Introdução: uma experiência efêmera
Ao lado de uma série de inovações científicas e tecnológicas que foram incorporadas ao cotidiano da produção e do entretenimento no Brasil desde o final do século XIX, o cinema apareceu “como uma súmula de outras invenções, capaz de sobrepujar as demais formas de comunicação de massa” (FABRIS, 1994, p. 99). Para muitos de seus observadores tratou-se de um meio de comunicação capaz de forjar novas formas de comportamento2 e de, muitas vezes, criar, segundo muitos dos seus historiadores, tipos e mitos da nacionalidade brasileira. Tema especialmente caro aos que se interessaram pela cultura brasileira na passagem do século XIX para o XX, o cinema foi compreendido como veículo de difusão das modas e da modernidade do hemisfério norte ocidental aqui no Brasil (SEVCENKO, 2004). Conforme explica Sevcenko, o predomínio do cinema americano tinha nos filmes só uma parte de uma indústria que contava ainda com “um manancial caudaloso de revistas, informações, mexericos, fotografias, pôsteres, suvenires, discos, fã-clubes e turnês” (SEVCENKO, 2014, p. 92).
A preocupação com as reações ao avanço do consumo de filmes denominados posados e, sobretudo, comerciais, reúne estudos voltados ao investimento público no cinema educativo. Ainda nos anos 1930, com a publicação de Serrano e Venâncio Filho (1930) e de Canuto (ALMEIDA, 1931) e mesmo a presença do tema em revistas pedagógicas como o Boletim de Educação Pública (1930) e Escola Nova (1931), o cinema de caráter educativo foi tido como alternativa adequada ao cinema comercial e as consequências que poderia trazer para os valores morais e os costumes sociais de então. A historiografia da educação dedicou-se ao estudo desse tipo de produção fílmica e, especialmente, destacou sua exploração como meio para a educação popular.3 Sua presença nas estratégias de elaboração do nacional, de difusão da ciência ou nas discussões acerca dos recursos didáticos do ensino de massa, foi percebida de diferentes perspectivas por esses estudos, desde o estudo dos equipamentos e seu emprego e da difusão da exibição de filmes educativos nas escolas até as práticas de censura.
Entre a ficção e o documentário, o cinema educativo tornou-se experiência efêmera na história da cinematografia, já que não conseguiu criar uma tradição e, institucionalmente, teve uma vida de cerca de trinta anos.4 No entanto, esse cinema é fundamental à compreensão, senão dos primórdios das políticas para o setor no país, ao menos, de um capítulo fundamental das práticas de filmagem dos diretores brasileiros. É dessa fronteira entre a ficção e o documentário, entre a política de patrocínio público e a criação autoral, que o presente artigo pretende explorar esse já bem cuidado tema da historiografia que é o cinema educativo. Assim, seu principal escopo foi relacionar as produções dirigidas por Humberto Mauro (1897-1983) no INCE ao ambiente de discussão das políticas de controle do cinema nos anos 1930. Pareceu-nos fundamental a esse exercício de interpretação também considerar os diferentes itinerários do cinema posado e do cinema educativo no debate público dos anos 1920 e 1930, uma vez que se toma por hipótese que Humberto Mauro foi um realizador capaz de embaçar as fronteiras entre o ficcional e o documentário, entre o comercial e o educativo. Com isso, concebe-se Mauro com uma personalidade singular5 na história do cinema educativo brasileiro.
