assentada a finalidade da educação e definidos os meios de ação ou processos de que necessita o indivíduo para o seu desenvolvimento integral, ficam fixados os princípios científicos sobre os quais se pode apoiar solidamente um sistema de educação. A aplicação desses princípios importa, como se vê, numa radical transformação da educação pública em todos os seus graus, tanto à luz do novo conceito de educação, como à vista das necessidades nacionais (O MANIFESTO..., 2010, p. 51).
A supracitada citação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova inspirou a produção deste texto1, que problematiza a relação entre dois importantes movimentos em curso no Brasil, na primeira metade do século XX: a Escola Nova, na pedagogia; o Movimento Moderno, na arquitetura. Neste sentido, observa-se o edifício escolar como um marco importante na paisagem urbana das cidades, pois os prédios escolares podem ser caracterizados como símbolos da presença do Estado e do desenvolvimento econômico e social das comunidades.
A opção de priorizar o período de 1937- 45 justifica o recorte temporal proposto para este trabalho, compreendido pela administração de José Pereira Coelho de Souza (1900-1982), à frente da Secretaria de Educação e Saúde Pública - SESP/RS (depois, Secretaria de Educação e Cultura - SEC/RS). A gestão do secretário perpassou governos de três Interventores Federais no Rio Grande do Sul: Daltro Filho (1937-1938), Osvaldo Cordeiro de Farias (1938-1943) e Ernesto Dorneles (1943-1945).
Um breve estudo sobre o programa do Grupo Escolar Silveira Martins, Bagé/RS, traz à tona o objeto empírico deste estudo. Ao caracterizar este projeto, resultante da concretização das políticas de expansão da rede pública no Rio Grande do Sul, a pesquisa explora a perspectiva da análise gráfica e procura examinar o projeto do edifício escolar a partir de diagramas analíticos, contemplando perímetro, acessos, circulação, setorização e composição formal. Portanto, é nosso objetivo analisar a arquitetura escolar em solo gaúcho à luz dos princípios divulgados pela pedagogia da Escola Nova, momento em que o Movimento Moderno ainda não estava consolidado no país, e a arquitetura disputava lugar com adeptos de outras correntes.
Situando teoricamente o estudo
A perspectiva adotada para este texto partiu da abordagem historiográfica vinculada à cultura escolar (JULIA, 2001; VIÑAO FRAGO, 1995). Em seus estudos sobre a escola como lugar, Viñao Frago e Escolano (2001, p. 69) assinalam a tendência à atribuição de um espaço determinado para o ensino, um lugar “[...] pensado, desenhado, construído e utilizado exclusivamente para esse fim”. Para Silva, F. (2006), a categoria espaço escolar está fortemente associada à ideia da arquitetura como programa, na qual o espaço, além da sua materialidade, expressa e reflete determinados discursos. Percebe-se, portanto, que a cultura escolar perpassa distintas ações do cotidiano escolar.
Nesse sentido, interessante articulação é feita por alguns estudiosos (BENCOSTTA, 2001; FARIA FILHO; VIDAL, 2000; SILVA, J., 2004; VEIGA, 2002) entre as culturas escolares e as urbanas, tendo os tempos e espaços escolares como fios condutores da investigação. Já outros pesquisadores (FARIA FILHO; VAGO, 2001; FARIA FILHO; VIDAL, 2000; SOUZA, 1998) buscam jogar luz sobre aspectos das relações dos espaços e tempos escolares com outros aspectos intrínsecos da experiência escolar e, ao mesmo tempo, articulá-los com os (tempos e espaços) sociais mais amplos.
Ao se apropriarem dos estudos de Certeau (1996) sobre percursos e estruturas narrativas, no âmbito das discussões acerca de instituições escolares, seus prédios e espaços, Werle et al. (2007, p. 151), entendem a História Institucional como um espaço dimensionado, no qual “[...] os diversos atores, as múltiplas políticas, os poderes institucionalizados elaboram seus percursos”. São aproximações que promovem amplas miradas sobre a questão da cultura escolar, o que significa um refinamento metodológico e analítico das pesquisas ao mesmo tempo que fortalece o diálogo com a historiografia e demais áreas (FARIA FILHO et al., 2004).
