ Mecânica, totalizando 29 tempos semanais; a Astronomia com 3 tempos, a História Natural com 4 tempos, as Ciências Físicas com 6 tempos, o Desenho com 8 tempos e a Música Vocal com 6 tempos.

Nesse plano de estudos, o ensino de ciências está inserido nas chamadas “humanidades”, marcado pelo conteúdo enciclopédico e academicista, com o propósito de oferecer uma cultura geral ao aprendiz, como veremos a seguir.

No que concerne aos professores, o Regulamento estabelecia normas que fundamentavam a participação docente no Colégio, seja na sala de aula seja na área administrativa, competindo aos professores “não só ensinar a seus alunos as Letras e as Ciências na parte que lhes competir, como também quando se oferecer ocasião, lembrar-lhes seus deveres para com Deus, para com seus Pais, Pátria e Governo” (REVISTA INTERNATO, 1953, p. 111).

Por conseguinte, fica patente a função formativa - além da educativa - nas origens do Colégio Pedro II, na premissa de que os jovens alunos iriam futuramente ocupar funções públicas de prestígio e poder e para tanto deveriam aprender na escola, além dos conhecimentos disciplinares, valores identificados com a nação brasileira, a família e a religião. Nos programas de ensino do século XIX constata-se, ainda, a inserção do ensino religioso, com o objetivo de atender à expectativa de formação moral que complementasse uma educação erudita nos moldes europeus, retratando os valores da civilização ocidental.

O Regulamento no 8 também prevê a participação dos professores, juntamente com o Reitor, nas decisões pedagógicas e administrativas do Colégio, no chamado Conselho Colegial - mais tarde transformado em Congregação - como reza o Art. 2º do Título I, Parte 1: “O Reitor, na primeira segunda-feira de cada mês, congregará, em Conselho Colegial, o Vice-Reitor, Capelão e Professores para com eles se ocupar de tudo o que interessar ao Colégio, tomando nota das observações que ocorrerem” (REVISTA INTERNATO, 1953, p. 110).

Desde a sua fundação, o ensino no Colégio Pedro II era ministrado por ilustres professores, intelectuais destacados na sociedade reconhecidos pelo “notório saber”. A ausência de instituições formadoras de professores para o ensino secundário fez com que o Ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos, com a aquiescência do Imperador D. Pedro II, selecionasse, na comunidade letrada do Império, aqueles que ministrariam o ensino no Colégio. Tratava-se de advogados, médicos, escritores membros de uma elite intelectual que buscou sua formação inicialmente no exterior e mais tarde no Brasil, com a criação das universidades brasileiras. Durante o Império, a grande maioria desses professores eram sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e catedráticos do Colégio Pedro II, comprometidos com o projeto monárquico de construir o sentido de nação brasileira pela educação. Tais professores eram indicados para ocupar as cátedras do Colégio Pedro II pelo Ministro do Império e em seguida pelo próprio Imperador, como podemos constatar nos livros e ofícios de nomeação existentes no NUDOM. Nesse contexto, o termo “cadeira” foi utilizado para designar uma especialidade de estudos a ser ministrada pelo respectivo professor - o catedrático - tanto no Colégio Pedro II quanto em institutos superiores: “É importante destacar que o termo “cadeira” foi utilizado, no Decreto do Ministro Monte Alegre de 3 de abril de 1849, para designar uma especialidade dos estudos a ser ministrada pelo respectivo professor - catedrático - no Colégio e nos Institutos Superiores [...]” (GASPARELLO, 2002, p. 87).

Segundo Andrade (2007, p. 222), o professor titular da cadeira, catedrático de notório saber, acabou ficando conhecido como “o dono da cadeira”:

Os professores catedráticos do Colégio Pedro II foram, em sua maioria, “homens do mundo”- homens formados nas tradicionais universidades europeias e/ou nos cursos superiores de direito, medicina e engenharia do país, muitos deles, também, ex-alunos do Colégio Pedro II, sócios do IHGB e de outras instituições culturais.