A partir dessa hipótese inicial, organizamos nossas considerações em 4 etapas. A primeira delas pretende lembrar acerca das condições de difusão do cinema no Brasil e, desse modo, apresenta algumas considerações sobre o início das exibições de cinema. A etapa seguinte ocupa-se do cinema educativo propriamente e também tem o objetivo de compreender suas condições de difusão. Neste caso, a análise se detém sobre as reformas do ensino público no Rio de Janeiro e em São Paulo entre 1929 e 1931 em busca das principais características do seu fomento antes da centralização promovida pela criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Ao INCE é dedicada a terceira parte deste artigo. O estudo desta instituição criada no Estado Novo permite ter alguma compreensão das ações do governo federal para promover a imagem de um Brasil moderno a partir do cinema. Humberto Mauro, certamente o principal realizador dos filmes do INCE, com 357 produções de sua autoria (SCHVARZMAN, 2004, p. 16), não apenas se moveu na intrincada rede de relações político-institucionais que permitia a produção de filmes patrocinados pelo Estado à época, como tem uma trajetória que importa ao entendimento daquilo que o cinema podia contribuir para a elaboração visual da nação e da imagem do “homem brasileiro”. Encerramos nossas reflexões, portanto, com as relações que, por meio da produção de Humberto Mauro no INCE, se pode estabelecer entre o modo como se pensava o cinema educativo nos anos 1920, o papel do INCE no fomento da produção desse cinema e o que de fato se realizou enquanto filme.
A perspectiva interpretativa a partir da qual compreendemos aqui essa relação associa o entendimento advindo das discussões em torno de uma historiografia preocupada com a circulação e apropriação de modelos culturais aos modos como a análise dos conteúdos das obras é sugerido pela Sociologia da Cultura e da Arte praticada por Raymond Williams e Pierre Francastel, bem como pela Teoria da Arte de Ernst Gombrich. De Williams (1992) e Francastel (1993) recuperamos a noção da arte como ferramenta humana de construção de valores e não simples reflexos da sociedade de onde ela surge. De Gombrich (1996), a noção de que o artista, mais do que copiar a realidade em suas obras, trabalha a partir de esquemas nascidos de uma tradição, o que é fundamental para que haja alguma forma de comunicação com seu público.6 Em comum, esses autores nos ajudam a olhar para o cinema como uma forma de pensamento visual7 que, no caso aqui analisado, foi valorizado e mobilizado por intelectuais e governantes como ferramenta educativa.
Assim, por um lado, ocupamo-nos de circunscrever as condições de aparecimento do cinema educativo no Brasil e suas relações com a cultura cinematográfica. Por outro, para mostrar as mudanças na compreensão de educativo nas realizações cinematográficas do INCE, exploramos como pitoresca o tipo de apropriação que Humberto Mauro faz nas suas criações da tradição visual brasileira. É nessa direção que a nossa análise procurou se beneficiar das interseções entre a história cultural da educação e as preocupações com o sistema de sinais por meio do qual se confere sentido à arte.
O cinema no Brasil
A primeira sala fixa de cinema no Brasil foi inaugurada em 1897 no Rio de Janeiro pela família Segreto, de emigrados italianos, cujo principal dono era Paschoal Segreto. Inicialmente chamada de “Salão de Novidades”, logo esse local receberia o nome de “Salão Paris no Rio”, em razão de o cinema ser uma novidade francesa. Uma das primeiras filmagens realizadas no Brasil aconteceu em 19 de junho de 1898, quando Alfonso Segretto, filho de Paschoal, registrou imagens da baía da Guanabara quando voltava de uma de suas viagens realizadas no exterior para adquirir novos equipamentos. Até pouco tempo acreditava-se ser este o primeiro filme brasileiro, mas já se sabe que as primeiras produções nacionais datam de 1897, como, por exemplo, o filme Maxixe, do italiano Vittorio di Maio (SIMIS, 1996, p. 19),8 que também apresentava vistas da cidade.9
O cinema brasileiro nasceu, portanto, da ação de italianos,10 e com o interesse em captar o “real”11 e, daí por diante, muitas filmagens seriam realizadas a partir de imagens da cidade. O crítico Paulo Emilio Salles Gomes aponta, porém, que os dez primeiros anos do cinema brasileiro foram muito pobres, sobretudo por conta da falta de eletricidade.12
Os dez primeiros anos de cinema no Brasil são paupérrimos. As salas fixas de projeção são poucas, e praticamente limitadas a Rio e São Paulo, sendo que os numerosos cinemas ambulantes não alteravam muito a fisionomia de um mercado de pouca significação. A justificativa principal para o ritmo extremamente lento com que se desenvolveu o comércio cinematográfico de 1896 a 1906 deve ser procurada no atraso brasileiro em matéria de eletricidade. A utilização, em março de 1907, da energia produzida pela usina Ribeirão das Lages teve consequências imediatas para o cinema no Rio de Janeiro. Em poucos meses foram instaladas umas vinte salas de exibição, sendo que boa parte delas na recém construída Avenida Central, que já havia desbancado a velha Rua do Ouvidor como centro comercial, artístico mundano e jornalístico da Capital Federal (GOMES, 1980, p. 41).