Ainda a esse respeito, a observação de Souza-Chaloba (2019, p. 24) merece ser referida, pois “[...] vale assinalar a contribuição dos estudos sobre grupos escolares para o aprofundamento da discussão sobre a circulação e apropriação da Escola Nova no Brasil”. Nesse sentido, é nosso interesse, ao incluirmos a arquitetura nesse diálogo, perpassar a pesquisa nos âmbitos da história da educação e da arquitetura, contribuindo para a consolidação de uma cultura historiográfica em ambas.
Enunciados discursivos e propostas arquitetônicas
Surgido no final do século XIX na Europa, o movimento Escola Nova resultou do descontentamento com as práticas pedagógicas da Escola Tradicional, trazendo grandes reflexos para a educação no mundo. O movimento ganhou destaque no Brasil nos anos 1920, abalado pelos acontecimentos no meio cultural, especialmente a Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo (FERNANDES, 2006). Na educação, representantes expoentes de uma legião, que incluía figuras da educação, sociologia, psicologia e filosofia, estudavam, escreviam e debatiam o tema da renovação escolar, ideais que repercutiram intensamente na arquitetura e urbanismo.
No Rio de Janeiro do final dos anos 20, na então capital da República, Fernando de Azevedo liderou uma profunda reforma na educação. Com a Revolução de 1930, Getúlio Vargas assumiu o poder, dando início a um período de centralização política, tendo a educação como prioridade nacional, que passou a ser utilizada “[...] como um dos veículos para moldar uma identidade nacional coletiva, bem como para enfrentar questões relacionadas à integração dos imigrantes estrangeiros na sociedade brasileira” (ARENDT, 2011, p. 108). O período ficou conhecido como a Era Vargas (1930-1945).
Foi também um período de ebulição nas artes e na arquitetura, disseminado principalmente pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier2. Por meio das palestras proferidas em São Paulo e no Rio de Janeiro, arquitetos e intelectuais brasileiros adotaram definitivamente os ideais modernos. Nessa época, um dos acontecimentos mais marcantes foi o concurso para criação da nova sede do Ministério da Educação e Saúde. O Ministro Gustavo Capanema chamou Lucio Costa para projetar o prédio, que, por sua vez, convocou os arquitetos Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão e Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer, sendo Le Corbusier plenamente envolvido como consultor. Assim, nascia o novo edifício, “[...] considerado como o ponto inicial de uma arquitetura moderna de feitio brasileiro” (SEGAWA, 2014, p.92).
Os modernos da arquitetura e da pedagogia também se aproximaram do âmbito educacional. Em 1930, Anísio Teixeira convidou Lúcio Costa para a direção do Curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Com um ensino acadêmico vinculado à corrente do ecletismo, Costa chamou os arquitetos Gregori Warchavchik, Affonso Eduardo Reidy e Alexander Buddeus, propondo profundas reformas (SÁ, WERLE, 2016). As discussões foram intensas, e as reações não tardaram a aparecer. A experiência durou pouco; porém, “[...] o suficiente para que uma geração de futuros arquitetos tivesse consciência das transformações em curso na arquitetura mundial” (SEGAWA, 2014, p. 79).
Ainda no âmbito da educação, 1932 marcou o lançamento do Manifesto dos Pioneiros das Educação Nova. Diversos intelectuais envolvidos nas campanhas regionais de educação, entre eles, Anísio Teixeira, elaboraram o documento no congresso de educação, “[...] retratando as chagas do ensino público e princípios que deveriam nortear sua reformulação, propondo uma estrutura unificada e de âmbito nacional, desde o ensino infantil até o superior” (SÁ, WERLE, 2016, p. 219). Além disso, reivindicavam gratuidade e obrigatoriedade do ensino público, reconhecendo o direito universal à Educação.