Os professores do Colégio Pedro II sabiam que o Imperador, assim como Bernardo Pereira de Vasconcellos nos primórdios do Colégio, acompanhava e fiscalizava todo o material estudado pelos alunos, como pode ser comprovado no texto acima. Tal reverência ao Imperador era comum entre os professores autores.

Quanto à participação ativa do Imperador no Colégio, o filho do Reitor Dr. César Augusto Marques (na década de 80 do século XIX), Dr João Marques, deixou o seguinte relato no Memória Histórica:

O Imperador dando aos ministros plena liberdade de ação no governo, fazia exceção ao Colégio de Pedro II, Internato e Externato. O Colégio, todos sabiam, vivia sob a direção direta imediata e pessoal do Imperador... acompanhava os concursos, exame por exame, passo por passo, tomando notas, conversando com os examinadores e com os concorrentes, e no fim verificava-se não lhe ter escapado qualquer minuciosidade e qualquer circunstância. (DÓRIA, 1997, p. 168).

O livro do memorialista Escragnole Dória (1997) contém uma interessante afirmação sobre a estrutura de funcionamento do Colégio, especialmente se levarmos em conta a sua origem: um professor historiador do colégio e pesquisador da história da instituição:

Formava o Colégio pequenino Estado, com a sua lei, os seus chefes supremos e os auxiliares destes, mestres ou não, desenvolvendo tudo quanto requer a vida coletiva: a cidadania, a união, a solidariedade, o espírito de disciplina social, o hábito de convivência em comunidade, a consciência dos deveres e dos direitos. (DÓRIA, 1997, p. 161).

Como já afirmado anteriormente, os catedráticos do Colégio Pedro II eram também historiadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Faziam parte, portanto, de uma academia de letrados. No entanto, apresentavam um perfil muito próprio, pois estavam preocupados em trazer para o ensino os conteúdos da história acadêmica que bem conheciam. Na elaboração dos livros didáticos, os catedráticos demonstravam a intenção de transformar a História estudada nas universidades, pesquisada pelos grandes historiadores, em uma História ensinada, cuja característica principal era justamente o aval da academia.

A disciplina escolar História: os programas de ensino e os livros didáticos

A análise dos conteúdos dos primeiros livros didáticos e programas de ensino do Colégio Pedro II13 revela que a História fazia parte do chamado currículo das “humanidades”, cujo padrão cultural era a antiguidade clássica. As humanidades correspondiam a um modelo de formação que caracterizou a educação francesa por pelo menos quatro séculos14. Os conteúdos que compunham as chamadas “humanidades” primavam pelo estudo do latim, do grego, da literatura clássica e da história ocidental. O estudo das humanidades revestia-se de um sentido cuja função achava-se além da instrução para incorporar um compromisso moral, promovendo a construção de valores que qualificariam o cidadão. Os conteúdos ensinados deveriam oferecer modelos de conduta, valorizando a figura do herói da antiguidade, cuja virtude serviria de inspiração aos jovens aprendizes. Tratava-se de uma educação para formar o futuro cidadão, homem de bem, que iria desempenhar funções fundamentais para o Estado. “No século passado, acrescentava-se igualmente, que as humanidades clássicas apresentam-se não somente como estudos, como uma instrução, mas como uma educação do indivíduo, do espírito, da inteligência, da alma” (CHERVEL; COMPERE, 1999, p. 3).

Vale ressaltar que as humanidades correspondiam a um corpo unitário de disciplinas, cujo ensino apresentava uma interdependência. Segundo Chervel e Compere (1999, p. 18):

Para a formação humanista tradicional, além das línguas e literaturas, concorria um certo número de matérias que figuravam no ensino magistral ou nas aprendizagens dos alunos. Encontrava-se aí a mitologia frequentemente chamada de fábula, a história, a cronologia, a geografia antiga, as antiguidades, a lexicologia (as raízes gregas), a sinonímia, a poética, a retórica, e a lista aberta às influências novas não estava fechada. Seu traço comum é que, em nenhum caso, com a diferença das línguas estrangeiras ou das matemáticas, elas não podiam constituir ensinos independentes.