Esse cenário se alteraria a partir de 1908, quando a produção cinematográfica brasileira começou a ganhar fôlego. Mesmo já havendo exibições a partir de cinemas ambulantes, essa é a época em que começariam a ser abertas salas de cinema em São Paulo e no Rio de Janeiro, o que significaria também um súbito crescimento do comércio cinematográfico, que influenciaria a produção cinematográfica nacional (GOMES, 1980, p.19-24).
A ampliação do número das salas de cinema foi crucial para o estabelecimento de uma cultura cinematográfica no país. Afinal, a capacidade de interpretar a linguagem baseada em imagens justapostas do cinema é parte de nosso sistema de percepção, mas não podemos esquecer que levou tempo para que fizéssemos essas conexões rápidas, automáticas e reflexivas que dão sentido ao que assistimos (CARRIÈRE, 1995, p. 15). Raymond Williams (1992, p. 130) nos diz que a percepção da arte depende da compreensão do seu “sistema de sinais”, o que inclui o seu espaço de exposição (ou projeção, no caso do cinema). Portanto, a partir de 1908, no Brasil, estamos diante de uma cultura visual cinematográfica em desenvolvimento e a criação das salas de cinema é significativa a esse respeito.
Em troca do café que exportava, o Brasil importava até o palito e era normal que importasse também o entretenimento fabricado nos grandes centros da Europa e América do Norte. Em alguns meses, o cinema nacional eclipsou-se e o mercado cinematográfico brasileiro, em constante desenvolvimento, ficou inteiramente à disposição de filme estrangeiro. Inteiramente à margem e quase ignorado pelo público, subsistiu contudo um debilíssimo cinema brasileiro (GOMES, 1980, p.11).
Como aponta Sheila Schvarzman, dessa situação nasceu a realização de filmes de caráter “não-artístico”, a partir de trabalhos de propaganda, em geral política, o que recebeu o título de “cavação”, cujo sucesso permitiu a extrapolação do espaço de produção cinematográfica, até então circunscrito à Capital Federal, para outras regiões do país.13 Jean-Claude Bernardet percebe que o fenômeno da cavação serviu de apoio para o cinema brasileiro à época:
Os europeus e os norte-americanos enchiam o Brasil de filmes de ficção, pois a indústria vinha se desenvolvendo exclusivamente em função do filme de enredo. Aos produtores que atingiam os mercados internacionais, porém, não interessavam assuntos de alcance, digamos, municipal. Criou-se assim uma área livre, fora da concorrência dos produtores estrangeiros. Desenvolveu-se uma produção de documentários - ou naturais como chamados na época - e de cine-jornais. Um levantamento da exibição cinematográfica em São Paulo até 1935 indica que nada menos de 51 jornais cinematográficos brasileiros apareceram nas telas paulistas neste período (BERNARDET, 1979, p.23).
Anita Simis avança sobre outro tipo de explicação explorando argumento do distribuidor Júlio Llorente: “a má qualidade dos filmes nacionais e sua consequente baixa rentabilidade fez com que fosse distribuído por agentes isolados, à base de comissão, nas regiões mais pobres, cidades pequenas desprezadas pelas grandes agências” (SIMIS, 1996, p. 79). Outro aspecto da produção cinematográfica no Brasil será de cunho educativo.
Desde os anos 1920, o cinema educativo era parte das discussões oficiais referentes à educação popular. Tomado como uma forma de promover a integração nacional por meio de imagens, o cinema se inseria no ideário de transmissão de uma cultura que, principalmente, perpassava pelos campos da ciência, da geografia e da história. As películas com conteúdo científico14 se diferiam do cinema chamado, pelos educadores, de recreativo, que, nos anos de 1920, já era exibido nas quase 700 salas de cinema brasileiras.