Um ano antes, em 1931, Anísio Teixeira assumiu a Diretoria de Instrução Pública da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, permanecendo no cargo até 1935. Ele defendia uma Educação Pública, leiga, gratuita e aberta a todos. Uma de suas principais tarefas foi elaborar um plano geral de edificações escolares, que compreendia um programa de novas construções e estabelecia normas para a adaptação de edifícios alugados. Conforme relata Fernandes (2006, f.72),
Este plano determinava programas distintos para as escolas a serem projetadas, organizadas em 2 tipologias: as escolas nucleares - que compreenderiam as atividades de estudo no sentido tradicional e as escolas-parque ou parques escolares para as atividades sociais, artísticas, esportivas, ou mesmo, de natureza médica e higiênicas. A criança frequentaria diariamente estes dois tipos de escola, em turnos diferentes.
Os projetos foram realizados pelo arquiteto Enéas Silva, chefe da Divisão de Prédios e Aparelhamentos Escolares e obedeceram a cinco tipos descritos por Anísio Teixeira: a) Tipo Mínimo, com duas salas de aula e uma sala de atelier-oficina; b) Tipo Nuclear, doze salas de aulas -, espaços para administração, secretaria e biblioteca; c) Tipo Platoon, dezesseis salas - doze comuns e quatro especiais -, para auditório, música, sala de jogos e recreação; d) Tipo Platoon, doze salas - seis comuns e seis especiais -, para leitura, literatura, biblioteca, desenho, artes industriais, auditório, etc.; e) Tipo Platoon, vinte e quatro salas - doze comuns e doze especiais -, mais um amplo ginásio (OLIVEIRA, 2007).
Em 1933, Fernando de Azevedo, um dos signatários do Manifesto, empreendeu uma reforma no ensino paulista, criando uma comissão encarregada de resolver o problema das construções escolares. Integrava essa comissão, o arquiteto José Maria da Silva Neves, professor da Escola Politécnica e de Belas Artes e chefe da Seção Técnica de Projetos da Diretoria de Obras Públicas e Diretoria de Ensino. Na ocasião, Silva Neves propôs edifícios próximos ao pensamento moderno, usando formas geométricas simples, adotando o concreto armado, além de recomendar uma estrutura independente, pátios sob pilotis e grandes aberturas envidraçadas.
A comissão paulista apresentou, ainda, uma série de novas diretrizes para a elaboração de projetos e execução das obras conforme expressa Oliveira (2007, f. 69):
O programa arquitetônico elaborado pedia salas de aulas amplas, claras e ventiladas, pintadas em cores claras; dependências de trabalho, salas para administração e professores; e auditório, que seria destinado a várias funções: sala de jogos, de educação física, de canto, de festas e cinema educativo, e ainda como local para reuniões escolares, assembleia de pais e mestres. Os novos projetos contemplavam, ainda, instalações sanitárias como gabinetes de assistência médica e dentária.
Enéas Silva e José Maria da Silva Neves defendiam os princípios da arquitetura moderna, rompendo com os estilos vigentes até então. Por outro lado, os defensores das concepções anteriores (arquitetônicas e pedagógicas) classificaram tais propostas como “caixa d´água”, com “figurino comunista”, entre outros adjetivos. Polêmicas à parte, as linhas geometrizantes da arquitetura escolar dessa época (Figura 1) se afirmavam no cenário arquitetônico, disseminando-se por várias regiões do Brasil (SEGAWA, 2004).