Essa interdependência entre as disciplinas escolares pode ser observada no programa de ensino do Colégio Pedro II, desde o primeiro currículo ou Mapa das Lições (1838), quando a História e a Geografia formavam uma única cadeira, e nos demais programas de ensino, em pelo menos boa parte do século XIX. Somente no século XX as disciplinas realmente passariam a ter autonomia de ensino dentro do currículo escolar do Colégio Pedro II.

Por exemplo, a História que constava dos programas de ensino do século XIX era permeada pela Geografia, de modo que os acontecimentos históricos eram explicados, também, pelo aspecto geográfico, com a descrição física dos locais onde se passava a ação - como veremos ainda nesse capítulo, na análise dos programas. Segundo Gasparello (2002, p. 64):

O ensino de humanidades fundamentava uma concepção de cultura afastada de qualquer utilidade imediata representada pela ideia de exercício profissional. O secundário deveria ser desinteressado, isento de finalidades consideradas menores e particulares, em favor de uma utilidade superior - a preservação da cultura humanística - que significava a identificação da elite com essa cultura.

Dessa forma, a proposta curricular adotada para o ensino secundário desenvolvido no Colégio Pedro II tinha em seus fundamentos, calcados nos estudos das humanidades, a função de formar uma elite social que continuaria os seus estudos em níveis superiores, preparando-se assim para destacar-se na sociedade. Os estudos alicerçados nas “humanidades” abrangiam uma perspectiva de formação integral do educando, ultrapassando a finalidade de aquisição de conhecimentos para fornecer “materiais linguísticos, factuais e morais, que enriqueceriam as composições dos alunos” (GASPARELLO, 2002, p. 61).

Por conseguinte, os estudos das humanidades conferiam ao estudante uma marca de pertencimento à elite, como afirmam Chervel e Compere (1999, p. 4): “Essa formação confere, àqueles que dela participam, uma marca indelével de pertencer à elite, sendo um signo de reconhecimento, senão pelo desempenho ou gosto pelas línguas antigas, pelo menos por uma certa familiaridade com frases ou citações latinas”.

Com um currículo marcado pelas “humanidades”, a História teria o papel de trazer à tona o passado greco-romano, inspiração dos iluministas do século XVIII, utilizando os valores políticos e culturais da antiguidade clássica como base da educação erudita. Nessa concepção, o papel da História relacionava-se diretamente à construção da identidade nacional. A educação, e mais especificamente a matéria escolar História, desempenhavam o papel de veículo do Estado na formação de uma concepção de nação que se pretendia construir (GUIMARÃES, 2006).

A História como “mestra da vida”, concepção historiográfica que caracterizou o século XVIII, foi utilizada para o ensino de História no Brasil do século XIX. Nesse sentido, a História cumpriria sua missão de promover a aproximação do passado com o presente, de modo a tornar úteis ao presente os acontecimentos do passado. A disciplina História do Brasil, por exemplo, trazia em seu conteúdo o passado colonial, retratado mediante os feitos de personagens cujas qualidades seriam inculcadas nos jovens aprendizes, com o objetivo de auxiliar no processo de formação de uma nacionalidade.

Paralelamente, a História que se consolidava com base no conhecimento científico teria uma dupla missão: não deixar o passado cair no esquecimento e ao mesmo tempo torná-lo útil ao presente, contribuindo para a produção de novas identidades. Nessa perspectiva,

somente quando tornados “contemporâneos”, rompendo a barreira do tempo e tornando o passado próximo do presente, a História poderia, na perspectiva dos modernos, cumprir seu papel de mestra, fazendo desta coleta sistemática das experiências de outros tempos um empreendimento dotado de sentido e finalidade e, por isso, justificável de ser realizado. (GUIMARÃES, 2006, p. 78)15.