Cinema Educativo no Brasil
Ainda na primeira década do século XX, a partir das coleções científicas da Pathé, Edgard Roquette-Pinto organizou, no Museu Nacional, o primeiro acervo de filmes documentários. As películas tinham como tema a ciência, como evidenciam alguns títulos: Borboletas e Mariposas, Abelhas e Aranhas, A terra dos Pássaros. Em 1912, filmou Os Nhambiquaras durante suas atividades na Comissão Rondon.15 Já a utilização da imagem em movimento como recurso educativo escolar foi proposta por Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, entre 1927 e 1930, e por Lourenço Filho, em São Paulo, em 1931, como parte de um programa de renovação pedagógica voltado para a expansão da educação popular.
De fato, na capital da República, o decreto nº 2940, de 22 de novembro de 1928, a exposição do Cinema Educativo no ano seguinte e os textos de Jonathas Serrano (1930) no Boletim de Educação Pública e a publicação, por Serrano e Venâncio Filho (1930) do livro Cinema e Educação na coleção Bibliotheca de Educação dirigida por Lourenço Filho na editora Melhoramentos, contribuíram muito nesse sentido. Do mesmo modo, em São Paulo, Lourenço Filho promoveu uma significativa discussão do emprego do cinema educativo nas escolas com a publicação, em 1931, de um número da revista Escola Nova todo dedicado ao assunto. No mesmo ano, Canuto Mendes publicou o livro Cinema contra Cinema e reivindicou a regulamentação do cinema como negócio. Lourenço Filho, Canuto Mendes e Jonathas Serrano possuíam uma argumentação muito semelhante, como é salientado por Morettin, quando comenta o prefácio que Lourenço Filho escreveu para os livros de Canuto Mendes: para eles, a cura do cinema deseducativo é o cinema educativo, orientado para o bem (MORETTIN, 1995, p.14).
Com a criação do Ministério da Educação e Saúde, não tardaram a aparecer as providências para centralização das políticas de controle da exibição e produção cinematográfica. Em 1931 foi instalada uma comissão de trabalho sobre filmes cinematográficos para discutir a censura no Ministério da Educação e Saúde. Sob a presidência de Roquette-Pinto, Teixeira de Freitas, Lourenço Filho, Mario Behring, Ademar Gonzaga, Ademar Leite Ribeiro, Jonathas Serrano e Venâncio Filho trabalharam no anteprojeto do que viria a ser o Decreto 21.240/32, que, segundo Antonacci e Simis, nacionalizou o serviço de censura aos filmes, que até então ficava a cargo das polícias locais. Em 1932, Roquete-Pinto tornou-se o diretor da Comissão de Censura Federal. Todavia, sob seu comando, a censura tinha menos interesse moral, muito discutido na época, do que de controle cultural daquilo que era veiculado. Assim como o fizera no rádio na década anterior,16 a ideia era educar pelo cinema, decidindo o que poderia ser útil e realmente educativo para os brasileiros. Conforme explicaram Costa e Paulilo (2015, p.54):
O decreto nº 21.240/32 previa a diminuição dos impostos sobre o filme virgem, o que poderia contribuir para a importação e a produção de películas comerciais de todos os gêneros. Ao mesmo tempo, determinou a exibição de filmes educativos antes de longas-metragens e estabeleceu a censura cultural. A análise e a classificação dos filmes ficariam a cargo de uma comissão composta por um professor do Ministério da Educação e Saúde, um educador da ABE e pelo diretor do Museu Nacional, o que demonstra a força dos defensores do cinema exclusivamente educacional neste processo.
Entre 1928 e 1937 tanto o escopo do cinema educativo quanto o seu aparato institucional estavam definidos por legislação própria. Nas tratativas dessa quase uma década de inciativas em torno do cinema educativo, a criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE) constituiu um capítulo especial.