Se por um lado, Rio de Janeiro e São Paulo se consolidavam como principais polos econômicos e industriais do país, o Rio Grande do Sul, no âmbito da política governamental, “[...] manteve sua economia baseada na agropecuária” (CORSETTI; KISTEMACHER; PADILHA, 2007, p. 176). Caracterizado por gestões identificadas com a política getulista, o período foi marcado por diversos governos. José Antônio Flores da Cunha (1880-1959), interventor nomeado por Getúlio Vargas em 1930, exerceu o mandato como governador eleito de 1935 a 1937. Rompido com o governo federal e no contexto do Estado Novo, foi sucedido pelos governos Manuel de Cerqueira Daltro Filho (1937-1938), Osvaldo Cordeiro de Farias (1938-1943) e Ernesto Dornelles (1943-1945).
Na gestão de Flores de Cunha, em 1935, foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública (SESP/RS), ocupada por Otelo Rosa durante dois anos. Em 1937, Coelho de Souza assumiu a secretaria, permanecendo à frente da pasta nos governos de Daltro Filho, Cordeiro de Farias e Ernesto Dornelles. Conforme Búrigo (2014, p. 18), “[...] foi na segunda gestão de Flores da Cunha que iniciou um empreendimento de reordenamento e modernização do aparato escolar, prosseguido e aprofundado no governo do interventor Cordeiro de Farias”.
Nesse empreendimento de reordenamento e modernização, Coelho de Souza promoveu um intenso movimento de reforma no sistema educativo do Estado. Segundo Quadros (2006), concomitante ao processo de nacionalização do ensino, o movimento gaúcho envolveu quatro grandes dimensões: a) jurisprudência sobre educação; b) reestruturação da SESP/RS; c) desenvolvimento de políticas de expansão da rede pública de ensino - construção de escolas; d) orientação, supervisão e inspeção do trabalho escolar.
O reaparelhamento da SESP/RS operacionalizou um movimento de renovação educacional, político e pedagógico, requerendo para tanto uma ação planejada e comprometida do Estado. Para tamanha empreitada, em 1939, Coelho de Souza solicitou a Manuel Bergström e a Lourenço Filho (1897-1970), a elaboração de um anteprojeto de organização da secretaria. As sugestões apresentadas, em pleno alinhamento com a estrutura adotada na esfera federal, foram empregadas quase na sua íntegra visando “[...] contemplar a racionalidade administrativa, objetividade, orientação técnica, reformulação de hábitos e de comportamentos e inovação” (QUADROS, 2006, f. 113).
Em entrevista ao Jornal Correio do Povo, em 1938, Coelho de Souza sintetizou a reorganização, prevendo
reformar completamente o sistema de ensino, [...]; cercar-se de técnicos de reconhecida capacidade; preocupar-se com o magistério; implantar um plano de construção de edifícios escolares e adquirir material escolar para equipar as escolas (QUADROS, 2006, f. 75).
Ainda em 1938, criaram-se as Delegacias Regionais de Ensino, que dividiram o Estado em dez regiões. No ano seguinte, foi promulgado o decreto que estabeleceu o novo Regimento Interno das Escolas Primárias, agrupando-as em dois tipos: escolas isoladas e grupos escolares, com projetos arquitetônicos elaborados pela SOP/RS.
No entanto, na concretização das reformas, registros também dão conta das dificuldades pelas quais passava o governo estadual em relação aos municípios. Diante das agruras financeiras, o Estado solicitou que estes destinassem edifícios para o funcionamento das escolas até que as condições fossem alteradas, permitindo a construção de novas (QUADROS, 2006). Entretanto, os que atenderam às solicitações, normalmente, optavam por instalações inadequadas.
Esses e outros contratempos acarretavam viagens de inspeção, muitas vezes realizadas pelo próprio secretário, que demonstrava um excessivo zelo para com o processo. Objeto de cuidado e atenção, essas ações também conferiam “[...] visibilidade à intensa incidência do controle e da normatização a que estavam sujeitas as direções das escolas e os professores” (QUADROS, 2006, f. 87), pois, no contexto da nacionalização do ensino, a preocupação com a formação dos professores estava na pauta, sendo-lhe atribuído papel proeminente.