Como já mencionado anteriormente, a constituição da História como disciplina escolar no Brasil foi viabilizada por meio dos livros didáticos e dos programas de ensino elaborados pelos intelectuais pertencentes tanto ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro quanto ao Colégio Pedro II, os quais estabeleciam as características do ensino de História a ser ensinado no Brasil.

No contexto de criação do novo Estado Nacional, era fundamental construir o sentido de nação e de identidade nacional. Nessa perspectiva, a disciplina História tornar-se-ia um importante veículo dessa construção, cabendo ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a tarefa de conceber a História, assim contribuindo para a formação da nação brasileira através da educação. Nesse sentido, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro produziria o que seria ensinado no Colégio Pedro II.

Ao longo do século XIX, a visão de historiografia desenvolvida no IHGB era bastante influenciada pelas ideias iluministas. Vista como “mestra da vida”, a História era concebida cronologicamente, com o passado servindo de exemplo para a construção do futuro. Segundo o historiador Manoel Salgado Guimarães, nessa concepção de História,

enquanto palco de experiências passadas, poderiam ser filtrados exemplos, e modelos para o presente e o futuro, e sobre ela deveriam os políticos se debruçar como forma de melhor desempenharem suas funções... A História é percebida, portanto, enquanto marcha linear e progressiva que articula futuro, presente e passado (GUIMARÃES, 1988, p. 6).

No caso brasileiro, por exemplo, a História estaria marcada pelo caráter civilizador de modo que a tarefa iniciada pela colonização portuguesa deveria ter continuidade com vistas ao progresso do Estado nacional.

Nas obras dos primeiros historiadores do IHGB, que serviram de base ao ensino do Colégio Pedro II, é patente a concepção de História calcada nos fatos marcantes, nos heróis e em seus feitos memoráveis. Sob esse enfoque, as biografias tornavam-se importantes veículos de transmissão de valores, de exemplos na construção da nova nação. Em 1847 o texto premiado do alemão von Martius - que influenciou os primeiros estudos sobre História do Brasil - retratava a preocupação com a construção de uma identidade nacional. Nessa proposta a ideia do mito da democracia racial (as três raças convivendo para formar a nação brasileira) foi bem explorada, primeiramente valorizando o conhecimento sobre os índios brasileiros e sua contribuição para a História Nacional16. O homem branco aparecia sempre associado ao seu papel civilizador, exemplificado no programa pela ação dos bandeirantes e dos jesuítas, por meio da catequese. O negro, por sua vez, era pouco mencionado, na verdade representando, na visão do autor, um aspecto prejudicial ao progresso. As ideias de von Martius foram reforçadas pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagem (1816-1877), autor da obra História Geral do Brasil (1854-1857) que influenciou toda a construção da História no século XIX, mais uma vez confirmando a História como “mestra da vida”, vinculada ao projeto político de consolidação do Estado Nacional.

Temas como as viagens de navegação portuguesa, o descobrimento do Brasil e as guerras para a expulsão dos estrangeiros ocupavam papel central nos programas, uma vez que era preciso afirmar os direitos dos portugueses sobre a terra brasileira conquistada. A independência do Brasil e a implantação do Estado Monárquico, assim como as monarquias europeias, também mereciam destaque. Era preciso valorizar a monarquia como regime político, importante para a consolidação das nações europeias e, no caso brasileiro, para o regime político instalado após a independência.

No discurso de Januário da Cunha Barbosa17, por ocasião da fundação do IHGB, podemos constatar a concepção de História que caracterizava o período:

Nós vamos salvar da indigna obscuridade, em que jaziam até hoje, muitas memórias da pátria, e os nomes de seus melhores filhos; nós vamos assinalar com a possível exatidão o assento de suas cidades e vilas mais notáveis, a corrente de seus caudalosos rios, a área de seus campos, a direção de suas terras e a capacidade de seus inumeráveis portos (GUIMARÃES, 2006, p. 79).