O INCE
A intensa valorização da história nacional no período, havendo importantes iniciativas de incorporação da cultura nacional nas artes e na literatura e um esforço sistemático de compreensão do país por meio do estudo das suas origens, fez aumentar a reflexão acerca do passado nacional. Esse movimento de valorização, especialmente percebido na sociologia e na antropologia, animou o estudo acerca dos afrodescendentes, das populações rurais e dos imigrantes (CANDIDO, 1999, p. 79). No Modernismo dos anos de 1920 já se percebia esse interesse nas questões nacionais, numa identidade brasileira, mas isso ficaria ainda mais evidente e rotinizado a partir dos anos de 1930, especialmente no Estado Novo, em 1937, com a ditadura de Getúlio Vargas (ARANTES, 1997, p. 42-43).
É como parte de um projeto nacional de grande envergadura que o INCE foi organizado em 1936 como uma peça-chave na elaboração da imagem de um Brasil moderno, que não perdia as referências ao passado colonial. Parte do denominado “modernismo oficial dos anos de 1930”, a criação do INCE, como também o patrocínio do Estado Novo às artes visuais e à arquitetura, visavam dar sentido a um projeto de nação que tinha na cultura visual um grande alicerce. Por volta de 1937, sob a liderança de Gustavo Capanema, o Ministério da Educação e Saúde desenvolveu uma série de investidas no sentido de promover o que seria a construção de uma identidade cultural para o Brasil, cuja sede, na Capital Federal, é um emblema do modernismo de então, uma mistura entre o estilo moderno de Le Corbusier e as referências locais, como nas imagens compostas por Candido Portinari para os murais, que traziam os ciclos da economia brasileira, dando destaque à figura do negro.17 Esse prédio tornou-se um marco da arquitetura brasileira, um verdadeiro emblema do caráter nacionalista do período, onde a cidade se tornava, ela mesma, “palco do moderno” (SEGAWA, 2002, p.19).
A partir das assertivas de Roquette-Pinto, diretor do INCE entre 1936 e 1947, além do caráter educacional e cultural dos filmes ali criados, o instituto trabalharia diretamente com a investigação científica (ROQUETTE-PINTO, 1938, p. 18). O conhecimento científico, incialmente cultivado nos museus e em algumas obras literárias18 passou a ser, no INCE, um dos vetores na construção da buscada identidade nacional, dando forma a uma imagem para o chamado “homem brasileiro” (SCHVARZMAN, 2004, p. 91).
O modelo vinha de fora. Em 1924, surge na França o Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI), uma ramificação da Sociedade das Nações,19 que cultivava a ideia do cinema educativo como elemento essencial em um projeto de modernização transnacional após a Primeira Guerra Mundial (DRUÏCK, 2007, p. 82). No entanto, seria em 1928 que surgiria o grande modelo: o Instituto Internacional de Cinema Educativo (IICE), com sede em Roma e sob a égide de Mussolini, que existiu até 1937, e tinha em Luciano de Feo um de seus principais nomes. Roquette-Pinto, que viajou pela Europa nos anos que antecederam a criação do INCE, se interessou profundamente pelo que se fazia na Itália, embora não concordasse com a não separação, pelo IICE, entre filmes populares e filmes escolares, algo que ele encontrou na Alemanha. Segundo o antropólogo, nesse país havia uma clara separação entre o cinema “em geral”, que estava vinculado ao Ministério da Propaganda, ao passo que o cinema educativo se vinculava ao Ministério da Educação. Todavia, como observa Sheila Schwarzmann, era frágil a linha que separava educação e propaganda na Alemanha nazista (SCHVARZMAN, 2004, p.203). De todo modo, em sua turnê europeia, Roquette-Pinto encontrou modelos para a criação de um instituto de cinema educativo, reconhecendo as contribuições de cada instituição visitada, mas destacando que no Brasil haveria características próprias a serem levadas em consideração, sobretudo no sentido de separar educação e propaganda (SCHVARZMAN, 2004, p.205).