Em 1943, ao prestar contas de seu governo, Cordeiro de Farias registrou a construção de trinta e três novos edifícios (Tabela 1). A localização privilegiou, por um lado, regiões de alta densidade demográfica; por outro, zonas nas quais imperava uma forte concentração de escolas estrangeiras (especialmente teuto e ítalo-brasileiras). No âmbito da SOP/RS, o governo registrou que, embora seu reduzido corpo de engenheiros, conseguira cumprir o encargo de elaborar projetos arquitetônicos, organizar concorrências e fiscalizar a execução de prédios rurais e grupos escolares urbanos (RIO GRANDE DO SUL, 1943).
Nº | Município / Capacidade | 200 alunos | 350 alunos | 500 alunos | 750 alunos |
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1 | Alfredo Chaves (Veranópolis) | 1 | |||
2 | Arroio do Meio | 1 | |||
3 | Bagé | 1 | |||
4 | Bom Jesus | 1 | |||
5 | Cachoeira (Cachoeira do Sul) | 1 | |||
6 | Camaquã | 1 | |||
7 | Candelária | 1 | |||
8 | Caxias do Sul | 1 | |||
9 | Encantado | 1 | |||
10 | Estrela | 1 | |||
11 | Flores da Cunha | 1 | |||
12 | Guaíba | 1 | |||
13 | Guaporé | 1 | |||
14 | Irai | 1 | |||
15 | Jaguarão | 1 | |||
16 | Lajeado | 1 | |||
17 | Novo Hamburgo | 1 | |||
18 | Pelotas | 1 | |||
19 | Porto Alegre | 1 | |||
20 | Prata (Nova Prata) | 1 | |||
21 | Santa Maria | 1 | |||
22 | Santiago | 1 | |||
23 | Santo Antônio | 1 | |||
24 | São Francisco de Assis | 1 | |||
25 | São Francisco de Paula | 1 | |||
26 | São Gabriel | 1 | |||
27 | São José do Norte | 1 | |||
28 | São Pedro | 1 | |||
29 | Tapes | 1 | |||
30 | Torres | 1 | |||
31 | Tupanciretã | 1 | |||
32 | Venâncio Aires | 1 | |||
33 | Viamão | 1 | |||
TOTAL | 10 | 14 | 6 | 3 |
Fonte: Adaptado de Rio Grande do Sul (1943)
Em 1944, na solenidade de lançamento da pedra fundamental do novo edifício do Grupo Escolar de São Leopoldo, município da região metropolitana de Porto Alegre, Coelho de Souza proferiu caloroso discurso, exaltando os feitos da educação pública no Estado até aquele momento e apresentou o novo plano de construções escolares. No ato, foi acompanhado por Ernesto Dorneles, Interventor Federal, além de uma comitiva, que incluiu secretários estaduais, o embaixador do Canadá e diversas autoridades municipais. Além de evidenciar o importante papel da SESP/RS como articuladora dos ideários da renovação escolar, o discurso ressaltou a ação federal ante as exigências de nacionalização nas zonas de imigração:
destinado a atender à cidade de São Leopoldo, sede do município onde principiou a colonização germânica no Estado, este Grupo Escolar devia dispor de instalação e aparelhamento condignos de uma escola brasileira, pois só assim poderá realizar a função política que lhe compete - que é a de completar a integração nacional, já bastante avançada neste centro urbano, dos descendentes dos antigos colonizadores (CONSTRUÇÕES ..., 1944, p. 425).
Na íntegra, publicou-se o discurso na edição do Correio de São Leopoldo de 04 de novembro de 1944. Em dezembro do mesmo ano, foi divulgado na edição número 6 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), sob o título Construções Escolares no Rio Grande do Sul. Como ações do novo plano, registrou, ainda, a construção de edifícios escolares nas cidades de Rio Pardo, Arroio Grande, Soledade, São Sebastião do Caí, Rosário, José Bonifácio, Santa Rosa, São Lourenço, Getúlio Vargas, São Sepé e Porto Alegre (duas unidades na capital).