Ao longo do século XIX podem ser observadas, nos programas de ensino do Colégio Pedro II, as múltiplas transformações por que passou a História. Em um primeiro momento, o ensino de História tinha, como característica peculiar, a articulação da História Universal com a Geografia18 e a História Sagrada.

A História e a Geografia

No período compreendido entre a data da fundação do Colégio Pedro II e o ano de 1849, a História e a Geografia formavam uma única cadeira19, cujos estudos se caracterizavam pela História identificada com as humanidades clássicas. Desse modo, estudava-se a História Universal dando prioridade às civilizações grega e romana, e a geografia limitava-se ao acompanhamento e à ambientação da História - segundo Gasparello (2002), em posição subalterna.

A História assim entendida apresentava-se imbricada com a Geografia20. Os historiadores manifestavam interesse na pesquisa e na escrita de temas como a política e administração colonial, assim como nas descrições geográficas. Era a chamada corografia, uma espécie de história geográfica, em que aspectos históricos são acompanhados de elementos geográficos. No tema “viagens e expedições”, por exemplo, a história dos locais visitados era completada pelas respectivas descrições geográficas. A Corografia correspondia, portanto, a uma História permeada pela Geografia, com explicações sobre as diferenças regionais e os aspectos físicos e climáticos do Brasil. Segundo Mattos (2000, p. 100), “o conhecimento geográfico deveria ser obtido ao mesmo tempo que o histórico, ambos possibilitando a identificação de um país e a identidade de um povo”.

Ainda no século XIX, essa concepção de História foi detalhada por Manoel Salgado em sua análise do sentido da História que consta dos artigos publicados no jornal literário O Patriota:

São relatos de viagem por diferentes regiões do império português, descrições geográficas, políticas e históricas de partes do território da colônia brasileira. Portanto, entendia-se como história uma diversidade temática que poderia ir dos roteiros e descrições de viagem até textos descrevendo as características históricas de uma determinada região, situando-se próximo a um gênero que passaria a ser de extrema importância para escrever a história nacional: as corografias. (GUIMARÃES, 2006, p. 81).

Os conteúdos da cadeira de História e Geografia podem ser conhecidos por meio dos livros didáticos de História Antiga e História Romana traduzidos por Justiniano José da Rocha, o primeiro catedrático de História do Colégio Pedro II.

História e religião

Nos programas de ensino do Colégio Pedro II, podemos observar que a História bíblica ou sagrada aparecia imbricada com a História civil ou profana, relação esta evidenciada nos conteúdos de História Antiga. Como comprovam os primeiros livros didáticos adotados no Colégio, a separação oficial desses conteúdos ocorre com a criação da disciplina escolar História Sagrada e Doutrina Cristã em 185821, abrangendo temas doutrinários desenvolvidos em 45 tópicos - na concepção católica, desde a criação do mundo e do homem, os profetas, a Vida e Morte de Jesus Cristo e os Sacramentos, Mandamentos ou dogmas da Igreja. Vale destacar que a história da igreja, ao longo de todo o século XIX, fazia parte do conteúdo de História Medieval. Por exemplo, o programa de História da Idade Média inclui, como tópico seguinte ao Feudalismo, a História da Igreja até o século XI. Cavallaria. Lettras, artes e sciencias nos séculos IX, X e XI.

Concordamos com Bittencourt (1992) quando afirma que o fato da história civil se fundir com a história sagrada nesse período se deve em grande parte à concepção de que a história tinha um compromisso com a formação moral, com os valores cristãos indispensáveis à construção de uma nação que buscava na civilização ocidental o seu modelo de política e cultura. Dessa forma, os princípios da religião católica eram veiculados não apenas nas aulas de catecismo, mas também nos conteúdos de História.