O nome de Roquette-Pinto, portanto, é indissociável da história do INCE. Primeiramente, por conta de seus trabalhos na criação de uma cinemateca no Museu Nacional, em 1910, que seria o primeiro acervo de filmes antropológicos do Brasil, agregando posteriormente as produções da Comissão Rondon. Segundo ele mesmo, isso teria dado início no Brasil ao emprego do cinema com fins educativos e de pesquisa científica (ROQUETTE-PINTO, 1938, p.10).20 Outra contribuição, como vimos, foi sua pesquisa a partir do cinema nacionalista feito na Europa na mesma época, sobretudo o cinema fascista italiano e o cinema nazista alemão, mas com grande entusiasmo com o nível de produção da Inglaterra, citando, também, os Estados Unidos nesse sentido (Roquette-Pinto, 1937). Pode-se pensar Roquette-Pinto como uma espécie de elo entre o que se fazia em termos de cinema educativo no mundo (Europa e EUA) e o Brasil. Nesse sentido, o INCE, que foi incluído de forma definitiva “no quadro dos serviços públicos” do Ministério da Educação e Saúde a partir do Decreto nº 378 de 13 de janeiro de 1937, tinha como fim manter uma filmoteca para servir aos estabelecimentos de ensino, oficiais ou particulares, organizar e editar filmes educativos, permutar filmes produzidos ali com outros órgãos do gênero, nacionais ou estrangeiros, editar “discos ou fitas” com aulas, conferências e palestras com “professores notáveis”, para venda avulsa ou aluguel e publicar uma revista dedicada ao uso de processos técnicos como rádio, cinema, fonógrafo etc na educação.21
Nesses termos, o INCE já nasce como parte do projeto de criação de uma moderna nação brasileira, que na época estava em vias de sua industrialização. O cinema, dentro desse plano e pensando ao mesmo tempo com ferramenta educativa e de propaganda do governo, tornava-se um caminho de instrução das massas, sobretudo àquelas que habitavam o interior do país e tinham pouca ou nenhuma instrução, como podemos ver na fala de Getúlio Vargas à Associação de Produtores Cinematográficos, em 1934:
O cinema será, assim, o livro das imagens luminosas, no qual as nossas populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil, acrescentando a confiança nos destinos da Pátria. Para a massa de analfabetos, será essa a disciplina pedagógica mais perfeita, mais fácil e impressiva. Para os letrados, para os responsáveis pelo êxito da nossa administração, será uma admirável escola (apud SCHVARZMAN, 2004, p.135).
Embora houvesse essa compreensão da parte do governo em relação à importância dos filmes educativos, esse projeto foi incialmente abalado pela criação do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, o DPDC, em 1934, que afastava o Ministério da Educação e Saúde das atribuições referentes ao cinema ou ao rádio. Gustavo Capanema conseguiu reverter isso ao separar o cinema de “espetáculo”, que seria posto sob a alçada do DPDC, do cinema “educativo”, que ficaria a cargo de um futuro órgão a ser promovido naquela década, o INCE (BARRENHA, 2018, p. 493).22
Realizações do Cinema Educativo
Sob a mediação que Roquete-Pinto promoveu entre o Brasil e o exterior ou o trabalho das comissões do INCE e suas políticas, houve realizadores. Entre eles, Humberto Mauro23 se destaca na construção visual da nação e da imagem do “homem brasileiro” que se queria construir. Dentre todos os realizadores da época, ele foi um dos poucos a se empenhar na produção de filmes educativos, algo que realizou durante os trinta anos de trabalhos no INCE, quando dirigiu mais de duzentas obras, entre curtas e longas metragens.24
Nascido em Volta Redonda em 1897, Mauro ingressou na vida cinematográfica em Cataguases, cidade de Minas Gerais, e se tornou parte da grande estratégia de construção de uma representação de nação moderna implementada a partir do INCE, desde seus primeiros trabalhos no Instituto. O Descobrimento do Brasil, película de 1937, obra de temática histórica baseada na Carta de Pero Vaz de Caminha, é emblemática do início das atividades de Humberto Mauro como diretor de filmes no órgão dirigido por Roquete-Pinto.25 Nesse filme, Mauro apresenta uma imagem para o nosso descobrimento, criando, a partir disso, mitos de uma nacionalidade (TREVISAN, 2016).