O referido discurso também propagou que os projetos da SOP/RS foram examinados pelo Departamento de Educação Primária e Normal por meio da Divisão Técnica e Centro de Pesquisas e Orientações Educacionais, seguindo critérios e sugestões de caráter médico e pedagógico. Além disso, contou com a parceria da diretora do Colégio Metodista de Porto Alegre, a Sra. Mary Sue Brown, “[...] portadora de vários cursos de especialização de técnica de construções escolares nos Estados Unidos, que, com grande gentileza, emprestou ao trabalho sua colaboração” (CONSTRUÇÕES ..., 1944, p. 422-423).
Conforme Quadros (2006), a modernização da educação no Rio Grande do Sul ocorreu a partir de uma estruturação filosófica e doutrinária, sustentada em bases científicas e técnicas, destacando-se, dentre outras, a expansão da rede escolar. Uma nova fase de construção escolar em larga escala se iniciava no Estado. Portanto, estudar a arquitetura escolar nele produzida significa ver os modos como o Ideário Moderno foi apropriado pelos arquitetos na esfera da SOP/RS.
Discussões sobre as sínteses projetuais: forma e espaço
Para apresentar as reflexões, elencamos itens que foram analisados no projeto do G. E. Silveira Martins de Bagé/RS. Para cada um deles, elaboramos um diagrama analítico, contemplando perímetro, acessos, circulação, setorização e composição formal. Esses elementos foram examinados na perspectiva da análise gráfica (FLORIO et al., 2002; TAGLIARI; FLORIO, 2009; TAGLIARI FLORIO, 2008), que permite a “[...] compreensão das relações espaciais e formais que se mostram insuficientes se nos detivermos apenas nos textos e no conjunto gráfico que corresponde às plantas, cortes e elevações” (BARROS, 2017, f.154).
Até o momento, não foi possível pesquisar o acervo da SOP/RS (atual Secretaria Estadual de Obras e Habitação), que possibilitaria a confirmação da apropriação de diretrizes e/ou orientações a respeito da construção de edifícios escolares. Por não estar concluído o levantamento, optamos por tratar, neste texto, das primeiras impressões sobre essa arquitetura. Para a viabilização das análises, houve a necessidade de estabelecer um recorte. A análise foi realizada a partir do projeto original do grupo escolar, uma vez que muitos deles sofreram alguma alteração com o passar dos anos.
O G. E. Silveira Martins (atual Escola Estadual de Ensino Médio Silveira Martins3) estava previsto para ser implantado no quarteirão formado pelas ruas General Neto, Caetano Gonçalves, General Sampaio e 20 de Setembro, “[...] próximo a região que se efetivou a primeira ocupação urbana da cidade de Bagé, isto é, no primeiro centro urbano, entre a Praça da Matriz da Catedral São Sebastião e a Praça Rio Branco” (BICA, 2013, f. 184). No local, hoje está implantada a Praça Dr. Albano. Embora sabendo que, na localização dos grupos escolares, eram priorizadas regiões com espaços maiores, não temos como precisar, neste momento, quais os motivos da transferência para a zona norte.
O projeto do grupo escolar data de 1939 e apresenta configurações muito semelhantes nos seus três pavimentos, o que motivou a escolha de analisar, neste trabalho, apenas o térreo. Assim, agrupamos os critérios em um único bloco (Tabela 2), constituído de alguns itens de análise: acessos/perímetro, circulação/espaço de uso, grau de compartimentação e setorização, o que permitiu e facilitou a compreensão das relações espaciais e formais do edifício. Os diagramas interpretativos permitem identificar, por linhas, contornos e figuras geométricas, as relações entre os elementos arquitetônicos, bem como as geométricas e o sistema da unidade.