Naquela época, a participação da igreja católica na educação brasileira era bastante significativa. No entanto, essa influência vai aos poucos sendo substituída pelo ensino laico de modo que, ao longo do século XIX, há um enfraquecimento do papel da igreja como condutora do processo educacional, relação que se transforma em uma espécie de parceria entre Estado e Igreja. Em algumas reformas educacionais, como em 1857, o ensino religioso aparece como disciplina, em outras desaparece - como na reforma Leôncio de Carvalho de 1878, descrita a seguir. Apesar disso, a permanência de uma ilustração conservadora na formação da cultura brasileira pode ser, ainda, comprovada pelo próprio conteúdo da História, refletindo, em sua fundamentação teórica, a civilização cristã ocidental:

Ao assumir a instrução pública como um elemento de construção da nação, o Estado Imperial quebrou o monopólio do saber religioso e do ensino clerical, possibilitando a emergência de intelectuais formados pela e para a sociedade civil, laica e pretensamente científica, em direção ao progresso, embora não dissociada do conservadorismo religioso. (ANDRADE, 1999, p. 6).

Conclusão

A análise dos programas de ensino e dos livros didáticos do Colégio Pedro II, ao longo do Império, leva-nos a afirmar que o ensino no Colégio Pedro II muito contribuiu para a consolidação da História como disciplina escolar no Brasil.

O Colégio Pedro II apresentava uma característica bastante peculiar: seus professores eram também os autores de livros didáticos e programas de ensino, pois os catedráticos eram sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; portanto comprometidos, simultaneamente, tanto com a História acadêmica como com a ensinada.

Nesse processo de consolidação, a disciplina História sofreu várias transformações até adquirir a desejada autonomia. Inicialmente, o ensino de História encontrava-se permeado pelo ensino religioso. Os dogmas católicos, assim como a História Sagrada, faziam parte dos conteúdos históricos. Além disso, como resultado da influência das Humanidades, ao longo de boa parte do século XIX os conteúdos de História e Geografia apareciam imbricados no programa. Por sua vez, a História do Brasil fazia parte dos conteúdos de História Universal. Mesmo após sua autonomia como disciplina, em 1857, a História do Brasil era acompanhada por aspectos geográficos sob o título História e Corografia do Brasil (até 1898). Pode-se observar, também, que os programas eram muito extensos, os conteúdos apresentavam vasta riqueza de detalhes e abrangiam uma infinidade de temas.

Essas alterações do ensino de História representaram, a nosso ver, um processo de afirmação da disciplina no currículo. No final do século XIX pode-se constatar que a História Geral e a História do Brasil representavam um conteúdo fundamental, associado à construção da identidade brasileira, destacada pela peculiaridade dos caracteres nacionais.

As transformações sofridas pela disciplina História em sua trajetória escolar representam os processos, vivenciados pela comunidade disciplinar, de adaptação dos conteúdos oriundos da academia para o universo da escola. A produção dos professores/ autores do Colégio Pedro II nos permite avaliar a importância do Colégio como espaço fundamental na construção da disciplina História no Brasil.

Referências

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2Segundo Guimarães (2006, p. 69), na passagem do século XVIII para o XIX a História vai ganhando “profissionalização” e “especialização”. O autor afirma, no entanto, que não se pode “conceber a História como disciplina sem as formulações da Filosofia da História... longe de pensarmos um século XVIII não-histórico por oposição a um século XIX histórico, iremos pensá-los como expressando duas preocupações distintas com relação ao interesse pela História”.

3“De sorte que 1789 pode datar (simbolicamente ao menos) a passagem do antigo para o novo regime de historicidade” (HARTOG, 2006, p. 16). Hartog assim define o regime de historicidade: “Eu entendo por regimes de historicidade os diferentes modos de articulação das categorias do passado, do presente e do futuro. Conforme a ênfase seja colocada sobre o passado, o futuro ou o presente, a ordem do tempo, com efeito, não é a mesma” (Idem).