Um ano após o lançamento do seu primeiro filme de ficção, em 1925, intitulado Valadião, o cratera (SCHVARZMAN, 2004, p. 24-30) e enquanto já filmava Thesouro Perdido (1927),26 Mauro conheceu Adhemar Gonzaga, jornalista e crítico de cinema da revista Palcos e Telas. Gonzaga foi um dos criadores da revista Cinearte e tinha um ponto de vista moderno em relação às produções fílmicas. Contrário à “cavação” e ao cinema de caráter documental de maneira geral, Gonzaga defendia um cinema livre da sua ligação com a literatura e o teatro, e tinha no modelo hollywoodiano de fazer filmes seu grande referencial. O chamado cinema não encenado (que tinha interesse em filmar o negro, a pobreza, a natureza exotizada) era criticado por Gonzaga e demais críticos da Cinearte, em favor do chamado “cinema posado” (SCHVARZMAN, 2004, p. 31-35). O primeiro trabalho entre ambos aconteceu no Rio de Janeiro, com o filme Lábios sem Beijos (1930), na produtora Cinédia, que era propriedade de Adhemar Gonzaga. Mauro tinha um jeito próprio de trabalhar, sempre interessado nas paisagens e na imagem de pessoas comuns, ao passo que Gonzaga tinha um olhar moderno, afinado com o que se fazia em Hollywood.27 Segundo Sheila Schvarzman, o resultado desse encontro, em Lábios sem Beijos, é que dois filmes acabam se sobrepondo em uma mesma produção:
O de Gonzaga, seu produtor: filme luxuoso nos ambientes, figurinos e caracterizações que constroem uma imagem de riqueza e sofisticação sobre a juventude abastada da Capital Federal; e outro, o de Humberto Mauro, que ironiza essas mesmas crenças e se debruça com vagar e gosto sobre as paisagens do Rio de Janeiro (SCHVARZMAN, 2004, p.69).
Esse jeito particular de Humberto Mauro será uma marca, com filmes em que a paisagem é trabalhada com o cuidado de uma pintura idílica, sendo que o enredo, propriamente dito, muitas vezes assume o segundo plano. Seu olhar pitoresco se assemelha ao do artista plástico, e essa será uma marca de seus filmes (TREVISAN, 2016, p. 219).
O pitoresco, tão valorizado por Mauro, foi um termo clivado pelo inglês William Gilpin (1982) em seus textos a partir de 1760, especialmente condensadas no livro Three essays: on picturesque beauty; on picturesque travel; and on sketching landscape: to which is added a poem, On landscape painting, de 1792.28 Como elementos de uma pintura de caráter pitoresco, o autor sugeria uma construção visual com variedade de figuras (animais, plantas, pessoas, veículos) e uso de contrastes entre elas (Gilpin. 1982, p.68), como uma construção em ruínas ao lado de uma bela vegetação ou então de um homem maduro próximo a uma mulher jovem (GILPIN. 1982, p.23). Segundo Ernst Gombrich, com o tempo o gosto ou o olhar pitoresco foi deixando de valorizar castelos ou pontes em ruínas, para dar a atenção a coisas mais simples como um barco à vela ou um moinho de vento. Dessa forma, o pitoresco não é apenas um modo de se fazer pinturas ou de apreciá-las, mas um modo de apreciar a natureza em sua “beleza despretensiosa”, como se fosse uma pintura (GOMBRICH, 1972, p.330). Compreendemos o olhar de Mauro dentro dessa clivagem, que o diferenciava das proposições de Adhemar Gonzaga e seu anseio por um cinema mais hollywoodiano. Em seus filmes educativos, porém, ele conseguiria avançar muito nesse “modo de ver”,29 sobretudo nos curtas-metragens da série Brasilianas,30 realizadas entre 1945-1956. Claro que já se podia perceber esse olhar nas obras de ficção do início da carreira, com em Sangue Mineiro (1929), obra em que parece haver um deliberado empenho em “construir o que seria o nacional e o mineiro” (SCHWARZMAN, 2004, p.54). Mas no INCE Mauro teve tempo, espaço e estrutura institucional para dar asas a seu olhar pitoresco.