Fonte: Esquema adaptado de Tagliari Florio (2008)
Implantada no quarteirão formado pelas avenidas Fernando Machado, Tupi Silveira, Marechal Floriano e Rodrigues Lima, a escola foi inaugurada em 1941. Esse novo cenário urbano dividia protagonismo com outro equipamento público, a Praça Carlos Gomes. Conforme observações realizadas por Gutierrez e Neutzling (2011), o tecido urbano de Bagé permite clara leitura do seu processo de crescimento, no qual se sobressai o traçado reticulado com ruas ortogonais. As autoras definiram, ainda, quatro processos de crescimento da cidade, por meio dos quais se verifica que a zona de implantação do novo edifício escolar se localizava nas expansões ocorridas a partir do início do século XX (denominado de terceiro loteamento), especialmente na direção norte. A seguir, apresentamos a síntese interpretativa do projeto.
Acessos e perímetro:
O diagrama do G. E. Silveira Martins revela que o edifício tem parte de seu perímetro fechado por paredes, embora tenha um perímetro maior constituído por aberturas. O acesso principal está localizado na esquina. Apesar de discreto, estabelece um marco na fachada, colaborando para a distribuição e organização dos ambientes. Há, ainda, outros três acessos secundários que fazem conexão com o pátio e também atuam como entrada de serviço. O perímetro é bastante recortado em virtude da conformação em “L” da planta e os volumes que se projetam para fora (volume curvo da esquina e das escadas). Por outro lado, o bloco sólido e ancorado ao solo, que constitui esse perímetro e o sistema construtivo utilizado (parede portante), não permite grande integração do interior com o exterior mesmo que o ritmo de fenestração seja bem marcado. Contudo, essa integração interior x exterior é especialmente valorada na configuração da esquina a partir dos terraços do segundo e terceiro pavimentos e nos extremos das alas direita e esquerda (o segundo e terceiro não foram contemplados nos diagramas).
Circulação e espaços:
A proposta apresenta uma solução tipológica testada e consagrada: um volume compacto, em “L”, com circulação central, ao longo do qual se distribuem as salas de aula, áreas administrativas e serviços. Arquitetonicamente, busca-se a inter-relação entre as unidades, além da ventilação e iluminação natural para todas as salas de aula. Estas se aproximam da forma retangular, em grande medida condicionada pela distribuição da estrutura de suporte do edifício. O formato em “L” proporciona, ainda, uma distribuição mais orgânica dos espaços e, na esquina, cria um centro de intersecção das alas. Ao serem concebidos como um volume único, os espaços foram adequados à sua forma, e os setores têm rígidas separações (também condicionados pelo sistema construtivo). O volume interno revela espaços sem variações de pé-direito, com exceção do auditório, com pé-direito duplo, o qual pode ser identificado externamente pelo ritmo das esquadrias em diferentes alturas. Apesar da extensão do edifício, sua conformação e distribuição dos núcleos verticais (escadas) geraram uma planta funcional com o mínimo de área destinada à circulação horizontal.
Setorização e grau de compartimentação:
No projeto do grupo escolar, observa-se grande integração entre os setores apesar da quantidade de paredes. Ainda que haja uma rígida delimitação dos espaços, criaram-se condições para que uma das alas fosse destinada ao espaço que recebe o maior número de usuários ao mesmo tempo (auditório), o que significa um rígido controle sobre ele. Grande parte do pavimento térreo foi destinado ao setor de ensino. No entanto, também há espaços reservados ao setor administrativo e serviços. O (setor) de ensino é que faz limite com a rua e com ela dialoga pela sequência de aberturas. É composto basicamente de salas de aula (no térreo são seis), biblioteca (volume curvo da esquina) e auditório na extremidade da ala direita. Secretaria e direção contemplam o setor administrativo, cujos espaços são conectados internamente e se localizam nos limites da integração das circulações. A compactação do setor de serviços revela a estratégica posição dos sanitários. São dois conjuntos, separados por sexo, posicionados junto às circulações verticais. A integração dos ambientes acontece especialmente pelos núcleos de circulação vertical. O principal, localizado próximo ao volume curvo da esquina, possui uma grande abertura com vidros, e o balé do ir e vir de alunos pode ser visto da rua. Outras duas se voltam ao pátio da escola, sendo que uma delas também apresenta volume curvo, característica observada no G. E. Visconde de Congonhas do Campos, construído no interior de São Paulo (ver Figura 2).