4Segundo Ana Maria Monteiro, “no campo do conhecimento histórico, o romantismo encontrou sua melhor expressão na chamada ´escola histórica alemã´, de Humboldt, Niebuhr e Ranke, onde ela se configura como disciplina científica, pretendendo ser objetiva, positiva, limitando suas ambições, contentando-se em dizer como as coisas aconteceram” (MONTEIRO, 2002, p. 95).

5A Historia-magistra, criada por Cícero na Roma Antiga, expressava a concepção de história (hegemônica por mais de mil anos) como uma narrativa do que aconteceu, resultado de uma seleção dos acontecimentos exemplares. Coletânea de exempla, tinha por objetivo formar o cidadão, esclarecer o homem político, mas também servia para a instrução do homem comum. História filosófica, de cunho moral, era como que um espelho onde cada um poderia observar-se para agir e tornar-se melhor. (MONTEIRO, 2002, p.93)

6Instituição fundada em 21/10/1838, no período da Regência. Constituída inicialmente por 27 sócios da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Originou-se da proposta do marechal de campo Dunha Matos e do cônego Januário da Cunha Barbosa.

7A diretriz maior do projeto político-cultural objetivava colocar o Brasil entre as ´nações civilizadas´ e, nestes termos, a política educacional concentrou inicialmente esforços no sentido da regulamentação e elevação do nível de ensino superior, principalmente nos cursos jurídicos, e implementação da instrução pública e particular, primária e secundária (ANDRADE, 1999, p. 6).

8Revista do IHGB - 2. ed. Rio de Janeiro, 1856. Tomo I, Artigo 1º dos Estatutos.

9GUIMARÃES, L.M.P. (apud ANDRADE, 2007, p. 220: Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1837-1889). Revista IHGB, Rio de Janeiro, n. 388, 1995.

10Em 1º de Fevereiro de 1841, novo regulamento alterou os Estatutos do Colégio Pedro II, passando o curso completo para sete anos.

11Os livros pertencem ao acervo do NUDOM.

12Revista Internato (1953, p. 127).

13Nessa pesquisa, para compreender a História do ensino de História no Colégio Pedro II, optamos pela análise dos Programas de Ensino do Colégio, com base no livro “Programa de Ensino da Escola Secundária Brasileira” organizado por Ariclê Vechia e Karl Michael Lorenz, no período compreendido pelos séculos XIX e parte do século XX. A pesquisa para a elaboração desse livro foi realizada com os documentos do Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II. Entendemos que essas fontes podem nos auxiliar na investigação sobre as características do ensino de História no Colégio Pedro II.

14No ensino tradicional francês, as humanidades clássicas definem-se, antes e principalmente, por uma educação estética, retórica, mas também igualmente moral e cívica (CHERVEL; COMPERE, 1999, p. 2).

15Essa concepção de História se refletia na história ensinada, como podemos constatar nos livros didáticos do período. Lembramos que os livros didáticos estão sendo usados como fontes, não se constituindo em objeto de pesquisa.

16Os índios, antes do Descobrimento do Brasil, só aparecem no programa de ensino após 1850, portanto por influência dessa proposta de von Martius.

17O Cônego Januário da Cunha Barbosa foi o idealizador da proposta inicial de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838.

18Essa separação ocorre a partir do Decreto nº 2.883 de 1º de fevereiro de 1862, quando nos planos de estudo do Colégio Pedro II, entre outras mudanças, encontramos a Geografia e a História totalmente separadas no currículo, mantendo-se assim daí por diante.

19Segundo Arlette Gasparello (2002, p. 87): “O termo cadeira foi utilizado para designar uma especialidade dos estudos a ser ministrada pelo respectivo professor - o catedrático - no Colégio e institutos superiores”.

20De acordo com a concepção do currículo das “humanidades”.

21Decreto nº 2.006, de 24 de outubro de 1857.

Recebido: 01 de Agosto de 2014; Aceito: 01 de Novembro de 2014

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