Contudo, como se depreende da sua obra, Humberto Mauro não se limitou aos temas nacionais ou ao cinema educativo. Também trabalhou com assuntos variados e desde a animação para as crianças (O Dragãozinho Manso - Jonjoca - 1942 P&B) até a abordagem da literatura brasileira (Meus oito anos, 1955, a partir do poema homônimo de Casimiro de Abreu) construiu uma estética cuidadosa da paisagem e capaz de se expressar pelo pitoresco. Em 1952, em projeto independente do INCE,31 trabalhou em outro filme de ficção, chamado Canto da Saudade, em que elementos da valorização do campo, do folclore e do passado nacional são muito explorados. Em 1964 produz o curta-metragem A velha a fiar, que se tornou um clássico e é considerado o primeiro videoclipe brasileiro.32
É um tanto difícil pretender fazer generalizações quanto ao cinema de Humberto Mauro, mesmo se ficarmos circunscritos ao seu universo de criação dentro do Instituto - afinal, só para o INCE são mais de 300 filmes. No entanto, concordamos com as proposições de Sheila Schwarzmann sobre haver uma nítida diferença entre os filmes feitos na primeira fase do INCE, que vai de 1936 a 1946 (época em que Roquette-Pinto estava à sua frente) e o que ele realizou depois disso. Antes, um país grandioso deveria ser mostrado, com ênfase na ciência e nos vultos históricos. Com a saída de Roquette-Pinto e a nova direção de Paschoal Leme, Mauro terá mais liberdade para trabalhar a partir de suas próprias referências, e então o mundo rural, que pouco apareceu nos primeiros anos do INCE, ganha espaço, o que virá materializado de forma emblemática nas séries Brasilianas e Higiene Rural.33
De qualquer modo, pode-se dizer que o cinema praticado por Humberto Mauro já não era aquele que os reformadores do ensino difundiram e propagaram na capital federal e em São Paulo como educativo nos anos 1920 e 1930. Contudo, não parece fora de propósito perceber, dentro da diversidade de sua produção cinematográfica, aquilo que à época já se imaginava possível fazer: apresentar noções tidas como verdadeiras através de um texto correto do ponto de vista científico e de forma adequada ao ensino e reproduzir de maneira "fiel" os fatos ocorridos no passado, recorrendo a especialistas no assunto, como fez Mauro à Taunay ao dirigir O descobrimento do Brasil (1937) ou Os Bandeirantes (1940).34
Considerações finais
A história do cinema brasileiro, nos seus primórdios, se mistura com a história do cinema educativo e, nesse sentido, tem relação direta com o Estado. Humberto Mauro, nesse contexto, é um dos nomes mais importantes a serem lembrados. Não é à toa que Glauber Rocha, uma das figuras centrais do chamado “Cinema Novo”, movimento cinematográfico brasileiro dos anos de 1960, irá recuperar Humberto Mauro para elegê-lo como o fundador do cinema brasileiro (ROCHA, 1978, p. 80). Ainda que a história do cinema brasileiro o anteceda, Mauro tem uma sólida obra a serviço de construir, em uma chave que mescla o ficcional e o documental, o folclórico e o histórico, o campo e a cidade, uma imagem de Brasil. Por essa razão, oferece aos interessados no estudo do pensamento visual35 brasileiro farto material a ser explorado, e sugere filmicamente um modo de ver o Brasil.
Como se percebe, essa relação entre educação e cinema no Brasil não está desvinculada do que acontecia em diversos lugares do mundo na mesma época - e um dos elementos centrais dessa aproximação são a participação de intelectuais nos projetos cinematográficos, mas também nas publicações destinadas a promover (ou mesmo construir) a força do cinema como ferramenta educativa. A relação com o Estado é outro elemento chave na compreensão desse fenômeno, embora seja apressado rotular todo cinema criado nesse contexto como uma propaganda governamental. Como vimos, Roquette-Pinto, um dos pioneiros da institucionalização do cinema educativo no Brasil, era contrário a essa mistura. Humberto Mauro, por sua vez, aparece como peça chave desse processo, por ser o mais envolvido com a produção fílmica no INCE, onde trabalhou até a extinção do órgão, em 1967.