Este trabalho priorizou a análise realizada a partir do redesenho do projeto original do G. E. Silveira Martins, unidade para trezentos e cinquenta alunos, construído na cidade de Bagé/RS. Diagramas interpretativos revelam distintas estratégias para concretizar o objeto arquitetônico. Esse conjunto de critérios, associado a outros que estamos desenvolvendo na pesquisa maior, permitirá análises comparativas entre distintas tipologias, além de identificar os princípios adotados pelos diferentes arquitetos da SOP/RS, seja na ordenação de formas e espaços, seja na apropriação de diretrizes ou orientações, para a construção de edifícios escolares.
Considerações finais
A representatividade da obra moderna que se observa nos grupos escolares construídos no Rio Grande do Sul, no período de administração de Coelho de Souza à frente da SOP/RS, justificou a escolha deste tema como objeto de estudo. Por meio da série “histórica”, delimitada a partir do Relatório de 1943, foi possível identificar os trinta e três edifícios escolares construídos na capital e no interior do Estado. Com base em projetos-padrão, que variavam de tamanho (200, 350, 500 e 750 alunos), conseguimos observar a evolução arquitetônica das propostas das coberturas expostas a quatro águas, seguindo o modelo da construção tradicional (G.E. Estrela, de Estrela/RS), até os telhados protegidos por platibandas, numa clara adaptação aos preceitos da arquitetura moderna (G.E. Joaquim Caetano da Silva, de Jaguarão/RS).
Assim, a partir de uma breve incursão nas questões das reformas na Era Vargas, percebemos que a educação atuou como mais um dos agentes na promoção da arquitetura moderna no país em um período marcado pela consolidação da nova corrente. A modernização pedagógica e arquitetônica que ocorreu nos grandes centros, aliada ao desejo de renovação do ensino pautado principalmente pela Escola Nova, fez sentir-se também em solo rio-grandense, numa etapa que representou a concretização das políticas de expansão da rede pública de ensino na primeira metade do século XX.
A aplicação do método gráfico permitiu estabelecer algumas relações entre a obra de Bagé/RS e os edifícios escolares difundidos pelo país a partir da produção paulista e carioca dos anos 1930/40, revelando possíveis semelhanças com elementos de composição, a saber: a) implantação em terreno de esquina, valorizando o marco arquitetônico; b) edifício de até três pavimentos, com porão para elevar o prédio (monumentalidade); c) uso de formas predominantemente geométricas, com destaque para o volume curvo da esquina; d) uma aproximação à arquitetura moderna ainda que a organização espacial do grupo escolar de Bagé contemple um edifício ancorado ao solo e articulado por salas de aula dispostas com circulação central.
Por outro lado, não se observa qualquer intenção de utilização de pilotis, estratégia associada ao período Moderno e observada no G.E. Visconde de Congonhas do Campo. Essa alternativa pode ser entendida como consequência da lenta inserção da estrutura independente de concreto armado no interior do país, aliada ao alto custo do material e à dificuldade com mão de obra especializada. No entanto, já é possível perceber a inclusão de aspectos modernos, como a caixilharia de ferro do volume da escada e do auditório, salas de aula amplamente iluminadas, vestiários, gabinete médico e auditório, além do conforto e higiene do espaço escolar. Neste sentido, identificaram-se alguns aspectos característicos que nos permitiram estabelecer outras aproximações, como: a) a proposta de educação integral; b) a opção por uma arquitetura moderna para as edificações escolares; c) o papel político e social que a escola representava no âmbito do Estado e das cidades.